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Corpo e Sex de Pessoas com Deficiência na Internet

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Neste livro, a autora busca fazer algumas problematizações referentes ao corpo e à sexualidade das pessoas com deficiência na contemporaneidade, por observar que existem temas que, em nossa sociedade, sempre se constituíram e foram considerados tabus, como é o caso do corpo e da sexualidade da pessoa com deficiência. Procura, assim, tensionar os recorrentes discursos que são criados com relação às pessoas com deficiência e que passam a representá-las como pessoas assexuadas ou, ao contrário, hipersexualizadas. A análise dos materiais (constituídos de reportagens e entrevistas do site Sentidos: http://www.sentidos.com.br/canais) foi empreendida desde a perspectiva dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero (os quais não entendem o corpo e a sexualidade como coisas simplesmente dadas pela natureza, mas como construídos social e culturalmente). Foram analisadas dez reportagens que se encontravam dentro das quatro áreas de deficiência (visual, mental, física, auditiva) que o site apresentava. Ao problematizar os discursos e as representações culturais vigentes, a autora procura lançar um outro olhar sobre como são representados/apresentados esses corpos e sexualidades nos dias atuais.

Citation preview

  • Miriam Piber Campos

    CORPO E SEXUALIDADE DE PESSOAS COM DEFICINCIA

    NA INTERNET

    1 Edio

    Porto AlegreINDEPIn

    2013

  • Copyrigth @ 2013 Miriam Piber Campos

    Autora: Miriam Piber Campos

    Projeto Editorial: INDEPIN - Miriam Piber Campos

    Processo C3 - coletivo de vrias coisas - Wagner Ferraz

    Capa: Anderson Luiz de Souza

    Arte da capa e edio de imagem: Anderson Luiz de Souza

    Layout e diagramao: Diego Mateus, Miriam Piber Campos e Wagner Ferraz

    Reviso de Texto: Lisiane Amon

    Reviso Geral: Lisiane Amon

    INDEPIn Editora - Coordenao EditorialMiriam Piber Campos e Wagner Ferraz

    2013INDEPIn Editora

    www.indepin-edu.com.br

  • INDEPIN INSTITUTO

    O Instituto de Desenvolvimento Educacional e Profissional Integra-do INDEPin oferece cursos livres em diferentes reas e atua como Editora, atravs de publicaes colaborativas em formato impresso sob demanda e em formato digital para download gratuito. O Instituto no visa lucro com essas propostas de publicao, apenas busca contribuir para que produes de diferentes reas sejam disponibilizadas facilitan-do o acesso.

    Editora:

  • 2013INDEPIn Editora

    www.indepin-edu.com.br

    Bibliotecrio responsvel: Ana Lgia Trindade CRB/10-1235

    C198c Campos, Miriam Piber Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na internet. / Miriam Piber Campos. - Porto Alegre: INDEPIn, 2012. 170 p.: il.

    ISBN 978-85-66402-00-1

    1.Educao - Estudos Culturais. 2.Corporeidade. 3.Sexualidade. 4. Pessoas com deficincia. 5.InternetI. Ttulo

    CDU 376.031

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Registrado em 2012 e lanado em 2013.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, primeiramente, a DEUS, pela oportunidade de ter conseguido, com muito esforo e dedicao, chegar at aqui, com sade (apesar de todas as dificuldades enfrentadas) e, principalmente, por ter todos aqueles a quem tanto amo a meu lado. Amamos muitas pessoas neste mundo e vocs, ANTONIO ED-GAR e PAOLA, so algumas dessas pessoas a quem amo incondicio-nalmente. De forma egosta, muitas vezes, lhes furtei a companhia, a compreenso, o carinho, o divertimento. Apesar disso, principalmente voc, meu companheiro e amigo, me respondeu com apoio, compreen-so, amor e carinho. Obrigada! Amo muito Vocs. No poderia jamais esquecer tambm aqueles que me deram a vida e que me ensinaram a ser tica e prudente, meus pais queridos, JOO e MARIA, meus irmos adorados, ROSI e PAULO RICARDO, pela fora nos momentos difceis, minha cunhada e cunhado MRCIA CRISTINA e LUIZ e meus adorados sobrinhos NDREAS e LVIA CRISTINA, que tambm fazem parte dessa histria. Agradeo CAPES que, atravs da concesso da bolsa de Mes-trado, tornou possvel a realizao desta pesquisa.

  • Um sincero agradecimento ao meu orientador, Lus Henrique Sacchi dos Santos, por seu incentivo, apoio e competncia.Tambm s Professoras Dagmar E. Estermann Meyer, Lodenir Becker Karnopp e Maria Lcia Castagna Wortmann, por terem aceitado o con-vite para participarem de minha banca, colaborando, com suas suges-tes, de maneira importante na elaborao dessa pesquisa. Enfim, a todos que, direta ou diretamente, colaboraram para que eu atingisse este objetivo. Que agora se torna realidade na forma de um livro.

    Porto alegre, novembro de 2012Miriam Piber Campos

  • SUMRIO

    APRESENTAO ..........................................................................

    MUITO MAIS QUE UMA SIMPLES APRESENTAO .............

    CAPTULO I: CAMINHOS PERCORRIDOS ..................................

    - (Re)lembrando algumas histrias ......................................

    - Era preciso fazer algumas escolhas ..................................

    - A busca dos materiais ........................................................

    - Tentando organizar as peas do quebra-cabeas .............

    - As entrevistas vistas como texto ......................................

    - Alguns entendimentos sobre discurso ...............................

    - A representao em uma perspectiva cultural ...................

    CAPTULO II: ALGUMAS PROBLEMATIZAES EM

    TEMPOS DE INCLUSO, MAS NO S ISSO ..........................

    - Falar de/sobre incluso, mas no s isso ..........................

    - Discursos que capturam os sujeitos ..................................

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  • CAPTULO III: NEM ANJOS, NEM DEMNIOS ............................

    - As pessoas com deficincia no so nem anjos, nem

    demnios ..............................................................................

    - Outros olhares para os corpos e as sexualidades ..............

    CAPTULO IV: A PGINA SENTIDOS COMO UMA INS-

    TNCIA PEDAGGICA .................................................................

    - Superao e maternidade ..................................................

    - Um corpo que no pode ficar parado .................................

    - A sexualidade da pessoa com deficincia: algo a se

    pensar....................................................................................

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..............................................

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  • Um corpo no apenas um corpo. tambm o seu en-torno. Mais do que um conjunto de msculos, ossos, vs-ceras, reflexos e sensaes, o corpo tambm a roupa e os acessrios que o adornam, as imagens que dele se produz[em], as mquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os silncios que por ele falam, os vestgios que nele se exibem, a educao de seus gestos... enfim, um sem limites de possibilidades sempre reinven-tadas e a serem descobertas (GOELLNER, 2003, p. 29).

  • Apresentar esse livro, fruto da dissertao de mestrado de Miriam Piber Campos, para mim alm de uma honra, a oportunidade de expressar a admirao pelo excelente trabalho realizado. A iniciativa de trazer a tona um assunto tabu, como a sexualidade, ainda mais na perspectiva da existncia de sexualidade em pessoas deficientes que para a maioria da populao so vistos, como Miriam mesmo coloca, seres assexuados, produz uma reflexo que nos leva a vrios questionamentos e reviso de conceitos.

    Discursos e representaes de corpo e de sexualidade de pessoas com deficincia na Internet um material de pesquisa importantssimo para conhecermos mais sobre pessoas com deficincia.

    A autora nos faz revisar a nossa prpria trajetria, nosso desenvolvimento e os momentos pelos quais passamos em nossas descobertas acerca de nosso prprio corpo. Sempre educados de forma a no falar sobre ele e, ao nos expressar atravs dele, deveramos e devemos ser comedidos em nossos gestos e representaes, em nossa sociedade, no educado dar vazo a todas as nossas vontades. Se

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    APRESENTAO

  • essas representaes corporais de nossas vontades e corporeidade so, de muitas formas, ensinadas a serem contidas na sociedade em geral, que dizer sobre essas mesmas sensaes e expresses sendo manifestadas por pessoas com deficincia?

    Ao ler o que Miriam escreve, nos sentimos trilhando os caminhos que ela percorreu para pesquisar esse tema, as angstias, as inseguranas, os avanos e retrocessos, os autores utilizados como apoio para suas consideraes, as incertezas sobre que material buscar para suas anlises, tudo nos colocado com clareza e simplicidade, fazendo com que nossas prprias angstias sejam acalmadas.

    A cada novo captulo, descobre-se um pouco mais sobre essa temtica, recebendo novos caminhos para aprofundar nossos conhecimentos, recebendo a oportunidade de ver e perceber as deficincias com um novo olhar, sem rotular e sem dar nfase deficincia em si. A busca pela viso dos prprios deficientes, realizada pela autora em sites da internet, proporciona um reconhecimento de que, de fato, pensamos no deficiente como uma pessoa que no pode falar de si, nem por si, tendo sempre algum a quem se deu a permisso de manifestar os desejos e necessidades daquele que no legitimado, pela sociedade, a faz-lo e isso no acontece somente nos sites, um fato comum na vida diria dessas pessoas e de seus familiares.

    Os rtulos criados e utilizados culturalmente como, deficiente homossexual e outros, so to impregnados que o rtulo toma a frente de qualquer capacidade que a pessoa tenha. O que aparece em primeiro plano , aos olhos dos outros, o que torna o indivduo designado como fora dos padres ditos normais, essa condio to naturalizada culturalmente, faz com que os prprios deficientes se vejam atravs da deficincia e no como pessoas que, conforme ressalta a autora, precisam conquistar seus espaos na sociedade.

    Interessante exposio que a autora faz sobre a representao a que estamos culturalmente acostumados a criar e recriar, onde as pessoas

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  • passam a ser representadas pelas suas caractersticas fsicas sendo, segundo ela, nomeados e posicionados como sendo gordos, brancos, mulheres, atletas, deficientes, incapazes, como se essa fosse a marca registrada (a representao nica e verdadeira) de cada sujeito. Essas representaes j so naturalizadas nas interrelaes pessoais, existindo alguns estranhamentos quanto a sexualidade das pessoas que no esto dentro de um modelo de beleza e perfeio fsica aceita como a natural. Desta forma, a tendncia a excluirmos a sexualidade entre pessoas que no estejam dentro de um padro pr-determinado como sendo o aceitvel, acontece quase que naturalmente. O que dizer da sexualidade especfica dos deficientes?

    Miriam nos alerta para o fato de que, naturalmente, entendemos o deficiente como um ser assexuado ou, ao contrrio, hipersexualizado. Assusta dar-se conta de que nosso filho (a) est crescendo, vivendo, experimentando e conhecendo a sua sexualidade. Mas e quando nos damos conta de que isso acontece tambm com os deficientes, nosso filho (a), irmo, parente, amigo, conhecido? Como lidar com uma demonstrao que se julgava inexistente, visto que a pessoa em questo limitada, incapaz, diferente?

    Esses questionamentos esto presentes nos relatos contidos nesse trabalho, onde a autora busca desenrolar essas teias que se formam em torno de certos tabus culturais sobre a deficincia e que invisibilizam uma realidade que deve ser vista, discutida, analisada, vivenciada por toda a sociedade. A sexualidade nos deficientes tratada, nesse trabalho, com a seriedade, sensibilidade e fundamentao terica adequadas transformando a leitura em um aliado para qualquer pesquisador interessado na temtica. Ter a ideia de que o deficiente um ser sem desejos, sem opinio e sem expressividade em sua vida pessoal ou social, uma impresso desconstruda por Miriam que nos traz a nova viso sobre a vida e as atividades dessa parcela da sociedade que, cada vez mais ganha projeo e espao em todos os nveis de interao.

    O ttulo desse trabalho que originalmente era, NEM ANJOS,

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  • NEM DEMNIOS: Discursos e representaes de corpo e de sexualidade de pessoas com deficincia na Internet traduz bem a viso que a sociedade deve ter sobre as deficincias, nem anjos, nem demnios, pessoas como ns que tm sonhos, capacidades, iluses, desiluses, incapacidades, revoltas e calmarias. Resumindo, pessoas comuns que, por um motivo ou outro apresentam limitaes diferentes das nossas, mas que no so invisveis, mas so criadas e representadas de acordo com a vontade de outros e no pela viso que tm de si mesmas.

    No poderia dizer outra coisa a no ser que recomendo essa leitura, sinalizando que tenho certeza de que muitos, como eu, tero vontade de reler mais vezes tendo a cada vez uma surpresa ao perceber algum detalhe que na leitura anterior havia passado despercebido. Volto a dizer que uma honra apresentar essa obra, pois a segurana em participar da publicao de uma anlise to importante est embasada na lisura dos propsitos da autora e do alto grau de relevncia do tema proposto.

    Ursula Boeck

    Prof Regente do Curso de Pedagogia EAD

    Universidade Luterana do Brasil - Canoas/RS

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  • MUITO MAIS QUE UMA SIMPLESAPRESENTAO

  • Fazer uma apresentao, em um primeiro momento, pode at parecer algo fcil, principalmente se levarmos em conta que, para realiz-la, necessrio que tenhamos um conhecimento prvio daquilo que nos propomos a apresentar, ou seja, termos tido um primeiro contato com o objeto a ser apresentado. Este o meu caso, pois foi ao escrever e reescrever por vrias vezes esta dissertao que tive o meu primeiro contato com ela como objeto material e isso me ofereceu os elementos necessrios para que, agora, possa apresent-la aos membros desta banca.

    Para muitas pessoas essa pode at ser uma situao despretensiosa, despreocupada, tranquila. No o meu caso, pois, ao faz-la, tambm me apresento, posiciono e me exponho. Ao realizar tal feito, tambm passo a ser avaliada e questionada sobre aquilo que venho apresentar. E passo por esse ritual no por acaso, j que ele uma exigncia da Academia para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Para explicar-me melhor, preciso falar como ele comeou, o que significa falar de meus encontros e desencontros ao ingressar no Mestrado.

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • Mesmo reconhecendo que poderia citar muitas passagens de minha vida, tanto particulares como acadmicas (como fiz no projeto de dissertao), optei, neste momento, por contar minha caminhada (como j referido anteriormente) somente aps o meu ingresso no Mestrado em Educao da ULBRA. Foi no segundo semestre de 2004 que algo modificou (e muito) a minha trajetria acadmica. Mesmo cursando a especializao, resolvi concorrer a uma vaga no Mestrado em Educao da ULBRA. Imaginem a surpresa que senti ao saber que havia sido selecionada! Isso porque havia me formado em Pedagogia em janeiro de 2004 e comeado a especializao em maro do mesmo ano e j em agosto comearia a frequentar as aulas do Mestrado. Tudo aconteceu muito rpido!

    J nas primeiras disciplinas, percebi que ser pesquisadora no seria to fcil assim, como pensara em um primeiro momento. Fui, aos poucos, me (des)construindo como pesquisadora e sendo reconstruda com outros conhecimentos e saberes que, at aquele momento, no haviam feito parte de meu saber, o qual fui, mesmo que provisoriamente, obrigada a pr prova. Parecia que todas as certezas com relao aos saberes que possua haviam ido por gua abaixo. Eu ainda acreditava que existia uma verdade absoluta e, agora, como mestranda e pesquisadora, deveria procur-la. Ao ler uma passagem de um artigo da professora Marisa Costa (2002) que, referindo-se a Foucault, ela diz que, segundo ele, no existe verdade no sentido absoluto do termo e como resultado de uma operao pura do intelecto. A verdade ou as verdades so deste mundo, produzidas num jogo de correlao de foras (p. 100), foi que me dei conta de que o campo de estudos em que acabara de ingressar tambm no me forneceria as respostas (provavelmente definitivas) que buscava.

    Nesse momento, percebi que, ao buscar a dita verdade, eu estava fazendo parte deste jogo de que fala Foucault e isso no aconteceu por acaso. Como a maioria dos seres humanos ocidentais, fui constituda dentro de uma lgica moderna que, dentre outras coisas, buscava a constituio de um sujeito autnomo, coerente, no

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    Miriam Piber Campos

  • fragmentado, ou seja, um sujeito ideal/verdadeiro (que buscava a verdade em um mundo ideal/perfeito/transcendental). Talvez isso explicasse a dificuldade que eu encontrava, nesse momento, de compreender e me desvencilhar das postulaes modernas. Eu no entendia o que era falado/apresentado nas aulas do Mestrado, por isso minha identidade como um sujeito moderno estava em crise.

    Tal crise pode ser explicada por Stuart Hall (2003) que, em seu livro A identidade cultural na ps-modernidade, procura analisar justamente a crise atual da identidade e do sujeito constitudos na Modernidade. Para tanto, ele faz um passeio pelas sociedades, desde o Iluminismo at os dias atuais, delineando, assim, os trs entendimentos sobre identidade compreendidos at hoje, quais sejam, o sujeito do iluminismo, o sujeito sociolgico e o sujeito ps-moderno.

    Para o autor, o sujeito do Iluminismo tinha como base um indivduo centrado, constitudo pela razo, cujo centro incidia em um ncleo interior que surgia no momento em que ele nascia e permanecia praticamente o mesmo ao longo de toda a sua existncia. J a noo de sujeito sociolgico refletia, sob vrios aspectos, a complexidade do mundo moderno e a concepo de que ele no possua mais um ncleo interior autnomo e autossuficiente, mas sim, que se constitua no estabelecimento das relaes com outros sujeitos. Nessa concepo sociolgica, a identidade desse sujeito passa a ser estabelecida no contato entre o eu e a sociedade. Por sua vez, a noo de sujeito concebido como sendo ps-moderno, cuja identidade construda e desconstruda constantemente, no possui mais uma identidade nica, centrada no eu, uma vez que se apropria de diferentes possibilidades identitrias em diferentes momentos. Essas diferentes possibilidades provocariam, segundo o autor, uma crise de identidade no sujeito moderno, j que produziriam, dessa forma, uma fragmentao e uma mudana nas estruturas de diversas identidades culturais, como as de gnero, classe, nacionalidade, sexualidade, etnia, entre outras.

    Gostaria de abrir um parntese para salientar que reconheo que essas postulaes apresentadas por Hall (2003) so apenas formas

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • diferentes de lidar, compreender e posicionar o sujeito, que at no desapareceram dos discursos circulantes e, muito menos, do discurso pedaggico. Talvez, por no terem desaparecido por completo, coexistindo no tempo e, como salientei, por me constituir em uma dita lgica moderna, que fui, aos poucos, percebendo que os entendimentos construdos nas aulas faziam com que eu passasse a problematizar as certezas que antes acreditava serem verdadeiras hoje, provisrias. Admitir os saberes e os conhecimentos produzidos como provisrios me possibilitou question-los e coloc-los prova. Isso permitiu que meus pontos de vista fossem questionados/revistos.

    O sentimento de estar deslocada e a necessidade de (re)significar meus pontos de vista foram reforados, ainda, pelas novas leituras e entendimentos que passei a ter a partir do contato mais sistemtico nas aulas e, posteriormente, no grupo de orientao. O assunto que eu queria pesquisar, num primeiro momento (a famlia da pessoa com deficincia1), comeava a me deixar desanimada e desmotivada. Isso porque o meu grupo era constitudo por mestrandos que queriam pesquisar algum assunto que envolvesse corpo, gnero ou sexualidade.

    Mesmo recebendo todo o incentivo do orientador e de meu grupo de pesquisa, percebi que no era mais isso que eu queria pesquisar. Mas o que fazer? O que pesquisar? Qual seria o meu foco?

    Um dia, ao chegar em casa, minha filha me surpreendeu com a seguinte pergunta: Me, arruma um namorado para eu beijar na boca?. Confesso que fiquei paralisada, chocada. Como que eu no percebi que minha filha tinha crescido? Ela agora era uma adolescente!

    1 Ao longo deste texto, utilizo-me dessa terminologia, porque, em uma concepo in-clusiva, ela enfatizaria, em primeiro lugar, a pessoa e, em segundo, caracterizaria a deficincia que ela possui. Sendo assim, sua utilizao considerada como adequada ao designar os sujeitos como sendo: pessoa com deficincia visual; pessoa com deficincia mental; pessoa com deficin-cia fsica; pessoa com deficincia auditiva ou pessoa com deficincias mltiplas (para nos referir-mos quelas que possuem duas ou mais deficincias associadas). Mesmo reconhecendo as vrias terminologias existentes para designar/definir/falar dos/sobre as pessoas com deficincia, assumi a perspectiva apresentada por Sassaki (2005) - tal como ser apresentado no final do captulo 2 - optando, assim, pelo termo pessoa com deficincia.

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    Miriam Piber Campos

  • Neguei a ela como a maioria dos pais que tm filhos que so tidos/classificados como pessoas com deficincia (sim, minha filha uma pessoa com deficincia) ou melhor, a mim mesma o conhecimento de sua sexualidade, de seu corpo. O que fiz, tal como os discursos que circulam acerca da sexualidade de modo geral, foi transformar minha filha em um ser assexuado e sem corpo.

    No meu caso, o que relatei poderia ser considerado como algo inconcebvel para algum com a minha formao sou formada em Pedagogia com nfase em Orientao Educacional mas a leitura do texto Corpo, Escola e Identidade, de Guacira Lopes Louro (2000), me apresentou uma outra verso. Isso porque me fez relembrar as escolas pelas quais passei durante minha trajetria escolar e pude constatar, assim como a autora, que o corpo parecia no existir dentro delas. Compreender que esse sujeito escolar tem, alm, ou melhor dizendo, junto com a mente, um corpo, algo no muito familiar aos cursos de formao pedaggica, nas quais as teorias educacionais enfatizam os processos de desenvolvimento da mente sem considerar o corpo (o que parece se refletir fora dos muros da escola como aconteceu comigo). Isso talvez acontea porque nossa formao est intimamente ligada a uma representao ocidental binria, que insiste em separar o corpo e a mente. Louro (2000), ao se referir a esse tema, traz uma expoente terica feminista bell hooks dizendo que, provavelmente, essa dicotomia opera na direo de que ns, professores e professoras, entramos numa sala de aula como se apenas a mente estivesse presente, como se fssemos, todas, espritos descorporificados (p. 60). A argumentao de bell hooks parece corresponder ao que acontece na academia durante a formao dos docentes. Isso porque as teorias utilizadas pouco ou nada expressam com relao ao conhecimento de nosso corpo ou do corpo de nossos alunos. Aparentemente estamos, nas escolas e universidades, lidando exclusivamente com ideias e conceitos que de algum modo fluem de seres incorpreos (Id., ibidem.).

    Mesmo parecendo uma verdade, o exposto acima no corresponde quilo que frequentemente acontece. Alguns estudos

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • no campo da histria da educao nos apresentam uma outra verso, mostrando que o corpo sempre esteve no centro das atenes dos processos e das prticas pedaggicas. Os processos de formao da mente, aos quais as crianas e os jovens foram submetidos historicamente, tambm se fizeram presentes nos corpos. Com a premissa de que a escolarizao devesse acontecer de uma forma academicamente satisfatria, a escola teve preocupao com os corpos no sentido de disciplin-los, vigi-los, corrigi-los, com o intuito de conhec-los melhor e, assim, poder escolariz-los. Ao preocupar-se, principalmente, com posturas e gestos educados, a escola faz com que esse corpo parea estar fora desse espao to sagrado do saber, no podendo ser nomeado/falado. As formas de intervir nos corpos ou de reconhecer a interveno iro variar conforme a perspectiva assumida. Ilusrio ser acreditar, contudo, que, em algum momento, as instncias pedaggicas deixaram de se ocupar e se preocupar com eles (Id., ibidem.).

    E foi diante desses motes, dessas pistas, que atentei para a importncia de refletir sobre a possibilidade de pesquisar algo que envolvesse o corpo ou a sexualidade das pessoas com deficincia. Nesse momento, j tinha feito, no decorrer das aulas, algumas incurses a vrios textos e as discusses que neles encontrei, bem como em outros que recolhi em uma primeira busca de carter exploratrio em sites da Internet, fizeram com que inmeros questionamentos comeassem a aparecer em relao ao assunto. Alm disso, tambm comeava a inquietar-me o fato de eu no possuir um conhecimento mais especfico acerca da rea que iria pesquisar. Tambm no sabia qual poderia ser o meu material de anlise. Apesar disso, algumas possibilidades comeavam a se formar em relao a essa temtica: analisar filmes que abordassem o assunto ou, quem sabe, revistas ou sites da Internet; entrevistar as pessoas com deficincia, seus pais etc. Depois de alguns encontros com meu orientador e meu grupo de pesquisa, no entanto, defini que pesquisaria os discursos e as representaes de corpo e de sexualidade das pessoas com deficincia na Internet no que as outras possibilidades no fossem frutferas, mas precisava escolher um caminho. Essa foi a delimitao que precisei fazer para que a pesquisa

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  • Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

    pudesse seguir, ou melhor, comear.Julguei necessrio fazer essas consideraes introdutrias

    antes de comear a apresentar essa dissertao, intitulada Nem anjos, nem demnios: discursos e representaes de corpo e de sexualidade de pessoas com deficincia na Internet. Esse ttulo no foi escolhido ao acaso, mas com o intuito de tensionar os recorrentes discursos e representaes existentes sobre o corpo e a sexualidade da pessoa com deficincia. Utilizei-me, para isso, de algumas reportagens e entrevistas (escolhidas por mim) produzidas/veiculadas em um site da Internet (http://www.sentidos.com.br/canais) e que discorrem, entre outras coisas, sobre o assunto que iria pesquisar. Empreendi as anlises acerca desses materiais sob inspirao dos Estudos Culturais em Educao, dos Estudos de Gnero, Corpo e Sexualidade. Para que os leitores e leitoras possam melhor compreender a maneira como trabalhei com o tema proposto, dividi esta dissertao em quatro captulos, os quais passo a apresentar a seguir.

    No primeiro captulo, que chamei de Caminhos percorridos..., busco apresentar os caminhos que percorri para a elaborao deste estudo, comeando por relembrar algumas questes que foram apresentadas no projeto que constituiu esta pesquisa. A seguir, procuro justificar a escolha da Internet como um local importante para a busca dos materiais. Tambm apresento quais foram os motivos que me levaram a continuar problematizando a temtica de estudo na linha dos Estudos Culturais e no naquela dos Disability Studies (mais diretamente associada ao estudo das questes ligadas s pessoas com deficincia) mesmo que reconhea a importncia e a abrangncia desse campo de estudos no que se refere s pesquisas que envolvem as pessoas com deficincia. Alm disso, apresento as dificuldades e os caminhos percorridos para a escolha dos materiais (as entrevistas da seo Talento), bem como os passos trilhados para a delimitao dos temas principais a serem apresentados nesta dissertao. Ao final desse captulo, destaco alguns entendimentos que julguei fundamentais para essa empreitada, mostrando de que modo usei as entrevistas e como

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  • essas foram apropriadas neste estudo, situando, para os fins deste trabalho, os conceitos de discurso e representao.

    No segundo captulo, Algumas problematizaes em tempos de incluso, mas no s isso..., mostro como as propostas de incluso vm constituindo as pessoas com deficincia na contemporaneidade. Com base em alguns momentos que marcaram o campo dos estudos referentes as pessoas com deficincia, tambm problematizo algumas das terminologias e conceitos que, tanto no mbito nacional quanto internacional, buscaram lidar, de modos tidos como os mais apropriados, para se designar as pessoas com deficincia. Busco, assim, demonstrar o jogo de tenses (poder) presente na simples eleio e no uso de um termo ou outro para denominar uma pessoa com deficincia. Enfatizo, com tal discusso, que no se trata apenas de eleger um nome, mas sim de mostrar que tais nomes/designaes produzem os sujeitos de que falam.

    No penltimo captulo, intitulado Nem anjos, nem demnios, fao um breve relato sobre as representaes existentes sobre anjos e demnios, juntamente com algumas breves consideraes acerca da capa desta dissertao, para, s ento, comear a falar do corpo e da sexualidade das pessoas com deficincia. Ao fazer isso, procuro abordar como esses corpos e sexualidades vm sendo construdos atravs de discursos que se autorizam a falar deles, inclusive, construindo uma representao de que as pessoas com deficincia so assexuadas ou, ao contrrio, hipersexualizadas. Para essa anlise, busco os subsdios tericos dos Estudos de Gnero, de Corpo e de Sexualidade, os quais no entendem o corpo e a sexualidade como coisas simplesmente dadas pela natureza, mas como construdos social e culturalmente. No final deste captulo, busco mostrar como as prticas de bio-ascese, discutidas por Ortega (2002), juntamente com o avano das bio-tecnologias, podem operar outras visibilidades para os corpos das pessoas com deficincia.

    No captulo final, A pgina Sentidos como uma instncia pedaggica, mostro alguns temas que talvez passem despercebidos aos leitores e leitoras da seo Talento, mas que se transformaram em

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    Miriam Piber Campos

  • pontos importantes na anlise, justamente por se tratarem de questes conflitantes (a maternidade, a prtica de esportes, a beleza e a prtica do sexo) quando se fala sobre os corpos e as sexualidades das pessoas com deficincia. Ao fazer tais anlises, busquei focalizar a discusso em temas que considero pouco discutidos e, portanto, vistos com certa resistncia (ou reticncia) por uma grande parcela da sociedade. Realizei tal operao mesmo reconhecendo a dificuldade em/para falar sobre tais assuntos, no deixando de problematizar como a Pgina apresenta e ensina para os seus leitores/as esses temas ao mesmo tempo em que se aproxima e se afasta de determinados discursos e representaes acerca da deficincia.

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • CAPTULO I: CAMINHOS

    PERCORRIDOS...

  • Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

    (RE)LEMBRANDO ALGUMAS HISTRIAS

    No momento da defesa de minha proposta, salientei que aquilo que havia apresentado para a apreciao da banca era apenas um mero ensaio sobre algumas das possibilidades que tinha (mesmo reconhecendo que poderiam existir outras) de pesquisar as representaes e os discursos que falavam de/sobre o corpo e a sexualidade das pessoas com deficincia. Os materiais os quais havia analisado at aquele momento, e que continuei a analisar para essa dissertao, reiteraram o que salientei naquele projeto: as pessoas com deficincia, assim como outras minorias (homossexuais, lsbicas, idosos etc.), parecem estar comeando a ter vez e voz atravs das transformaes e reivindicaes que eles travaram na sociedade contempornea nos ltimos anos. Acompanhando o pensamento de Louro (2004a)2:

    [...] inevitvel fazer face a essa diversidade de

    2 Disponvel em: : Aces-so em: 5 dez 2004.

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  • sujeitos e de prticas. indispensvel encar-la como constituinte do nosso tempo. Um tempo em que a diversidade no funciona mais com base na lgica da oposio e da excluso binrias, mas, em vez disso, supe uma lgica mais complexa. Um tempo em que a multiplicidade de sujeitos e de prticas sugere o abandono do discurso que posiciona, hierarquicamente, centro e margens, dominantes e dominados, em favor de outro discurso que assume a disperso e a circulao do poder. Um tempo em que a diferena se multiplicou. Um tempo em que a verdade plural.

    Por concordar com as palavras de Louro, ao ressaltar que vivemos em um tempo em que a diferena se multiplicou. Um tempo em que a verdade plural, mesmo reconhecendo que outras anlises poderiam ser realizadas com os materiais que utilizo (tal como j salientei), procuro apresentar, nesta dissertao, apenas um dos olhares (o meu, como pesquisadora) sobre os discursos e as representaes referentes aos corpos e s sexualidades das pessoas com deficincia. Penso que posso, at, causar algum desconforto em meus leitores/as e aos membros da banca por no querer, em nenhum momento, fazer um relato mais detalhado sobre a deficincia de cada um dos indivduos que aparecem nas reportagens. Isto , evitei, sistematicamente, destacar se nasceram ou adquiriram tal deficincia, como uma estratgia proposital que assumi para no dar destaque deficincia, frequentemente apresentada como a primeira caracterstica das pessoas com deficincia. Ao fazer isso, procurei criar uma estratgia narrativa, cuja ideia narrar/analisar sem ceder marca (fsica) impressa/visvel ou no nesses corpos. Em outras palavras, o que pretendo com essa dissertao contribuir para um outro olhar sobre como so representados/apresentados esses corpos e essas sexualidades nos dias atuais. Pretendo fazer isso por meio do tensionamento dos discursos e das representaes que se apresentam na pgina Sentidos e, em especial, nas entrevistas da seo Talento que analiso, na qual as prprias pessoas com deficincia

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    Miriam Piber Campos

  • falam, entre outras coisas, de seu corpo e de sua sexualidade.Mesmo nos momentos da anlise em que optei por fazer

    essas informaes (marcas/rtulos) aparecerem, foi por querer salientar algum ponto que julguei importante e no com a inteno de marcar/rotular os sujeitos nelas apresentados. Algumas dessas informaes, de algum modo, so recorrentes para identificar as outras pessoas (ditas normais) em alguma reportagem ou entrevista, mas, para as pessoas com deficincia, se apresentam, muitas vezes, como um complicador. Isso porque elas passam a ser repetidamente representadas por suas deficincias, mais do que por suas capacidades profissionais, acadmicas, esportivas etc. Muitas dessas representaes posicionam negativamente os sujeitos que delas fazem parte, construindo e produzindo diferentes efeitos em cada um. Isso porque, ao circularem, elas produzem significados, valores, crenas, vises e modos particulares de agir e de pensar sobre o mundo e os sujeitos.

    A partir dos Estudos de Corpo, Gnero e Sexualidade (LOURO, 1997, 1999, 2003; MEYER, 1991, 1999; FRAGA, 1997, 2005), passamos a entender os corpos e as sexualidades como construdos/produzidos social e culturalmente e no mais apenas como coisas dadas pela natureza. Nada natural, nada est dado de antemo, toda verdade mesmo aquela rotulada de cientfica parcial e provisria e resulta de disputas travadas em diversos mbitos do social e da cultura e pode, por isso, ser questionada (MEYER, 2003, p. 11).

    A partir dessas perspectivas que empreendi a anlise dos materiais de pesquisa, mas, tal como acontece com uma grande parte dos trabalhos de pesquisa, trilhei vrios caminhos, fiz vrias tentativas, pois no tinha um nico caminho a seguir. Essa talvez tenha sido uma das maiores dificuldades encontradas para a realizao desta dissertao. Confesso que, muitas vezes, pensei em desistir. O cansao insistia em me acompanhar, a solido da escrita me rondava, a folha em branco do Word na tela do meu computador me assustava. Nesses momentos, descobri o quanto ainda sou moderna, pois queria de volta a segurana, a estabilidade das promessas desse tempo, nunca atingidas: ter tudo no

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • lugar, ter um s caminho a seguir, ter um nico mtodo a me guiar... Mas, ao contrrio, o que encontrei foi a fragmentao de um tempo que insiste em no parar, que escorre e lquido3. A provisoriedade metodolgica proporcionada por ele me instigou e permitiu compor esse grande quebra-cabeas no qual fui encaixando e desencaixando muitas peas, com o intuito de tentar registrar, ao longo desse caminho, a minha trajetria de pesquisa.

    ERA PRECISO FAZER ALGUMAS ESCOLHASMuitos so os sites4, na Internet5, que falam sobre as

    pessoas com deficincia. Essas falas, em sua maioria, as posicionam e as representam como algum de quem se pode falar. como se elas mesmas no pudessem falar de seu corpo e de sua sexualidade, enfim, de si mesmas. como se o corpo e a sexualidade da pessoa com deficincia no pertencessem a ela, mas sim aos profissionais tidos como os mais especializados/competentes (mdicos, psiclogos,psiquiatras, assistentes sociais, etc6.), aqueles que tm legitimidade e autoridade para falar em seu lugar.

    Busquei a rede mundial de computadores, a Internet, pelas

    3 Fao aluso, aqui, a algumas das idias discutidas por Bauman, em Modernidade lqui-da (2001) e Amor lquido (2004), por exemplo.4 Esses sites esto relacionados Psiquiatria, Psicologia, Medicina, Educao Especial, Incluso, dentre tantos outros campos do saber que encontrei (e que podem ser encontrados), como, por exemplo, em sites de busca, tal como o Google (www.google.com.br). 5 A palavra Internet, conforme o glossrio da Internet (2006), escrito com inicial mai-scula, significa a rede das redes. Originalmente criada nos EUA, tornou-se uma associao mundial de redes interligadas em mais de 70 pases. Os computadores utilizam a arquitetura de protocolos de comunicao TCP/IP. Originalmente desenvolvida para o exrcito americano, hoje utilizada em grande parte para fins acadmicos e comerciais. Prov transferncia de arquivos, lo-gin remoto, correio eletrnico, news [notcias] e outros servios; 2. Com inicial minscula significa genericamente uma coleo de redes locais e/ou de longa distncia, interligadas por pontes, rote-adores e/ou gateways [dispositivo de traduo de protocolo em hardware ou software que permite que os usurios que trabalham em uma rede possam acessar outra]. Nessa dissertao utilizarei a palavra Internet com letra maiscula.6 Encontrei em sites mais autorizados, acadmica e cientificamente (como Scielo e Bireme), nas vrias reas do saber, muitos trabalhos j realizados sobre o assunto, incluindo teses de doutorado e dissertaes de mestrado, livros e artigos. Foi ao manusear alguns desses materiais que comecei a esboar a elaborao desta dissertao.

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    Miriam Piber Campos

  • inmeras discusses acerca do corpo e da sexualidade da pessoa com deficincia (mas, ressalto que sei que no ocorrem apenas nela) presentes nesse veculo de comunicao. Nele, elas se proliferam e se expandem, cada vez mais, fazendo-se presentes em sites, desde os mais especficos at os mais comuns, os quais falam sobre o corpo ou a sexualidade das pessoas com deficincia, tais como fruns de discusses, pginas pessoais, pginas mdicas, pginas de psicologia, pginas educacionais, entre outras. Muitos deles so elaborados por profissionais tidos como os mais especializados e competentes para falar sobre o assunto e, em conseqncia, so endereadas para pblicos especficos, de acordo com algum tipo de identificao ou interesse que possa existir por parte de quem vai acess-las.

    Algumas caractersticas da Internet a) a fluidez na circulao e a facilidade para o consumo de materiais; b) o estilo, na maioria das vezes, considerado provisrio, passageiro e descartvel, c) e a facilidade de demonstraes direta ou indiretamente de sujeitos tidos como annimos, sustentada[s] pela promessa de que ela nos possibilite em breve assumirmos ciberidentidades, substituindo a necessidade de algo to complicado e fisicamente constrangedor como a interao real (HALL, 1997, p. 23) o que a torna um meio importante de comunicao entre as pessoas com deficincia. A interatividade com as pessoas que a acessam, entre outras tantas possibilidades, e, pessoalmente, por gostar de interagir com essa mdia, foi o que me motivou a utilizar a Internet como o meu campo de pesquisa.

    Os materiais analisados nesta dissertao foram pesquisados em pginas brasileiras da Internet, nas quais as prprias pessoas com deficincia falavam sobre suas vidas, seus corpos e sua sexualidade. Essas pginas foram encontradas atravs de sites de busca, tais como Google, Yahoo e Alta Vista, por meio das seguintes palavras-chaves: deficincia e sexualidade, pessoa com deficincia e sexualidade, corpo e sexualidade da pessoa com deficincia. Essa opo por pginas brasileiras no se deu ao acaso, mas, pelo fato de querer saber como as pessoas com deficincia eram apresentadas/representadas tambm aqui

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • no Brasil. Nesse momento, cabe destacar que, em minhas incurses

    pelos sites da Internet, encontrei vrias pginas de outros pases (principalmente Inglaterra e Estados Unidos), as quais apresentavam discusses (estudos, definies, artigos etc.) inspiradas por um campo de estudos denominado Disability Studies. Esses estudos se configuram por levar em considerao os processos culturais, histricos, sociais e econmicos, por meio dos quais a deficincia tem sido produzida/construda, representada e narrada na contemporaneidade. Esse campo de estudos no se configura meramente como sendo o estudo das discapacidades, como poderamos pensar em um primeiro momento, ao traduzirmos a palavra Disability Studies. importante salientar que, nesse campo de estudos, o conhecimento da dimenso cultural da condio deficiente nos permite vislumbrar que ser uma pessoa com deficincia no necessariamente ruim, o ruim ser discriminado, subjugado, barrado nas escolas, nos empregos, pela arquitetura (LACERDA, 2005, p. 141). Tal entendimento da deficincia faz com que esse campo de estudos seja configurado como um campo que procura desconstruir os saberes e poderes que tm constitudo o outro deficiente como anormal, patolgico, inferior e como um corpo colonizado (THOMA, 2000, p. 80). Alm disso, tal campo tambm se caracteriza como sendo produzido e sustentado por pessoas que se posicionam a partir da experincia da deficincia e no apesar dela.

    Mesmo reconhecendo a importncia de tais estudos os Disability Studies as contingncias que me posicionaram, por exemplo, num programa de Estudos Culturais em Educao, levaram-me a uma anlise nesta ltima perspectiva. Mesmo inspirando-me em alguns dos pressupostos dos Disability Studies7, fiz minha opo por buscar aproximar tais temas a partir de uma anlise mais voltada aos Estudos Culturais (campo de estudos muito mais disseminado em

    7 Isso por eles configurarem um campo que se aproxima dos Estudos Culturais e transitar por vrios temas, tais como direitos das pessoas com deficincia associados s atividades polticas, processos culturais, histricos entre outros.

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  • nosso pas do que os Disability Studies), na medida em que esse campo estabelece vrias interfaces possveis com aquelas feitas nos Disability Studies (vide, por exemplo, DUSCHATZKY e SKLIAR, 2001; VEIGA-NETO, 2001; FERRE, 2001).

    Por tais razes, trilhei a linha dos Estudos Culturais, j que eles se configuram, tal como referem Nelson, Treichler e Grossberg (1995), como um campo de pesquisa cuja metodologia fornece uma marca desconfortvel: eles, na verdade, no tm nenhuma metodologia distinta, nenhuma anlise estatstica, etnometodolgica ou textual singular que possam reinvidicar como sua (p. 9). Convm tambm destacar que suas temticas se desenvolvem nos campos das prticas poltico-estticas que perpassam as questes de gnero e sexualidade, etnia, discurso e textualidade, polticas de identidade, identidades nacionais, ecologia, ps-modernidade, multiculturalismo e globalizao, dentre tantos outros. Esses assuntos se distinguem na contemporaneidade, propiciando que se lancem novos olhares sobre os referenciais terico-metodolgicos no que se refere pesquisa sobre as culturas. Para esses autores, os Estudos Culturais se distinguem pela sua pluralidade metodolgica e por sua interdisciplinaridade, possibilitando que o/a pesquisador/a lance mo de artifcios de anlises exteriores prpria rea de conhecimento, mas que possam contribuir com o tema/artefato estudado. Por um lado, foi isso que fiz, em parte, ao me inspirar em alguns dos pressupostos dos Disability Studies e, por outro, foi tambm um dos motivos pelos quais resolvi abandon-los.

    O outro motivo que devemos destacar para realizar uma anlise em tal perspectiva , por nos depararmos, atualmente, com uma forte centralidade da cultura. Autores como Stuart Hall (2003) nos direcionam para essa centralidade que a cultura est assumindo em nossas vidas, o que provoca uma virada radical nas relaes que temos com os objetos e artefatos culturais. Neste sentido, ele entende que a cultura no pode mais ser estudada como uma varivel sem importncia, secundria ou dependente em relao ao que faz o mundo mover-se; tem de ser vista como algo fundamental,

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • constitutivo, determinando tanto a forma como o carter deste movimento, bem como a sua vida interior (HALL, 1997a, p. 23).

    Hall (1997a) emprega a expresso centralidade da cultura para mostrar a sua ao constitutiva, hoje, em todos os cenrios da vida social, sendo considerada um componente-chave que penetra e influencia cada recanto do ambiente domstico e das tendncias globais. Para ele, os meios de produo, circulao e troca cultural, em particular, tm se expandido, atravs das tecnologias e da revoluo da informao (HALL, 1997a, p. 17), fazendo com que a sociedade, a escola, a famlia, entre outros, como muitos tm referido, no estejam isentas, de forma alguma, desse contexto cultural que se manifesta atravs da produo de tais artefatos. O autor salienta, ao mesmo tempo, que a opo a favor da centralidade da cultura no significa considerar que no exista mais nada alm da cultura. Antes, significa reconhecer que toda prtica social tem uma dimenso cultural, porque depende de significados e com eles est intimamente associada.

    Por querer explorar a possibilidade de pensar o corpo e a sexualidade da pessoa com deficincia como uma questo cultural, que congrega pessoas numa comunidade virtual imaginada8, e por perceber que as anlises que podem ser realizadas dessa pgina da Internet, nada mais so do que o resultado da forma como as sociedades e os grupos culturais vm construindo [as] noes acerca (tal como sugere THOMA, 2000, p. 80) de corpo e de sexualidade das pessoas com

    88 Estou pensando/propondo essa comunidade virtual imaginada a partir da ideia trabalhada por Benedict Anderson (1989), quando se refere s naes como comunidades ima-ginadas. Elas so comunidades imaginadas, porque seus membros esto ligados por anseios e caractersticas comuns, tais como religio, lngua, cultura, hbitos, costumes, crenas, entre outras, fazendo com que os sujeitos passem a assumir esses pressupostos como intrnsecos sua condio nacional, como se isso fizesse parte deles. Isso aproxima os sujeitos de tal modo que os mesmos passariam a se identificar com as peculiaridades de seu pas, o que muito prximo daquilo que acontece em relao s pessoas com deficincia, quando essas comeam a se utilizar da Internet como um espao no qual elas podem se expressar virtualmente, j que criam, por meio desse ve-culo, uma comunidade virtual imaginada, ligadas por um interesse comum. Por seus membros su-porem que seus interesses e postulados se identificam com os de outros sujeitos, que imaginam se encontrarem na mesma situao que a sua ou por eles se identificarem com alguma causa comum, o que as uniria e fortaleceria, dando a ideia de pertencimento a essa causa ou mesmo pelo simples fato de estarem lutando por um motivo comum.

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  • deficincia, que reitero o meu interesse em analisar textos que circulam em uma pgina especfica da Internet (pgina Sentidos9). Cabe, aqui, trazer as palavras de Fischer (1997), quando ela diz que mergulhar na materialidade discursiva da mdia significa buscar

    as estratgias concretas que esse espao fundamental da cultura constri para atingir diferentes grupos sociais e cada indivduo particularmente, atravs de objetos que os significam, criando-lhes identidades, mesmo que transitrias, produzindo, enfim, uma comunidade

    imaginria que os consola e representa (p. 67).

    Essas estratgias de que a mdia se utiliza para capturar ossujeitos tambm esto presentes nessa pgina da Internet, da qual me utilizei para selecionar as reportagens. Isso porque os sujeitos que fazem parte da seo Talento passam a se constituir como exemplos para outras pessoas com deficincia, em qualquer lugar do mundo, desde que eles se sintam representados/identificados por aqueles que ali esto sendo entrevistados, criando, assim, essa comunidade virtual imaginada. Igualmente, por se sentirem atingidos/capturados pelos assuntos abordados nas reportagens e, principalmente, por serem representadas por uma pessoa igual a elas, ou seja, uma pessoa com deficincia, que as entende, que fala por elas, que tem possivelmente as mesmas necessidades que elas, entre outras.

    Com essas colocaes, e seguindo Giroux e McLaren (1995), comecei a entender a pedagogia como estando presente em qualquer lugar em que seja produzido o conhecimento, em qualquer lugar em que existe a possibilidade de traduzir a experincia e construir verdades, mesmo que essas verdades paream irremediavelmente redundantes, superficiais e prximas ao lugar-comum (p. 144). Compreendendo-se, aqui, a expresso pedagogia como uma pedagogia cultural, conforme

    9 Abordo mais aspectos sobre essa pgina na prxima seo.

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • entendida por Steinberg e Kincheloe (2001), como reas pedaggicas que abrangem aqueles lugares onde o poder organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes etc. (p. 14).

    Ao fazer essas consideraes, espero alertar para a considervel penetrao que a Internet tem entre os jovens, as crianas e a sociedade em geral (mesmo reconhecendo que no so todas as pessoas que tm acesso ou facilidade com esse artefato da mdia, em razo, muitas vezes, de suas condies scio-econmicas). Assumindo a pedagogia tal como entendida por Giroux e Mclaren (1995), torna-se possvel entender que a Internet exerce uma pedagogia que ensina a esses aprendizes (e entre eles esto as pessoas com deficincia) coisas interessantes, j que usa como artifcios os apelos de produo grfica que possibilitam uma magia muito diferente daquela geralmente apresentada na sala de aula. Silva (2004), por exemplo, nos alerta para a diferena existente entre a pedagogia e o currculo escolar e essas outras formas de pedagogias culturais. Segundo ele, pelos

    [...] imensos recursos econmicos e tecnolgicos que mobilizam, por seus objetivos em geral comerciais, elas se apresentam, ao contrrio do currculo acadmico e escolar, de uma forma sedutora e irresistvel. Elas apelam para a emoo e a fantasia, para o sonho e a imaginao: elas mobilizam uma economia afetiva que tanto mais eficaz quanto mais inconsciente (p. 140).

    Neste tempo que muitos esto chamando de ps-moderno, acredito ser urgente a necessidade de ver como essa pedagogia apresentada na Internet constri e constitui identidades, discursos e representaes de corpo e de sexualidade das pessoas com deficincia de maneira muito (mais) atraente do que outros meios, j que so os prprios sujeitos que (teoricamente) escolhem o que querem ver/ler. Hall (1997a) salienta que, para Du Gay, essa

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  • nova mdia eletrnica no apenas possibilita a expanso das relaes sociais pelo espao e pelo tempo, como tambm aprofunda a interconexo global, anulando a distncia entre as pessoas e os lugares, lanando-os em um contato intenso e imediato entre si, em um presente perptuo, onde o que ocorre em um lugar pode estar ocorrendo em qualquer parte (p. 18).

    Considerando a importncia que a Internet vem assumindo na atualidade, como um espao fronteirio no s entre o estar presente/ausente, mas tambm como uma forma de pedagogia cultural, que procurei discutir como os corpos e as sexualidades das pessoas com deficincia vm sendo concebidos na contemporaneidade. Se, hoje, com o advento dessa nova mdia, eles se tornaram mais visveis, em outros tempos, nem sempre foi assim, tal como ser comentado em algumas passagens desta dissertao.

    A BUSCA DOS MATERIAIS Inicialmente, estava habituada a procurar pginas sobre a

    deficincia na Internet e, frequentemente, encontrava os ditos discursos autorizados acerca dela (enunciados por mdicos, psiclogos, psiquiatras etc). Assim, em virtude de tal experincia, pensava que conseguiria, sem dificuldades, pginas brasileiras em que as pessoas com deficincia falassem de seus corpos e de suas sexualidades.

    Essas pginas mais biomdicas10 existiam (e existem) em abundncia e falavam (falam) sobre esse assunto na Internet, portanto, imaginava que no teria dificuldades em encontrar pginas em que as prprias pessoas falassem de si.

    Ledo engano! Aps procurar em mais de 300 pginas, senti

    10 Refiro como mais biomdicas as pginas em que os especialistas (dos ditos discur-sos autorizados) falam sobre o corpo e a sexualidade da pessoa com deficincia desde os seus campos de saber. Por exemplo, mdicos, psiclogos ou sexlogos que diziam como a pessoa com deficincia deveria manter relaes sexuais ou como deveriam cuidar de seu corpo, entre outros.

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • a dificuldade que teria em encontrar as pginas em que as prprias pessoas com deficincia falassem de si para a realizao da pesquisa. Depois de insistir muito, encontrei uma pgina que julguei servir para o meu propsito. Era uma pgina destinada divulgao de vrias informaes para e sobre as pessoas com deficincia. Ela tambm continha informaes sobre outros assuntos de interesse geral, como culinria, sade, notcias, novas tecnologias, gentica, assuntos sobre a velhice etc.

    Tratava-se, por conseguinte, de uma pgina de assuntos gerais, tal como muitas na Internet, mas que se destinava a apresentar, principalmente, aspectos relativos vida de pessoas com deficincia. Nessa pgina (http://www.sentidos.com.br/canais), aparece, no canto superior esquerdo (figura - 1) o logotipo com duas mos abertas, desenhadas por uma espcie de linha/fio e logo abaixo das mos encontra-se escrita a palavra Sentidos. Ao visualizar a apresentao desse smbolo, tive a sensao de que a pgina me recebera de braos abertos e, atravs da palavra Sentidos, teria, ento, a possibilidade de estimular todos os meus sentidos/olhares em direo ao assunto que me instigava pesquisar11.

    Neste site, uma seo, em especial, me chamou a ateno: Talento. Ela era composta por reportagens com mais de 200 pessoas com deficincia (auditiva, visual, fsica e mental). Em algumas delas, as pessoas com deficincia falavam das prprias deficincias, de suas vidas profissionais, amorosas, familiares, bem como de seus corpos e de suas sexualidades. A seguir, apresento a pgina sobre a qual tenho falado.

    11 Cabe destacar, tal como fao mais detidamente a seguir, que as anlises que empreendi para essa dissertao esto pautadas nos documentos/materiais que capturei da referida pgina Sentidos entre os meses de dezembro de 2004 e fevereiro de 2005. Apesar disso, devo tambm sa-lientar que, frequentemente, volto a visitar a pgina, a fim de acompanhar as suas modificaes, bem como as discusses que tm sido levadas a cabo na mesma.

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  • Figura 1: Pgina da revista Sentidos on-line

    Diante de tantas reportagens interessantes, tive que adotar um critrio para escolher quais delas iria utilizar. Optei por selecionar aquelas reportagens que possussem, alm da entrevista, fotos da pessoa com deficincia, ou seja, mais especialmente, aquelas entrevistas nas quais ela falasse sobre sua deficincia, seu corpo, sua sexualidade ou mesmo sobre sua vida pessoal. Numa primeira garimpagem, selecionei cerca de vinte e trs (23) reportagens e dessas escolhi, ao final, dez (10) das quais apresento trs delas em anexo, a fim de ilustrar o tipo de texto nelas presente. Resolvi, tambm, escolher reportagens que se encontrassem dentro das quatro reas de deficincia (mental, auditiva, visual e fsica12) que o site apresentava.

    12 Pode parecer estranho, mas percebi que, nessa pgina, existia um nmero muito maior de reportagens com deficientes fsicos, se comparadas a outras deficincias. Isso talvez possa ser tributado s Paraolimpadas que ocorreram em setembro de 2004, duas semanas aps o trmino das Olimpadas, em Atenas j que muitas das reportagens apresentadas no site eram de atletas paraolmpicos que, em sua maioria, so deficientes fsicos.

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • Nesse processo de escolha, encontrei muitas reportagens cujos ttulos, chamadas e fotografias apresentavam/introduziam, antes mesmo da leitura dos textos, as pessoas com deficincia (e.g., um advogado cadeirante e uma modelo surda). Elas eram, por um lado, apresentadas como deficientes (como se essa fosse a marca registrada de sua existncia, j que se relatava, em quase todas as matrias, qual era a deficincia de cada um dos entrevistados, bem como se ele/a havia nascido ou adquirido tal deficincia) e, por outro lado, como pessoas capazes de superar as adversidades (a pea que a vida lhes pregou) ao conseguirem, mesmo sendo pessoas com deficincia, e com muito esforo, tornarem-se pessoas talentosas (tal como sugere o prprio ttulo atribudo seo).

    Sendo assim, meus sentidos/olhares procuraram ser o mais perspicaz possvel para que no casse no lugar comum que, frequentemente, nomeiam e posicionam as pessoas com deficincia. Isso porque elas passam a ser representadas muito mais por sua deficincia do que por aquilo que pode aproxim-las do padro, ou seja, de uma pessoa que, independentemente de ter ou no uma deficincia, precisa conquistar o seu espao profissional, social etc. Para elas, a deficincia aparece como uma maneira de reafirmar e, assim, marcar sua incapacidade, o que demarca suas diferenas com o propsito de mostrar aquilo que as faz/torna diferentes/ineficientes, reforando, assim, a diferena como inferioridade.

    TENTANDO ORGANIZAR AS PEAS DO QUEBRA-CABEAS

    No pretendo, com essa seo, apresentar uma metodologia pronta, definitiva, a partir da qual meus/minhas leitores/as possam guiar-se para futuras pesquisas. Mesmo porque, eu no tinha nada delineado ao iniciar essa pesquisa, nem mesmo sabia qual seria a metodologia ou os caminhos pelos quais iria me aventurar. Confesso que esse procedimento foi se delineando ao longo de todo o processo de construo da dissertao, processo esse que s foi possvel diante

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  • da perspectiva terica a qual me filiei (como colocado anteriormente). Muitas foram as idas e vindas de assuntos para a escolha dos temas que julgava ser importante trabalhar em distintos momentos.

    A cada reunio com o grupo de pesquisa ou reunio individual com o orientador, surgiam mais e mais ideias e possibilidades de anlise. Algumas foram abandonadas no prprio processo de construo do projeto, outras na construo da dissertao. Houve as que retornaram e, ainda, outras que foram definitivamente abandonadas. Isso s foi possvel por no possuir nenhuma metodologia fechada a me orientar, o que propiciou um inesperado espao de liberdade, fazendo com que eu pudesse optar por quais seriam os instrumentos a serem utilizados para a construo dos andaimes, das trilhas, do fazer e refazer dos caminhos da pesquisa. Como colocado no ttulo dessa seo, a inteno era de poder organizar as peas desse imenso quebra-cabeas, que foi se formando e transformando ao longo desse processo de anlise do material de investigao.

    Mesmo que, em um primeiro momento, eu tenha sido capturada como uma simples leitora em visita a essa pgina, no podia esquecer que o que me fez chegar at ela foi a minha busca incessante por materiais os quais pudessem se transformar em meu objeto de anlise. Esses materiais precisavam, no entanto, ser materiais nos quais as prprias pessoas com deficincia falassem de sua deficincia, de seu corpo e de sua sexualidade, j que esse foi o recorte que fiz, como uma maneira de delimitar, de antemo, alguns assuntos que poderia analisar posteriormente.

    Depois de navegar pelas mais de duzentas entrevistas apresentadas na seo Talento, procurando passar os olhos pela tela do computador na inteno de capturar aquelas entrevistas que (mesmo em uma busca aleatria nesse momento) pudessem me interessar, foi que consegui selecionar as primeiras vinte e trs entrevistas, que seriam, em um segundo momento, lidas mais detalhadamente. Essas entrevistas que, como coloquei em outros momentos, se encontravam dentro das quatro reas de deficincia que a pgina apresentava (cabe salientar que

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • hoje a pgina tambm apresenta entrevistas de pessoas com deficincia mltipla, o que no acontecia na poca em que fiz essa seleo).

    Acredito ser importante destacar que, nesse processo de escolha fora o fato de todas as entrevistas terem que estar necessariamente dentro do assunto o qual queria pesquisar no me preocupei em selecionar nenhuma entrevista levando em considerao a idade (posteriormente percebi que se encontravam entre 20 e 46 anos), o status social ou profissional dos entrevistados. Um exemplo disso que as mesmas tinham como seus protagonistas as mais variadas personagens, tais como, estudantes de Pedagogia e Psicologia, esportistas (como surfistas, ciclista e competidor de brao de ferro), modelos, dona de casa, desempregados, advogados, bibliotecria, humorista, enfim, uma variedade de pessoas que eram apresentadas pela pgina como sendo talentosas.

    Aps uma leitura mais detalhada de cada uma das vinte e trs entrevistas selecionadas da seo Talento, resolvi ficar apenas com dez delas. Isso aconteceu em virtude da recorrncia dos temas apresentados por elas e que julguei ser importante analisar. No que as outras no fossem interessantes, mas precisava fazer algumas escolhas em virtude da variedade de assuntos abordados pelos entrevistados.

    Os materiais selecionados para a dissertao (as dez entrevistas da seo Talento) serviram como espinha dorsal desta pesquisa. Mas, mesmo detendo-me nelas, medida que imergia nos textos ali contidos, percebi que outros materiais comeavam a se mesclar com essas entrevistas. A prpria pgina Sentidos em sua seo Servios, que continha os itens de busca, canais e deficincia, foi, muitas vezes visitada, e revisitada por mim, para que eu pudesse complementar muitas das informaes de que necessitava. Isso acabou acontecendo porque as prprias entrevistas as quais selecionei continham, muitas vezes, indicaes de outros links (da prpria pgina Sentidos) direcionando-me para alguma coisa que o entrevistado queria dizer ou apresentar.

    Ao buscar essas entrevistas e agora detendo-me nas dez analisadas percebi que, mesmo que elas tivessem como marcadores

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  • assuntos envolvendo a deficincia, o corpo e a sexualidade (foi exatamente esse o recorte que fiz para selecion-las), eles estavam l como marcadores desses assuntos. E, embora eu tenha buscado por eles na seo Talento, no era exatamente da mesma deficincia, sexualidade ou corpo que eu estava querendo falar. Em outras palavras, apesar de tratar de deficincia, corpo e sexualidade, minha perspectiva de entendimento buscava se afastar daquela dos editores, entrevistados, entrevistadores etc. Assim, busquei selecionar os assuntos/materiais apresentados de tal maneira que pudesse olh-los com as lentes dos Estudos Culturais (e, posteriormente, com dos Estudos de Corpo, Gnero e Sexualidade). Isso porque pretendia ver o que era apresentado, relacionando-o com outros assuntos, mostrando, dessa forma, que esses assuntos/materiais esto/estavam ali e como eu passei a olhar para eles, j que foi o olhar que lancei sobre esses materiais que constituiu essa sexualidade, esse corpo, essa deficincia de um outro modo (como procurarei apresentar ao longo desta dissertao).

    Para que eu pudesse lanar esse olhar, foram muitas as tentativas de eleger quais seriam os melhores temas e assuntos a serem trabalhados na pesquisa. Fazia isso no intuito de tentar encontrar a melhor maneira de operacionalizar as anlises. Em um primeiro momento (na busca de tentar encontrar qual seria o melhor procedimento a seguir), lia entrevista por entrevista, pintando cada recorrncia (e.g., assuntos que se repetiam nas entrevistas) que aparecia com lpis de cor (cada recorrncia tinha sua cor). Aps, comecei a criar, para cada entrevista, uma tabela contendo as recorrncias encontradas de acordo com sua cor. O terceiro passo, nesse processo, foi cruzar essas informaes, criando uma tabela contendo os excertos de todas as entrevistas, de tal forma que eu soubesse como cada entrevista se relacionava com as demais. Tal processo mostrou-se, contudo, cansativo e pouco produtivo.

    Depois desse processo, resolvi ler cada uma das entrevistas mais uma vez, mas agora, na tela do computador, colocando, ao lado de cada frase ou pargrafo que lia, uma palavra-chave (por exemplo, corpo, sexualidade, deficincia, incluso, terminologias, maternidade,

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • superao, entre outras). Isso teve como objetivo identificar mais facilmente os assuntos que abordavam. O prximo passo foi reunir essas frases ou pargrafos em um nico arquivo (criado no Word) da seguinte maneira: escrevia a palavra chave no Word e, logo abaixo dela, colocava a frase ou pargrafo de cada entrevista que se referisse a ela. Isso resultou na construo de um grande mapa sobre cada um dos assuntos abordados nas entrevistas, no qual se destacavam as suas recorrncias (no todo). Aps ter feito esse mapeamento com todas as entrevistas, percebi que tinha indcios suficientes para a escolha do conjunto de temas principais e dos assuntos que se articulariam com eles na anlise. Escolhi, como resultado desse processo, os seguintes temas principais desta pesquisa: sexualidade, deficincia e corpo. Mesmo porque, esse foi o recorte que fiz de antemo no momento da escolha das entrevistas, como referido anteriormente.

    Escolhi, tambm, um conjunto de assuntos que poderiam ser trabalhados em articulao com os temas principais, como famlia, educao, relacionamento amoroso, maternidade, preconceito/discriminao/vergonha, vida social, formao e atuao profissional, busca dos/por direitos, ser exemplo para outras pessoas com deficincia, f/religio/espiritualidade, sentir-se ou querer ser normal, incluso, terminologia, fragmentos (item em que agrupei os assuntos que apareciam esporadicamente).

    Mesmo com a escolha dos assuntos, continuava em dvida quanto maneira de trabalhar com eles, por saber que no conseguiria dar conta e igual destaque a todos, como gostaria. Esse processo de escolha e dvidas pelo qual estava passando acontecia por ser essa uma das vrias possibilidades que encontrava, dentre tantas outras, para operacionalizar os materiais que possua. Penso que a dificuldade em decidir quais os assuntos que permaneceriam e quais deveriam ser abandonados para uma posterior anlise, poderia ser atribuda ao fato dos temas principais se articularem constantemente com todos os outros assuntos que havia elegido, parecendo praticamente impossvel trabalhar com um deles sem que os outros estivessem presentes nas

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  • anlises. Como precisava fazer algumas escolhas e j sabia quais eram

    os temas principais, resolvi utiliz-los em articulao com o conjunto de assuntos que possua, mesmo sabendo que correria o risco de ter que abandonar definitivamente alguns deles. Apesar dessas difceis escolhas, dessas idas e vindas na busca dos temas e assuntos a serem analisados, a escolha da melhor maneira de trabalhar com eles, no deixaram de ser para mim as peas que estavam soltas nesse quebra-cabeas imaginrio que criei e fui montando ao longo desses dois anos de Mestrado, para compor as anlises presentes nas pginas desta dissertao.

    AS ENTREVISTAS VISTAS COMO TEXTOAcredito ser importante reafirmar, mais uma vez, que os

    materiais da pgina Sentidos que analiso se configuram como entrevistas realizadas para serem incorporadas e apresentadas na seo Talento. Penso que devo marcar, desde j, que embora eu analise os textos das entrevistas publicadas na seo Talento, no procederei uma anlise terico-metodolgica a partir dos aportes da tcnica de entrevistas, tal como preconizado pelos textos de pesquisa qualitativa (mesmo por que no as realizei e no passei por todos os processos usualmente necessrios para um investimento dessa natureza). O importante, aqui, mostrar como elas podem ser analisadas como texto. Nesse sentido, a entrevista em si o meu material de anlise, porm, a partir de uma anlise textual. Assim, o que me interessa nessas entrevistas seu produto final, qual seja, o texto que apresentado aos leitores/as na tela do computador, com suas imagens, links, textos escritos etc. Fao isso inspirando-me nas palavras de Silveira (2002), j que pretendo olhar para essas entrevistas como eventos discursivos complexos, forjados no s pela dupla entrevistador/entrevistado, mas tambm pelas imagens, representaes, expectativas que circulam (p. 120). Mesmo considerando essa dimenso importante nas entrevistas, uma vez que no as realizei no tenho como discutir o parte a parte as

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • mesmas, que algo tambm destacado pela autora13. Isto , por no saber como se desenvolveu o processo de preparao e execuo dessas entrevistas, que as leio como uma leitora/pesquisadora do lado de c do texto/da tela.

    Partindo do que foi dito, acredito ser importante apresentar alguns aspectos relevantes desse gnero discursivo a entrevista. O entendimento acerca de tipo e gnero de discurso baseia-se na suposio de que seria possvel utilizar alguns critrios de aproximaes e diferenas para classificar o grande nmero de textos e prticas discursivas existentes na sociedade. Mesmo que as entrevistas tenham alguns pontos comuns, como o caso de conter sempre a presena da dupla entrevistador/entrevistado, nem sempre, todas seguem as mesmas vinculaes como gnero discursivo. Temos, como exemplo disso, as entrevistas realizadas para a televiso, para a imprensa escrita de uma maneira geral, para a Internet, entre outras, as quais implicam outra encarnao, [isto ] uma exibio mais explcita de sua situao de interlocuo e tm, como Arfuch (1995) observa, imbricada em sua prpria arquitetura, a presena desse terceiro o pblico, interlocutor ambiguamente ausente e presente (SILVEIRA, 2002, p. 121). E assumindo o papel desse pblico, ausente e presente, que utilizarei essas entrevistas, sem perder de vista que o meu papel desse outro lado da tela do computador no o de uma mera leitora, mas sim o de uma pesquisadora buscando apreender dessas entrevistas/textos os discursos e as representaes de corpo e de sexualidade das pessoas com deficincia.

    A entrevista tem um carter muito peculiar de interao verbal, porque possui algumas caractersticas que a distanciam de um uso oral tpico da lngua, como acontece em uma conversa informal/espontnea. Isso porque, na maioria das vezes, ao realizar-se uma entrevista,

    13 Para a autora, o importante ver esse parte a parte no momento e situao de reali-zao das mesmas [das entrevistas] e, posteriormente, de sua escuta e anlise (SILVEIRA, 2002, p. 120). No meu caso, no tinha como analisar algumas dessas dimenses das entrevistas realiza-das para a seo Talento (por exemplo, os bastidores de sua realizao ou mesmo os processos de sua edio).

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  • necessrio ter um planejamento prvio (que, como salientei, no foi o meu caso). A entrevista situa-se na fronteira entre a lngua falada e a lngua escrita, pois, em alguns momentos, se aproxima da lngua falada (caso das entrevistas televisivas ou radiofnicas) e, em outros, da lngua escrita (caso das entrevistas que so apresentadas nas revistas ou nos jornais). Em ambos os casos pode haver interferncia por parte de quem vai editar essas entrevistas, j que elas podem ser arrumadas e ajustadas inmeras vezes, at que o resultado, ou seja, seu produto final esteja adequado aos critrios e regras de quem vai utiliz-las/apresent-las. Acredito que isso tambm deve acontecer com as entrevistas apresentadas na seo Talento, uma vez que elas se configuram, especificamente, por apresentarem aos seus leitores/as entrevistas, que, ao enfocarem um determinado tema (destacado pelo assunto escolhido, especificidade do entrevistado/a, edio etc.), buscam apresentar as vrias maneiras que as pessoas com deficincia utilizaram/utilizam para superar a deficincia, o preconceito, a excluso, entre outros.

    Ao pensarmos em uma entrevista ou mesmo nessa palavra surge, corriqueiramente, a representao de algum cenrio caracteristicamente jornalstico, talvez como daqueles apresentados nos canais abertos de TV. Nesses programas, sempre h um reprter entrevistando algum personagem vinculado ao assunto a ser abordado ou enfatizado. Tal vinculao dita caractersticas e algo que, nas palavras de Fvero (2000), no passaria, nica e exclusivamente, de um engano. Para essa autora, a entrevista uma atividade em que, no somente pessoas ligadas rea de comunicao, como os jornalistas, mas todos ns, de uma forma ou de outra, estamos envolvidos, quer como entrevistadores, quer como entrevistados (p. 79). Um caso tpico o daquela representao acerca da pesquisa de campo, na qual o pesquisador se encontra frente-a-frente com a pessoa ou o grupo a ser pesquisado com um questionrio contendo um conjunto de perguntas estruturadas ou semi-estruturadas a serem feitas no momento da realizao da entrevista. Sua finalidade, em ambos os casos (entrevista jornalstica, pesquisa de campo etc.), seria o inter-relacionamento humano, mas [nessas situaes] os direitos dos

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • participantes no so os mesmos, pois o entrevistador faz as perguntas e oferece, em seguida, o turno ao entrevistado. Na verdade, as relaes de poder entre eles deixam-nos em diferentes condies de participao no dilogo (p. 80). Mais uma vez, se configura aqui, minha condio de leitora/pesquisadora de uma terceira posio, como enfatizado por Silveira (2000) em relao s entrevistas que analiso.

    Essas diferentes posies no dilogo, como nos coloca a autora, esto presentes em todas as entrevistas da seo Talento. Nelas, possvel perceber quem tem o poder de direcionar a entrevista: o/a entrevistador/a. Isso evidenciado pelas vrias perguntas que so feitas s/aos entrevistadas/os, uma vez que, na maioria das entrevistas, parece haver uma ordem a seguir: qual a deficincia do/a entrevistado/a? a pessoa nasceu ou adquiriu a deficincia? qual a formao profissional do/a entrevistado/a? como ele/a fez/faz para superar a deficincia? entre outras.

    Como nos coloca Fvero (2000, p. 79), participamos, querendo ou no, de alguma forma de entrevista, mesmo que no seja como um de seus atores principais. Fazemos isso como seu pblico-alvo nas palavras de Silveira (2002) como encarnao para o qual so endereadas informaes que tm o potencial para interferir em discursos, tanto de quem os publica quanto de quem os l (caso de todos aqueles que acessam a seo Talento). Isso se d num jogo de funes em que o entrevistador por vezes se traveste de porta-voz do pblico e o entrevistado se preocupa com o que costumeiramente se denomina de imagem pblica (SILVEIRA, 2002, p. 121). Isso tambm aparece nas entrevistas que analiso, porque o entrevistador direciona a entrevista de tal maneira que muitas das perguntas feitas ao entrevistado, certamente, poderiam ser feitas por qualquer um que tivesse a oportunidade de estar ali em seu lugar. Por outro lado, o/a entrevistado/a responde com a inteno de passar uma imagem pblica o mais prximo possvel da realidade vivida pelas pessoas com deficincia, no sentido de apresent-las como pessoas que podem viver a partir da experincia da deficincia e no apesar dela. Mesmo que as

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  • entrevistas estejam distante dos holofotes, das luzes, das cmeras e dos microfones, podem ser entendidas, nas palavras de Fvero e Andrade (1998), como uma tcnica de interao social. Por meio dela, busca-se uma interpenetrao informativa que visa a quebrar isolamentos sociais, grupais, individuais; pode ainda servir pluralizao de vozes e distribuio democrtica da informao (p. 154).

    Nas palavras de Fvero (2000), a entrevista, porm, constitui um tipo especial de texto falado porque o planejamento existe da parte do entrevistador e pode existir, tambm, em certos casos, da parte do entrevistado, diminuindo, dessa forma, marcas da oralidade (p. 83). Mesmo assim, ela se constitui de um conjunto de cdigos e marcas que todo gnero de discurso exige daqueles que dele participam que aceitem um certo nmero de regras mutuamente conhecidas e as sanes previstas para quem as transgredir (MAINGUENEAU, 2001, p. 69). Essas combinaes no precisariam, necessariamente, ser feitas por meio de um acordo formal ou explcito. Isso porque esses cdigos ou regras resultariam da juno de coeres que seriam exercidas sobre os falantes, fixando, para os mltiplos contextos ou circunstncias sociais, regras rgidas ou no sobre o como e o que dizer a partir de alguns lugares especficos, no sentido de obter determinado resultado. Esse resultado poderia ser atribudo ao papel preponderante que passa a ter o pblico (no meu caso, o/a leitor/a, da pgina Sentidos, em especial o da seo Talento) como um elemento propulsor de modificaes na interao entre os participantes, j que a interao se desenvolve exatamente em funo da terceira-parte e em razo de no se perder esse aliado que se procede s reformulaes ou reorientaes temticas (FVERO e ANDRADE, 1998, p. 167).

    Essa preocupao com o pblico, ou melhor, a preocupao em t-lo como um aliado como o/a leitor/a tambm aparece na seo Talento, mesmo que de modo sutil, o que talvez faa com que o/a leitor/a nem perceba que est sendo capturado pela rede de significao eleita (pelos editores da Pgina) como aquela que faz sentido apresentar aos leitores. Isso pode ser atribudo ao fato de os assuntos e os tipos de

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    Corpo e sexualidade de pessoas com deficincia na Internet

  • perguntas que so elaborados para as entrevistas/textos abrangerem uma variedade muito grande de temas relacionados, direta ou indiretamente, s pessoas com deficincia ou no (como o caso das dez entrevistas/textos que analiso), no sentido de atingir uma variedade de leitores/as interessados/as pelos temas ali presentes. possvel dizer que isso acontece mesmo que, algumas vezes (como j referi), as perguntas e assuntos permaneam sempre os mesmos, como que servindo de marcadores para essas entrevistas/textos, demonstrando a preocupao em relatar como o/a entrevistado/a fez ou faz para se superar no seu dia-a-dia, se sofreu ou sofre alguma discriminao, entre outros.

    Isso provavelmente feito para mostrar ao/ leitor/a que a pessoa que est sendo entrevistada algum comum, que tem as mesmas dificuldades ou problemas, que , em suma, possivelmente igual a outras pessoas com deficincia que se encontram do outro lado da tela do computador e que esto acessando pgina Sentidos ou a seo Talento. Ou, ainda, mesmo para que outras pessoas (como foi o meu caso, tanto como me, como pesquisadora) que estejam envolvidas, direta ou indiretamente, com as questes apresentadas possam buscar algumas informaes ou esclarecimentos. Mas acredito ser importante salientar que, embora os entrevistados/as ali apresentados/as sejam posicionados/as como pessoas ditas comuns pelo fato de representarem outras pessoas com deficincia elas no o so. Isso porque elas deixaram de ser comuns no momento em que saram do anonimato e se transformaram em pessoas talentosas, tal como as apresenta a seo Talento. E, ao serem talentosas, por si s, deixam de ser iguais s outras pessoas com deficincia as quais elas pretendem representar, j que elas esto ali exatamente por serem diferentes, pessoas que conseguiram se superar na vida, no esporte, no trabalho, entre outros.

    Em alguns aspectos, o que apresentei anteriormente est prximo do entendimento de modo de endereamento proposto por Ellsworth (2001) em seu texto Modos de endereamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educao tambm. Isso por ela trazer

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  • e contextualizar esse conceito de modo de endereamento, que prprio dos estudos de cinema, buscando aproxim-lo dos estudos que compreendem o campo da pedagogia e do currculo. Essa aproximao realizada pela autora pode ser propcia para o que estou tentando abordar nesse momento, em que acredito ser importante ver a quem essas entrevistas/textos, apresentadas na seo Talento e na pgina Sentidos, desejam se dirigir. Nesse sentido, diz Ellsworth (2001), os produtores de filmes [pgina/seo] fazem muitas suposies e tm muitos desejos conscientes e inconscientes sobre o tipo de pessoa para a qual seu filme [pgina/seo] endereado e sobre as posies e identidades sociais que seu pblico deve ocupar (p. 16).

    Isso pode ser exemplificado por uma reportagem publicada na pgina Sentido, em abril de 2006. Nessa reportagem, o diretor executivo e editorial da revista e do site Sentidos (Dirceu Pereira Jr) falava da sua satisfao com relao ao nmero de leitores e leitoras atingidos no ms anterior (maro de 2006), dizendo que os

    [...] nmeros so bastante significativos para ns, pois alm de mostrar que o nosso projeto alcanou uma excelente visibilidade no setor, ratifica a aprovao dos leitores e internautas. Os mritos desses resultados so da equipe que semanalmente produz e disponibiliza as informaes e servios sobre os mais variados assuntos ligados s pessoas com deficincia e tambm a todos os usurios do site que atravs de sugestes, divulgao espontnea, comentrios e perguntas, nos ajudam a aprimorar o nosso trabalho. [...] Isso tudo aumenta ainda mais a nossa responsabilidade e nos faz pensar sempre em como podemos melhorar os nossos produtos e servios, inovar em formas de disponibilizar o contedo e surpreender com matrias e reportagens ainda mais relevantes e impactantes14.

    14 Disponvel em:

  • Esse excerto nos d a entender que o modo de endereamento tem a ver tambm com o desejo de controlar, tanto quanto possvel, como e a partir de onde o espectador ou a espectadora l (ELLSWORTH, 2001, p. 24) as reportagens e entrevistas apresentadas. Cabe aqui destacar que o modo de endereamento no um momento visual ou falado, mas uma estruturao que se desenvolve ao longo do tempo das relaes entre o filme [pgina/seo] e seus espectadores [leitores/as] (ELLSWORTH, 2001, p.17). Isso pode ser atribudo ao fato de que o que est sendo apresentado aos leitores/as que interagem com a seo Talento ou com a pgina Sentidos precisar ser complementado, uma vez que o modo de endereamento, segundo Ellsworth (2001), sempre relacional.

    Tal complementao se concretiza somente no momento em que os leitores/as ou internautas, tal como sugerido no excerto, ajudam, atravs de sugestes, divulgao espontnea, comentrios e perguntas, a melhorar a pgina. Assim, atravs dessa participao, eles comeam a ocupar as posies de sujeitos que so destinadas/apresentadas a eles/as pelos editores da pgina. Isso porque a partir desses dados que os editores tentam tecer determinadas informaes no sentido de tentar pensar que leitor/a voc para essa pgina e, ao mesmo tempo, quem eles (os editores) gostariam que esses/as leitores/as fossem.

    Se observarmos mais detalhadamente o que foi dito pelo diretor executivo da pgina Sentidos, percebemos os inmeros elementos interpeladores da mesma. O importante para os editores mostrar exatamente essas marcas (e.g., como um projeto que tem visibilidade e que foi aprovado pelos/as leitores/as) que passam a dar legitimidade a

    ela a Pgina e, consequentemente, aos assuntos ali apresentados. Assim, atravs da apresentao dessas marcas que possvel vislumbrar determinadas posies de sujeitos a serem assumidos ou no pelos/as leitores/as da Pgina. Isso pelo fato dos discursos circulantes na sociedade, de uma maneira geral, ou em situaes muito particulares,

    po=1&subcat=31& canal=visao>: Acesso em: 21 de abr. 2006.

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  • poderem fazer com que estejamos ou no nessa posio de sujeito em relao a um ou outro discurso.

    Nas palavras de Fischer (2001), as estratgias de interpelao e chamamento so fundamentais. como se na TV [pgina/seo], atravs daquele conjunto de imagens e narrativas, algum nos dissesse: Venha, venha ser sujeito disto que estamos lhe dizendo! (p. 80). Nessa direo, a variedade de apelos que a pgina Sentidos e, em especial, a seo Talento nos apresenta, como, por exemplo, a busca de superao, de outras visibilidades corporais ou com relao sexualidade, de uma maneira geral, so conhecidos pelas pessoas com deficincia e pelas instncias envolvidas direta ou indiretamente com elas, mas que se tornariam mais atrativos para seus leitores e leitoras por meio das estratgias e chamamentos utilizados pelos editores da Pgina.

    Foram em parte esses chamamentos que, em um primeiro momento, tambm me capturaram na direo de escolher a pgina Sentidos e, em especial, as entrevistas que se encontravam na seo Talento, por ela apresentar uma diagramao que inclua uma disposio de textos e imagens muito bem feitos e pelos assuntos ali abordados serem interessantes, relevantes e impactantes (tal como salientado pelo prprio redator da pgina). Porm, mesmo capturada por todas essas formas de chamamentos de que a Pgina se utilizava, no podia esquecer que, alm de leitora/internauta, o meu objetivo principal era o de uma pesquisadora tentando encontrar o seu material de pesquisa.

    ALGUNS ENTENDIMENTOS SOBRE DISCURSOAo utilizar os textos (mais exatamente as entrevistas

    selecionadas da seo Talento) contidos na pgina Sentidos como material de anlise da pesquisa, penso ser necessrio fazer uma problematizao sobre o tipo de gnero discursivo ali apresentado. Isso porque o entendo como uma prtica discursiva, isto , capaz de articular alguns aspectos lingusticos, histrico-culturais e sociais. Em tal anlise, utilizo-me de alguns exemplos recorrentes ou casos particulares contidos nessas

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  • entrevistas.

    Na organizao dos textos apresentados tanto na pgina Sentidos quanto nas entrevistas selecionadas, podemos observar uma preocupao dos elaboradores (da Pgina), dos reprteres que fazem as entrevistas e dos prprios entrevistados com a utilizao de uma linguagem simples, compreensvel. Isso tambm fica evidenciado por uma diagramao elaborada e que articula as imagens aos textos escritos (como j relatei anteriormente).

    Alm dessas articulaes, a utilizao de termos tcnicos (prprios da rea mdica, psicolgica, entre outros), de um discurso um tanto coloquial (em algumas situaes), bem como alguns eufemismos so exemplos dos recursos de linguagem muito utilizados nessa Pgina e nas entrevistas. Fora desse contexto tais termos poderiam perder seu significado, principalmente quando se referem a questes que envolvem as pessoas com deficincia. Esses recursos de linguagem e de estilo se fazem presentes como convenes semnticas que dirigem, ento, os significados que podemos dar Pgina e s entrevistas, bem como, adquirem tais sentidos, precisamente, porque esto naquela Pgina.

    Isso acontece porque esses recursos de linguagem utilizados (na Pgina e nas entrevistas), possivelmente, buscam interpelar os leitores, tanto pelas chamadas das reportagens quanto pelos textos, imagens e links que as compem, formando um hipertexto. Dessa maneira, as sequencias e disposies dessas chamadas so to bem articuladas que, muitas vezes, passam a ideia de que nem precisaramos ler todo o texto para saber do que ele trata. Ao mesmo tempo, ele deixa um ar de suspense, instigando a curiosidade do/a leitor/a, fazendo com que ele/a queira saber mais sobre o assunto em questo. Tal informao , frequentemente, destacada por meio de um link, que se constitui em mais um dos recursos utilizados por essa pgina com o objetivo de capturar um nmero muito maior de leitores/as, fazendo com que esse gnero digital seja to instigante. Isso talvez se deva ao fato de o surgimento da Internet ter possibilitado a existncia de uma exploso de novos gneros e novas formas de comunicao, tanto na

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  • oralidade quanto na escrita (MARCUSCHI, 2002, p. 19). Apesar disso, importante explicar, tal como refere Freire (2003) que, mesmo na sociedade digital, o que se v uma boa dose de inovao com muitas reformulaes advindas de vrios outros gneros (p. 70) discursivos j existentes, o que possibilita uma maior familiaridade do leitor/a com esse veculo (a Internet), tal como se pode sugerir em relao pgina Sentidos e seo Talento.

    Os entendimentos em relao ao discurso tm se ampliado nos ltimos anos, ocupando um papel preponderante nos trabalhos de Cincias Sociais, Cincias Polticas, Antropologia, entre outras. A apropriao do conceito que, inicialmente, se constituiu no interior da Lingustica, no acontece de uma maneira tranquila. Isso se deve ao fato de acontecerem, muitas vezes, algumas banalizaes conceituais e