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Corpo Morada da Alma Alma Alma

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI

CURSO DE ARTES APLICADAS COM ÊNFASE EM CERÂMICA

MARIA ELIZABETH CAVALCANTI INCHAUSTI

CORPO MORADA DA ALMA

São João Del-Rei

Fevereiro de 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI

CURSO DE ARTES APLICADAS COM ÊNFASE EM CERÂMICA

MARIA ELIZABETH CAVALCANTI INCHAUSTI

CORPO MORADA DA ALMA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

Curso de Artes Aplicadas com Ênfase em Cerâmica

da Universidade Federal de São João Del-Rei.

Orientador: Prof. Alexandre Henrique Delforge

São João Del-Rei

Fevereiro de 2018

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AGRADECIMENTOS

Em especial a minha amada mãe e educadora Léa Cavalcanti, que me proporcionou vivenciar

a arte desde pequena, aos meus filhos queridos Mariana, Tomás, Clarisse e Luca, que tanto

me incentivaram e foram sempre pacientes.

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RESUMO

O presente trabalho de conclusão de curso apresenta meu percurso artístico, trazendo

algumas discussões e implicações desta produção em articulação com duas tribos: Kayapó e

Kassena. Além disso, aborda o papel e a atuação da mulher na arte, seja nas tribos citadas ou

em minha própria atuação. Percebe-se, com o desenvolver do trabalho, que essa atuação

artística da mulher pode ser uma forma de manter viva uma tradição de extrema importância,

mesmo com o amplo, e por vezes nocivo, processo de globalização.

Palavras-chave: Corpo, Alma, Arte, Morada, Pertencimento, Território, Lugar, Feminino

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1- Pintura acrílica sobre a tela-70x80 -Beth Cavalcanti-2005..................................................................12

Figura 2 - Terra seca- pigmento natural sobre a tela - Beth Cavalcanti-2005.....................................................12

Figura 3- Acrilica sobre tela - Bicho do Mato- 35 x 150 - Beth Cavalcanti – 2007............................................13

Figura 4 - Ocaôca, instalação realizada no CCYA .Tiradentes .Qual o lugar que te cabe?.................................14

Figura 5 - Instalação OCAÔCA no CCYA em Tiradentes – 2011......................................................................14

Figura 6 - Frans Krajcberg: pigmento natural sobre raízes, cipós e caules de palmeiras – 1988........................17

Figura 7 - Frans Krajcberg: pigmento natural sobre troncos e reizes calcinados – 1980....................................18

Figura 8 - 1980-Frans KrajcbergPigmento natural sobre Caules de palmeiras...................................................18

Figura 9 - Erli Fantini: Jardim, cerâmica e ferro – 1995 – Foto: Miguel Aun.....................................................19

Figura 10 - Erli Fantini: Jardim, cerâmica e ferro – 1995 – Foto: Miguel Aun..................................................19

Figura 11- Erli Fantini: Jardim, cerâmico e ferro – 1995 – Foto: Miguel Aun...................................................20

Figura 12- Celeida Tostes: Passagem – 1979 – Ensaio fotográfico: Henri Stahl................................................21

Figura 13- Celeida Tostes: Passagem – 1979 – Ensaio fotográfico: Henri Stahl................................................22

Figura 14- Celeida Tostes: Série ferramentas – cerâmica 5 a 20cm – Foto:Vicente de Mello – 1979...............23

Figura 15- Celeida Tostes: Série ferramentas - cerâmica – 5 a 8cm – Foto: Vicente de Melo...........................23

Figura 16- Pinturas coletivas de mulheres – Foto: Vicent Catelli.......................................................................24

Figura 17- Detalhe da pintura corporal – Foto: Vicent Catelli............................................................................25

Figura 18- Pintura corporal feminina...................................................................................................................26

Figura 19- Sequencia mostrando a maneira correta de aplicação do desenho-base na face - desenhos de Odilon

João João Souza filho..............................................................................................................................................27

Figura 20- Pinturas Corporais no papel...............................................................................................................28

Figura 21- Motivos decorativos da face..............................................................................................................29

Figura 22- Maneira de aplicar a pintura de jenipapo...........................................................................................30

Figura 24- Wall painting, Tiebele annschunior...................................................................................................33

Figura 25- Wall painting, Tiebele annschunior…………………………..……………………………………33

Figura 26- wall painting, Tiebele, annschunior………………………………………………………………...33

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Figura 27- Vários desenhos de protótipos foram feitos: como se cada objeto fosse um corpo representado pelo

espaço, tempo, lugar, vazio e o eu...........................................................................................................................40

Figura 28- Primeiros desenhos com grafite e aquarela........................................................................................40

Figura 29- Primeiros protótipos-Escala 5cm x 3cm............................................................................................41

Figura 30- Protótipos realizados em outra escala - 10cm x 2cm - mudando o formato - Queimadas em 1300º à

lenha e queima baixa 960º - pintadas com engobe com diferentes resultados........................................................39

Figura 31- Estudos de grafite...............................................................................................................................41

Figura 32- Estudos de grafite...............................................................................................................................42

Figura 33- Processo de levantar a peça,superpondo rolos ................................................................................ ..43

Figura 34- Primeiras esculturas ainda com carater antropomorfico....................................................................43

Figura 35- Escultura realizada- Pintadas com engobe ainda crua.......................................................................44

Figura 36- escultura em processo de levantamento.............................................................................................44

Figura 37- Esculturas realizadas-pintadas com engobe.......................................................................................44

Figura 38- Escultura realizada.......................................................................................................... ...................44

Figura 39- Escultura realizada-iniciando os desenhos com baixo relevo............................................................45

Figura 40- Escultura pintada com engobe................................................................................................. ..........45

Figura 41- Primeira Escultura -pintada com engobe ainda crua..........................................................................45

Figura 42- Escultura pintada com engobe ainda crua...................................................................................... ....45

Figura 43- Pote pintado com engobe...................................................................................................................46

Figura 44- Escultura realizada- pronta para pintar..............................................................................................46

Figura 45- Queima de fogueira: peças explodiram..............................................................................................46

Figura 46- Queima de fogueira: peças explodiram..............................................................................................46

Figura 47- Queima de fogueira: peças explodiram..............................................................................................47

Figura 48- Queima de fogueira: peças explodiram..............................................................................................47

Figura 49- Primeira tentativa de queima que não suportou a temperatura do forno quaternário à lenha. Pode ter

sido por bolhas ou queima rápida por ter sido uma monoqueima ..........................................................................47

Figura 50- Peça sendo levantada sobrepondo os rolinhos um sobre o outro.......................................................48

Figura 51- Subindo a escultura............................................................................................................................48

Figura 52- Escultura sendo levantada..................................................................................................................48

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Figura 53- Escultura pronta crua ainda não foi queimada, pintada com engobe.................................................49

Figura 54- Detalhes de grafismos e de baixo relevo............................................................................................50

Figura 55- Escultura pintada com engobe de oxido de ferro e manganês...........................................................50

Figura 56- Peça pronta para desenhar Terra sigilata , peneiradas deixadas de molho na água - pintura feita com

água dessa terra.......................................................................................................................................................51

Figura 57- Levantamento da peça sobrepondo os rolos......................................................................................52

Figura 58- Textura da costura das peças sendo levantadas................................................................................ .52

Figura 59- Escultura na montagem do forno à lenha...........................................................................................53

Figura 60- Peça pintada com terra sigilata.............................................................................................. .............54

Figura 61- Oxido de ferro in natura peneirado....................................................................................................54

Figura 62- Oxido de ferro in natura peneirado e hidratado.................................................................................54

Figura 63- Quatro peças – Utilizado queima de fogueira à lenha cerca de 800º.................................................55

Figura 64- peças queimadas e pintadas com engobe...........................................................................................56

Figura 65- peças queimadas e pintadas com engobe...........................................................................................56

Figura 66- Peças pintadas cruas e queimadas em temperatura baixa..................................................................57

Figura 67- Esculturas ainda cruas sem passar pelo fogo.....................................................................................58

Figura 68- Peça com grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos de ferro e Manganês......59

Figura 69- Detalhe com grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos e manganês...............60

Figura 70- Peça com grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos de ferro, manganês........61

Figura 71- Peça com grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos de ferro,manganês.........62

Figura 72- Detalhe de grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos de manganês................63

Figura 73- Peças pintadas: 1- Resultado da queima de fogueira; 2- Peça ainda crua..........................................64

Figura 74 Escultura Corpo Morada Da Alma , queima em forno elétrico e baixa temperatura – 1000º,Tamanho

70x20,técnica; engobe.............................................................................................................................................66

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Figura 75- Escultura Corpo Morada da Alma: queima de fogueira em baixa temperatura 700º, 70x25-pintura

com engobe-Foto Beth Caval..................................................................................................................................67

Figura 76- Escultura Corpo Morada da Alma: queima em forno elétrico 70x20- pintura engobe e terra sigilata

Foto Beth Cavalcanti..................................................................................................................... ..........................68

Figura 77- Escultura Corpo Morada da Alma: queima em forno à lenha em baixa temperatura -960º , 68x20 -

Pintura de engobe foto Beth Cavalca......................................................................................................................69

Figura 78- Escultura Corpo Morada da Alma: queima em forno à lenha Quaternário em alta temperatura –

1300º -60x20 -Foto Beth Cavalcanti.......................................................................................................................70

Figura 79 Escultura Corpo Morada Da Alma: queima em forno elétrico - 1000º, 67x20 Pintura engobe -Foto

Beth Cavalcant........................................................................................................................................................ 71

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................11

2. REFERENCIAS..........................................................................................................16

2.1 Referências artísticas............................................................................................16

2.2 Referências étnicas................................................................................................23

3. REFERENCIAL TEÓRICO......................................................................................31

3.1 O feminino na arte................................................................................................31

3.2 A questão corporal................................................................................................34

3.3 Espaço e lugar........................................................................................................35

3.4 A globalização........................................................................................................37

4. PROCESSO CRIATIVO............................................................................................38

4.1 Primeiros desenhos................................................................................................39

5. MEMORIAL DESCRITIVO DO PROCESSO CRIATIVO..................................65

6. CONCLUSÃO.............................................................................................................72

7. REFERÊNCIAS..........................................................................................................73

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1. INTRODUÇÃO

A arte, sempre presente em minha vida, foi de fundamental importância na minha

formação. Ao proporcionar um sentimento de pertencimento ao mundo, sem dúvidas, me

mostrou formas diferentes de percebê-lo.

Em 2011, quando resolvi entrar para o Curso de Artes Aplicadas com ênfase em

Cerâmica, já tinha um atelier e uma prática em cerâmica. Frequentei durante alguns anos o

atelier de Erli Fantini e ao longo do tempo fui equipando meu atelier, mas ainda não me

considerava uma ceramista, pois a minha ligação maior era com a pintura e o desenho.

Precisava mesmo era de novas energias para minha vida.

Havia um receio de voltar a estudar, pois sempre fui muito livre em meu processo

criativo. Porém, percebi que o ambiente da universidade poderia ser propício para trocas de

conhecimento, convívio com outros colegas artistas e mestres da cerâmica. Assim, poderia ter

por norte um maior aprimoramento nas técnicas de esmaltação nos processos de queimas, o

aprendizado nas misturas de massas cerâmicas e na montagem de fornos.

Algumas matérias, já no início do curso, mudaram meu entendimento do que era

cerâmica, seus comportamentos na queima e seus diferentes resultados. Uma dessas matérias

por exemplo, a química, me proporcionou a percepção de inúmeras possibilidades de

composições e reações que dependem da temperatura. Fui descobrindo que diferentes

queimas levam a diferentes resultados e que as diversas misturas podem transformar a

resistência das massas cerâmicas. Entendi melhor também as transformações da matéria na

alquimia das cores e na mistura dos óxidos. A química que eu via como tão abstrata foi a

mesma que me deixou fascinada e agora a vejo constantemente num mundo em

transformação, matéria e energia. Vi que a vida era química pura. Assim, essas apreensões

práticas e teóricas foram de extrema importância no meu trabalho com a cerâmica, facilitando

e ampliando cada vez mais meu conhecimento.

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A presença do desenho de uma forma bem gestual e gráfica no meu processo criativo,

seja na pintura ou na argila, como incisões, sempre foi muito marcante (fig 1, 2 e 3). Sempre

incluindo traços mais espontâneos, linhas e até o erro, que muitas vezes eu não apagava e

deixava como registro, como se fossem marcas do tempo, uma arqueologia da alma. Na

pintura, modo de expressão no qual eu tinha muita liberdade, utilizava cores mais puras.

Porém, na medida em que a cerâmica foi entrando em minha vida, passei a utilizar mais cores

de terra, achadas na natureza. Posteriormente, comecei a me valer de experiências com o

próprio pigmento natural misturado à cola sobre as telas e a cerâmica passou a ser quase uma

pintura expandida na qual os objetos pulavam da tela. Esse processo foi de grande

importância e, mais uma vez, vida e arte se misturavam.

Figura 1: Pintura acrílica sobre a Figura 2: Terra seca- pigmento natural

tela-70x80 -Beth Cavalcanti-2005 sobre a tela - Beth Cavalcanti-2005

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Figura 3: Acrílica sobre tela - Bicho do Mato- 35 x 150 - Beth Cavalcanti - 2007

Já no início do curso, em 2011, realizei uma instalação no Centro Cultural Yves Alves

em Tiradentes. Na época, em que sentia um grande vazio, nasceu uma pergunta: Que lugar me

me cabe? E a resposta veio em forma de imagem: uma oca. Fiz então uma morada do

tamanho do meu corpo, um lugar que me acolheria, com estrutura de bambu e rebocada com

barro e capim. Este trabalho (fig 4 e 5) foi uma catarse. Percebi que o nosso corpo é aquele

que contém, que dá forma, que possibilita e materializa nossas emoções, sonhos e

pensamentos. A Oca veio para mim com uma carga de representação do corpo, do feminino,

do acolhimento, do lugar da gestação e da mãe-terra aquela que nutre. Dar forma e

significado, para mim, tinha completa relação com ser mãe e artista, aquela que é o

intermediário entre o mundo das ideias e o mundo material.

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Figura 4: Ocaôca, instalação realizada no CCYA .Tiradentes .Qual o lugar que te cabe?

Figura 5: Instalação OCAÔCA no CCYA em Tiradentes - 2011

Corpo Morada da Alma, expressão que também dá nome ao presente trabalho, nasceu

do desejo de pertencimento a um lugar. O fazer arte é o que mantém a formação de valores,

dos símbolos e significados de uma cultura através do tempo. Porque a arte está presente

desde os tempos remotos, marcando territórios e contando histórias? Qual o significado do

corpo enquanto instrumento de expressão da emoção, através da arte, nos gestos e grafismos

das representações dos valores estéticos e étnicos?

Percebi, observando a arte das culturas mais primitivas e suas formas de expressão,

que o meu trabalho tem similaridade nos gestos e traços que já vinham se manifestando como

referenciais importantes e também nos materiais utilizados: tintas vegetais, minerais e terras

coloridas. Esses povos possuem uma peculiaridade na maneira de manutenção e

pertencimento a um lugar, mantendo suas tradições na preservação dos seus saberes, nas

técnicas utilizadas, nas trocas de conhecimento e na forma de estar no mundo.

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Busquei, assim, referências no modo de organização desses povos e nas culturas onde

a mulher é quem tem o papel de representar nos grafismos seus saberes. Queria, ainda, algo

que tivesse relação com as origens brasileiras e com nossas histórias.

Senti que minha pesquisa poderia ir em busca de tribos que realizam e mantêm, ainda

hoje, em tempos de globalização, esses sistemas vivos de crenças e lutas na preservação de

conhecimentos. A minha motivação nessa busca era descobrir quais tribos ainda persistiam

com suas expressões gráficas na arquitetura, nas pinturas corporais e no formato circular de

organização das aldeias. É nessa forma e lugar que compartilham e são passados os

conhecimentos ancestrais e seus símbolos e significados para as gerações futuras.

Escolhi, então, como objeto de pesquisa, as pinturas corporais indígenas dos Kayapó -

Xikrin do Cateté, tribo situada no sudeste do Pará entre os rios Xingu e Tocantins, que hoje

lutam pela demarcação de terras. Nesta tribo, as mulheres possuem um papel fundamental:

pintar os corpos de todos da tribo. Assim, contribuem para a manutenção de um valor que, do

ponto de vista estético e simbólico, se refere às suas manifestações culturais. (RODRIGUES,

2007).

Escolhi também a Tribo Kassena, localizada no oeste da África, que pertence aos

Gourounsi, um dos mais antigos grupos étnicos que se estabeleceram no território de Burkina

Faso no século XV e que, atualmente, representa 6% da população. Vivem na vila de Tiébélé,

cujo significado é aldeia dos homens livres. A arquitetura deste local é feita de barro e capim.

As paredes são pintadas pelas mulheres antes das chuvas, como uma maneira de manutenção

e proteção. Além da função de proteger, essas pinturas carregam muitos significados. Esse

trabalho é feito coletivamente entre as mulheres, desde o preparo das terras coloridas, até o

reboque e a pintura. Todo esse movimento se apresenta como algo extremamente prazeroso,

contendo inúmeras possibilidades de troca de valores estéticos e de ornamentos. (CÚLTI E

POPE, 2014).

Infelizmente, vivemos tempos em que povos inteiros desaparecem junto com suas culturas

ancestrais, muitas vezes sem deixar rastros. Os povos indígenas do Brasil são extremamente

desrespeitados. Proponho, então, com o presente trabalho, chamar a atenção, pelas maneiras

de representação da arte primitiva, para troca desses conhecimentos e espaços tão importantes

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culturalmente. Além disso, meu fazer artístico, enquanto meio de manutenção de valores e

símbolos, é uma forma de trabalhar a face do feminino na arte, dando continuidade a

concepções presentes desde os tempos remotos.

2. REFERENCIAIS

2.1 Referências artísticas

Três grandes artistas marcaram minha produção ao longo do tempo e também a confecção

do presente trabalho de conclusão de curso. Foram eles: Frans Krajcberg, Erli Fantini e

Celeida Tostes.

Frans Krajcberg nasceu em Kozienice, Polônia, no ano de 1921, mas se naturalizou

como brasileiro. Pintor, escultor, gravador e fotógrafo, estudou Engenharia e Artes na

Universidade de Leningrado. (ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL, 2015). Ele utilizou

como matéria prima de suas criações cipós, troncos de madeira queimada, raízes e folhas.

Krajcberg manifestou inquietação diante da devastação da natureza pelo homem, que continua

destruindo a floresta para aproveitá-la. Sua forma de denuncia a devastação ambiental foi

através de sua arte, que transforma natureza morta em natureza viva. (SALLES, 2017).

O olhar do artista sobre a natureza e sua fragilidade diante da degradação das florestas,

as formas que conseguia criar sobre troncos e galhos, suas intervenções com cores extraídas

da própria natureza transformou sua arte em uma forma política de chamar a atenção sobre a

devastação das florestas.

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Figura 6: Frans Krajcberg: pigmento natural sobre raízes, cipós e caules

de palmeiras - 1988

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Figura 7: Frans Krajcberg: pigmento natural sobre Figura 8: 1980-Frans KrajcbergPigmento natural sobre

troncos e reizes calcinados - 1980 Caules de palmeiras

A artista Erli Fantini, mineira de Sabará, domina, como poucos, as técnicas aplicadas à

arte no uso da cerâmica. Foi professora e pesquisadora permanente na técnica da queima de

Cerâmica no Brasil. Com grande sensibilidade, sua pesquisa poética do barro ao minério de

ferro usa de rara delicadeza nas inúmeras possibilidades conferidas em seu trabalho. Transita

com liberdade pelas cores e linhas de metais, argilas e pigmentos terrosos que nos dá um

caráter contemporâneo com uma forte potência plástica.

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Figura 9: Erli Fantini: Jardim, cerâmica e ferro – 1995 – Foto: Miguel Aun

Figura 10: Erli Fantini: Jardim, cerâmica e ferro – 1995 – Foto: Miguel Aun

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Figura 11: Erli Fantini: Jardim, cerâmico e ferro – 1995 – Foto: Miguel Aun

Já a artista Celeida Tostes, nasceu no Rio de Janeiro em 1929 e morreu em 1995. Foi

professora e escultora, elegendo, em sua criação, o barro como matéria prima por excelência.

A feminilidade é o fio condutor de sua obra, sendo acompanhada de temas relacionados com a

fertilidade, sexualidade, maternidade, fragilidade, resistência, corpo nascimento e morte. Para

Celeida, experimentar, ensinar e aprender fazem parte de um jogo de criar e compartilhar o

mundo. Além disso, elaborou um discurso artístico determinado pela voz dos excluídos.

LONTRA E SILVA, 2010.

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Figura 12: Celeida Tostes: Passagem – 1979 – Ensaio fotográfico: Henri Stahl

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Figura 13: Celeida Tostes: Passagem – 1979 – Ensaio fotográfico: Henri Stahl

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Figura 14: Celeida Tostes: Série ferramentas – cerâmica Figura 15: Celeida Tostes: Série ferramentas -

5 a 20cm – Foto:Vicente de Mello - 1979 cerâmica – 5 a 8cm – Foto: Vicente de Melo

2.2 Referências étnicas

No desenvolver do meu trabalho, percebi que minhas marcas, seja na pintura ou na

cerâmica, carregavam algumas características dos grafismos indígenas e africanos, através das

cores e traços. Assim, elegi como objeto de pesquisa as pinturas das mulheres de Tiebele da

tribo Kassena e a tribo indígena dos Kayapó, buscando algumas similaridades entre esses

povos. Tentando, a partir disso, estabelecer uma relação entre povos indígenas e africanos. A

estimativa é que existam cerca de 7096 índios Kayapó nesse território. Essa população se

configura como uma das mais importantes tribos indígenas da Amazônia, sendo suas aldeias

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relativamente grandes quando comparadas a outros grupos. (RODRIGUES, 2007). É

interessante, ainda, ressaltar que as aldeias são organizadas em forma de círculo.

Uma grande tradição do povo Kayapó se refere à ornamentação corporal, que traz

características desta cultura e da história de cada indivíduo. Os corpos, nessa situação, atuam

como suporte físico para a autorepresentação e construção de significados. Aplicada ao corpo,

a pintura possui uma função essencialmente social e mágico religiosa. O corpo, no universo

indígena, se torna a representação visual de uma cultura. A imagem corporal é tomada como

uma ferramenta social. É interessante notar que, mesmo diante do amplo processo de

globalização, a produção desses artefatos indígenas contam com uma rígida repetição formal,

conseguindo sempre comunicar essas imagens. (RODRIGUES, 2006).

Figura 16: Pinturas coletivas de mulheres – Foto: Vicent Catelli

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Figura 17: Detalhe da pintura corporal – Foto: Vicent Catelli

O uso do corpo e a forma como ele se inscreve diz de uma identidade social, sendo ao

mesmo tempo coletivo e individual. Nesta amarração entre o que é social e natural, no

momento da decoração “as marcas expressas no corpo de cada um destes índios consagram os

ideais coletivos de manutenção da individualidade”. (RODRIGUES, 2006, p.37).

A complexa ornamentação corporal, onde aparecem as tradições e experiências

cotidianas desse povo, se transforma em linguagem compartilhada e torna-se possível a

captação e manutenção de seus principais valores. Sendo assim, o corpo não é natural mas

sobretudo fabricado, construído como uma segunda pele que possui a expressão simbólica da

socialização. (RODRIGUES, 2006).

Mauss (apud RODRIGUES, 2006, p.38), ao falar do corpo enquanto meio de

representação, se vale da palavra técnica, tomando-a como “um ato tradicional e eficaz, pois

para este autor não há técnica e nem transmissão se não há tradição. E nisso a técnica não

difere do ato mágico, religioso ou simbólico”. É interessante, ainda, a importância dos

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processos de ornamentação nos rituais, no qual as mudanças físico-corporais são marcadas no

próprio corpo.

Figura 18: Pintura corporal feminina: 1-pintura de mulher com filho recém nascido; 2-pintura feminina de fim de

resguardo; 3-pintura de fim de resguardo; 4-Iniciação feminina; 5-Pintura ritual os espaços em branco são

preenchidos com penugem de periquito - - desenhos de Odilon João Souza filho

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Figura 19: Sequencia mostrando a maneira correta de aplicação do desenho-base na face - desenhos de Odilon

João Souza filho

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Figura 20: Pinturas Corporais no papel: 1-Peixe, primeiro desenho aplicado com o dedo no corpo do recém

nascido; 2-Onça, Pintura feminina de resguardo; 3-Mutum,aplicado com um carimbo; 4-cobra da água funda,

riscado com a unha

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Figura 21: Motivos decorativos da face: a e b-borboleta; c e d- casco de jabuti; e, f e h-vértebra de cobra; i e j-

espinho de peixe; l-entrecasca de palmeira Tucum; m, n, o e p-caixinha de fósforos; q-enviesado; r, s e t

ziguezague; z- quadriculado

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Figura 22: Maneira de aplicar a pintura de jenipapo

A representação da imagem dos Kayapós se dá de acordo com a posição ocupada por

eles na sociedade, havendo uma distinção entre sexo, idade e função que ocupam no momento

das decorações. (RODRIGUES, 2006). A assimetria da divisão entre os sexos no povo

Kayapó também se dá na pintura, tarefa exclusiva das mulheres, que torna-se para elas um

hábito.

As mães Kayapó passam horas à fio pintando os seus filhos, fazendo do corpo da

criança seu laboratório. As mulheres Kayapó possuem um papel fundamental de manutenção

e tradição de sua cultura por meio da produção artística.

Também entre as mulheres da vila de Tiébélé, que abriga o povo Kassena possui

reconhecimento pela sua rica arquitetura e pela forma na qual as paredes são decoradas. Uma

marca muito característica deste povo é a divisão de tarefas por sexo: os homens constroem as

casas e as mulheres as pintam.

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A maioria das pessoas da tribo ainda vivem em casas tradicionais, feitas de parede de

barro, contando, geralmente, com uma mistura de esterco de vaca, argila e palha. A forma da

casa possui ainda grande significação, sendo quadrada para os casados e retangular para os

solteiros. Essas casas são construídas, ainda, de forma a se adaptar ao clima local. As paredes

são grossas para cercar a forte luz do dia e aquecer a casa à noite, momento em que fica frio

no deserto. Além disso, essas construções são feitas para dar proteção contra invasões

inimigas. (BISCHOF, 2013).

Até então, as casas descritas acima se assemelham muito a outras construções

africanas, porém as casas da vila Tiébélé se destacam pelas características exteriores: as

formas de decoração e as paredes pintadas à mão. Utiliza-se, nas pinturas, cores locais, como

por exemplo o vermelho que é tirado do solo local e o preto e o branco que são retirados de

algumas rochas presentes na terra. (BISCHOF, 2013).

Todos os anos, após o período das chuvas, as casas são repintadas pelas mulheres do

grupo. Os símbolos pintados são tradicionais da cultura Kassena e trazem seus próprios

significados, além de representarem o dia a dia dos moradores. As pessoas que vivem nessa

aldeia e compartilham tal trabalho artístico são de grande importância histórica, uma que vez

que sua produção irá influenciar as próximas gerações.

3. REFERÊNCIAL TEÓRICO

3.1 O feminino na Arte

É interessante notar que nas duas tribos mencionadas neste trabalho, Kayapó e

Kasena, as Mulheres possuem papel essencial. Atuam, quando se colocam como responsáveis

pelas pinturas, como mantenedoras da cultura local, sendo responsáveis, ainda, por passar

essa tradição e marcas para as gerações futuras, compartilhando-as.

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O trabalho artístico pode ser uma forma de representação do feminino. No Brasil, por

exemplo, a maioria dos trabalhos ligados à cerâmica são feitos tradicionalmente por mulheres.

Essa expressão pode ser uma forma de construir uma narrativa que é própria, contendo uma

expressividade única do universo feminino.

É possível ver esse papel das mulheres na arte a partir da década de 1960, junto ao

movimento feminista. As mulheres se organizaram politicamente para vencer as doutrinas

patriarcais estabelecidas pela sociedade, questionando o fato de a maioria das produções

possuírem assinaturas masculinas. Uma forma de expressão dessa demanda se deu por meio

da arte, na qual as minorias se fortaleceram e criaram redes de significados e identidades

(ARCHER, 2001). Assim, se o papel da mulher é histórico e social, aposta da maioria das

vertentes feministas, a arte pode ser uma forma revolucionária de construção dessa identidade.

Figura 23: Wall painting, Tiebele annschunior

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Figura 24: Wall painting, Tiebele annschunior Figura: 25 Wall painting, Tiebele annschunior

Figura 26: wall painting, Tiebele, annschunior

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Embora as tradições das tribos mencionadas se mantenham, são inegáveis as

mudanças trazidas pelo processo de globalização. Sendo assim, no presente trabalho, existe a

aposta de que a arte, aqui também apresentada por uma mulher, seja ainda hoje uma forma de

manter essas gigantescas riquezas culturais e difundi-las em outros locais.

3.2 A Questão Corporal

De acordo com Mauss (citado em ROCHA, 2008), a magia, independente de ser

verdadeira ou não, é uma forma de linguagem que possui eficácia simbólica e atua como

veículo de comunicação. Nessa concepção, a magia é uma força vital capaz de explicar atos,

representações, dentre outras coisas. Os atos mágicos só são considerados como tal quando a

sociedade lhes atribui este significado, quando pertencentes a uma tradição. Trata-se, então,

de um fenômeno sociológico e não exclusivamente religioso, uma vez que aciona um sistema

de símbolos e significados que fornecem sentido às ações. A magia requer, ainda, uma

performance para que possa ter valor simbólico de troca. Sendo assim, de acordo com Rocha

(2008, p. 137):

A magia consiste numa ideia prática cujaações e representações, ou seja, a

performance ritual e o sistema de crenças que a caracteriza, não estão separados, ao

contrário, formam um único processo simbólico traduzido em termos de arte de

fazer.

No pensamento de Mauss, a performance está ligada à técnica corporal. O corpo é o

primeiro e o mais natural instrumento que o homem possui. A técnica, é assim, a garantia de

manutenção da tradição, sendo atualizada por novas ações simbólicas e pelo desenvolver das

gerações. Sendo assim, a cada nova representação corporal surgem também novas

significações, pois a corporalidade é uma grande forma de representação simbólica. (ROCHA,

2008).

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As performances trazem uma reflexão sobre os grupos e a sociedade na qual estão

inseridos, podendo, assim, se tornar agentes ativos da mudança social. Ou seja, esses atos não

são mera repetição de sequências, mas sim ferramenta de transformação do indivíduo e da

sociedade. (ROCHA, 2008). A produção artística é, então, agente de mudança social, como

uma espécie de ato revolucionário.

3.3 Espaço e Lugar

Yi Fu Tuan é um autor da corrente humanista da geografia que, através de suas

propostas, apresenta uma nova forma de entender o homem e sua relação com a Natureza.

Questiona os modos como significamos o mundo que ocupamos, elucidando como as

diferenças fisiológicas, de gerações, gênero, pertencimento social, entre outros, acabam

criando um mundo pessoal.

O termo topofilia, descrito por Bachelard, é retomado e difundido por Tuan (2012).

Diz de uma emoção que ativa um ambiente, algo que molda a vida das pessoas e que antes era

indiferente a elas. Esse ambiente, agora ativado, é elevado a uma categoria de maior

importância, tornando-se emocionalmente carregado ou percebido como um símbolo. Faz-se,

assim, uma ligação subjetiva do homem com o espaço, ampliando o entendimento geográfico

para além de ciência dos lugares. Ou seja, a percepção ambiental se dá de acordo com o

sentido que o homem lhe atribui.

O homem compreende o espaço por meio dos sentidos, mas, para Tuan (2012), um

deles se destaca neste processo: a visão. Em seu pensamento, esta é a faculdade mais valiosa

do homem, pela qual este pode dar significados ao acúmulo de sensações, diferenciando-se,

assim, dos demais animais. As sensações ganham destaque em sua obra por serem uma forma

útil de percepção do meio, fazendo com que, pelas particularidades do meio físico que se

habita, se crie formas culturais específicas.

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Os lugares, para Tuan (1983), são centros aos quais imprimimos valor e onde

satisfazemos nossas necessidades. Os animais, aqueles não humanos, também possuem um

sentido de território e lugar, porém, diferentes dos seres humanos, não são permeados pelo

aspecto da cultura – marca única de nossa sociedade. A capacidade para a criação de símbolos

nos diferencia dos outros primatas, tornando-nos possuidores de uma experiência de mundo

única.

Dentre as aptidões e necessidades humanas encontram-se três temas que se

entrelaçam: Biológico (aprendizagem, pela criança e pelo adulto, das noções de espaço e

lugar), relações de espaço e lugar (as definições de espaço e lugar só são possíveis juntas: o

espaço, categoria de caráter mais abstrato, antes indiferenciado, só se torna um lugar quando

significado, ou seja, na medida em que lhe atribuímos valor) e conhecimento (fruto da

experiência direta, indireta ou conceitual). Quando o espaço nos é familiar, torna-se, então,

um lugar. (TUAN, 2012).

Na perspectiva de Tuan (2012), a experiência diz de diferentes maneiras de uma

pessoa conhecer e construir a realidade. Essas formas de percepção da realidade variam desde

a apreensão dos sentidos (paladar, olfato, etc.) até as formas mais complexas de simbolização.

É uma forma de atuar, nunca passivamente, sobre o dado e criar a partir dele. Essa forma de

experienciação humana ocorre também em relação ao espaço. Sendo assim, o lugar, esse

espaço que o homem dota de valor, pode servir como objeto no qual se pode morar.

A mente humana cria uma série de esquemas complexos para dar a forma na qual

esses espaços serão habitados. O homem organiza o espaço de maneira que ele possa estar em

conformidade com suas necessidades biológicas e sociais, assim, esses espaços podem ser

simples ou se tornarem uma moldura complexa que engloba praticamente todos os aspectos

da vida. Diferentes pessoas possuem diferentes formas de atribuir valor a seu mundo, porém

existem semelhanças culturais comuns, uma vez que são frutos de construções humanas.

Mesmo com as diferenças aparentes, algo comum se mantém: trata-se de derivações da

estrutura e valores do corpo humano. (TUAN, 2012).

Em minha produção, a Oca veio como uma manifestação artística, fazendo aflorar um

sentimento de catarse e de pertencimento a um lugar. Aquilo que inicialmente eu não sabia o

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que era, foi se tornando uma manifestação de significação de pertencimento, transformando o

desconhecido em lugar de habitação, de moradia. Esse espaço dotado de significação, o lugar,

se converteu para mim como um abrigo para o corpo e uma morada para a alma.

3.4 A Globalização

Infelizmente, a maioria dos monumentos não sobrevivem a decadência de sua cultura

ou a transposição de espaços. Sendo assim, dar continuidade a uma obra que lembra

determinado povo, com suas histórias e ensinamentos, pode ser um feito único para manter

vivos seus valores.

Milton Santos propõe a construção de um mundo que abranja uma globalização mais

humana, fugindo da globalização perversa na qual nos encontramos. Temos, assim, de usar

essa unicidade técnica, realidade da própria contemporaneidade, como ferramenta e não como

fim. Nesse sentido, essas bases técnicas poderão servir a outros fundamentos sociais e

políticos

Um fato relevante desse processo contemporâneo, aponta Santos (2001), é a

sociodiversidade, na qual se reúnem diferentes povos, culturas, raças, gostos, etc. Nessa

diversificação, os meios técnicos, cada vez mais próximos de um ideal de universalidade

empírica, antes exclusivos da cultura de massas, servem também a emergência de uma cultura

popular, possibilitando que esta última resgate o que lhe foi historicamente tomado.

A globalização é o ápice da internacionalização do mundo capitalista, processo este

que faz com que produções e ideias sejam rapidamente difundidas, que não fiquem restritas a

seu lugar de origem. O atual período histórico permite que o homem conheça o planeta de

maneira extensiva e aprofundada. (SANTOS, 2001).

Tendo em vista as colocações acima, no presente trabalho, parte-se da hipótese de que

minha expressão artística, marcada pela influência das tribos Kayapó e Kassena, seja uma

forma de manter viva e passar adiante essa tradição, enquanto manifestação, mesmo em um

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mundo que vive um amplo e crescente processo de globalização. Assim, proponho também

que a minha produção de cerâmica, seja uma forma de manter viva a produção feminina

dentro da arte, fazendo-se um instrumento político ainda necessário no mundo

contemporâneo.

4. PROCESSO CRIATIVO

Quando iniciei meu processo de criação pensei primeiro em mim, numa representação

na qual me reconhecesse. Então, a partir daí, me veio a ideia de casa e minha identificação

com a cultura indígena. A oca, instrumentalização desse pensamento, também poderia ser

uma metáfora do corpo que guarda a alma. Assim, a partir do manuseio da argila experimentei

formas primitivas e ampliei a ideia também para grafismos de tribos africanas.

A primeira ideia que surgiu foi uma forma circular, como a das aldeias estudadas.

Pensei em corpos num círculo, como se fosse uma dança. Um lugar onde a vida seria

compartilhada sem que a proteção fosse deixada de lado. Pude, a partir disso, trabalhar o que

acredito ser a ideia essencial do coletivo: a troca como forma de enriquecimento e

fortalecimento humano.

Posteriormente, essa ideia me fez refletir sobre o papel do feminino, dos

compartilhamentos essenciais à vida, como os ritos, o amor, os saberes, a arte e, enfim os

costumes. A oca foi pensada como corpos femininos, representados por esculturas com

grafismos pesquisados no livro de Lux Vidal. O autor conta sobre o papel feminino na tribo

Kayapós Xikrin: são as mulheres quem pintam os corpos da aldeia, sendo que este costume é

de grande importância para que as pessoas se identifiquem. Um fator muito interessante é que

na tribo africana também pesquisada, a Kassena, também são as mulheres quem possuem a

função de pintar, porém, diferente da atuação sobre o corpo típica dos Kayapó, as telas desse

povo são as construções. (VIDAL, 2000).

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4.1 Primeiros desenhos

Figura 26: O primeiro desenho Corpo Morada da Alma, representado pelo circulo, a aldeia, o feminino e o lugar

onde as coisas nascem- Foto: Beth Cavalcanti

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Figura 27: Vários desenhos de protótipos foram feitos: como se cada objeto fosse um corpo representado pelo

espaço, tempo, lugar, vazio e o eu - Foto: Beth Cavalcanti

Figura 28: Primeiros desenhos com grafite e aquarela - Foto: Beth Cavalcanti

Figura 29: Primeiros protótipos-Escala 5cm x 3cm - Foto: Beth Cavalcanti

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Figura 30: Protótipos realizados em outra escala - 10cm x 2cm - mudando o formato - Queimadas em 1300º à

lenha e queima baixa 960º - pintadas com engobe com diferentes resultados - Foto: Beth Cavalcanti

Figura 31: Estudos de grafite para corpo morada da alma

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Figura 32: Estudos de grafite para corpo morada da alma

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Figura 33: Processo de levantar a peça,superpondo rolos Figura 34: Primeiras esculturas ainda com carater

argila antropomorfico

Figura 35: Escultura realizada- Figura 36: escultura em processo de

Pintadas com engobe ainda crua levantamento

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Figura 37: Esculturas realizadas-pintadas com engobe Figura 38: Escultura realizada- pintadas com engobe

Figura 39: Escultura realizada-iniciando os Figura 40: escultura pintada com engobe

desenhos com baixo relevo

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Figura 41:Primeira Escultura -pintada com Figura 42: Escultura pintada com

engobe ainda crua engobe ainda crua

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Figura 43: Pote pintado com engobe Figura 44: Escultura realizada- pronta para pintar

45: Queima de fogueira: peças explodiram 46: Queima de fogueira: peças explodiram

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47: Queima de fogueira: peças explodiram 48: Queima de fogueira: peças explodiram

Figura 49: Primeira tentativa de queima que não suportou a temperatura do forno quaternário à lenha.

Pode ter sido por bolhas ou queima rápida por ter sido uma monoqueima

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Figura 50: Peça sendo levantada sobrepondo os rolinhos um sobre o outro

Figura 51: Subindo a escultura Figura 52: Escultura sendo levantada

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Figura 53: Escultura pronta crua ainda não foi queimada, pintada com engobe

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Figura 54:Detalhes de grafismos e de baixo relevo-Foto Beth Cavalcanti

Figura 55: Escultura pintada com engobe de oxido de ferro e mangan

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Figura 56: Peça pronta para desenhar Terra sigilata , peneiradas deixadas de molho na água - pintura

feita com água dessa terra

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Figura 57: Levantamento da peça sobrepondo os rolos Figura 58: Textura da costura das peças sendo

levantadas

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Figura 59: Escultura na montagem do forno à lenha.Foto Beth Cavalcanti

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Figura 60:Peça pintada com terra sigilata

Figura 61:Oxido de ferro in natura peneirado Figura 62: Oxido de ferro in natura peneirado

e hidratado

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Figura 63: Quatro peças – Utilizado queima de fogueira à lenha cerca de 800º-Foto Beth Cavalcanti

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Figura 64: peças queimadas e pintadas com engobe foto Beth Cavalcanti

Figura 65: peças queimadas e pintadas com engobe Foto Beth Cavalcanti

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Figura 66: Peças pintadas cruas e queimadas em temperatura baixa, Foto Beth Cavalcanti

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Figura 67: Esculturas ainda cruas sem passar pelo fogo-Foto Beth Cavalcanti

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Figura 68: Peça com grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos de ferro,

Manganês e engobe branco -Foto Beth Cavalcanti

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Figura 69: Detalhe com grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos,manganês

e terra sigilata – Foto Beth Cavalcanti

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Figura 70: Peça com grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos de ferro, manganês-

Foto Beth Cavalcanti

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Figura 71: Detalhe dos grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos de ferro,manganê

Foto Beth Cavalcanti

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Figura 72: Detalhe de grafismos em baixo relevo e pintadas com engobe com óxidos de manganês.

e terra sigilata. Foto Beth Cavalcanti

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Figura 73: Peças pintadas: 1- Resultado da queima de fogueira; 2- Peça ainda crua

Foto Beth Cavalcanti

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5. MEMORIAL DESCRITIVO DO PROCESSO CRIATIVO

Inicialmente, o projeto tinha em vista oito peças de 60 a 70 cm de altura, com cerca de

20 cm de diâmetro. Realizei seis peças ao final do projeto.

As peças foram feitas com rolos, superpostos sucessivamente. Foram elaboradas

costuras entre um aro e outro, por meio da preparação de uma barbotina 1 para que

funcionasse como cola, passando entre os aros com o objetivo de que não trincassem e

soltassem.

Em uma altura de mais ou menos de 40 cm fiz um corte, funcionando como limite do

tamanho do forno, como se fosse uma tampa. Utilizei os engobes2 para pintar as peças,

preparando-os com óxidos de ferro vermelho, amarelo, manganês, níquel e argila branca.

Os desenhos foram traçados com grafismos e incisões, com utilização de ferramentas

de pontas finas que facilitavam no momento de desenhar. As vezes, com riscos sobre o

engobe ou então vice-versa, obtendo diferentes efeitos. Durante o processo, busquei

referências dos traços indígenas e africanos, mencionadas anteriormente, como inspiração

para o meu trabalho.

O objetivo era trabalhar com queimas mais primitivas, nas quais as marcas do fogo

seriam parte do efeito da decoração. Uma única peça foi queimada em alta temperatura - a

1300º. Porém, houve um encolhimento bem significativo da argila.

A primeira experiência com a queima de fogueira foi bastante frustrante, pois três

peças foram perdidas devido ao aumento rápido da temperatura. As peças foram colocadas

dentro da fogueira e, posteriormente, foi ateado fogo nas beiradas. Cabe ainda ressaltar que a

queima da fogueira exige uma observação continua. Infelizmente, perdi três peças que

explodiram, pois as chamas do fogo foram direto nelas.

1 Barbotina: argila liquida

2 Engobe: argila liquida misturada com óxidos

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A argila utilizada foi a argila do professor Bruno com 5% de chamote3.

Figura 74: Escultura Corpo Morada Da Alma , queima em forno elétrico em

baixa temperatura – 1000º,Tamanho 70x20 ,técnica;engobe

3 Chamote: argila queimada e moída. Oferece maior resistência as peças

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Figura 75: Escultura Corpo Morada da Alma: queima de fogueira em baixa

temperatura 700º, 70x25-pintura com engobe. -Foto Beth Cavalcanti

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Figura 76: Escultura Corpo Morada da Alma: queima em forno elétrico 70x20,

pintura engobe e terra sigilata Foto Beth Cavalcant

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Figura 77: Escultura Corpo Morada da Alma: queima em forno à lenha em baixa temperatura –

960º , 68x20 - Pintura de engobe foto Beth Cavalcanti

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Figura 78: Escultura Corpo Morada da Alma: queima em forno à lenha Quaternário em

alta temperatura – 1300º -60x20 -Foto Beth Cavalcanti

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Figura 79: Escultura Corpo Morada Da Alma: queima em forno elétrico - 1000º, 67x20

Pintura engobe -Foto Beth Cavalcanti

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6. CONCLUSÃO

Corpo Morada da Alma representa uma forma de resposta à pergunta que me fazia

sobre o meu lugar no mundo, sobre meu pertencimento. As seis esculturas representam

corpos, são os guardiães dos territórios da alma, representam um lugar no espaço, uma

expressão individual e coletiva. A necessidade do compartilhamento de saberes, técnicas e

tradições na valorização das origens. Assim, a Oca representada em minha produção, veio

para mim como uma possibilidade de significação, de reconhecimento, de um lugar que não

havia sido percebido antes.

Existe uma marca muito interessante que liga a cultura dos dois povos estudados: o

papel da mulher na produção artística. Entre os Kayapó, as mulheres são responsáveis pelo

processo de pintura e ornamentação corporal de todos da tribo. Já entre os Kassena, as

mulheres também se destacam, porém a pintura, restrita a esse sexo, tem como tela as paredes

das casas da tribo. Assim, essas mulheres possuem um papel marcante nessas tribos, seja no

momento atual ou na própria história, visto que essas tradições e ornamentações também

serão realidade das próximas gerações.

O trabalho artístico pode ser uma forma de representação do feminino. Quando as

mulheres assumem o papel da expressividade, que geralmente é protagonizado pelos homens,

colocam em discussão seu papel na arte e também na posição que ocupam na sociedade. Na

minha produção, sempre fui tocada pela questão do feminino. Assim, meu fazer artístico, que

passa pela minha própria experiência enquanto mulher, é uma forma de compartilhamento de

conhecimento.

Com o amplo e crescente processo de globalização, a produção cultural e artística de

muitos povos se perderam. Assim, ainda são necessários formas e ferramentas que, mesmo

diante de um mundo dinâmico e cada vez mais comunicativo e universal, perpetuem e deem

continuidade as histórias de cada povo que não podem ser esquecidas. A arte, para mim, veio

como uma solução, como a possibilidade de dar continuidade e colocar em discussão questões

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sociais, históricas e também individuais. Acredito, então, que meu trabalho é uma forma de

resistência e de manter vivo esse sistema de crenças.

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