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CORPoS DO CORPO · todo em partes reguladas umas pelas outras, que existem e se constroem coletivamente. As partes físicas e as outras entidades reguladoras pertencentes a um corpo

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CORPoS DO CORPOPermeabilidade, degeneração e mutação do corpo na prática escultórica

Bárbara Marques do Rosário

Relatório de Projeto de Mestrado apresentado à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto em Artes Plásticas- EsculturaOrientação: Professora Doutora Rute RosasSetembro de 2019

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À Professora Doutora Rute Rosas pelo apoio e pela aprendizagem que me

proporcionou nos últimos quatro anos.

À Professora Doutora Filipa Cruz pela motivação.

A todos os técnicos da FBAUP pelo apoio e ensinamentos extraordinários que

dão, em especial ao Alcides Rodrigues e ao Carlos Lima.

Aos meus colegas pelo estímulo, pelo espírito de entreajuda e pela amizade.

Ao meu irmão e ao meu pai pelo apoio incondicional.

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SOBREVIVÊNCIA

CORPO

TECNOLOGIA

SILÊNCIO

REGENERAÇÃO

ESCULTURA

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Partindo de reflexões e características ontológicas, procura-se, neste

relatóriodeprojeto,analisaroquetemcaracterizadoacondiçãohumana.Numa

perspetivamaiscentradaemquestõesterrenas,mundanasecorporaispodemos

observar,oumesmoconstatar,diferentesdimensõesconstituintesdoser:seja

pela permeabilidade no modo como estas se constroem e são construídas por si

mesmasepelasrelaçõescomoseuentorno.Numafaseposterior,contrapondo

às noções iniciais, reflete-se sobre novas ideias e conceitos motivados pelo

contextoadjacenteàinovaçãocientífico-tecnológica.Porumlado,trata-sede

uma análise especulativa e crítica, e por outro lado relacional, sobre mudanças de

paradigmasqueosresultadosdasinovaçõestecnológicaspoderãorepresentar

para o ser humano. No contexto desta investigação materializa-se também

uma espécie de fuga e alternativa à inexorável e efémera corporalidade do ser.

Estasinquietaçõessãocentraisnasconcretizaçõesplásticas:nasesculturasque

sustentamesteprojeto.Conceitoscomosimulação,ficçãoerepresentação,em

estratégias da materialidade e da composição de corpos-esculturas, procuram

servircomodiálogosdeescape/fugae/oualheamentoàsobrevivênciasilenciosa

e à distopia.

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Thisprojectreportseekstoreflectonthecharacteristicsofthehuman

condition,takinganontologicalreviewasitsstartingpoint.Fromaperspective

largely centred on earthly, mundane and corporeal issues, we can observe,

or even verify that there are different dimensions to human existence: be it

through the juxtaposing fluidity with which these dimensions are shaped

andshapethemselves,or throughtheirverysurroundings. Incontrast to this

initial perspective, new ideas and concepts brought to the fore by scientific

andtechnologicalinnovationarefurtherreflectedupon.Ontheonehand,this

analysisisspeculativeandcritical,butontheotheritisalsorelational,covering

paradigmchangesthatmayaffecthumanbeingsasaresultoftechnological

innovation. This research further presents an escape and alternative to the

inexorableandephemeralcorporealnatureofhumanexistence.Suchrestless

concernsareatthecoreofplasticexpression:manifest inthesculpturesthat

embodythisproject.Conceptssuchassimulation,fiction,andrepresentation

embodiedbyanapproachtosculpturalcompositionthatseekstoengagethe

urgetoescapeand/orbecomeapatheticasasilentmeansofsurvivalintheface

of dystopia.

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RESUMO/ABSTRACT

INTRODUÇÃOEENQUADRAMENTO

I.CORPONOENTORNO I.1EvoluçãoeTranscendência-KarlPopper I.2HomeostasiaeSobrevivência-AntónioDamásio I.3O“LugardaAlma”-JoséGil

II.CORPO-COBAIA II.1Corpo-cobaia(RegistosMédicos) II.2NazarethPacheco-CorpoCongénitoeDegenerativo II.3EfemeridadeeConstrangimento III.CORPO-MÁQUINA III.1Corpo-máquinaeCorpo-objeto III.2RebeccaHorn-DaPotênciadoCorpoaoControlodaMáquina III.3RegeneraçãoeEspeculação III.4MargueriteHumeau-RepensaroPassadoparaPensarumFuturo:

IdentidadeeFicção

IV.PROJETOEPROCESSO IV.1ProjetoPrático(fichasdestacáveis) IV.2ReflexõeseConsideraçõesGerais IV.3Processoeoutrasimagensdoprojeto

CONSIDERAÇÕESFINAIS

BIBLIOGRAFIA

CONTEÚDO

5

11

15172225

31343946

51

5260

68

74

81838587

113

115

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“42)Ocorpoéoinconsciente:osgermesdosantepassadossequenciadosnas suas células, e os sais minerais ingeridos, e os moluscos acariciados, ospedaçosdemadeirarachadoseosvermesqueodevoramcadáverdebaixodaterraouentãoachamaqueoincineraeacinzaquedaíseretirae resumea impalpávelpó,easpessoas,plantaseanimaiscomquemelesecruzaeaoladodequemcaminha,easlendasdasamasdeantanhoeosmonumentosesboroadoscobertosdelíqueneseasturbinasenormesdasfábricasque lhefabricamligasmetálicasextraordináriasdequelhefarãopróteseseosfonemasrudesouciciadosquealínguatransforma em ruído falante, e as leis gravadas em estrelas e os secretos desejosdeassassíniooude imortalidade.Ocorpotocaemtudocoma ponta secreta dos seus dedos ossudos. E tudo acaba por fazer corpo, até ao corpus de poeira que se junta e que executa uma dança vibrante nafinapinceladadeluzemquesefindaoderradeirodiadomundo.”1

1 . Jean-Luc Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Corpo, Técnica, Subjectividades, nº33 (junho de 2004):20

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Acrisedocorpo,proporcionadapelosavançoscientíficosetecnológicos,

torna-se uma questão proeminente e persistente na contemporaneidade.

Énecessáriopensarsobreoqueconstituiohumano,poisosconceitosqueo

definem encontram-se em mutação e as noções clássicas colocam-se em

causa,podendomesmoviratornar-seobsoletas.Nestesentido,esterelatório

desenvolve-seapartirdeumaanálise inicialde teoriasde três autores sobre

umadicotomiaquetemapoiadoavisãodeserhumano:corpo/mente(ealma).

Sãoanalisadas,nomeadamente,asteoriasdofilósofoeprofessorKarlPopper,

domédico,neurocientistaeprofessorAntónioDamásioedofilósofo,ensaístae

professorJoséGil.Comopensaredefiniraideiadecorpo,demente(conscientee

inconsciente),dealmaoudeespírito?Apesardeseremdematériasedimensões

deabordagemdiferentes,comopensarnas relaçõesqueexistementreestas

noçõesdoserqueoconstituemcomoindivíduo?Acompanhandoteoriasque

visamumaunidadeentreasdiferentesdimensõeshumanas,aborda-seaideia

de indivíduo como um todo que se organiza em partes, cada uma com uma

função específica para um objetivo comum. Essas partes interagem entre si

ecomaquiloque lheséexterior,construindo-seemconcordânciacomoseu

envolvente. De seguida, reflete-se sobre o corpo orgânico como efémero e

degenerativo e no constrangimento que decorre daí para o sujeito. Podemos

pensar que o corpo, por vezes, sobrepõe-se à vontade da mente? Perante

isso, quais são as consequências para o sujeito e as suas reações?O avanço

científico-tecnológicocomopotenciadordamudançadeparadigmascorporais:

seja pelas próteses mais avançadas, como pela biotecnologia e engenharia

genética,entreoutrasquevisamumahibridaçãoentreorgânicoetecnologia.

Queconsequênciasnegativasousodatecnologiaparamodificarocorpopode

trazerparaoserhumano?Seráahumanidadecapazdeseadaptarecontrolar

INTRODUÇÃO E ENQUADRAMENTO

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estastransformações?Seráumcaminhoparaumaevoluçãodoserhumano–

progresso–ouparaumadestruição?Utopiaoudistopia?

Para investigar estas problemáticas, recorre-se à visão de vários

autores que se debruçam sobre a dicotomia corpo/mente, mas também sobre

sujeito/corpo-objeto, orgânico/sintético, humano/máquina, humano/não-

humano,abordandoconceitoscomo liberdadee felicidade.Emboraalgumas

considerações sejamdeumcampoainda especulativo, tenta-seponderar os

efeitosqueadvêmdestesnovosparadigmasdocorpo.Destemodo,apresentam-

sebrevesrevisõessobreautoresqueanalisamestaproblemáticaequeservemàs

concretizaçõesplásticasdesterelatóriodeprojetocomoconteúdoseterritórios

investigativos.

Como complemento dos conteúdos a serem desenvolvidos, surgem,

intercaladoscomotexto,trêsbrevescasosdeestudodeartistasdereferência

(NazarethPacheco,RebeccaHorneMargueriteHumeau),dasquaisostrabalhos

plásticos refletem preocupações semelhantes. Estes casos funcionam como

ligaçãoàminhapráticaautoralnasartesplásticasdosconceitosdesenvolvidos,

relacionando-se não só com os conceitos deste relatório de projeto como

tambémcomoprojetopráticoque lheéoriginário.Esteúltimo,aparece,por

sua vez, referenciado ao longo do texto através de símbolos. Para promover um

diálogoentreasdiferentesvertentesdesteprojetodemestrado(práticaeteórica),

estessímbolosremetemparafichasdestacáveisqueapresentamcadatrabalho

plástico.Nasecção“IV.1ProjetoPrático”encontram-seessasfichas,quedevem

ser destacadas para serem convocadas cada vez que o símbolo correspondente

surja.NaversãoemPDF,de formaequivalente,os símboloscorrespondema

linksclicáveisqueencaminhamparaapáginaondeseencontraaimagemdo

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objeto correspondente.

Emconcordânciacomaorientação,optou-seporumaescritaque,por

vezes,utilizafigurasdeestilo,metáforas,porexemplo,mastambém,porsetratar

deumrelatóriodeprojeto,pelainclusãodediscursona1ªpessoa(eu)emvárias

situações.Trata-sedeumtrabalhodeinvestigaçãoemartesplásticasqueintegra

inevitavelmentetrabalhoserelatosautoraisdecarácterpessoal.

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INTERAÇÃO E PERMEABILIDADE

I. CORPO NO ENTORNO

“Oparconceptualsoma/psiqueéantesdemaisoeixoemtornodoqualgiraagama,nãoinfinitaemboravariada,dosmodoscomoosdiversossistemasculturaisrepresentamaosseusmembrosrelações,analogiase equilíbrios entre diferentes níveis de realidade: níveis que não sãoapenas os do corpo e do pensamento, da matéria e do espírito, mas também do objeto e do sujeito, do real e do imaginário, do individual e docoletivo,doestáticoedomutáveletc...”2

2 . Ruggiero Romano, Enciclopédia Einaudi XXXII: Soma/Psique- Corpo (Imprensa Nacional

Casa da Moeda, 1995), 10

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Pensarocorpobiológicocomoumconjuntodeelementosinterligados,

interdependentes que constituem um todo é semelhante a afirmar que se

tratamdeelementosque têmcadaumumaordeme funçãoespecífica:um

todo em partes reguladas umas pelas outras, que existem e se constroem

coletivamente.

As partes físicas e as outras entidades reguladoras pertencentes a um

corpo vivo, partes não-físicas que lhe são intrínsecas, implicam refletir sobre

a existência damente, psique, do espírito ou alma. Corpo comoum sistema

que funciona através de um processo resultante da interação entre as partes

constituinteseotodo;queinterage,constróieéconstruídoporoutrossistemas

àsuavolta.OSerHumanocomosistemasempreintegradoeresultantedoseu

entorno(físico,social,político)edaexperiênciavivencial.

Para observar esta questão, é importante considerar o que dizem

algunsteóricossobreamatéria.Quantoaocorpohumano,nasuavertentemais

física e observável, já muito foi investigado e comprovado, mas, no que toca

aaspetosmaismetafísicosenãoverificáveisdoserhumano–porexemploa

existênciadaalma–ocampotorna-semaisescorregadioeespeculativo.Não

irão ser analisadas perspetivas dualistas que visam aumentar a separação entre

asdiferentesdimensõesdoser,massimperspetivasquevisamumaunidade.

Noentanto,paraalgumasreflexõesrealizadaspoder-se-ádizerqueprocurou-

seisolaralgunsdoselementosconstituintesdestaproblemática(corpo/psique)

comoestratégiareflexiva.

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Karl Popper (Viena, 1902- Londres, 1994), em O Conhecimento e o

Problema Corpo-Mente (1996),fazumaanálisedarelaçãoentrecorpoemente,

passando pela ideia de evolução da linguagem e de como é uma necessidade

biológicadoserhumanoocontactocomoconhecimentoobjetivo(autónomo

damentehumana)pararesolverproblemasessenciaisdesobrevivência.

Para introduzir estas ideias, explica a sua teoria dos trêsmundos, na

qualoferecemaisdestaqueeimportânciaaoterceiromundo.SegundoPopper,

omundopodeorganizar-seemtrêsmundos/trêsestágiosdesubstâncias.Ao

primeiromundo,designadodemundo1,atribuio localdasmatérias físicase

objetosondeseincluemtodososcorpose/ouorganismos(corpo).Nosegundo

mundo – omundo 2 –, localizam-se todos os estados e processosmentais e

comportamentais(mente).Paraexplicarasrelaçõesqueocorrementreestesdois

mundos,insereomundo3,queéomundoondeselocalizamasideias,teorias

(conhecimentoobjetivo)eosprodutosdamentehumana(masquemantém

desta última autonomia). Estes produtos damente humana que pertencem

aomundo3podem,porvezes,pertencersimultaneamenteaomundo1.Desta

situaçãopodeserexemploumobjetoescultóricoouumapintura.Emoposição

a este, o autor dá o exemplo de uma sinfonia que é escrita em papel e pode

serinterpretadadeváriasformassendoque,nasuaessência,asinfoniaexiste

apenasnomundo3(enquantoopapelondeestáregistadaeasuainterpretação

pertencemaoprimeiroeaoterceiromundo).

Assim,omundo2interagecomasua“basematerial”-deondesurge-

queéomundo1,masinteragetambémcomomundo3.Ainteraçãodomundo

2(mente)comomundo3érecíprocanamedidaemqueoserhumanoproduz

objetosparaomundo3erecebetambémdesteúltimoobjetosqueseformaram

I.1 Evolução e Transcendência

karl popper

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Figura1

Esquema que ilustra as relações entre os três

mundos de Popper. Retirado de O Conhecimento

e o Problema Corpo Mente (1996), pág. 19.

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autonomamente(quasecomosefossemdescobertosporeledepois-pensarna

matemáticacomoexemplo).Omundo3acabapor interagircomomundo 1

atravésdomundo2,sendoesteoagenteintermediárioentreosdois:

“Ateoriaemsi,aprópriacoisaabstracta,tenho-acomorealporquenospossibilitainteragircomela–podemosproduzi-la–eporqueelafazomesmoconnosco.Bastaissoparaconsiderá-lareal.Podeagirsobrenós–concebemo-la,utilizamo-lae,pormeiodela,modificamosomundo.”3

BaseadoemalgumasafirmaçõesdateseDarwinista4, Popper sustenta

que a consciência/mente foi uma evolução no organismo humano para dar

respostas a problemasde sobrevivência.Distingue aindadiferentesníveis de

consciênciasendoqueamaiselevada-consciênciaplena–pertenceapenasaos

sereshumanos.

Estas afirmações são conclusão dePopper para perceber a evolução

daconsciêncianosorganismosditosmaisevoluídos,sugerindoolharaquestão

numaperspetivaquevisapensarestanecessidadecomoumaquestãobiológica.

Ouseja,perceberquevantagempoderiatrazeraoorganismo,nasuadimensão

físicaebiológica,oaparecimentodeumamente.Parairdeencontroaestaideia,

oautorfazumabreveanálisedocomportamentoanimal.Constataqueasações

dos organismos animais se regem por entidades reguladoras que funcionam

numabasedesobrevivência–comoaregulaçãodobatimentocardíacooua

procuradealimento(instinto).Afirmaainda,queestas sãodemasiado rígidas

e que se baseiam em sistemas de interpretação básicos que em conjunto com

3 . Karl Popper, O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente (Edições 70, 1996), 63

4 . Charles Darwin (Shrewsbury,1809-Downe,1882) naturalista que com o seu livro “A origem

das Espécies” de 1859 contribuiu amplamente para a visão moderna do desenvolvimento

dos organismos com base na ideia de seleção natural

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osórgãosdossentidosnãosãosuficientesemalgumassituaçõesinesperadas.

Como exemplo, mostra o caso de insetos que se dirigem a vidros, não tendo

capacidade interpretativa para discernir melhor como reagir. Desta forma

é vantajoso para organismos mais complexos a evolução desse sistema

interpretativo(quesetornaconsciência)juntamentecomosórgãossensoriais.

Isto permite antecipar o resultadode situações e expectar as consequências

dos mesmos, ou seja, distinguir se estas são positivas ou negativas para o

funcionamentodoorganismo.Istosugereaemergênciadamente(mundo2)

para resolverproblemasdocorpo (mundo 1).Subsequentemente,omundo3

emergeparaaprimorareresolvermelhorosproblemasdomundo2,quesão

problemasmundo1.

Em relação ao si/self,afirmaqueesteéindissociáveldomundo3pois

formam-se mútua e simultaneamente. Atribui a formação do sujeito consciente

à evolução da linguagem nas suas vertentes descritiva e argumentativa que

levam ao processo de raciocínio. Separando esta linguagemda que cumpre

outras funções de sobrevivência mais básicas e imediatas que coloca no

mundo 2 – linguagem que os animais(não-humanos) também possuem.

É esta relação de interpretação do mundo 2(mente) sobre o mundo 3 que

faz com que haja progressão e evolução seja no trabalho (onde se inclui o

processo artístico criativo) ou como em todos os outros campos da vida.

Popper chama-lhe “processo de autotranscendência” e refere que este é

conseguido “por meio de um mútuo desenvolvimento e transferência”5

resultantedasinteraçõesentreos3mundos:

“Omundo3actuasobrenósnumpermanentecircuitodetransferência

5. Popper, O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, 165

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energética. E o aspectomais activo dessemundo é o nosso própriotrabalho, oprodutoque reverte a favordele. A autocrítica conscientepodeampliaremmuitotaltransferência.Aevolução,acoisamaisincrívelda vida, e o desenvolvimento mental constituem esse método de dádiva e recebimento, essa interacção entre os nossos actos e os respectivos resultados, por meio dos quais nos transcendemos constantemente a nóspróprioseaosnossostalentosedons.”6

Assim, sumariamente, salienta-se a ideia de podermos olhar para as

interaçõescorpo-mente-entornocomofluxosentreessesdiferentes“mundos”,

que se constroem mutuamente entre si. Deste modo, a relação entre organismo

eentorno(ondetambémseinseremoutrosorganismos)constituiumainteração

mútua: o ser humano é construído e constrói-se emparceria comomundo

3, formando uma indissociabilidade entre as três dimensões/substâncias do

mundo de forma genérica.

6. Ibid., 163

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Numaabordagemdiferente,mascomestaideiadecontinuidadecom

queseterminouaanáliseaKarlPopper,AntónioDamásio(Lisboa,1944)oferece

tambémasuavisãosobreasinteraçõesentreoorganismoeoambiente.Sendo

umneurologista,asuavisãofoca-semaisnessaperspetivacientíficadaquestão.

Vaideencontroà teoriaanterior tomandoamesmaperspetivaevolucionista,

na medida em que observa a formação gradual e evolutiva da mente nos

organismos e assume a emergência da mesma como uma necessidade de

respostaaproblemasdeordembiológica-visandosempreasobrevivênciaeo

melhoramentodaespécie.

A essa necessidade de sobreviver e melhorar, Damásio apelida de

Homeostasia.Deformasucinta,aHomeostasiaconsistenumprincípiobásico

presente em todos os organismos vivos. É o motor regulador que faz com

que surjam outras formas mais evoluídas desses organismos se constituírem

internamente e de se relacionarem com o ambiente em que estão inseridos.

Segundoesteautor,ahomeostasiaexistedesdequeexistevida,masossistemas

nervosossóseformarammuitomaisrecentemente.Essessistemasnervososé

que posteriormente evoluíram e passaram a formar uma interação com o resto

doorganismo.Dessaforma“(…)viriamgradualmenteapermitirumprocessode

mapeamento multidimensional do mundo em seu redor, um mundo que tem o

seuinícionointeriordoorganismo,demodoaqueasmentes–eossentimentos

nessasmentes – fossempossíveis.”7 Para esse mapeamento foram fulcrais os

órgãossensoriais (visão, tato,audição,…)quepermitemessa interaçãocomo

mundo exterior ao corpo.

7. António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas- A vida, os Sentimentos e as Culturas

Humanas (Temas e Debates, 2017), 45

I.2 HOMEOSTASIA E SOBREVIVÊNCIA

antónio damásio

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Quanto aos sentimentos, o autor considera-os essenciais nesta

perspetiva homeostásica, uma vez que considera que eles são os melhores

indicadoresdoestadodoorganismo.Destaformaoindivíduotemindicações

sobre o seu próprio bem-estar, na forma de noções positivas ou negativas,

de prazer ou de dor e estas formulam assim os motivadores do organismo. A

capacidade de antecipação destes sentimentos e raciocínio posterior é que

fazoindivíduoagir.Destemodo,semelhantementeaPopper,Damásioafirma

que todas as criações intelectuais do ser humano comoaArte, a Filosofia, a

Ciência(quenateoriadePoppersãopartedomundo3)forammotivadaspela

base genética/biológica, através dos estímulos resultantes do princípio da

homeostasia.Ouseja,damanifestaçãodossentimentoscomomotivadoresda

criaçãopoisantecipamasconsequências (sejampositivasounegativas)para

o organismo e fá-lo, através do raciocínio, resolver problemas e criar novas

hipóteses.Voltandoàideiaanterior,ocorponãoexisteseparadamentedamente

e do cérebro. A mente “emerge do organismo inteiro como um conjunto”8

eéinteiramentedependentedaexistênciadeumaredeneuronalqueconectao

corpo ao cérebro. É essa rede que passa informação sobre os estímulos corporais

apreendidospelos“portaissensoriais”.9

Depois desta perspetivamais objetiva e científica, fica a questão de

comopoderpensar e localizarno corpo (ou emvoltadele) a alma. Seráque

esta perspetiva deixa menos espaço para conceber partes mais transcendentes

relacionadascomoser?Emboranãosedebrucemuitosobreaquestãodaalma,

Damásioafirmaqueasuaideiadementeinterligadaaoseuconjuntocorpóreo

8. António Damásio, O Erro de Descartes- Emoção, Razão e Cérebro Humano (Temas e

Debates, 1994), 222

9. Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, 210

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nãodepõeaideiadealmaeespírito.Refletequeolocaldeespíritoterádeser

repensado, mas que emerge na mesma do organismo como um todo.

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Em Metamorfoses do Corpo (1997),JoséGil(Muecate,1939)questionae

debruça-se sobre o lugar da alma e do outro. Começa por constatar que o que

vemos no outro é sempre vedado e mediado pelo seu corpo, pelo seu exterior-

sendo que o Selféidentificadocomoalgointeriorquepermaneceencapsulado

no anterior. Temos acesso a esse interior através do corpo que revela amostras

corporais,permitindoassimaperceçãodemanifestaçõesexternasdo interior

(mediadaspelocorpo).Assim,“(…)aexperiênciavividadeoutremescapaàminha

vista,esgueirando-seporentreossinaisquevaianimandonovisível–expressões

dorosto,gestos,palavras,movimentosdocorpo”.11Oautoralertaparaesteengano

detomarointeriorpeloseuexterior:chamaaesteprocesso“esquematização”12

(do interior no exterior) e denomina esse engano como “equívoco”13

,masassumequeestesnãosãonecessariamentetotaisequeassuasnoções

formamumlimiarentreasduasentidades(interioreexterior),oqueastorna

de certa forma autónomas. Esse equívoco constitui um problema porque,

como o autor menciona, o que queremos perceber do outro é o seu íntimo, o

seuinterior-osseuspensamentos,vivência,emoções/sentimentos–poroutras

palavras, a sua alma/espírito.

De seguida, chega à questão primordial sobre a localização desse

interior(alma). Se este é ‘interior’ porquepertence aum ‘exterior’ (objetivo e

concreto-corpo)queconseguimoslocalizarnoespaçofísico,tambémeleteráde

se encontrar algures na mesma zona. Mas, como esse interior é espírito imaterial,

nãoocupaespaçoconcretonemtemlimitesfinitos.Emboratenhalugaresonde

10. José Gil, As Metamorfoses do Corpo (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1997), 148

11. Ibid.

12. Ibid., 149

13. Ibid. 

josé gil

I.3 O “lugar da alma”10

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26

se manifesta, é assumido, pelo senso comum, que a alma tem esta localização

contraditória.Porumlado,quandoobservamosumserhumanosabemosque

no corpo que vemos se encontra uma alma, mas, por outro, sabemos que não se

localiza concretamente nele nem se organiza na mesma dimensão.

Assumindoquenãoserápossíveldefinirexatamenteolugarobjetivoda

alma, JoséGilpartepara tentar identificar situaçõesemqueháperceçãoda

mesma.Sejanumolhar,ounumtoquemaisíntimo,comooabraçoounuma

relaçãosexual,háumaaproximaçãoaolocaldaalma.Quandoseolhaumolhar,

nãosevêapenasosolhos,aspestanaseaspálpebras.Vê-seeolha-seooutro-

vislumbra-seaessência,aprofundidade. JoséGildestacaaindaque todosos

orifíciosdocorpo,etambémapele(correlaçãocomossentidos),permitemuma

aproximaçãoàessênciainterior,sendoorostoumamaiorconcentraçãodestes

– o que o tornamais proeminente nesta questão. Mesmo se pensarmos na

perceçãoindividualdecadasujeito,alocalizaçãodo“eu”torna-semaisfácilde

imaginar se for pensada como contida no interior da cabeça (sem ser

necessariamente o cérebro). Os olhos, de onde se perceciona o exterior,

permitemverorevestimentocorporalàsuavolta (pestanas,nariz,…).Oautor

encontraassimasuaideiade“espaçolimiar”14, o espaço do sujeito da perceção

que é um espaço-atmosfera, que se situa entre o espaço exterior e o interior, que

interageecomunicacomambos(permitindo-ostambéminteragirumcomo

outro).É,assim,umazona“queemparteseabreparaoexterior,eempartese

estende para trás, nas trevas do interior. Este espaço recebe, pois, a luz indireta

da paisagem e ensombra-se na escuridão em que se prolonga. É um espaço

intersticial,desombras,masdesombrasvivas,comluzprópria(aqueumacerta

14 . Ibid., 154

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27

Figura2

Representação gráfica interpretativa da teoria de José

Gil sobre como localizar a alma no espaço interior do

corpo.

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28

filosofia chamou «consciência») – que ilumina pensamentos, sensações,

imaginações.”15

É também este espaço limiar que faz a mediação da interação do interior

comoexterior-corpoecomoexterior-entorno.Oespaço limiaréosujeitoda

perceção(consciente),e,portanto,nãomedeiatodasasinteraçõesentreinterior/

alma e exterior-corpo físico pois há interações inconscientes. Dentro deste

espaço interior delimitado pelo espaço limiar onde se situa o sujeito da perceção,

équesepoderá,segundooautor,situaraideiademente(quecomportanãosó

osujeitoconsciente,mastambéminconsciente).Postoisto,concluiqueoque

procuramosnum ‘outro’,quando tentamoscomunicar, éesse interiorque se

localiza entre o espaço exterior e físico do corpo e o espaço interior espiritual, na

continuidade da atmosfera do espaço limiar. Este fundo interior é construído

por vários níveis de profundidade –criados pela “expansão e fractalização”16

doespaçolimiar–queestãoagregadosunsaosoutrosequeconvergemnum

pontodoinfinito(queseestendeparadentro)queéonde,segundooautor,se

situaaalma.Aalmaestá,então,nesselugardoinfinitoquenãoéumlugar,mas

“ummovimentopara.Osdiferentesníveisdeprofundidadeaquesesituamas

emoções, desejos, imagens, não correspondem a uma verticalidade objetiva,

masaumatipologiadevelocidadesdeexpressão”.17

Emtodaasuareflexãoficaclaraumaperspetivadeunidadeentrecorpo

ealma(psiqueesoma),sendoqueassuasconsideraçõessedebruçamsobreas

relaçõesentreambas.Sãoessasúltimasqueconstroemumsercomoumtodoe

que fazem com que não possa existir um corpo que não esteja ocupado por um

15 . Ibid., 155

16 . Ibid., 161

17. Ibid. 

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29

interior/espírito.JoséGilrefleteaindasobreestaideiadecorpovazio,desabitado,

perante o qual sentimos repulsa e incapacidade de nos relacionarmos por

nãoterumoutremidênticoanósnoseu interior–certasdoençascriamum

afastamentodaalmaaocorpoeamorteesvaziaomesmo:

“Esteafastamentosemprepossíveldaalmadocorpoéoquepermiteque«nãoestejamosbemnanossapele»;que«nãosevivabemocorpo»e,nolimite,oquelevaà«fortalezavazia»dequefalavaBrunoBetelheimreferindo-seaospsicóticos.”18

Esta alma descrita por Gil pode ser interpretada como uma alma

ambulante que absorve do exterior-entorno e também escoa por lá ou para lá

atravésdemovimentosdocorpo.Decertaforma,estaésemelhanteàperspetiva

de Karl Popper (apresentada anteriormente), na medida em que ambas as

ideias descrevem as interações entre os diversos elementos constituintes da

realidadequasecomofluxosdeenergiaseessênciasmultidirecionais.Aalma

que sepensaaquinãoé aura.É algomaisda verdadedoquedaaparência,

não é percecionada nem atribuída social e culturalmente como a aura pode

ser.Asquestõessobreaalmaficarãoporresponderdeformaclaraeconclusiva.

Serácomoalgoquenãotemumaexplicação,masqueexisteeatépoderáser

essencial.Nãoéoself, mas está no self.

Aindasobrearelação interior/exteriordocorpo,Gilafirmaquea ideia

de espaço interior é paradoxal e apoia-se no conceito de corpo-sem-órgãos

de Gilles Deleuze (Paris, 1925- 1995) e Félix Guatarri (Villeneuve-les-Sablons,

1930- La Borde Clinic, 1992). Esse espaço interior do corpo é dito de interior

apenas porque é contido dentro do espaço exterior-corpo e porque não é

18. Ibid., 159

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percecionado do exterior. A pele esconde esse interior no corpo, mas assim

queabertaesse interiordeixariadeexistir.Nemumcorpopróprio “vividodo

interior”nemum“corpodeoutrem«percepcionadodoexterior» (…) sedãoà

percepção de uma presença”.19 O autor refere um “inconsciente do corpo”20

, por ser inconscientemente vivido e pensado desta forma, como se estivesse

vazio de algo corporal, sem o organismo visceral que lá se aloja. Essas vísceras,

quando se fazem notar, criam uma sensação de desconforto que denunciam

estavisãoinconsciente:

“Este viver do corpo faz-me senti-lo como «a mais», como umacoisa, como se eu fosse reduzido precisamente a um organismo. O que significa que a percepção «normal» do espaço interno éa de uma não-presença, ou melhor de uma impresença.”21

19. Ibid., 178

20. Ibid., 183

21. Ibid., 179

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II. CORPo-cobaia

“34)Naverdade, «omeucorpo» indicaumaposse,nãoumapropriedade.Querdizer,umaapropriaçãosemlegitimação.Possuoomeucorpo,trato-ocomoquero,tenhosobreeleojus uti et abutendi. Mas ele possui-me por sua vez:elepuxa-meoutolhe-me,ofusca-me,detém-me,empurra-me,afasta-se.Somosumpardepossessos,umcasaldedançarinosdemoníacos.”22

22. Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo”, 19

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O corpo físico é um limite permeável. Tem limitaçõesmateriais, está

sujeito às leis físicas como todos os outros corpos; tem um espaço que ocupa,

temmovimentos próprios,mas finitos. Está sujeito a contingências próprias

que o restringem e que não se alteram, quanto muito aumentam- com o

envelhecimento ou a doença, por exemplo. Como pensar a relação entre o

corpofísicocomamenteeoutrasdimensõesdoser?Pode-sepensarocontrolo

da mente sobre o corpo como limitada, sendo que o corpo físico tem uma

autonomia e assim retira alguma liberdade da mente se manifestar através dele,

afetandoassimassuaspossíveisinteraçõescomoseuentorno?

“(…)aslongasthebodyishealthyandthemortalityisbeyondthehorizonofconsciousness,associatingtheselfwiththebodycomeseasily.”23

Nasequênciadaideiadecorpo-sem-órgãos,talcomoJoséGileArthur

Frank(EUA,1946),IedaTucherman24afirmaqueapenasquando“édanificadoou

quandoadoece,ocorposefazpresente,sendopercebidopelaconsciênciacomo

umoutro.Simbolicamenteocorpopresentenaexperiência[é]aruturadosujeito.”25

Assim, seja por envelhecimento ou por situações de doença ou debilitação

repentina ou progressiva, podemos pensar que o corpo vai ganhando

poder sobre a mente? Se isolarmos mente/consciência e corpo físico,

23. Arthur Frank, “The Body’s Problems with Illness,” The Body: A Reader, ed. Mariam Fraser

e Monica Greco (Routledge, 2005)

24. Ieda Tucherman (da qual não se encontra disponível a data de nascimento) é atualmente

professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conta com vários artigos

publicados e um livro Breve História do Corpo e dos seus Monstros publicado pela primeira

vez em 1999. É também coordenadora do grupo de pesquisa “Imaginário Tecnológico” que

pertence ao programa de pós-graduação na universidade onde leciona.

25. Ieda Tucherman, Breve História do Corpo e dos seus Monstros (Lisboa: Nova Vega, 2012),

91

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podemos pensar que o corpo com a sua parte autónoma, contraria,

desobedece e obriga amente a ser limitada por ele? O ser consciente não

tem controlo totalitário sobre o corpo, ele tem expressões próprias. Gonçalo

M. Tavares (Luanda, 1970) aborda esta questão da “vergonha do corpo”26

afirmando que “o corpo tem reações exteriores autónomas. O corpo é um

animal.Aquiloqueocorpofaz,elefá-losozinho.”27

Seporumladosepodepensarnesta“limitação”damentepelocorpo

físico, também se pode observar o inverso. Se o corpo deixa de funcionar

“corretamente” amente sofre alteração. Quando o corpo deixa de funcionar

(por completo ou parcialmente) e é forçado a adaptar-se e a moldar-se a

essenovomododeexistirnomundo físico.Seráqueo inversoé igualmente

‘problemático’?Seosujeito-consciênciasedebilitaoqueaconteceaocorpo?

Será estaumaperspetivade valorizaçãodamente sobreo corpo?Equando

aconteceoqueseclassificacomoumarelaçãopsicossomáticaemqueamente

interfere(maioritariamente)deformainconscientenocorpoe“lhedácomandos”

paracertasfunçõesquenãodeseja.Culpaocorpo?–Relaçõespsicossomáticas:

quando a mente consciente ou inconscientemente interfere no funcionamento

orgânicointernodocorpo.

26. Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação (Editoria Caminho, 2013), 223

27. Ibid.

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34

Como parte do processo de investigação relativo a este relatório

de projeto, registei vários procedimentos médicos a que fui submetida-

rinolaringoscopia,endoscopia,colonoscopiaeexamesginecológicos.Osvários

procedimentos materializam a ideia de inspeção/análise do interior do corpo

físico e que para isso implicam necessariamente a ideia de invasão e penetração.

Algoexteriorqueentranointerioreinteragecomele,tocando-lhe,causando-

lhedor.Objetoexternoqueentranoespaçodesconhecidoetocalugaresnunca

tocados.Ointeriordocorpo,queemestadonormaldeausênciadedornãoé

vivido,passaasersentido,causandoumasensaçãodeestranheza.Oscheiros,os

sons,astemperaturaseastexturasdoespaçomédico/hospitalarpercecionadas

pelo utente. A frieza dos objetos médicos externos que entram no interior

corporal quente.

Esteprocesso investigativo regista a experiência vivenciadapormim,

permitindo a visualização de partes do meu corpo que nunca tinham sido

visualizadas. Através das imagens conseguidas, há uma exteriorização de

movimentosecomportamentosdoorganismointerno.Osregistosrealizados

permitem também a observação dos reflexos automáticos do corpo em

situaçõesdeinvasãoqueosujeitoconscientenãocontrolanemtemcapacidade

deinterferir.Estavisitaaointeriorfísicoevisceralpossibilitaigualmenterefletir

sobre as contingências da organicidade do corpo humano, o seu caráter

e funcionamento “autónomo”, mutável e degenerativo. Para além destas

questões, a experiência simbolizaaindaoabandononecessáriodo sujeitoao

controlodoseucorpoparao “dar”a terceirosqueopassamamanipularea

“arranjar”,mexendonele,alterando-oepodendomelhorá-looupiorá-lo.Trata-

sedousodomeuprópriocorpocomocobaia,comoobjetodeexperiências-no

sentidomédicoecientíficomastambémenquantopaciente.Omeucorpoque

registos médicos

II.1 corpo-cobaia

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Figura3

Fotograma de registo vídeo de endoscopia digestiva, março de 2018

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Figura4

Fotograma de registo vídeo de rinolaringoscopia, 2017

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Figura 5

Fotograma de registo vídeo de endoscopia março de 2018

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sente,étocadoeémanipuladoedepoisexteriorizaessavivência.Experienciar

na primeira pessoa e analisar o vivenciado como base e estímulo conceptual

paraasconcretizaçõesplásticas.Asconcretizaçõesplásticasquesurgemdestas

experiências,emgeral,nãocontêmreferênciasdiretasouvisuaisdoprocesso

de investigação, mas remetem para o mesmo através de uma estratégia

metafórica-simulandoambientes,formasesensaçõesguardadasnamemória,

oumelhor,narecordaçãodosmomentosexperienciados.

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Nazareth Pacheco, artista plástica brasileira, nasce em 1961 em São

Paulo. Devido a ser portadora de uma doença congénita degenerativa, desde

nascença, a artista tevede sermúltiplas vezes sujeita aoperações cirúrgicas,

composterioresoperaçõesplásticasdereconstrução.Oseupercursoartístico

manifestafortementeumcarácterautobiográfico,quedecorre,essencialmente,

dessa sua vivência com a doença. Se nos seus trabalhos iniciais era menos

evidenteessarelação,nosseustrabalhosposteriorescomeçaasercadavezmais

explícita.Porexemplo,emalgunstrabalhosseusde1990(figura8),usaborracha

vulcanizada em contraste com elementos metálicos em que as formas criadas

remetem para objetos de tortura, de uma forma mais geral e abstrata. Mais tarde

abordaasmesmasquestõesdeumamaneiramaisobjetivaeacutilante,comas

suas séries de objetos para o corpo- colares, vestidos, adornos de beleza- feitos

com materiais nocivos para o mesmo(figura6). Perante esta série de objetos que

apresenta,todoselesusualmenteusadospelocorpo,háumaprimeirasensação

de atração e sedução provocada pelos materiais que utiliza como missangas

epérolas.Sódepois,quandooobservadorseaproxima,équesetornavisível

apresençade lâminaseoutrosmateriaiscortantesnocivosaocorponocaso

de serem utilizados. Ao mesmo tempo que servem ou adornam e embelezam

ocorpo,tambémomutilam.Destemodo,sugereumareflexãocríticasobrea

manipulação do corpo feminino na tentativa de atingir determinados ideais de

beleza,paraalémdesereferiraoseuprópriopercursoesofrimentopessoal.

“Mas como denominar de «colares» essas hipóteses ornamentais,feitasdeagulhasdesutura, lâminasdebisturiegiletes,entremeadasdemiçangasecristais?Alémdofatodepreviligiarumapartedocorpo,elevandoopescoçoauma região fetichista,écuriosoobservarqueaveia jugular se situa perto da garganta e que, portanto, qualquer corte seria fatal. A artista aproxima perigosamente o prazer e a agressão até

corpo congénito e degenerativo

II.2 nazareth pacheco

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40

Figura6

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1997

Cristal e agulhas de sutura, 90 x 16 x 6 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

Nazareth Pacheco, 1998

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umafusãodosdoisinstintos.”28

As temáticas que aborda podem ser vistas como uma transposição para

ocontextosociológicodasuaexperiênciapessoal(doindividualparaocoletivo),

ondeo lugardocorpo, especialmenteodamulher contemporânea, se torna

muitopresente.Este inseridonumcontextodequestionamentodospadrões

debelezavigentes,potenciados,porexemplo,pelaculturademassas(aosquais

asmulheressofremumapressãoacrescidaparaseenquadrarem,muitasvezes

recorrendoaadornosestéticosouacirurgiasplásticas).Aindanestesentido,a

autoraabordatambémváriassituaçõesdetransformaçãodocorpofeminino,por

exemplo em casos como na gravidez ou em processos de prevenção da mesma.

Emboraosseustrabalhossejamsobreocorpo,agrandemaiorianãoapresenta

uma representação explícita e concreta do corpo. Trata-se de um corpo ausente

comumaestéticadelimpezaaparente.Areferênciaaocorpoéfeita,geralmente,

através de objetos que estabelecem uma relação com o corpo, normalmente para

serem usados por ele ou agirem sobre ele -cadeiras, baloiços, vestidos, colares,

instrumentoshospitalares,ouseja,“ocorpovistoatravésdosinstrumentosque

sãoutilizadosparaexaminarseusórgãos,ouparaabordá-locientificamente”.29

Segundoaartista,essesobjetosmaterializamaideiade“invasãoemanipulação”

docorpo,remetendopara“corposqueforammuitoinvadidos”.30Objetosfrios,

exteriores ao corpo que o invadem e tocam o seu interior, causando dor.

28. Lisette Lagnado, “Uma Lógica do Adorno,” Catálogo da 24ª bienal de São Paulo-

Nazareth Pacheco, 1998

29. Aracy Amaral, “Espelhos e Sombras,” Catálogo 24ª Bienal de São Paulo- Nazareth

Pacheco, 1998

30. Nazareth Pacheco, Gilete Azul, vídeo, 16 min., realizado por Miriam Chnaiderman,

2003

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Figura7

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1995

Saca miomas, saca-rolha e borracha, 30x 25 x 3 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

Nazareth Pacheco, 1998

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Figura8

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1989

Cobre e borracha, 140 x 50 x 2 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

Nazareth Pacheco, 1998

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Figura9

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1994

Espéculos, Coleção mamsp

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

Nazareth Pacheco, 1998

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O trabalho de Pacheco pode ser visto numa perspetiva de busca de

prazer, numa tentativa de viver bem com o sofrimento e prosseguir em vista à

sobrevivência, focando-se no “questionamento das normas que definem o

bem-estardoorganismo”,criandouma“negociaçãosemfimentresaúdefísica

e saúdemental”31.Naspalavrasdopedagogo,médicoe críticode artePaulo

CunhaeSilva(Beja,1962-Porto,2015)ostrabalhosdaartista“[s]ãosedutoramente

repulsivose repulsivamente sedutores.Por isso, apesardeestranhos, são-nos

extremamente conviviais. A história da Dor, do Sofrimento é uma história

coletivamente individual. Todosnós sofremos,maso sofrimentodecadaum

(podendosercomunicável)nãoépartilhável.Aartistaprecipitaeclarificaessa

comunicaçãoatravésdamanufaturadestesespelhosdador”.32

Nocontextodesterelatóriodeprojeto,édesalientaragrandeligação

ao contexto médico e hospitalar que o trabalho de Nazareth Pacheco traz

ao espetador. Juntamente com essa questão, a ideia de degeneração, dor

física e frieza, aliadas à doença e ao sofrimento individual numa situação de

sobrevivência.Comunicaçãodedorespessoais,materializadase“cristalizadas”

emobjetosplásticosquesurgemdeumaexperiênciapessoalvivida,analisada

e posteriormente exteriorizada. Também pertinente comparar, em relação à

componente prática deste relatório, a abordagem plástica que vem de uma

temática sobre o corpo que não apresenta o mesmo de forma direta, como

previamente mencionado.

31. Lagnado, “Uma lógica do adorno”

32. Paulo Cunha e Silva, “Cristais de dor,” Catálogo Galeria Canvas- Nazareth Pacheco,

2000

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No percurso natural de um corpo é esperada uma evolução e

transformação ao longo do tempo que, num processo mais ou menos

progressivo,levaàmorte.Porvezesessepercursoé“interrompido”/antecipado

porcertasdoençasouporfatoresexternos(ex.:acidentes,acontecimentos).A

doençapodelevaràmorte,emcasoúltimo,oupodelimitaroser(sejalimitação

física ou mental). Para se refletir sobre a falência do corpo físico, orgânico,

podemos separar duas situações distintas: Em caso de doença provisória,

leve,passageira,emqueévisadaumarecuperaçãototaldasfunçõesperdidas

é feita uma pausa e uma espera; noutra situação diferenciada, no caso de

doença aguda prolongada, em que pode ser expectável a recuperação parcial

dasfunçõesnormaisdoorganismooupodeserumasituaçãoirreversível.Uma

situação em que o organismo se continuará a deteriorar e, eventualmente, levar

aumaantecipação/aproximaçãodamorte–oquepodeserumprocessomais

ou menos prolongado, mais ou menos sofrido. Em caso de mau funcionamento

énecessário,porsobrevivência,tentarresolveroproblema.Éprocuradaacura,a

desaceleraçãoparaamorteoumelhoramentodavida.Oapoiomédico/medicina

é vulgarmenteo caminhoparauma soluçãomaisproeminenteeo contexto

hospitalaréoespaçoondeocorrearecuperação,aespera,mastambémamorte.

Atualmente, o serhumanocomumcontinua semconseguir resolver sozinho

osproblemasdesaúdeaqueeventualmenteestarásujeito (atépor invalidez

33. Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo”, 15

II.3 efemeridade e constrangimento

10)Ocorpoétambémumaprisãodaalma.Elaexpianeleumapenacuja natureza não é fácil de discernir, mas que foi muito grave. É por issoqueocorpoémuitopesadoemuitopenosoparaaalma.É-lhenecessáriodigerir,dormir,excretar,suar,sujar-se,ferir-se,adoecer.”32

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porexemplo).É,portanto,umanecessidade recorrera terceiros (profissionais

desaúde)quepossamajudara repararo funcionamentodocorpoou tornar

maisconfortávelaexistência.Istoimplicaumacrençanosistemaqueoferece

esse serviço edar crédito às pessoas constituintesquenele operam. Implica

tambémdepositar confiançaeentregaro corpoàs falhasdeoutros sujeitos/

corpos.Invasãodocorpoporoutrocorpo-permissãoparaoutrocorpotocaro

primeiro.InvasãoePenetração:quandoocorpoétocadoemáreasinternasque

nuncaforam“tocadas”porcorposexteriores.

“Arudezdacarnesurgenocorpoquefalha,equeofazporqueacarneficadoenteouétocadapelonão-conhecidonão-humano.Quandoistose dá, como invasão da physisnaexperiência,vividacomosofrimentoecomodor,todososconhecimentosetodososesforçossãoconvocadospara reinstaurar a imagem do corpo, “alma secularizada” que deveimpor-seàpresençadacarne,expulsando-adavisão.Ocorpoéassimumaidealizaçãodacarne,espéciedeoutrapeleinvisível.”34

O constrangimento e a dor provocados no sujeito pelamanifestação

ou falha do corpo são sempre processos individuais. A impossibilidade da

partilha da dor prende-se com o caso de não ser possível sentir o mesmo

que outro ser. Apesar de poder ser representada e comunicável, não é

partilhável. Isso torna a dor um processo individual e solitário, embora

possa haver empatia e compaixão por parte de um outro. “A dor como

o que mais nos empurra para fora do mundo e para dentro do corpo.”35

Adoratingeasuadimensãoporserimpartilháveloqueégarantidopelasua

resistênciaàlinguagem36:

34. Tucherman, Breve História do Corpo e dos seus Monstros, 92

35. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação

36. Elaine Scary, “The making and unmaking of the world”, The Body: A Reader, ed. Mariam

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“Physicalpaindoesnotsimplyresistlanguagebutactivelydestroysit,bringing about an immediate reversion to a state anterior to language, to the sounds and cries a human being makes before language islearned(…)”37

Refletirsobreestaquestãodafalênciadocorpo(edoconstrangimento

adjacente) num sentidomais amplo. Ver amesma não só num contexto de

confrontoindividualcomafalênciadoprópriocorpo,maspensá-lanocontexto

da alteridade e inserção sociocultural. Como reagir à questão quando observada

num sujeito próximo?A sociedade não está (na sua prioridade) formulada e

organizada para corpos/seres disfuncionais que apesar de serem situações

naturais, expectáveis, inevitáveis e frequentes não são a ‘norma’. Um corpo

de um ser é esperado socialmente que esteja em funcionamento pleno e

otimizado- quando está doente é esperada a sua recuperação o mais depressa

possível.SegundoNorbertElias(Breslávia,1897-Amesterdão,1990),asociedade

ocidental é marcada por uma geral regulação de “impulsos emocionais” e

poruma“reticênciaquantoàsfunçõescorporaisdeoutraspessoas” 38, Ambas

podemservistascomofalhasindesejadasdeumcorpoquenãoécontrolado

eotimizado.Issodemonstraumaindividualidadeinerenteeumafriezaquanto

ao outro visto de uma forma coletiva, que Elias identifica como sendo uma

“característicadosúltimosestágiosdeumprocessocivilizacional”.39

É também pertinente contrapor que, apesar das questões acima

Fraser e Monica Greco (Routledge, 2005), 325

37. Ibid.

38. Norbert Elias, “Civilization and Psycossomatics”, The Body: A Reader, ed. Mariam Fraser e

Monica Greco (Routledge, 2005), 96

39. Ibid.

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49

descritas se focarem numa perspetiva talvez mais negativista, houve uma

significantemelhoriaeavançocivilizacionalnestaquestãodeapoio, inserção

e melhoria do corpo disfuncional. Por exemplo, num contexto da natureza

animal(irracional) selvagem, indivíduos disfuncionais têm muito menos

possibilidadesdesobrevivênciacomparativamenteaoutrosdamesmaespécie.

Numaoutraperspetiva,tendoemcontaaevoluçãotecnológicaecivilizacional,

YuvalNoahHarari(QiryatAtta,1976)chama-nosàatençãoparaumcrescimento

deconsciênciae responsabilidadehumanitária, notandoque isso sedeveao

progressivo desenvolvimento cientifico-tecnológico do último século. Afirma

que, no contexto ocidental atual, se há uma falha ( inclusive amorte) é se

pensada uma causa para essa mesma e encontrado um responsável, ou é feito

umesforçoemtentarperceberoqueprovocouessafalha“técnica”nosentido

deasuperar:

“Atendendo ao que conseguimos alcançar no séc. XX, se as pessoascontinuarem a ser afetadas pela fome, pelas epidemias e pela guerra já nãopoderemosculparDeusouaNatureza.Melhorarascoisasereduzirainda mais o sofrimento são objetivos ao nosso alcance. Mesmo as pessoascomunsquenãoestãoenvolvidasem investigaçãocientíficahabituaram-seapensarnamortecomoumproblematécnico.Quandouma mulher vai ao médico e pergunta se tem algum problema, oprofissionaldesaúdepoderádizer-lhequetemumagripe,tuberculoseou um cancro.Mas omédico jamais lhe dirá que o problemadela éa morte. Toda a gente sabe que a gripe, a tuberculose e o cancro são problemas técnicos para os quais talvez um dia seja encontrada uma soluçãotécnica.”40

Da condição humana fazem parte o erro/falha, a degeneração e a

40. Yuval Noah Harari, Homo Deus: História Breve do Amanhã, (Elsinore, 2015), 30

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inexorávele, atéagora, irreversívelmorte. Pertence-lheassimumanoçãode

duraçãoeefemeridadequelheéindissociáveldaqualotempoéagente.Estas

condiçõescriamnosujeitoumconstrangimentoeangústiaporseralgoparaa

qualnãoháconcretamenteumaexplicação,umafaltaqueasdiferentescrenças

culturaisereligiõesvêmcolmatar.Omedoda ideiadeumfim.Harariafirma

que, ao longodos tempos, as religiõesmostraram-sebastante tolerantesem

relação à morte pois perspetivavam sempre uma existência posterior além

da terrena, oque fazia comquenão se “[consagrasse] a vidaenquanto valor

supremo”.41 Recentemente, como vimos anteriormente, a cultura moderna, a

tecnologiaeaciênciapropiciamumaabordagemdiferentesobreadoençaea

morte,tornando-as“umproblematécnicoquepodeedeveserresolvido”.42 Estas

perspetivaspossibilitamosujeitodeselibertardasfalhasdesagradáveisdoseu

corpo.Noseguimentodestaideia,segundoJeanBaudrillard(Reims,1929-Paris,

2007), “[a]penasnoespaçoinfinitesimaldosujeito individualdaconsciênciaa

morteadquireumsentidoirreversível”eque,portanto,“háqueesconjuraresta

mortequeestáportodaapartenavida,(…)[e]localizá-lanumpontoprecisono

espaçoenotempo:nocorpo”.43

41. Ibid., 33

42. Ibid.

43. Jean Baudrillard, A Troca Simbólica e a Morte (Edições 70, 1996), 64

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51

“15)Ocorpoéuminvólucro:poisserveparaconteraquiloquedepoisháquedesenvolver.Desenvolvimentointerminável.Ocorpofinitocontémoinfinito,quenãoéaalma,nemoespírito,masantesodesenvolvimentodocorpo.”44

44. Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo”, 16

III. CORPo-máquina

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52

Oserhumanosempretevecuriosidadeemsuperarassuascondições

ontológicasqueoconstituemedefinem/delimitam.Perantesituaçõescomoa

morte,adoençaouosofrimento,temvontadedeascontornaredesemelhorar,

numabuscadeprazerefelicidade-característicadoinstintodesobrevivência.

Umaprocurade“umcorpoperfeitoougloriosoqueescapeàfragilizaçãoqueo

tempodesferenoscorpos”45

Harari, na sua análise da contemporaneidade e de previsões para

o devir46, sugere uma possibilidade do alcance da imortalidade num

período relativamente próximo. Contextualiza que esta vontade do ser

humano de se suplementar deste modo virá da exponencial melhoria

de condições de saúde e bem-estar (já observável nos países ditos mais

desenvolvidos) que define como “saúde, prosperidade e harmonia”47

anunciando que as mesmas deixam espaço para querer alcançar outras mais

ousadasambições.

“Ao procurar a felicidade e a imortalidade, os humanos estão, naverdade, a tentar ascender ao nível dos deuses. Não apenas porqueestas são qualidades divinas, mas também porque terão de adquirir um controlo quase divino do seu próprio substrato biológico, a fimdevenceroenvelhecimentoea infelicidade.Sealgumavez tivermoso poder para eliminar a morte e a dor do nosso sistema, esse mesmo poderseráprovavelmentesuficientepararedefinirabel-prazeronossosistema e para manipular de inúmeras maneiras os nossos órgãos,

45. José Bragança de Miranda, “Corpo utópico,” Cadernos Pagu, nº15 (2015):251, https://

periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635583/3364 (acedido em

junho de 2019)

46. Conceito de Gilles Deleuze e Felix Guatarri anunciado em diversos textos e publicações

dos autores.

47. Harari, Homo Deus: História Breve do Amanhã, 32

III.1 corpo-máquina e corpo-objeto

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53

emoçõeseinteligência.SeassimoquiséssemospoderíamosadquiriraforçadeHércules,asensualidadedeAfrodite,asabedoriadeAtenaoualoucuradeDionísio.”48

Argumenta ainda que “o nosso compromisso ideológico para com a

vidahumananuncanospermitiráameraaceitaçãodamorte(…),sejaqualfora

causa,nóstentaremosdominá-la”eprevêque“osnovosobjetivosdahumanidade

sejam a imortalidade, a felicidade e a divindade”49. O autor, mantendo

maioritariamente uma posição analista, contra-argumenta que acha pouco

viável certas futurologias feitas por alguns investigadores da área, mas assegura

que pelo menos um aumento da esperança de vida gradual (em vez da

imortalidade)ébastanteprovável,credívelequeporsisótrarámudançasde

paradigmas culturais profundamente significantes num futuro bastante

próximo.

A contemporaneidade é descrita amplamente como um período

de crise do corpo e alguns autoresmencionammesmo o “fim do corpo”50

oua“mortedocorpo”51. Este período de passagem é constituído por grandes

transformaçõesepermiteobservaroqueoutrorafoiaconceçãodecorpo,aque

temvindoasereaquepoderáviraser.Éjáconhecidoqueasnovastecnologias,

quesetêmdesenvolvidoexponencialmente,abalaramaconceçãodecorpoe

têmvindoaexpandircadavezmaisassuaspotencialidades.Éatravésdaciência

etécnicaqueoserhumanodeterminaasuatransformaçãoedesenvolvimento.

48. Harari, Homo Deus: História Breve do Amanhã, 33

49. Ibid., 31

50. Maria Augusta Babo, “Do corpo protésico ao corpo híbrido,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Corpo, Técnica, Subjectividades, nº33 (junho de 2004):32

51. Tucherman, Breve História do Corpo e dos seus Monstros, 166

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54

“O mundo contemporâneo é testemunha do desenraizamento dasarcaicasmatrizesde sentido –fimdasgrandesnarrativas (marxismo,socialismo, etc.), dispersão das referências da vida quotidiana,fragmentaçãodosvalores.Nestecontextodedesorientação,éopróprioindivíduo quem traça os seus limites, para omelhor ou para o pior,quemerigedeformavolúveledeliberadaassuasprópriasfronteirasdeidentidade,atramadesentidoquenorteiaoseucaminhoelhepermitereconhecer-secomosujeito.”52

DeformasemelhanteaDavidLeBreton(LeMans,1953),JoséBragançade

Miranda (Lisboa, 1953), denomina esta condição contemporânea de “corpo

utópico”53,afirmandoqueocorreumapassagemdolugardautopiadomundo

paraocorpo.Ocorpopassaaseroespaçodautopia,lugardetransformaçãoe

projeçãodedesejos,idealizaçãoemudança.Nessesentido,ocorpojánãoévisto

como lugar de fronteira onde se localiza a identidade do sujeito, que se diferencia

de todos os outros objetos que o rodeiam.54Ocorpotorna-setambémumobjeto

passíveldeserutilizado,manipulado,construídopelosujeito–torna-se“processo

(…) [e]projeto”55dosujeito.Oserhumanotomaas rédeasdasuaexistênciae

evolução,e“alémdeobjectodeevoluçãopassaasertambémsujeito.Alémde

produtoéagentedoseudestinoevolutivo.”56

52. David Le Breton, “O Corpo Enquanto Acessório da Presença,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Corpo, Técnica, Subjectividades, nº33 (junho de 2004):67

53. Miranda, “Corpo utópico”, 251

54. António Fidalgo e Catarina Moura, “Devir (In)orgânico- Entre a Humanização do Objecto

e a Desumanização do Sujeito,” Revista de Comunicação e Linguagens- Corpo, Técnica,

Subjectividades, nº33 (junho de 2004):199

55. Ibid.

56. Luís Archer, “Tecnologias biológicas e liberdade,” Revista de Comunicação e Linguagens-

Moderno/pós-moderno, nº6/7 (1988):257

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55

Namesmasequênciadeideias,ocorpopodeservistocomo“acessório

dapresença”57 dosujeito,permitindoaesteúltimoredefinir-se,reinventar-see

reposicionar-senoseuentorno,“parasetornarenfimsimesmo”.58Éesta“actual

afirmação do corpo [que] leva paradoxalmente à crise do corpomoderno”59.

Destemodo,emvezdodualismoclássicocorpoemente/alma (conforme foi

desenvolvidonoprimeirocapítulo)pode-sepensarqueacontemporaneidadeé

maismarcadapelaoposiçãoentreoserhumano/sujeitoeoseucorpofísico.

“A pós-modernidade assume a carne como material de trabalho esuportedosavançosdatécnica.Penetrada,modificada,desintegrada,acarneéopalcodasfusõesqueanunciamnãoofim,masaspossibilidadesdohumanonofuturoevolutivodaespécie.”60

Algumasdas razõesqueestãonabasedesta tendênciaàconstrução

do corpo são potenciadas pela cultura de massas e pelos media, motivados

por interesseseconómicosnaexploraçãodamesma.Estavontadedosujeito

de se autoconstruir, é observável em situações atuais como a frequência

excessiva do ginásio ou do culturismo, o uso crescente de piercings e

tatuagens, a cosmética e as cirurgias plásticas e estéticas, entre outros

exemplos. Segundo Ieda Tucherman, esta esteticização do corpo já se fazia

notar na antiguidade grega, em que o corpo era treinado e aprimorado

para chegar a um ideal. Este ideal de corpo grego alia-se a “princípios de

uma estética da existência, que nos convida a uma existência da estética.”61

A estas práticas estetizantes aliam-se também uma crescente adesão a políticas

57. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença”, 67

58. Ibid.

59. Miranda, “Corpo utópico”, 258

60. Fidalgo e Moura. “Devir (In)orgânico”, 199

61. Tucherman, Breve História do Corpo e de seus Monstros, 36

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56

degénero,nadefesadosdireitosdediferentes “corpos” emminoria.ParaLe

Breton,atransexualidadecorporalizaestaquestãocontemporânea:

“O corpo do transexual é um artefacto tecnológico, uma construçãocirúrgicaehormonal,umretoqueplásticoapoiadonumavontadedeferro.Senhordasuaexistência,otransexualpretendeassumirporumavezumaaparênciasexualadequadaaoseusentimentopessoal.Oseusexodeeleiçãoéresultadodeumadecisãoprópriaenãodeumdestinoanatómico”62

Como vários dos autores previamente citados63 observam, o corpo

torna-se objeto quando é rompida a pele que o encapsula e protege,

revelando o interior do corpo como um conjunto de sistemas interligados

em funcionamento sistemático. Atribui-se, como causa desta, as primeiras

experiênciasdosanatomistas,queaorealizaremautópsiaseanálisescomeçaram

adesmistificarointeriordocorpoeaanalisaroseufuncionamento,contribuindo

progressivamente para a criação de uma imagem coletiva do mesmo.

Posteriormente, devido a avanços tecnológicos na área, torna-se possível ter

umavisãoacessíveldointeriordocorpo–emalgunscasos,comoaendoscopia,

semterdeoabrirouperfurar,atravésdousodevariadosdispositivosópticos

(câmera endoscópica, Raio-X, Ressonância magnética, …). Assim, cria-se no

imagináriocoletivoumavisãosuficientementeconsensualquealtera/interfere

naconceçãodecorpopróprio.

“a dissecação, revela o seu funcionamento mecânico, substituindoaalmapelofluxo sanguíneoepelas reaçõesnervosascomo fontede

62. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença.”, 71

63. Gil, Miranda e Breton mencionam a questão segundo a mesma perspetiva, enquanto

Fidalgo e Moura o fazem, citando Breton.

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57

animizaçãodocorpo.”64

Devidoaestaimagemsobreocorpoorgânico,nasceumanoçãodecorpo

como uma máquina, sendo este um conjunto de elementos interdependentes.

Partes de um todo que funcionam para um objetivo em comum. René Descartes

(LaHayeenTouraine,1596-Estocolmo,1650),‘pai’destacorrentemecanicistado

corpo,comparava-oaumrelógioouaumsistemahidráulico,afirmandoque

as suas “funções biológicas (…) [poderiam,] então, ser reduzidas a operações

quantitativas, ao choque de forças e tensões e a funções de causalidade”.65

Esta conceção leva à vontade de substituir estas perecíveis partes da

máquina por outras ‘peças’ mais eficientes, mais duradouras ou até com

outras capacidades. Através dos desenvolvimentos da bioengenharia e da

biotecnologia, as perspetivas de melhorar a ‘máquina’ tornam-se cada vez

mais reais. Aliada a esta temática surge o plano da prótese- um elemento

que vem complementar ou colmatar uma falha do corpo ou suplementá-

lo – a prótese como reconstrução e melhoramento do corpo com falhas e

como superação dos limites do corpo. Não sendo já apenas para substituir

ummembro ouuma capacidadeperdida, a prótesepassa a ser suplemento

daquilo que constitui o Ser Humano – o que implica que este vê como

falha, que pode ser retificada, certos dos seus limites constituintes (morte,

doença,…).Aevoluçãodoserhumano,passaporuma“libertaçãodocorpo”66

progressiva, que transforma gradualmente o corpo, ampliando e potenciando

64. Fidalgo e Moura. “Devir I(n)orgânico”, 201

65. Cláudia Murta, “O Autômato: Entre o Corpo Máquina e o Corpo Próprio.”

Natureza Humana, v.17, nº2 (2015):76, http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_

arttext&pid=S1517-24302015000200004 (acedido em julho 2019)

66. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 39

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assuascapacidades.Essalibertaçãoéfeitaatravésde“peças”externas,numa

“evoluçãoexógena”67 que pode ir desde o uso de utensílios diários ao uso do

telemóvel,docarro,docomputador, etc...Por conseguinte, o corpo “acolhea

técnica”68 deixandodeserumcorpolimitado,unitárioefechado.Aconsiderar

como prótese são também os medicamentos em crescente consumo, num

ritmodevidaesociedadeparaaqualocorponãoseencontrasuficiente-

são exemplo os antidepressivos, os ansiolíticos, suplementos, entre outros.

São“prótesesquímicas(…)pararegularmatizesafectivosdarelaçãoaomundo

(…) contemporâneo, paramanter-se à tonanumsistemacada vezmais ativo

e exigente.”69 Atualmente a prótese externa como suplemento (em oposição

a complemento) não se restringe apenas a agrupar ou manipular objetos

externos.Averdadeiraevoluçãoestá-seatornaramanipulaçãodoorgânicoem

conjuntocomoinorgânico,criandoumhíbrido,umoutro,umhumanodepois

doatual:um“pós-humano”.70

“É a capacidade de explorar, acoplando, o inorgânico que acaba pordefinir o orgânico. O processo conhecido por hominização não secaracteriza pelo aparecimento de uma espécie nova mas antes pelo aparecimentodeumanovaformadevida.(…)incorporarouinteriorizaratécnicaqueoperaumatransformaçãonocorpoeaindanaprópriaideiadesujeito ligadaaumcorpomutável,numserhíbridoemutante(nosentidodeaberto,nasuaexistênciamesma,àmutação)(…)[o]sujeitodeixa de ser o lugar do eidosimutávelparasedaremconstantedevir.”71

67. Popper, O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, 44

68. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 31

69. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença”, 71

70. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 34

71. Ibid., 30-31

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Assim, o universo do pós-humano é caracterizado pela fusão entre

matériasdeorigemdiferente.Aobiológicodanaturezafunde-seoquefoicriado

peloserhumano–onaturalalia-seaoartificial.Apesardestanoçãodeartificial,

pode-severestanovaconceçãodehumanodeoutraforma.Seossereshumanos

foramcriaçãodanatureza,tudooqueelesfizerem(inclusivemexerealterara

ordem natural) pode ser considerado decorrente da natureza. Ou seja, a

inovações tecnológicas podem não ser vistas como algo dito ‘artificial’, mas

apenasumadecorrêncianaturalquefazsentidoemtermosevolutivos.Popper

faz uma crítica à teoria evolucionista na temática da manipulação genética para

aperfeiçoamentodaespéciehumana.Segundoele,nãoépossíveldecidirque

tipos hereditários serão sempre melhores porque o ambiente altera-se

imprevisivelmente,portanto, talvez fossemelhordeixaranaturezaadaptar-se

naturalmente.72 Noentanto,estanoçãodecorpopós-biológico,simbioseentreo

artificial e o orgânico, transforma o “corpo num feixe de ligações”73

entreasdiferentesrealidades:

“Ouniversodoscyborgséomundodosfluxos.Naficção,especialmentefílmica,ascélulasvivaspodemresponderachipsprogramados,comoo que vemos em O Exterminador Implacável II.Nocampodaciência,electrodos podem induzir movimentos em membros paralisados, retirando as pessoas dos limites da cadeira de rodas. Nos corposcyborg as funções orgânicas regulam-se pelo fluxo de informação eestímulosentreasmáquinaseosorganismosbiológicosconectados.”74

72. Popper, O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, 71

73. Fidalgo e Moura, “Devir (In)orgânico”, 199

74. Tucherman, Breve História do Corpo e de seus Monstros, 162

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RebeccaHorn (Alemanha, 1944) artista plástica, tem uma obra vasta

quevaidesdeaesculturaàinstalação,aodesenho,àperformance,àvideoartee

aocinema.DuranteosseusestudosemHamburgoadoeceseriamentedevido

a uma intoxicação pulmonar provocada pelo uso desprotegido de resina e

polímeros.Teveumarecuperação longanumsanatórioqueaobrigouaestar

imobilizadaeisolada,sentindooseucorpolimitado,fragilizado,impotente.O

quealevaafocar-senaobservaçãoenaperceçãodoseuprópriocorpo.Perto

daalturadasuadoença,ambososseuspaisfalecem,deixando-aórfã.Nosseus

trabalhosiniciais,volta-separadentro,considerandoerefletindonasinterações

espaciais do corpo com o mundo em volta e nos seus limites físicos.

“My performances started out as body sculptures. All the basicmovements were centred onmovementsmade bymy body and itsextremities.”75

Esta viragem pode também ser vista como uma reconexão do corpo

consigo mesmo e com o espaço, representativa do sofrimento e dor sentidos

duranteadoençaeaposteriormelhoriaprolongada.

“Rebecca primeiro avalia o volume da percepção corporal individual:CaixadeMedida [MeasureBox] (1970)mostra-adepédentrodeumaconstruçãoaberta,semelhanteaumcubículo;porcadaumdoscantosdessaestrutura,umasériedehastesmóveisécolocadanadiagonalemdireçãoaocentroondeelaestádepé.Emsucessãopróxima,ashastes,comosensores, escaneiamseucorpodacabeçaaospés.Quandoelasai da estrutura da caixa, o que permanece é o volume vazio criado peloscontornosdesuasilhueta.Esseéoespaçodeondeelaparteemsuasperformances.Trabalhandosemumpúblicoesemumpalco,seus

75. “Rebecca Horn- Body Fantasies,” Museum Tinguely, https://www.tinguely.ch/en/

ausstellungen/ausstellungen/2019/rebecca-horn.html (acedido em agosto de 2019)

da potência do corpo ao controlo da máquina

III.2 rebecca horn

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Figura 10

Rebecca Horn

Measure Box, 1970

Staatsgalerie Stuttgart. Imagem retirada de https://www.pinterest.pt

pin/327636941639356004/?lp=true (acedido em agosto de 2019)

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experimentos estão confinados à extensão espacial de sua própriaexperiênciafísica.”76

Começaacriarobjetosparaocorpo(maioritariamenteparaoseu,masnão

só)comosquaisrealizaações.Oquepublicadestasaçõesprivadassãoregistos

fotográficosevídeosouosobjetosusados,quesãoposteriormentereservados

em caixas. As performances que realiza indicam uma vontade de extensão e

melhoramentodocorpo,comousodeobjetos-prótesesqueproporcionamao

corpooutradimensãoespacial epotenciamoutrosmovimentose interações

comoespaçocircundante.SãoexemploUnicorn(1970-72),Moveable Shoulder

Extensions (1971) ou Scratching Both Walls At Once (1974-75) entre outras.

Embora o uso destes objetos seja uma tentativa de suplantar as capacidades do

corpohumano,acabamporsedemonstrartecnicamenteinúteis.Oquefazcom

quehajaumareflexãosobrealimitaçãodocorpoedasuadebilidadeinerente.

Esse conflito entre imobilização (impotência sobre o controlo e limitação do

corpo) emobilização aumentada estámaterializada em outros trabalhos da

mesma época. Em White Body Fan(1972),aautorausaumaespéciedeleque

gigante comandado pelos seus braços que aumenta a sua envergadura e alude

a uma ideia de asas. Esta impressão é contrariada pelas tiras que agregam o

objetoaoseucorpo,queoaprisionameimobilizamnumaestéticasemelhante

a coletes de força ou outros objetos do universomédico. Semelhantemente

a este objeto, em Arm Extensions (1968)énovamentedadaumasensaçãode

aprisionamentodocorpoesequentefixaçãoaochão/imobilização.Nestenão

sóotroncoemembrosinferioressãoembrulhadoscomtiras,comotambémos

76. Doris Von Drathen, “No Ponto Zero de Turbulência: Um Diário de Viagem,” Rebecca

Horn- Rebelião em silêncio (2010):126, https://www.bb.com.br/docs/pub/inst/dwn/

CatalogoRebeccaHorn.pdf (acedido em maio de 2019)

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braços estão limitados e estendem-se apenas para tocar o piso inferior-como se

deumapoioextrasetratasse.RebeccaHorndescreveestaaçãocomosendo

um momento em que o movimento se torna impossível pois o corpo encontra-

se enfaixado como uma múmia e estende-se em dois pilares basilares que o

equilibrameofundemcomochão.77

Destaspreocupaçõesiniciais,começamasurgiroutrasmaisrelacionadas

comarelaçãodocorpocomoutroscorposecommáquinas.Nasuafaseinicial,

mesmo em White Body Fanháumapresençaesemelhançaaofuncionamento

damáquinasobreocorpo.Partedaexperiência,daanáliseedareflexãosobreo

movimento do corpo, para o movimento da máquina sobre e com o corpo. Dessa

passageméexemplooseutrabalhoMechanical Peacock Fan(1978)quefazum

paralelismo com White Body fan. Estas máquinas, que inicialmente se agregam

ao corpo, saem dele e independentizam-se embora continuem a estabelecer

relaçõescoma ideiadecorpo.Seguindoamesma lógica,Hornexteriorizaos

movimentos internos do corpo humano – como é visível em Overflowing

Body Machine (1970) (figura 11) –paraposteriormenteos independentizardo

corpo-espaço para o espaço. Desta forma, “[a] circulação interna do corpo

é (…) capaz de participar do grande fluxo e troca de energia universal”78

Essa ideiadefluxosenergéticosémaiscaracterísticadafasemaisrecentedo

seutrabalho:

“Olhar para dentro dos corpos e meditar sobre o próprio caminhopara eles torna possível deixar que eles se tornem paisagens que são permeadas com fluxos de energias, crateras pulsantes e formações

77. Lucy Watling, “Rebecca Horn- Arm Extensions”, Tate, agosto de 2012, https://www.tate.

org.uk/art/artworks/horn-arm-extensions-t07857 (acedido em maio 2019)

78. Drathen, “No Ponto Zero de Turbulência: Um Diário de Viagem”, 124

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Figura 11

Rebecca Horn

Overflowing Blood Machine, 1970

Metal, vidro, plástico e bomba de água

167 x 72 x 43 cm

Coleção Tate, Londres. Imagem retirada de https://www.tinguely.ch/en/

ausstellungen/ausstellungen/2019/rebecca-horn.html (acedido em agosto de

2019)

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similares a montanhas. Embarca-se nessa jornada, mas não de ummodocomoodaficçãocientífica.Olha-separaumcentrooculto,talvezo plexo solar, e seque-se o movimento circular ou as correntes de energia darespiração.”79

A artista começa a apropriar-se de espaços determinados construindo

sobreelesoquepoderiaseroseuinteriorvisceral–comosedecorposampliados

setratassem,simulandorelaçõesefunçõesbiológicasentreelementosdesses

espaços.ExemplodestafasedotrabalhodeHornéThe Inferno Paradiso Switch

(1993),exibidoparalelamentenomuseuGuggenheimenomuseuGuggenheim

Soho. Uma instalação dividida por dois espaços, que cria uma ligação entre

os dois anteriores como se se tratasse de um curso de energia que percorre

acidade.SemelhanteaestaapropriaçãodoespaçoéEl Rio de la Luna(1993)

(Figura12e13)-uma instalação que parece ter um corpo central do qual emergem

ligaçõesqueseespalhampeloespaçocircundante,comoumaexteriorizaçãoe

representaçãodefluxosemocionaisdeenergia80.Estasrelaçõessãoaquifeitas

comumareferênciamaissubtileabstrataaocorpo,masqueparecemsuceder

da mesma preocupação sentida em Overflowing body machine.

79. Rebecca Horn, entrevista de Joachim Sartorius, “O Nascimento de uma Pérola”,

Rebecca Horn- Rebelião em Silêncio (2010):209, https://www.bb.com.br/docs/pub/inst/dwn/

CatalogoRebeccaHorn.pdf (acedido em maio de 2019)

80. “Rebecca Horn- Body Fantasies”

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Figura 12

Rebecca Horn

El Rio de la Luna(pormenor), 1993

Imagem retirada de https://www.tinguely.ch/en/

ausstellungen/ausstellungen/2019/rebecca-horn.

html (acedido em agosto de 2019)

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Figura 13

Rebecca Horn

El Rio de la Luna, 1993

Imagem retirada de https://www.tinguely.ch/en/

ausstellungen/ausstellungen/2019/rebecca-horn.

html (acedido em agosto de 2019)

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Retoma-se a questão anterior do corpo como objeto do sujeito e da

relação corpo-máquina comopotenciadoras das transformações ontológicas:

Quaisasconsequênciasqueestasnovasperspetivaspodemtrazerparaoser

humano?

Como Tucherman sugere, esta tendência para a transformação e

alteraçãodo corpohumano encaminha o sujeito paramuitas incoerências e

confusõesidentitáriasrelacionadascomanoçãodesersujeito,deservivo,de

serhumanoedeestarnestemundo.Aautoraafirmaqueastrêscaracterísticas

determinantesdohumanoemperigosãoamortalidade,a singularidadeea

sexualidade.Oserhumano,atéagora,“[sersingularenãoduplicável,pode]cada

vezmaisaparelharocorpo,apontodehaverapretensãodeduplicaroscorpos,

isto é, de ter vários corpos simultaneamente, o que traz o imenso problema da

identidade.”81EmboraestapublicaçãodeTuchermantenhaváriosanos(primeira

ediçãoem1999),arealidadeéqueantecipavaoquetêmsidoastransformações

atéàatualidade.Vejam-seosmúltiploscasosdivulgadoseestudadosemtodo

omundo,peloexageroquasepsicótico,destasalteraçõesetransformaçõesdo

corpo que, em muitos casos, levam à morte. Como anteriormente mencionado,

apesardisso,este temanãodeixadeser, igualmente,umgrandenegóciode

interesses para várias indústrias.

Vejamos o caso da desmaterialização do corpo – ao ser possível a

realidadevirtualnumatotalidadedeexperiência,ocorpotorna-senuloeosujeito

‘livre’parasuperartodososlimitesqueoconstrangiam.Poderápossuirocorpo–

eoscorpos–quequiser,podendo-sereinventaremultiplicardetodasasformas

imagináveis.Estaspossibilidadescertamentetêmafetadoeafetamasrelações

81. Tucherman, Breve História do Corpo e dos seus Monstros, 157

III.3 regeneração e especulação

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humanasearelaçãodohumanocomoseuentorno,naperceçãosensorialda

realidademutável (exterior e independente de si) – que, como observámos,

é essencial na construção dele mesmo. Seria este mundo virtualizado uma

realidadesemcontradiçãonenhumaàvontadedosujeito?Estapossibilidade,

aindahipotética,defimdocorpo, “conecta-sediretamenteà ideiade (…)um

sujeitoemcrise,umavezqueessecorpoeraaprincipalreferênciaapartirda

qual [iria]construira sua identidade.”82 Nesteespaço-mundovirtual,o sujeito

por não ter ‘corpo’ é uma ausência mas é também uma “hiperpresença”83

pois pode estender-se em múltiplos corpos, em múltiplos lugares, em múltiplos

tempos.Estaráemladonenhum,mesmopodendoestaremtodososlugares.

“crise da própria ideia de mediação, resultado de uma relação aomundo da qual se ausenta progressivamente a noção de necessidade e instrumentalidade, abolidas por uma profunda intelectualização das ligações.Aideiadenecessidadequepresidehistoricamenteàinovaçãotécnica desvanece-se à medida que essa mesma técnica evolui para a logotécnica, para uma técnica racionalizada, tornada discurso, desembocandonumacrescentetendênciaparaaimaterialização.”84

Mas se a matéria se torna desnecessária neste mundo virtual, como se

construiriaohumanosemasrelaçõescriadorasquecomelamantémaolongo

detodaasuaexistência?Emboraincidamaissobreaquestãodainteligência

artificial,podemospegarnaafirmaçãodeDamásioeconcluirporqueaperda

docontactocomomundomaterial(real)/matériatornaohumanodeficienteem

todooseudesenvolvimentocognitivo,socialecultural:

“Quandoaconteceumacoisanamenteháumaexpressãoautomática

82. Fidaldo e Moura. “Devir (in)orgânico”, 204

83. Ibid.

84. Ibid

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do sistema nervoso que se repercute no sistema não nervoso. Tudo está emcontinuidadeeéporissoquenãovaiserpossívelaossenhoresdeSiliconValleypegarememsilicone,plásticoeaçoe fabricarqualquercoisa que pareça ter vida verdadeira e possa ter sentimentos. Porque os sentimentos se desenvolveram como parte do sistema de defesa do organismocontraaperdahomeoestática.Temossentimentosporquesão úteis e necessários para que a vida continue. (…) Tens de ver ossentimentos como sendo os motivadores de tudo o que construímos culturalmente.”85

Semcorpo, semmatéria, amentenão se iriadesenvolverdamesma

formapoisossentimentossãomotivadosporumaquestãodesobrevivência.

Sem corpo e sem morte porque motivo haveria mente e sujeito? Se sem

corpo,nãopodeexistirmente,umamentenãopodesubsistirsemcorpo. Os

sentimentos, que num caso de mundo virtual não ocorreriam da mesma forma

(pornãohavercontactosensorialsemelhante),sãoessenciaisparaoindivíduoe

imprescindíveisparaahumanidade,emnossoentender.

“[o] cérebrohumano resultadaprolongadaevoluçãodaespécie,queodota logoànascençadeumaherançagenéticaàqualsevai juntarumabiografiapessoal, feitadasexperiênciassingularesquecadaumdenóscolecionaaolongodasuavida.Factoresdeterminantesparaaversatilidadedamentehumana,dotadaalémdomaisdelivre-arbítrio,deumacapacidadededecisãoaomesmotempo livree influenciadapor essasmesmasexperiênciaspessoais, portanto totalmenteopostaàrigidezdamáquina,quenãoteminteressesautónomosnemmundoemocional.”86

Apesar do corpo se tornar objeto e propriedade do sujeito, aumenta

85. António Damásio, entrevista de Clara Ferreira Alves, “A Vida dos Sentimentos,” Expresso,

28 de outubro de 2017, 32

86. Fidalgo e Moura, “Devir (In)orgânico”, 206

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obstruçõesnoquediz respeitoà liberdadedo indivíduo (embora issopareça

paradoxal). Sinteticamente,LuísArcher (Porto, 1926-Lisboa,2011), reflete sobre

esteassuntoreferindotrêscategoriasfundamentaisdaevoluçãohumanaque

articulamestarelaçãoentreohumano,abiologia/naturezaeatecnologia:são

elas“liberdadedeautodeterminação,liberdadedeauto-realizaçãoeliberdade

de autoperfeição”.87 Quanto à liberdade de auto-realização, o autor observa

que é bastante conseguida através das novas tecnologias porque, como já

vimos anteriormente, através delas, consegue superar e contornar situações

queo limitam(dor,doença,morte)conseguindoterumavidamelhoremais

feliz,ourealizada.Asoutrasduascategoriasdaliberdade–autodeterminaçãoe

autoperfeição–são,respetivamente,aliberdadedoserhumanoseautodeterminar

enquanto indivíduo e “sujeito independentemente dos seus antecedentes”88

(sejamgenéticosoudeoutraordem);ealiberdadedeatingira“realizaçãoplena

(…)[assumindo,]conscientemente[,]onúcleofundamentaldaquiloqueécomo

natureza”.89 Quanto a estas últimas categorias, refere que são amplamente

negadaspeloprogressocientífico:odeterminismocientíficonegaanaturezado

serhumanoedeixapoucoespaçoparaaindeterminabilidadeeimprevisibilidade

dosujeitoqueimplicamasualiberdade.Emformadeexemploreferesituações

queatualmentenosparecembastantepróximas:

“Aoproclamaro«direito»deescolherosexoeoutrascaracterísticasdosfilhos,estáa interferir-secomosdeterminantesdapessoavindouraeaofenderamargemde indeterminabilidadequeestánapré-históriade toda a liberdade. É uma possessividade instrumentalizante do

87. Luís Archer, “Tecnologias Biológicas e Liberdade,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Moderno/Pós-moderno, 1988:257

88. Ibid. 258

89. Ibid.

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nascituro, e que ofende a liberdade de autoperfeição de quem se deixa dominar por ela. Mais um passo nesta lógica, e a sociedade poderiaarrogar-seo«direito»aescolheraraçadofuturo,tirando-lhealiberdadede ser diferente daquilo que tivessem sido os caprichos da geraçãoprodutora.”90

Imiscuindo-seemtudooquelheéoriginário,aciênciaeatécnicatornam-

-sedominantesdoserhumano(aoinversodooriginal),queésubjugadoporum

crescentedestinoincontrolávelepelasconsequênciasquedeleadvêmquesó

maistarde(tardedemais)sepoderáaferir.Archerrefere-seaestedestino,quese

tornaumparadigmanegativoparaahumanidade,como“Tecnocosmos”91.Define

deseguidaqueotecnocosmoséumcânonesocialondeaciênciaeatécnicase

tornamopoderdasociedade,regulandotodoomercadoeconómicoeafetando

agestãopolítica,tendocomoumadasconsequênciasareduçãodeoutrasáreas

deinteresseeinvestigaçãodaexperiênciahumana.Afirmaqueotecnocosmos

iráinvadirporcompletotodaaaçãodoserhumano,equeissojásevemnotando

naspopulaçõesmaisjovens.Destemodo,“omundoserácadavezmaisartificial”92

eahumanidadesentir-se-ámaislibertadanatureza,parasesubmeteraofatal

destino‘tecnocósmico’.

Apesardetodasestasreflexões,étambémobservávelqueécrescente

a sensibilizaçãoaosaspetosnegativosdosprogressoscientifico-tecnológicos,

que perspetivam, em vez da utopia do corpo, uma distopia geral para o ser

humanoeparaomundoquehabita.ComoTuchermanrefere,“agoranãose

trata apenas do que podemos ser ou fazer, mas também, e principalmente, se

90. Ibid., 261

91. Ibid., 260

92. Ibid.

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podemoscontrolaraquiloquefaremoseoresultadodoquefizermos.”93

Desde sempre, tal como Tucherman afirma, o ser humano evoluiu

atravésdatécnica,portantonãoécorretosepararestaúltimadoserhumanoeda

sociedade.Noentanto,pelavelocidadeatualaqueosavançossedesenvolvem,é

necessário pensar sobre o desfasamento que isso irá trazer e para os problemas que

adaptaçõesforçadaserepentinaspoderãotrazer.Asmentalidadesnãoevoluem

àmesmavelocidadequeas tecnologias.Nãosópodemserproblemáticosos

avançosemsi,comopodempotenciarsituaçõescatastróficasrealizadasatravés

deummauusodessastecnologias(sobramemexcessoexemplosnahistória

deusosnocivosdatecnologia).Ascaracterísticasfundamentaisdoserhumano

que estão a ser postas em causa com estas mudanças irão provavelmente

alterarmaisdoqueseprevênaorganizaçãodahumanidade-nomeadamente

osavançosquepõememcausaamortalidadeeasingularidade.Seporumlado

haverãomelhoriaseavançosquesemdúvidacausarãomelhorbem-estaraoser

humano(taiscomoreabilitaçãofísica;curadedoençasprecoces),tambémserá

inevitávelaspetosnegativossejapelaadiçãodesituaçõesprejudiciais,sejapela

perdadecaracterísticaspositivasdahumanidadeedomundo– tais comoo

contactocomamaterialidade(virtualização/imaterialização)eoutrasinterações

quevalorizamaexperiênciahumana.Noplanodoindivíduo,comojávimos,se

porumladoganhamaisliberdadedeescolhasobreasuaautoconstrução,por

outro está sujeito a mudanças que não pode impedir, decididas e perpetradas

por outros num coletivo que pode levar à sua extinção. Torna-se assim um

momento de instabilidade, perigoso e decisivo para a humanidade, onde

valoresmoraiseéticos têmdeserbemdiscutidoseaplicados,nosentidode

93. Tucherman, Breve História do Corpo e de seus Monstros, 17

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prevenirumairremediáveleforçadatransformaçãonociva.Inevitável,também,

serárepensaroqueconstituierepresentaaideiadehumanoemconcordância

anão-humanoeassuascaracterísticasfundamentais.

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repensar o passado para pensar um futuro: identidade e ficção

III.4 Marguerite humeau

Artista de origem francesa e atualmente sediada em Londres,

Marguerite Humeau (Cholet, 1986) estudou no Royal College of Art. O seu

trabalhomanifestaumafortetensãoentreorealeoficcionaltalcomoentreo

tempoeoespaço.Partindosempredeextensasinvestigaçõessobreopassado,

aartista jogaeespeculasobrepossíveis realidadesalternativas: seja repensar

ourecriarumpassadohistóricooupensareespecularumfuturo(queapelida

tambémdepromessahistórica), oqueHumeausintetizaafirmandoquecria

paralelismos entre diferentes tempos e lugares reanimando coisas e trazendo-

as para um outro tempo e lugar.94 Em resposta a ideias que considera mistérios

existenciais do universo95, levanta questões que não serão respondidas,

encaminhando uma reflexão sobre as mesmas potenciando diferentes

perspetivas sobre o que poderia ou poderá ter acontecido no passado e/ou num

futuro:

“Istartedwithonequestionagain—theshowwasabouteternallifeandtransitionsfromonelifetoanother—andinsteadofproposingonesolution,Itriedtocreatevariousanswers,intheformofsculpturesorinthefrescoandwiththesoundtrack,thatcouldalltogethertacklethesameideabutfromdifferentangles.Tocreateenigmasinsteadofsolvingthem.Iwantedthat,whenonewouldentertheshow,onewouldbeconfrontedwithdifferentsolutionstothesamequestion,theenigmawouldthenbecomeunsolvable, the mystery filled with contradictions and paradoxes.”96

94. “Here 2017: Marguerite Humeau,” vídeo youtube, 30:46. “It’s Nice That”, 29 de agosto de

2017. https://www.youtube.com/watch?v=FZWSvQrJxNg&t=932s (acedido em julho de 2019),

95. Ibid.

96. Marguerite Humeau, entrevista de Eva Folks, “An interview with Marguerite Humeau,”

AQNB, (7 de setembro de 2015). https://www.aqnb.com/2015/09/07/an-interview-with-

marguerite-humeau/ (acedido em julho de 2019)

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Desenvolve estas questões focando-se numa realidade visceral e

maioritariamente animal (geralmente incidindo mais sobre morfologia e

anatomia animal), com uma referência direta às civilizações e estruturações

humanas,mastentandoafastar-sedapresençadasmesmas.Aartistadeclara

que a certa altura achou que o cerne da sua investigação artística seria

mesmoesse,odeconstruirmundosparalelosondenãoexistissemhumanos97

apenas outras criaturas que viveriam em outros contextos repensados

por si. Os seus processos são sempre resultado de parcerias com biólogos,

paleontólogos e zoólogos (entre outros), partindo de uma investigação

e conhecimento do real à qual adiciona uma porção de ficção, criando

assim realidades alternativas, especuladas por si e pelos investigadores

que a acompanham. Segundo a artista, começa sempre com um mundo

perdido ou desconhecido- ummundo, tempo, espaço ou criatura específica

que quer reavivar, reativar, reencenar, ou simplesmente investigar.98

Estas considerações são visíveis em projetos como The Opera of Pre-

Historic Creatures (2012) (figura 14), ondea autora, usandoopassado(real ou

imaginado) como inspiração, tenta reconstruir funcionamentos orgânicos

a partir de vestígios fossilizados de espécies extintas. Como os tecidos moles

não fossilizam, a reconstrução baseia-se nas informações restantes como a

estrutura óssea.99 Com essas últimas, recria as estruturas físicas necessárias

à produção de som onde faz passar ar através de compressores, atingindo

sons próximos ao que seriam existentes. Também na instalação Echoes

97. Ibid.

98. Ibid.

99. Emily Spicer, “Art Now: Marguerite Humeau: Echoes,” Studio International, fevereiro de

2018. https://www.studiointernational.com/index.php/marguerite-humeau-echoes-review-

tate-britain (acedido em julho de 2019).

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Figura 14

Marguerite Humeau

The Opera of Pre-historic Creatures- Walking Whale

(ambulocetus), 2012

Imagem retirada de https://www.forbes.comsitesjonathonkeats/2016/08/08/

this-young-artist-is-reviving-voices-of-prehistoric-creatures-to-confront-

mass-extinction/

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Figura 15

Marguerite Humeau

Echoes, 2017

Imagem retirada de http://moussemagazine.it/marguerite-

humeau-tate-2018/ (acedido em agosto de 2019)

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(2017) (figura 15) recria não só a possível voz de Cleópatra, como também a

possível linguagemquesepensatersidousadanasuaalturaeregião.Neste

último projeto está acentuada uma outra característica do seu trabalho,

a tensão entre vida e morte que a artista assume como indissociáveis100

, sendoquenoprocessodeste trabalho se focounuma investigação sobre o

fascíniopela transiçãoentrevidas (eos rituaisdemortecomopassagem)da

civilização egípcia antiga.101

“Humeau’sinstallationisconceivedasaconfrontationbetweenlifeanddeath,withthegallerytransformedintoparttemple,partlaboratoryfortheindustrialproductionofanelixirforeternallife.” 102

Embora não represente concretamente o humano, são questões

ontológicas que acabam por estar por detrás dos mistérios que Humeau

nos traz– sejaodesenvolvimentodasenciência,da linguagemoudeelixires

da vida para alcançar a imortalidade.De suma relevância para este relatório

de projeto é essa vontade existencial de procurar a essência das coisas

através de uma investigação sobre os diversos processos de desenvolvimento

das espécies, sempre num clima de tensão entre vida e morte103. Entre uma

elevação extraterrestre atemporal e um confronto com o terreno.

“WhatIwantedwastocreateworksthatwouldhaveauniversalaura,trying to bridge different times, spaces, history, trying to confrontdifferentcivilisations.Iamtryingtogettotheessenceofthingsandto

100. “Here 2017: Marguerite Humeau”

101. Ibid.

102. “Confront nature’s lethal powers in a hypnotic yellow environment devised from black

mamba venom,” Tate Britain, 2017. https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-britain/exhibition/

marguerite-humeau-echoes (acedido em julho de 2019).

103. Humeau, “An interview with Marguerite Humeau”

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seeiftherearepatternsinthehistoryofhumanityoroftheuniverse.”104

Tal como em Nazareth Pacheco (analisada no sub-capítulo II.2), os

seus projetos apresentam um aspeto de limpeza clínica e laboratorial que é

contrariado pelos conteúdos sugeridos. Apesar dessa limpeza, os objetos são

de uma realidade mais sórdida e um pouco aterrorizante por criarem uma

estranhezamisteriosaetocaremodesconhecido,encontrando-senumlimbo

entreprazereangústia,comotambéméexemplootrabalhodeRebeccaHorn

(analisadaemIII.2).

104. Ibid.

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iv. projeto e processo

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IV. 1 Projeto prático

Neste sub-capítulo é apresentado o projeto prático relativo a este

relatório.Acadaconcretizaçãoplásticasegue-seumtextodereflexãorelativo

à mesma. As concretizações práticas e as reflexões são apresentadas em

formatodefichasdestacáveisparaexistiremcomodiálogoconstantecomos

conteúdosdesenvolvidosno restantedocumento. Para esse efeito, asfichas

estãoidentificadasporsímbolosqueremetemparaosmesmosqueaparecem

ao longodostextos.NaversãoemPDFessessímbolosao longodotextosão

linksclicáveisqueencaminhamparaaspáginasondeseencontramasimagens

easreflexõesdasconcretizaçõesplásticas.Naversão impressa,comasfichas

destacáveis, o mesmo se sucede, numa espécide de hipertexto analógico-

devendoserconvocadocadavezqueapareceosímbolocorrespondente.Neste

sentido, os conteúdos deste sub-capítulo (as fichas destacáveis) encontram-

seemformatodeencarte,nofinaldodocumento(aseguiràbibliografia)por

questõesdeordemgráficaeparapermitiressaleituraintercalada.

(FICHAS DESTACÁVEIS)

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Oprojetopráticodoqualsurgeesterelatóriodeprojeto,desenvolve-se

emtornodasquestõesque,por suavez,deramorigemà investigaçãoqueo

acompanha.Temsemprecomofiocondutorumapreocupaçãoeumpensar

sobreocorpocomocondiçãoeparteintegrantedosujeito.Se,porvezes,alguns

dostrabalhossãoiniciadosnumâmbitodeumavontadeconcreta,outrossão

resultantesdeintuiçõesouimpulsosdaimaginaçãocriadora105. Partem de uma

experiênciavivida,querdomeuprópriocorpo,comodomeucorpoemrelação

e/ou em observação com outros corpos- sejam eles outros sujeitos ou outros

corposfísicos.Apesardisso,aimagemdecorpohumanonãoestápresentede

formaconcreta,salvoalgumasexceções(Figura20e21)em que o corpo é usado

como objeto numa composição plástica e não como corpo-sujeito. Recorro a

uma estrutura metafórica que remete para realidades corpóreas, seja pela

escolhaecargasimbólicadosmateriaisoupelasformaseasrelaçõescriadas

entreasmesmas.Háumrecursoàabstraçãocomoformaampliadadevera

problemática,focandomaisaessênciafundamentalenãoumtemapuramente

representativo. Construo assim outros corpos independentes, corpos que não

‘existem’,masquesecomparamasituaçõesreais,vividasouexperienciadaspor

corpos‘reais’(presentação/representação).Corposqueexistemindependentes,

comvidaprópria–todososcorpos-esculturasdesenvolvidossãoalimentados

por energia elétrica que lhes dá ‘vida’. Certas partes da abstração, comopor

exemploaluz,sãoapresentadascomoreferênciaàimaterialidademaisoculta

da questão ontológica que é, de certa forma, irrepresentável, imaterializável

enãoverbalizável–comoaalmaoufluxosdeenergiaentreoscorpos.Desta

105. Rute Rosas, “A Autocensura como Agente Poético Processual da Criação Escultórica -

Projectos, Processos e Práticas Artísticas” 2011, 79. Repositório Aberto da Universidade do

Porto, https://hdl.handle.net/10216/83244 (acedido em setembro de 2019)

Iv.2 reflexões e considerações GERAIS

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forma,chegoapreposiçõesficcionaissobreumanoçãorealdecorpoem“crise”.

Essaspreposiçõessimulampossibilidadesetentamproporcionarumareflexão

sobre situações hipotéticas quepodemounão se realizar num futuro. Entre

o real e o imagináriodesenvolvem-seentre a experiência vivida (“memória e

recordação”204)–reconstrução–eaficção/especulação–construção.Objetos

concretos, mas que encontram em si uma mística e metafísica por descobrir

e entender- relacionadas com o ser. A relação dematéria entre o orgânico/

biológicoeo inorgânicoesintético.Emcomoasduasrealidadesmateriaisse

fundem e criam possíveis outras realidades.

No geral, as composições plásticas materializam a noção de corpo-

máquina,namedidaemqueocorpobiológicopodeservistocomoumamáquina

que funciona como um todo para um objetivo comum, tendo elementos

diferentes que se relacionam e que podem ser substituídos/melhorados:

A questão da prótese, como tentativa de superação da falha do corpo, que

cria constrangimento ao sujeito. Algumas das composições poderiam ser

classificadasdemáquinasfictíciasnãofuncionais,poismimetizamaparências

do que poderia ser uma máquina real e funcional enquanto alguns assumem

umaspetomaisconcretonessareferência:especialmenteosque incorporam

mecanismosreaiseseaproveitamdassuasações(figura25e26).

Sucintamente,entresimulaçõesemetáforas,asconcretizaçõesplásticas

corporalizam uma certa angústia existencial perante a condição humana,

emanandoumasensaçãodeperda,deausênciaedesilêncionodiscorrerdo

tempo.Numatentativadeascetismo,comumacertaletargiaeumaasséptica

limpeza aparente.

106. Ibid., 73

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Iv.3 Processo e outras imagens do projeto

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Figura27

Projeto 3d para objeto em processo

2019

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Figura28

Estudo em 3D de Ensaio para um Corpo Feliz II

(objeto bola)

2019

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Figura29

Estudo em 3D de Ensaio para um Corpo Feliz I

(pormenor)

2019

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Figura30

Estudo em 3D de Ensaio para um Corpo

Feliz I

2019

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Figura31

Sem Título, 2018

Cimento, ferro, mangueira plástica, farmácia e

material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Figura32

Sem Título, 2018 (pormenor)

Cimento, ferro, mangueira plástica, farmácia e

material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Figura33

Sem Título, 2018 (pormenor)

Cimento, ferro, mangueira plástica, farmácia e

material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Figura34

Sem Título ,2018

Cimento, ferro, mangueira plástica, farmácia e

material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Figura35

Sem Título , 2018

Cimento, ferro, mangueira plástica, farmácia e

material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Figura36

Sem Título, 2018 (pormenor)

Cimento, ferro, mangueira plástica, farmácia e

material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Figura37

Sem Título, 2018 (pormenor)

Vidro soprado, ferro, tubo de pressão de ar, alumínio

e material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Figura38

Sem Título , 2018

Vidro soprado, ferro, tubo de pressão de ar, alumínio

e material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Figura39

Sem Título , 2017

Cimento, látex, suporte de metal e material elétrico

diverso

190 x 55x 30 cm

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Figura40

Ensaio para um Corpo Feliz II (objeto bola), 2019

Ferro, látex, ventoínha e material elétrico diverso

180 x 60 x60 cm

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Figura41

Ensaio para um Corpo Feliz II (objeto bola),

(pormenor), 2019

Ferro, látex, ventoínha e material elétrico diverso

180 x 60 x60 cm

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Figura42

Ensaio para um Corpo Feliz II (objeto bola),

(pormenor), 2019

Ferro, látex, ventoínha e material elétrico diverso

180 x 60 x60 cm

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Figura43

Ensaio para um Corpo Feliz I, 2019 (pormenor)

Cimento, ferro, tubo de gás, plástico, acrílico, mdf,

compressor de ar e material elétrico

Dimensões variáveis

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Figura44

Ensaio para um Corpo Feliz I, 2019

Cimento, ferro, tubo de gás, plástico, acrílico, mdf,

compressor de ar e material elétrico

Dimensões variáveis

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Figura45

Registos de reconstrução 3D de TAC

2018

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Figura46

Registo de reconstrução 3D de TAC

2018

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Figura47

Fotograma de registo vídeo de endoscopia

digestiva

2018

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Figura48

Fotograma de registo vídeo de endoscopia

digestiva

2018

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Figura49

Fotograma de registo vídeo de exame ginecológico

2018

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Figura50

Fotograma de registo vídeo de colonoscopia

2018

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Combasenoque foi apresentado,pode-seafirmarqueasdiferentes

dimensõesconstituintesdoserhumano interagementre siecomoentorno

envolvente como uma troca energética, como fluxos de energia. Amente é

indissociável do corpo pois emerge deste como uma necessidade biológica

pararesolverproblemasdoorganismocomoumtodo–édecorrentedeuma

necessidadeevolutivadesobrevivência.Éatravésdosórgãossensoriaisqueo

indivíduoeoseuentornointeragemeseconstroem,baseadonumaexperiência

sensíveldoreal.Sepensaramentesetornacadavezmaisacessívelemenos

misteriosa(atravésdaneurociênciaporexemplo),aalmaeoespíritocontinuam

aserconceitosessenciaisparaosquaisnãosechegaaumconsensocomum.

A estas partes metafísicas não se atribui uma localização ou um entendimento

concreto, estando geralmente mais representadas e discutidas a um nível de

crençasreligiosasounoçõesquevariamsocialeculturalmente.Noentanto,a

perspetivasobreaalmaanalisadanocapítuloIserveesterelatóriodeprojeto

na medida em que vai de encontro à visão de interação e permeabilidade

apresentadas.

Como constatámos, apesar da indissociabilidade entre corpo e mente,

o sujeito tem a tendência de rejeitar características desagradáveis do seu

revestimento corporal, especialmente a característica que o leva ao seu fim

(mortalidade).Rejeita,essencialmente,oquelhetrazinfelicidadeedor(como

mecanismo de sobrevivência). Essa insatisfação perante as características

inerentes ao corpo orgânico é força motriz para o desenvolvimento de

estratégiasdecorreçãoemelhoriadessascaracterísticas(perspetivadascomo

falhas). A ciência e a tecnologia servem como instrumento do humanopara

corrigirestas falhasquetrazemdoraosujeito.Ocorpoorgânicoviraobjetoe

projetodosujeito,quetentarearranjá-loesubstituir-lhe‘peças’paramelhorara

considerações FINAIS

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suaperformance–comosedeumamáquinasetratasse.Esteconstrangimento

do corpo sobre o sujeito, leva o último a tentar ganhar liberdade sobre o

primeiro. Paradoxalmente, essa conquista de liberdade resulta numa perda da

mesma,subjugando-secadavezmaisaodomíniodatécnica–Tecnocosmos.

Paraalémdaperdadamaterialidadeerelaçãocomoreal(numprocessogeral

devirtualização),ocorre tambémumaperdadecaracterísticas fundamentais

queconferemsentidoàvida:seexcluíssemosadoreainfelicidade,nãohaveria

o seu inverso como prazer e felicidade. Semmorte não existiria a vida que

conhecemosatéagora.Nummundodehibridizaçãooquevaidefinirhumano?

Oquevaisignificarestarvivo;sersujeito;serindivíduo?Nãoserápossívelparar

o desenvolvimento tecnológico no plano da construção do humano. Mas é

possível, e necessário,avaliar que tecnologias são realmente positivas e as que

são/poderão sernocivasparaahumanidade,ponderando-sedevidamenteas

implicaçõesmoraiseéticasenvolvidas.Discerniroqueseráganhoeoqueserá

perdahumanitáriaé uma proposta e condição que se coloca ao longo deste

relatórioecujasexpressõesescultóricaspretendemquestionarnatentativade

exprimirmastambémdeapelaràreflexãodetodosnós.

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119

Figura 16

Bárbara Rosário

Sem Título, 2017

Contraplacado, vidro, leds, pilha 9v, dinamómetro,

comprimidos/remédios e carne

22 x 40 x 12 cm

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Representação da coexistência da mente como espaço indefinido

eabstratoedocorpocomoalgoconcretoevisceral.Seamenteéentendida

comoumadimensãodeexistênciamaisindeterminada,aindacomprocessos

ecamposdesconhecidoseenigmáticos,sobreocorpocrê-sequepertençaa

uma realidade mais objetiva e observável, o que o torna mais compreensível e

aparentementemaisdominável.Sobreumadimensãosabemosofimquetem,

sobreaoutranão–crençaoudescrença.

A relação da mente com o corpo mediada por fatores exteriores

absorvidos, incorporados. Elementos externos ao corpo que são ingeridos pelo

mesmoeentramnasuacomposição,construindo-oepertencendo-lhe.

Ocorpofísicocomocarnequeapodrece,queéperecívelequemorre.A

ação do tempo e dos fatores naturais que transformam e degeneram a carne e

adecompõem.Aluzqueeletrificaocorpocomovidaepresença.

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Figura 17

Bárbara Rosário

Sem Título, 2018

Ferro, alumínio, látex, contraplacado, abraçadeiras,

tubos de pressão de ar, terra e material elétrico diverso

22 x 40 x 12 cm

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Asquestõesintrínsecasaocorpoeàsuarelaçãocomoexterior.Numa

referênciaaointerioreaoexteriordocorpoeàssuascondições,representoo

corponasuavertentemaisfísicaematerial(aparência,sequisermos)eamenos

visíveleosseusprocessosinternosbiológicosequímicos,comotambémaparte

mais imaterial e abstrataqueconstituiumserdeuma forma simplificada.É

este corpo que represento que se organiza e desenvolve em volta de uma outra

“entidade”,o seuentorno físico, comoqual se relacionaequeseconstroem

mutuamente(interdependêncianatural).

Numsentidobemamplo,háumarepresentaçãodasinteraçõesentre

corpo e entorno físico material e imaterial, sendo que ambos estabelecem

condiçõespróprias.Éemoposiçãoaestaquestãoquesepodeintroduzir jáa

questãodeumcorponãobiológicopodervirapertenceraestarealidade,de

que maneira se iria relacionar com os corpos existentes e com o entorno de

mundo‘real’?Quediferençasnaconstituiçãodeumcorpobiológicoovalorizam

e desvalorizam perante estes outros corpos emergentes na sua relação com o

mundo?

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Figura 18

Bárbara Rosário

Sublimação II , 2017

Cimento, vidro, tubos de PVC, material elétrico diverso e

água com corante

140 x 38 x 20cm

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Procuro uma simulação de funções do corpo humano e processos

de tentativas para o representar. A transformação da matéria corporal. Uma

referênciaàmorteeàtransformaçãodematéria(nãosómatériahumana,como

todoo tipodematéria física),demudançadeestados físicos reais,palpáveis

com expressão e espaço para um outro tipo de matéria que não é assim tao

percetível(porexemplopassagemdoestadolíquidoparaoestadogasoso–o

estadogasosopodenãoservisívelaolhonu,masématériafísicaconstituída

namesmaporpartículasquetempresençafísica).Luzcomomatériaimaterial.

Pode ser vista como uma “drenagem”, um corpo que desaparece e sobra

transformando-senoutramatéria?

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Figura 19

Bárbara Rosário

Sem Título, 2017

Cimento, vidro, ferro, cadeira de rodas sanitária e material

elétrico diverso

100 x 175x 90cm

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Esteobjeto,maioritariamentehorizontal,encontra-semaispróximodo

chãoedeumaideiadeestabilidade.

Seráumaestaçãoouextensãoparaumcorpo?Umainfraestruturaou

uma estrutura? Emoposição a outros objetos que formamoumimetizam a

organização de corpos, este é mais uma estrutura que se refere a um corpo mas

temumaausência.Oupodeservistocomopróteseporserumacessório/objeto

auxiliaraocorpo?Umamatériacompositivaaquepertenceumacadeira(cadeira

de rodas sanitária) destituída da sua função e contexto original. Representa

umanecessidadedeumobjetodeauxílioàexistênciadeumcorpo(ausente).

Também se refere a uma falta de independência e autossuficiência (uma

falha?) esperadasnormalmentenumcorpo–ocorpo funcionalévistocomo

norma.Aomesmotempotambémpodereferir,positivamente,aexistênciade

desenvolvimentos tecnológicos e avanços gerais que tornam acessível estes

objetos de apoio para que um corpo se possa manter e sobreviver por mais

tempoemmelhorescondições–potenciadopordesenvolvimentoscientifico-

tecnológicosesocioeconómicos.

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Figura 20

Bárbara Rosário

Sem Título, 2018 (exercício experimental)

Registo de ação privada

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Tentar fazer uma linha reta com o corpo em suspensão, em tensão.

Atingirumaformaespecíficanumaposiçãonãonaturaltensionada,querequer

esforço físicoecausadesconforto (podendocausardor físicaseprolongado).

Atentativadecontroloerestriçãosobreoprópriocorporecorrendoaobjetos

usados no quotidiano como auxílio motriz domesmo. Os limites do corpo

físico-controlo limitado. Ocorposubmetidoauma “regra”pré-estabelecida.

Pensarsobreocontrololimitadoquetemossobreonossoprópriocorpolevaà

reflexãosobreascondiçõesintrínsecasdocorpofísicosendoqueassuasleisse

organizamindependentementedanossamenteepensamento.Irreversibilidade

da degeneração progressiva motora do corpo, do controlo sobre o mesmo, do

envelhecimento,dadoençaedamorte.

Próteseerelaçãocorpo-objeto:nestesensaiosestãopresentesobjetos

quenoquotidianoservemdeprótesescomoauxiliaresdocorpo,permitindoa

recuperação do corpo e/ou permitindo que o corpo disfuncional possa realizar

assuas funçõesbásicasnecessárias.Estaspróteses, retiradasdoseucontexto

original,adquiremaquiumpropósitodisfuncionalefictício.Asuafunçãoseria

(aocontráriodoesperado)obrigarocorpoaestabelecerumarelaçãoconsigo

de uma maneira desconfortável e insustentável, aprisionando-o e/ou causando-

lhe vários riscos edesafios físicos. Imobilidadee incapacidade/ reabilitaçãoe

regeneração.

Omeucorpoéusadocomocorpo-cobaia,comoobjetoparaensaioe

experimentação.Servecomoobjetoparatestaresimularpossibilidadesdocorpo

físiconumcontextoficcional,manipuladoeregistadoatravésdafotografia.

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Figura 21

Bárbara Rosário

Sem Título, 2018 (exercício experimental)

Registo de ação privada

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Nesta imagem de um exercício experimental (figura 21), de reflexão

identicaàdaimagemanterior(figura20),acrescenta-seumaparticulariedade:

O objeto-prótese que aprisiona o corpo (Tala Depuy), encontra-se fixado à

parede, como se fosse uma extensão do espaço. Assim, obriga o corpo a anexar-

se ao mesmo de forma insustentável e não natural. É o corpo que se molda e

cedeàscontingênciasdoespaço,sendoforçadoaadequar-seaele.

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Figura 22

Bárbara Rosário

Sem Título, 2017

Cimento, látex, suporte de metal e material elétrico diverso

190 x 55x 30 cm

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Uma‘pele’-umcorpo,nasuaaparênciasuperficial,representadopela

sua parte que estabelece o maior contacto com o seu entorno- é essencialmente

através da pele que o corpo toca e é tocado. Esta pele apresenta-se tensionada

entredoiselementos:estáemvoltadeumsuportequeaelevaefixa,enquanto

outro elemento a puxa noutra direção como se fosse um peso para a afundar.

Aresistênciadapeleelástica.A“queda”ouforçaparabaixopoderemeterpara

um conteúdo negativo se associado à gravidade como uma das forças naturais

incontornáveis, como por exemplo amorte. O quemorre vai para baixo e é

imóvel – imobilização, cair aochão, estar sujeitoapenasa forçasnaturaisem

queprevaleceagravidadeenãoasforçaspróprias(movimentopróprio).Seráa

quedainevitável?Aluzcomoalgoquevemdedentrodocorpo,comoalgoque

estáarelacionar-secomoeleouqueoalimenta?

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Figura 23

Bárbara Rosário

Sem Título, 2018

Cimento, ferro, mangueira plástica, farmácia e material

elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Uma máquina não funcional que deixa em aberto o que realmente

faz. Sugere apenas que poderiam ocorrer trocas entre os elementos que a

compõem-nãosepercebendooseupropósitoeintenção.

Estaconstruçãopartedeumavontadedetentarpensaruma“máquina”

decriaçãodematériaquepudessesubstituiramatériabiológicahumana.Como

se fosse um processador de algo que vem de fora e, juntando matérias exteriores,

fossecapazdecriarumaoutramatéria,artificial.Daíavontadedeestabelecer

umarelaçãomaiorcomoespaço.Oquefoirealizadoatravésdoposicionamento

daorigemda luzvermelha,queprocuraatribuir-lheessa ligação/relação(seja

por um compartimento anexo que emana a luz, seja pela apropriação de um

candeeiropré-existentenoespaço).

Inicialmente pensado como uma máquina também pode ser visto

comoumcorpo,nasuarelaçãodeprocessamentoeincorporaçãode“alimento”

exteriorqueéposteriormenteexteriorizado.Esse“alimento”queentra,circula

pelocorpo,transforma-oeéporeletransformadoefinalmentesainovamente

paraoentorno.Umalimentoquepodeserdeváriasordens:doespiritual,do

social/interaçãocomoutroscorpos,doalimentocomida,etc.(corpo-máquina)

umaoutraformadepercecionarestacomposiçãonocontextodomeutrabalho,

nãomuitodistantedasanteriores,poderiaserumcorpo(blocoparalelepípedo

central)queexistecomoauxíliodoobjetoemferro–queoalimentaatravésde

tubosepossivelmentelhefariachegaraluzexterior(luzvermelha),queremeteria

paraumcontextodeenfermidadedocorpoenecessidadedeassistência.

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Figura 24

Bárbara Rosário

Sem Título, 2018

Vidro soprado, ferro, tubo de pressão de ar, alumínio e

material elétrico diverso

Dimensões variáveis

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Uma forma ou um corpo em formação. Como se um corpo estivesse a

“nascer”easercriadoporalgodecimaparabaixo,numadireçãodescendente.

Esse “algo”criador temorigemelétrica (?)ealimentao recém-nascidocomo

queumaincubadora.Umcorpoasercriadonãoporoutrocorposemelhante,

mas por algo diferente de si. Algo que constitui uma oposição às formas de

reprodução naturais dos seres vivos. Embora o corpo seja de vidro, um material

inorgânico,a suamorfologiamaisorgânicaequaseantropomórfica indiciao

contrário.Oquepodeserestecorpo,poucoorgânicoqueaparentementeestá

aserformado?Queoutroscorpospoderãosercriados?Como,emquematéria

poderãosercriadosequepotencialouperigospoderãotrazerànossaexistência?

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Figura 25

Bárbara Rosário

Ensaio para um Corpo Feliz II (objeto bola), 2019

Ferro, látex, ventoínha e material elétrico diverso

180 x 60 x60 cm

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Umatentativadeinversãoàsaparentesforçasfísicas‘naturais’.Aforça

gravitacional contrariada. Um corpo-esfera que se movimenta por duas forças

contrárias que lhe estão a ser exercidas: uma força natural, uma outra força

“artificial”criadaporumdispositivoelétrico(ventoinha).

Gravidade-aforçainexorável(nocontextoemquevivemos)quetrazoscorpos

para baixo. Que provoca a queda, mas somos para existir assim, senão não

andaríamos,nãonosmovíamoscomonosmovemos.Osnossoscorposforam

feitos e desenvolveram-se para existirem com gravidade.

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Figura 26

Bárbara Rosário

Ensaio para um Corpo Feliz I, 2019

Cimento, ferro, tubo de gás, plástico, acrílico, mdf,

compressor de ar e material elétrico

Dimensões variáveis

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Uma máquina ‘funcional’. A ação vital de respirar- mimetização de

funções orgânicasdo corpo; funçõesnecessárias à vidaproduzidasde forma

artificial.Tantopodeservistocomoumasituaçãoderecuperação,manutenção,

tentativade“manter”vidaoucomoumacriaçãodevidanova.

O que podem ser estes objetosmaleáveis que respiram?Podem ser

umamimetizaçãoficcionaldepartesdocorpohumanoedassuasfunçõesou

podemseramaterializaçãodeumoutro tipodeórgãoartificial?Esteúltimo

passível de substituir os nossos órgãos humanos ou de pertencer a um ser

artificial.

Experiência/ensaio/tentativas/estudos

Hospitalar/cama/corpoemrecuperaçãoemcriação,ouambas.

Espaçomédico/laboratório/saladecirurgia

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Como complemento do momento expositivo da defesa

da prova, serão enviados emPDF registos fotográficos

realizados no dia da apresentação.