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performatus.net 1 Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017 ISSN 2316-8102 Corpos Liminais Susana Chiocca A partir do conceito de liminaridade, aborda-se o trabalho de três criadores: António Olaio, Gustavo Sumpta e António Lago, que constroem uma representação singular da condição portuguesa, através da interpretação, da vivência e experimentação do e no país a partir dos seus corpos, ainda que, como veremos, no trabalho de António Lago, o corpo se resuma à sua ausência. António Olaio, Il faut danser, Portugal , 1984 A liminaridade é um conceito do antropólogo Victor Turner, que o define como aquilo que acontece nos interstícios da estrutura social, ou seja, manifestações, ritos e momentos que ocorrem num novo terreno, fato ao qual Turner se refere como o sair-se da norma, do quotidiano. Apesar desses

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Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017

ISSN 2316-8102

Corpos Liminais

Susana Chiocca

A partir do conceito de liminaridade, aborda-se o trabalho de três

criadores: António Olaio, Gustavo Sumpta e António Lago, que constroem uma

representação singular da condição portuguesa, através da interpretação, da

vivência e experimentação do e no país a partir dos seus corpos, ainda que, como

veremos, no trabalho de António Lago, o corpo se resuma à sua ausência.

António Olaio, I l faut danser, Portugal, 1984

A liminaridade é um conceito do antropólogo Victor Turner, que o define

como aquilo que acontece nos interstícios da estrutura social, ou seja,

manifestações, ritos e momentos que ocorrem num novo terreno, fato ao qual

Turner se refere como o sair-se da norma, do quotidiano. Apesar desses

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momentos serem posteriormente integrados pela estrutura social, são eles que

incitam à reflexão e à ação1. Turner refere ainda como pessoas liminais os

artistas, os filósofos, os profetas e os xamãs. Sendo o artista já um ser cuja

atividade escapa ao quotidiano e que reflete sobre o que o rodeia, tomo o

conceito de Turner para investigar a performance e a dança contemporânea,

atividades em que a liminaridade se manifesta como o pensar o mundo a partir

do próprio corpo. O corpo, por sua vez, dá-se como uma reflexão do pensamento

de si e do outro. Trata-se, no fundo, de corpos pensantes na acepção de André

Lepecki, no sentido de corpos críticos e políticos que questionam a relação

social, política e ideológica do corpo no mundo.

Nesse sentido, Il faut danser, Portugal (1984), de António Olaio, tem

como ponto de partida o repensar a própria performance enquanto meio

artístico e a sua relação com o corpo. O trabalho foi apresentado no evento Art

et Révolution, organizado por Egídio Álvaro para o Pompidou, em comemoração

dos dez anos pós revolução de Abril (no qual participaram Fernando Aguiar,

Manoel Barbosa, Gerardo Burmester, Carlos Gordilho, Albuquerque Mendes,

Elisabete Mileu, Rui Orfão, Miguel Yeco e Telectu). O performer coloca-se numa

situação patética, com uma máscara de creme hidratante e quase totalmente

nu, usando como figurino apenas cuecas e meias; desafia e questiona o porquê

do nu na performance, a sua crueza e a tradição dos anos 1970 de se conduzir o

corpo ao seu limite físico. Se algum limite pode ser apontado aqui, é o absurdo

inerente à ação. Por outra parte, Olaio estabelece uma relação do corpo com a

pintura, um dos meios plásticos no qual o próprio se move. Na performance,

tenta manter o equilíbrio segurando uma paleta em cada mão, como se

estivesse a ponto de cair, como se a própria pintura fosse ridícula, a ponto de

quebrar-se. No fundo, o artista não queria seguir os trâmites do que se

1 “A liminaridade, a marginalidade e a inferioridade estrutural são condições nas quais com frequência se geram ritos, símbolos, rituais, sistemas filosóficos e obras de arte. Estas formas culturais proporcionam aos homens uma série de padrões ou modelos que constituem, em um determinado nível, reclassificações periódicas da realidade e da relação do homem com a sociedade, a natureza e a cultura, mas são também algo mais que meras classificações do homem com a sociedade, a natureza e a cultura, já que incitam os homens à ação ao mesmo tempo que à reflexão. Cada uma destas obras tem um caráter multívoco, com múltiplos significados, e é capaz de afetar as pessoas em muitos níveis psicológicos simultaneamente.” Victor Turner, El Proceso Ritual, Madrid: Taurus, 1988, p. 133, tradução livre para o português.

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considerava como suposto no mundo da arte contemporânea; propunha-se sim

repensar a própria arte e as suas limitações sob a influência de Duchamp2.

António Olaio, I l faut danser, Portugal, 1984

2 Neste ano, Olaio apresenta o mesmo trabalho em Amsterdã, num evento organizado novamente por Egídio Álvaro, na Fundação Makkom. Substituí as paletas por duas lâmpadas nas palmas das mãos, sendo essa a única fonte de iluminação. O trabalho foi sujeito a uma síntese, através de uma economia de meios: era agora o próprio performer que conduzia e determinava a luz não só da performance mas do próprio espaço.

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O título da performance, Il faut danser, Portugal, que também se

encontrava inscrito numa faixa colocada na parte superior do espaço de

apresentação, significará um salto necessário fora do lamento tão típico

português. Como que incitando à ação, mais do que ao queixume, provocava o

fazer algo. Por que não dançar?! Existe, através da dança, uma libertação do

corpo e, pelo corpo, se conduz a uma libertação do próprio

pensamento. Remete-nos ao protesto de Emma Goldman, que esteve à frente

dos movimentos anarquistas e da defesa dos direitos dos trabalhadores no final

do séc. XIX e princípio do séc. XX, e que ficou famosa também pela frase “Se

não puder dançar, esta não é a minha revolução.” Se extrapolarmos essa dança

para a festividade carnavalesca, podemos referir dois exemplos distintos da

utilização da estrutura do carnaval como outras formas de presença ou

reivindicação: o movimento tropicalista e o movimento altermundialista. Nos

anos 1960, o Brasil encontrava-se sob uma ditadura militar que, a partir de 1968,

se tornou mais radical, pelo aumento do abuso de poder e do autoritarismo.

Uma das formas que a comunidade artística encontrou de conseguir reivindicar o

seu pensamento foi através da exposição e utilização dos seus corpos

carnavalizados, sob a influencia hippie. Os corpos mascarados e travestidos

funcionavam como bandeiras, questionando as tradições e diferentes formas de

viver a sexualidade e as identidades sexuais, ao mesmo tempo que se

expressavam contra o sistema opressor. O movimento tropicalista inserir-se-á

dentro dessa dinâmica onde, para além da arte contemporânea, a música foi

uma das formas de se chegar a um maior número de pessoas, como aconteceu,

por exemplo, com o grupo Secos e Molhados. Ney Matogrosso conduziria o grupo

a uma total performatividade com a exposição de corpos metamorfoseados,

sexuais e eróticos, que não se limitavam a cantar e cujas letras ambíguas eram

passíveis de contornar a censura e chegar a um vasto público através das

transmissões televisivas3. A partir dos anos 1990, foram sendo adotadas novas

formas de ocupação do espaço público através do humor e do carnaval, pelos 3 Cf. Júlia Eléguida e Oliveira de Moraes, “Secos e Molhados: A Transgressão do Corpo Performático 1971-1974)”. Ver em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/ahu/article/view/6509/3963>. Acesso em 12 de março de 2015.

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movimentos anticapitalistas e contra as cúpulas do G8, que mais tarde dariam

origem ao movimento altermundialista. Segundo Graham St. John, “o carnaval

oferece um enquadramento adequado aos ativistas contemporâneos uma vez

que constitui uma mina de possibilidades culturais e políticas. Atribuem-se ao

carnaval múltiplas funções: a ação política, a celebração festiva, a liberação

catártica, um abandono desenfreado do status quo, um instrumento de

interconexão, um modo de criar um mundo novo”4. É o seu carácter multívoco

que tem permitido a amplitude de interpretações e usos: o carnaval é

provocador, elimina as hierarquias e cria novas relações entre os diversos

intervenientes, colocando-os no mesmo plano. Por outro lado, o mascaramento

que tem ocupado as ruas e outros espaços de decisão, seja com palhaços, com

as famosas máscaras do grupo Anonymous ou em atos como o da manifestante

contra Draghi, que em 2015 subiu à mesa do presidente e atirou os seus

confetes, mostram como as possibilidades são inúmeras. Acredita-se no seu

carácter de revolta e mudança e na capacidade de se colocar em ridículo

determinadas situações.

Esta característica encontra-se igualmente presente no trabalho de

Olaio, traduzindo-se, por vezes, como forma de o mesmo se colocar em

situações menos confortáveis mas que de uma maneira ou de outra lhe

despertam o interesse. Por exemplo, quando Olaio começou a cantar,

entusiasmava-o esse novo campo de experimentação porque se propunha

mover-se e concretizar algo dentro de uma área na qual não era reconhecido e

também não tinha propriamente segurança5. O pathos é outro conceito ao qual

recorre, com o intuito não só de colocar o espectador num estado de forte

emoção mas que o mesmo possa se ver refletido no que vê. Olaio ressalta o

absurdo inerente ao ato performativo que cria com a peculiaridade de que

qualquer pessoa o poderia realizar. O único ingrediente necessário é a ousadia de

concretizar em público uma ação que poderia ser caracterizada socialmente

4 Cf. Graham St John, “Protestival: Días de Acción Global y Política Carnavalizada en El Presente”, em VV. AA., Playground: Reinventar la Plaza, Madrid: Museo Nacional Reina Sofia e Ediciones Siruela, 2014, p. 250. 5 Susana Chiocca, ¿Adónde nos Lleva la Máscara?: Un Bitcho para la Performance. Tese de doutoramento. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha, Outubro de 2015, p. 188.

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como uma loucura mas que, inserida num determinado contexto, neste caso

artístico, adquire sentido no sem sentido que provoca6. Eis a explicação do

próprio artista: “Não somos um artista de circo que está ali a fazer algo com o

qual o público fica de boca aberta, a pensar em como consegue realizar aquilo;

somos apenas alguém que está ali e que tem a lata de apresentar diante das

pessoas uma coisa que não é tão extraordinária e, quando sentimos isso, de que

aquilo não é tão extraordinário, então torna-se verdadeiramente

extraordinário. 7” Não existe uma procura de perfeccionismo técnico, o que

conduz a uma anulação da própria aura da obra de arte que já não é inacessível

nem irreproduzível.

Gustavo Sumpta, Ser Artista em Portugal, 2007

6 Ibidem, p. 316. 7 Ibidem, p. 321.

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Um ato igualmente irônico mas com um tom ácido é a performance Ser

Artista em Portugal, de Gustavo Sumpta, de 2007, apresentada pela primeira

vez no espaço “a Sala”, no Porto. O artista instala no chão os moldes para o

estêncil de uma estrela, colocando-se no centro da mesma. Após um tempo de

preparação da lata de grafiti, a estrela dourada surge enquanto o público se

afasta – algumas pessoas chegam mesmo a sair do espaço devido ao cheiro

intenso. Em seguida, Sumpta faz um pino na parede e dos bolsos vão caindo os

seus pertences: a lata de grafiti, as chaves, o celular, um lápis, o cartão de

cidadão, o cartão multibanco e algumas moedas. A performance finaliza com a

inscrição da frase em crioulo que, traduzida para português, significa Se falas

muito levas com uma barra. No centro da estrela pintada, ficaram as marcas dos

sapatos de Sumpta. Ao invés das mãos hollywoodianas com a identificação do

artista, temos um desenho em negativo que simboliza um corpo incógnito. Ou

melhor, representa um artista qualquer. E ser artista, antes como hoje, traduz-

se, para uma grande maioria, num constante esvaziar dos bolsos. Tendo em

conta que o artista não é só criador mas assume também, inúmeras vezes, o

papel de produtor, ao que acresce a frequente inexistência de honorários,

verificam-se, em consequência, duas situações: o estrangulamento das

possibilidades de criação e de vivência ao mesmo tempo que se reinventam

outras formas de fazer e de estar no mundo. E, ainda que haja um certo

reconhecimento no meio artístico, o mesmo não se reflete economicamente

para a maioria dos criadores. Estes fatores permitem-nos uma reflexão sobre o

papel do artista, ou a respeito do valor que o artista detém na sociedade

contemporânea e, neste caso, em Portugal. Existe uma política cultural, ou

melhor, uma ausência da mesma, com sucessivos cortes orçamentais, uma

desvalorização constante e um não reconhecimento dos seus artistas,

pensadores e investigadores. Continuamos ausentes de nós próprios e sem a

necessária conversão cultural que defendia Eduardo Lourenço já nos anos 1970.

Continuamos a não perceber o verdadeiro alcance do que significa cultura. Tal

deve-se, talvez, ao seu quê de invisibilidade (?) ou porque quase tudo,

atualmente, é passível de se englobar neste conceito. A agonia que se tem

imposto à cultura e, neste caso, à arte nas suas mais variadas manifestações, é

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uma realidade. Não poderá por isso surpreender-nos, por exemplo, a extinção do

ministério da cultura em 2011 (o qual foi restabelecido apenas no ano de 2015).

Cabe perguntar que país será este, onde a imaginação e o pensamento são

aniquilados?

Apesar da condição da arte e do artista, Sumpta tem imprimido, ao longo

do seu percurso, toques poéticos na realidade. É um trabalho performativo

minucioso, pela gestualidade cuidada e pela economia de meios, em que todo o

elemento existe na sua necessidade primordial no decorrer da ação e tudo o que

sobra é omisso. Uma construção similar ao de um trabalho artesanal em que

existe um conhecimento aprofundado dos materiais, pela experiência, ensaio e

erro, conhecendo, dessa forma, a multiplicidade de comportamentos possíveis

e, consequentemente, possuindo um maior controle sobre os mesmos. O título,

por seu lado, será sucedâneo do título do livro Ser Moderno em Portugal, que

reúne textos escritos por Ernesto de Sousa maioritariamente da década de 1970.

Ernesto de Sousa foi uma das figuras centrais na cena artística dessa época,

pelo constante experimentalismo e abertura à novidade. O seu dinamismo

enquanto operador estético expandiu-se pelo cinema, artes visuais, imprensa,

rádio, crítica, ensaio, curadoria, ensino e design. Numa relação constante da arte

com a vida, como era promulgado pelo movimento Fluxus ou por Joseph Beuys,

tentava estabelecer igualmente diálogos entre a arte e o pensamento de

artistas internacionais, procurando aproximações com a arte portuguesa. Deste

modo, o título reflete a transversalidade e o estar em comunidade que Ernesto

de Sousa defendia, já que Ser significa um fazer-pensar-estar-dialogar-trocar-

etc.8 Ser moderno seria então a descoberta de si próprio no confronto com o

outro e o seu pensamento. Sumpta expõe, com certa metáfora mas de forma

incontestável, o significado da sua condição e a dos seus pares enquanto

criadores e motores de diálogo com o público, com o mundo, os quais, apesar de

todas as circunstâncias, contribuem para a construção de cultura e pensamento

portugueses.

8 Ernesto de Sousa, Ser Moderno em Portugal, org. de Isabel Alves e José Miranda Justo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 17.

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António Lago, Perdição I , 2015

Finalmente, Perdição I (2015), de António Lago, retrata o país hoje, de

uma forma simples e direta, característica geral dos seus trabalhos

performativos. Essa performance, apresentada na Bienal da Maia em 2015, tinha

como premissa do curador, José Maia, a construção de um trabalho a partir de

autores do norte do país. Lago baseou-se em dois livros de Camilo Castelo

Branco, o Conto do Cadáver e Amor de Perdição, refletindo o poder e declínio da

burguesia, transpondo e expondo, num sentido mais abrangente, essa condição

que se sente em Portugal. Nos primeiros minutos, o público apenas tem acesso

ao som e lentamente são introduzidos alguns efeitos de luz que permeiam a

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instalação no palco. O som ambiente inicial transforma-se num som escuro,

massivo e perturbador (duas músicas de Saåad do álbum Orbs & Channels),

pressagiando algo catastrófico. Relâmpagos anunciam, por sua vez, uma

tempestade, criada pela luz que joga com a estrutura que parece uma casa; a

tempestade como que se aproxima, através de uma estrutura de lâmpadas

fluorescentes, à qual nesta fase o espectador ainda não tem acesso

visual. Reproduzem-se efeitos de luz, raios de luz revelam o interior da casa,

traspassando o telhado do cenário que a representa. Ouve-se agora o relinchar

de cavalos, refletindo um estado de ansiedade. Grãos de areia começam a rolar

sobre as telhas e a cair na instalação que representa o interior de uma casa. É

introduzido o som de vento, de trovões, de uivos e pios de animais. O telhado

vai-se inclinando lentamente e as telhas começam a resvalar e a estatelar-se

sobre o cenário. O tapete vai-se cobrindo de telhas partidas e pó. Tudo termina

em ruína. Assiste-se à construção da destruição. É uma imagem da decadência,

da demissão de uma ação, do abandono a que o país tem chegado. É um retrato

de um fracasso coletivo. Ao não existir performer, o corpo encontra-se presente

na sua ausência. A cadeira assim o anuncia nessa espera do fim. A cadeira de

um corpo ausente, que representa todos e cada um de nós, remete para a nossa

responsabilidade enquanto espelho da atualidade.

Ao longo das duas últimas décadas, Lago tem pesquisado e exposto uma

reflexão sobre as questões políticas e sociais contemporâneas em diversas

performances como So Sweet, Fresh Meat! (2006), You’re Not

Go(o)d! (2010), Falta de Nervo Falta de Fibra Falta de Coragem Falta de

Convicção (2014), em colaboração com Vanessa Adreína Martins, ou Perdição

I, II & III (2015). Invoca-se a crise social, o equívoco dos valores, a discriminação,

a diferença de gêneros, retratando as relações de poder e os seus limites, a

superioridade, o individualismo e a vulnerabilidade. No seu conjunto, provoca ou

pretende fomentar um questionamento por parte do público. Para o conseguir, o

criador metamorfoseia-se em vários corpos com uma plasticidade própria e

cuidada, articulando o barroco com uma arte povera e minimalista: é o corpo que

se transforma, que se transveste uma e outra vez, para invocar o corpo

imaginado de Gisberta como símbolo de tantas outras Gisbertas e tantas outras

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segregações e abusos; para expor a indiferença dos tecnocratas; para nos

confrontar com a mendicidade e a pobreza que são uma realidade em nossas

cidades; para sublinhar a crença do refugiado num futuro melhor que a Europa,

afinal, aniquila. Lago pensa o hoje de modo contundente. Atua e escreve nos

interstícios do seu tempo. Mostra o que se prefere mascarar, por detrás da

cegueira comum.

António Olaio, I l faut danser, Portugal, 1984

Conclui-se, portanto, que Il faut danser, Portugal insere-se na série de

festivais dedicados à performance um pouco por todo o país, muito pela mão de

Egídio Álvaro, que procurava também uma descentralização (estiveram outros

artistas e agentes envolvidos na organização destes eventos a partir dos anos

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1980 como o próprio Olaio, Manoel Barbosa, Fernando Aguiar e Pedro Oliveira).

Art et Révolution realizou-se dois anos antes da adesão de Portugal à

Comunidade Econômica Europeia (CEE), num período que parecia o de um futuro

promissor: “vamos ter tudo aquilo que desejamos”, como anunciavam a banda

de rock português GNR, um pouco antes, em 1981, com o single Portugal na

CEE. Apesar da esperança, Olaio, no início da performance, surge com os braços

paralelos ao chão, cobertos pela bandeira portuguesa, a qual lentamente deixa

cair. Toda a performance, toda a dança, decorre com a bandeira a seus pés, ato

que se interpreta como uma premonição do futuro do país, a queda, o fracasso.

Não obstante, com a entrada na CEE, existiram os dourados anos 1990, quando

tudo parecia maravilhoso e próspero. Contudo, a crise interna iniciar-se-ia já no

princípio deste século XXI. Essa longa estagnação poderá ter sido um dos

motores para um novo fôlego dentro da área da performance, já que muitos

criadores nacionais foram recorrendo a este meio para expor o seu pensamento

de forma mais direta e muitas vezes com o mínimo de recursos. Desse

modo, Ser Artista em Portugal, em 2007, devolve-nos a realidade do futuro

afinal inóspito, que se sentia e se sente na arte e na cultura em geral. Um ano

antes do despoletar da crise internacional, é o retrato da condição do artista em

nosso país. Condição que não é uma realidade apenas do nosso tempo pois,

desde o séc. XV-XVI, são inúmeras as desistências, os isolamentos, os exílios,

ou mesmo o suicídio, que pensadores e criadores portugueses foram sofrendo,

como refere Miguel Real no seu livro A Morte de Portugal. Finalmente, Perdição

I remete-nos para a falência do próprio sistema e com ela a inocuidade da

austeridade, ou melhor, da injustiça dos ajustamentos sociais. Derrubam-se as

estruturas... A Europa é posta em causa. O predomínio da economia sobre o

indivíduo foi uma imposição que a tem dividido, grosso modo, em duas: a do

norte, produtiva e acumuladora de riqueza, e a do sul, turística e pobre. Ao longo

destes anos, têm-se observado estas políticas que conduziram os países do sul

a uma sobrevivência. Os acontecimentos mais recentes, como a resposta que se

tem dado à problemática dos refugiados sírios ou a saída da Grã-Bretanha da

comunidade europeia, fazem-nos questionar que Europa se tem vindo a

construir e qual a verdadeira razão da sua existência e de se saber, afinal, a

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quem serve, ainda que conheçamos algumas respostas. É precisamente o que

Sukurov coloca em causa com o filme Francofonia, que surge como exposição da

falta de rumo do projeto europeu – se se anular o pensamento, as ideias, a sua

comunicação, os valores, os sonhos, a reflexão e a sua materialização, se se

anular a cultura, que sentido fará afinal todo o resto?

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Susana Chiocca (Lisboa, 1974) é doutorada em Arte

Contemporânea/Performance pela Facultad de Bellas Artes de Cuenca da

Universidade de Castilla-La Mancha em 2016 (investigação em torno da máscara

na sua relação com a performance). Licenciada em Escultura pela Faculdade de

Belas Artes da Universidade do Porto em 1999. Professora da cadeira de Nuevos

Comportamentos Artísticos na Facultad de Bellas Artes de Cuenca (2016).

Professora da cadeira de performance na Escola Profissional Balleteatro (2010-

2012). Organizou algumas exposições e eventos dos quais destaca o espaço a

Sala, dedicado à apresentação de performances (2006-2010), criado juntamente

com António Lago. Tem participado em diversas exposições, eventos e

workshops.

PARA CITAR ESTE TEXTO

CHIOCCA, Susana. “Corpos Liminais”. eRevista Performatus,

Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017. ISSN: 2316-8102.

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e a autora