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Corpos Velho para Crianças

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Artigo de Ripoll, Bonin e Silveira sobre a literatura infantil q aborda idosos.

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Page 1: Corpos Velho para Crianças

CORPOS VELHOS E DOENTES PARA CRIANÇAS: UMA ANÁLISE DE

LIVROS DE LITERATURA INFANTIL

Rosa Maria Hessel Silveira1

Iara Tatiana Bonin2

Daniela Ripoll3

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar 10 livros de literatura

infantil que abordam a questão da doença na velhice. Trata-se de tendência recente em

tal literatura, e a análise mostrou como a criança leitora vai sendo ensinada a lidar com

situações decorrentes de doenças que atingem um avô ou avó. Entre as estratégias

utilizadas para a abordagem da temática, destaca-se a utilização de discursos de

divulgação científica, tanto na narrativa principal, quanto nos paratextos.

Palavras-chave: literatura infantil. Velhice. Doenças. Divulgação científica.

OLD ILL BODIES FOR CHILDREN: ANALYSING CHILDREN’S

LITERATURE

ABSTRACT: This work aims at analysing ten children’s books addressing the issue of

illness for old people. It is a recent trend in this literature and the analysis has shown

how the infant reader is taught to deal with situations due to their grandpa’s or

grandma’s illness. Among strategies used to address the subject, the use of science

communication discourses in the main text and paratexts stands out.

Keywords: Children's literature. Old people. Illness. Science communication.

1 INTRODUÇÃO

1 Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em Letras e Doutora em

Educação pela UFRGS, com pós-doutorado pela Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação da

Universidade de Lisboa. É professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da

UFRGS e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, tendo desenvolvido o projeto “Narrativas,

diferenças e infância contemporânea” de 2008 a 2012. Coordena, atualmente, o projeto “Literatura

infantil - um estudo sobre leitura de obras selecionadas com leitores de anos iniciais”. E-mail:

[email protected] 2 Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Mestrado em Educação

pela Universidade de Brasília - UnB e Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande

do Sul. É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil.

Desenvolve, atualmente, o projeto “Temática Indígena na Escola: implicações pedagógicas frente à

implementação da Lei 11.645/2008” e faz parte da equipe do projeto “Literatura infantil - um estudo

sobre leitura de obras selecionadas com leitores de anos iniciais”. E-mail: [email protected] 3 É graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre e Doutora

em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professora permanente do PPGEDU-

ULBRA e desenvolve projeto de pesquisa intitulado “Biofantasias, biomanias, bioforias: as pedagogias da

mídia e a espetacularização das bio(tecno)logias na contemporaneidade”. E-mail:

[email protected]

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A vocação pedagógica da literatura infantil é tema assaz debatido e estudado,

tanto na área de Letras, quanto na de Pedagogia, e há consenso quanto às dificuldades

de se ultrapassar esta marca e produzir livros para crianças que as desafiem pela sua

potencialidade de criação e de abertura à imaginação, ao inusitado e ao incomum, , que

sejam literários. Nesse sentido, se a literatura infantil já se abriu, nas últimas décadas, a

histórias menos compromissadas com a tarefa de ensinar e educar as novas gerações,

certo é que livros pedagógicos e formativos continuam povoando prateleiras de

livrarias, de bibliotecas escolares e de sala de aula, buscando ensinar as crianças sobre

os mais diferentes temas e nelas incutir atitudes consideradas adequadas e desejáveis.

E é procurando perscrutar essa tendência, sempre renovada nos livros para

crianças, que se situa o presente trabalho, o qual se debruça sobre uma seleção de livros

recentes que tematizam a doença na velhice. Nesse sentido, retomamos observação de

um estudo anterior que tangenciou tal tópico.

Kaercher e Dalla Zen (2009), ao examinarem onze livros para crianças que

abordam a velhice, apontaram para o que chamam de “sentidos reiterados” presentes em

tais obras, os quais seriam “finitude, vida e morte”. No caso dos livros que

apresentavam personagens velhos doentes, as autoras registram, o quanto tais obras

“sublinharam a representação da velhice como problema, entrave, constrangimento”,

como se a velhice constituísse um ônus social (id., p.4).

É preciso apontar, por outro lado, como a literatura infantil mais recente tem

incorporado temáticas que tradicionalmente não lhe eram peculiares, como o

descasamento, o alcoolismo, as diferenças sociais, a deficiência, novas configurações

familiares, etc. Colomer (2003, p. 257) localiza tal movimento a partir dos anos sessenta

e setenta do século XX, afirmando:

Os livros dirigidos às crianças tiveram que variar seus temas, tanto para

refletir os problemas e formas de vida próprios da realidade dos leitores,

como para responder à preocupação educativa que, fruto de novas atitudes

morais, debilitava o consenso sobre a preservação da infância como uma

etapa inocente e incontaminada, própria da narrativa das décadas anteriores.

Para a temática do nosso artigo, é preciso relembrar outro aspecto: o progressivo

envelhecimento da população dos países desenvolvidos e em desenvolvimento –

incluindo o Brasil – é um dos aspectos que pode estar impulsionando a produção e a

circulação de livros para crianças com a temática da velhice. Ou seja: na medida em

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que cresce a probabilidade de que crianças convivam com avós com doenças

debilitantes mais características da velhice, como Alzheimer, Parkinson, etc., tornar-se-

ia mais relevante a abordagem da temática através da literatura para os jovens leitores.

É dentro desse quadro que foi elaborado o presente trabalho, cujo objetivo é

analisar dez livros de literatura infantil que apresentam como foco principal do enredo a

doença incapacitante manifestada no corpo do velho. A partir de discussões

contemporâneas acerca do corpo e do envelhecimento e de estudos do campo da

literatura infantil, pretende-se discutir a emergência do discurso de divulgação

científica, apropriado pelo viés pedagógico e formativo da literatura infantil. Tal

discurso tem características moralizadoras e reguladoras, marcadas pela pretensão da

verdade e orientadas pela máxima da educação para a prevenção.

Antes de prosseguirmos com as análises, apresentaremos brevemente os dez

livros de literatura infantil selecionados para este artigo. O livro Quando vovó perdeu a

memória, escrito por Roney Cytrynowicz e ilustrado por Andrea Ebert, narra, desde a

perspectiva de um personagem menino de sete anos de idade, uma série de eventos

desencadeados pela doença e internação da avó em uma casa de repouso. Pela voz de

uma pequena menina, na obra O dia em que minha avó envelheceu – de autoria de Lúcia

Fidalgo e ilustrações de Veruchka Guerra – acompanhamos a história de uma avó ativa,

sorridente, adaptada ao contexto familiar, que sofre a repentina perda de seu marido e, a

partir de então, passa a apresentar sinais de envelhecimento e de tristeza, distanciando-

se gradativamente das pessoas mais queridas.

As obras A nova vovó, escrita por Elisabeth Steinkellner e ilustrada por Michael

Roher; Minha avó tem Alzheimer, texto de Dagmar Mueller e ilustrações de Verena

Ballhaus; e A vovó virou bebê, escrita por Renata Paiva e ilustrada por Ionit Zilberman

têm como protagonistas Fini, Paula e Sofia, respectivamente, meninas pequenas, porém

incrivelmente maduras, atentas à progressão da doença de Alzheimer e sensíveis às

mudanças ocorridas no comportamento de suas avós com o passar do tempo. A mesma

doença é tematizada na obra Vovó tem Alzha... o quê?, escrita por Véronique Van den

Abeele e ilustrada por Claude K. Dubois, cuja narrativa, em primeira pessoa, coloca em

destaque algumas memórias da convivência da protagonista Camila com sua avó, antes

e depois do desenvolvimento da doença. Também em Blusa listrada e calça florida,

escrita por Barbara Schnurbush e ilustrada por Cary Pillo, o mal de Alzheimer é o fator

PROFESSOR CETERG
Realce
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desencadeador de uma série de transformações na conduta da avó da protagonista Lili.

Narrada em primeira pessoa, a obra coloca em destaque algumas experiências

vivenciadas pela protagonista com a avó Naná, e seu empenho para mantê-la lúcida.

Já o livro Vovô agora é cavaleiro, escrito por Dagmar Mueller e ilustrado por

Verena Ballhaus, tem como personagem narrador o menino Jonas, que, bastante

impactado pela doença de Parkinson de seu avô, apresenta aos leitores os sintomas, as

formas de lidar com a doença e com o doente. A narrativa de Vovô teve um AVC, escrito

por Dori Hillestad, com ilustrações de Nicole Wong, também é feita em primeira pessoa

pelo ponto de vista de um personagem criança, no caso o menino Lucas que recorda

pescarias e passeios animados com o avô, até que este sofre um AVC. As decorrências

deste acidente vascular são descritas em detalhes, a partir da experiência do menino de

visitar o avô no hospital e de acompanhar sua reabilitação. Por fim, a obra Guilherme

Augusto Araújo Fernandes, escrita por Mem Fox e ilustrada por Julie Vivas, distancia-

se bastante, na estrutura narrativa, das obras anteriores, ao narrar – sem nomeação de

síndromes ou doenças específicas – as experiências de interação do pequeno

protagonista (que dá nome à obra) com velhos e velhas de um asilo, abordando, em

particular, a amizade entre o menino e Dona Antônia, uma senhora que perdeu a

memória, bem como as estratégias usadas por ele para ajudá-la.

Tal como se pode observar nas descrições anteriores, há uma tendência de identificação

de personagens velhos com os avós dos/as protagonistas. Raras são as histórias em que

o/a personagem velho/a não exerça este papel; entre os dez títulos escolhidos para este

trabalho, por exemplo, apenas um – Guilherme Augusto Araújo Fernandes – como já

mencionamos, não aborda um personagem avô/avó, mas uma velhinha moradora de

asilo vizinho à casa do protagonista.

2 O DISCURSO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA EM AÇÃO NA

LITERATURA PARA CRIANÇAS

Para analisarmos a presença do discurso de divulgação científica nos livros em

questão, faremos uma breve abordagem do mesmo. Assim, Zamboni (2001) comparou o

discurso de divulgação científica em revistas para adultos (como Ciência Hoje) e em

revistas para crianças (como Ciência Hoje das Crianças), a partir do confronto de dois

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artigos sobre um mesmo tema (uma tartaruga), publicados nas duas revistas. Enquanto,

na revista para adultos, a ênfase estava na defesa de um programa de manejo

sustentável, através de argumentos econômicos, científicos etc., no artigo para crianças,

a mesma tartaruga era apresentada como uma espécie ameaçada de extinção por meio

de um relato pessoal: a descrição de uma viagem que o jornalista fizera. Segundo

Zamboni (op. cit.), a popularização da Ciência para crianças se dá por meio de vários

recursos textuais, de sintaxe4 e de vocabulário

5; assim, a narrativa pontual (e não

necessariamente a argumentação) para exemplificar um determinado processo biológico

ou manifestação da natureza é recurso comumente utilizado por jornalistas científicos

em revistas de divulgação da Ciência para crianças.

A “novidade”, por assim dizer, que aqui focalizamos é a inclusão do discurso da

divulgação científica nos livros de literatura infantil, alinhando-se ao intuito pedagógico

de tais obras – seja para ensinar sobre uma determinada doença em si, seja para buscar

imprimir atitudes e condutas diferenciadas nas crianças. Assim, informações – por

exemplo, sobre a doença de Alzheimer – são abundantes nos livros analisados, às vezes

sob a forma de “perguntas e respostas”. No livro A vovó virou bebê, por exemplo, a

partir da página 44, a narrativa traz a protagonista Sofia fazendo uma série de perguntas

para si mesma acerca da condição de sua avó, das quais selecionamos algumas: “a vovó

não vai mesmo voltar a ser como antes?”; “quando eu for velha vou ficar assim como

ela?”; “por que as avós das minhas amigas não têm Alzheimer?”; “só as avós têm

Alzheimer, ou os avôs também podem ter?”; “essa doença pega?”; “não dá para tomar

remédio?”; “por que o Alzheimer não tem cura?”. Todas essas dúvidas atribuídas à

personagem (e que provavelmente o autor supõe que sejam comuns aos leitores) vão

sendo esclarecidas ao longo da leitura, sempre em forma de tópicos curtos.

Em certos livros, pode-se dizer que há uma tentativa de construção da

personagem criança como uma espécie de “especialista” (que sabe tanto ou mais do que

os outros envolvidos), preocupada e engajada no cuidado do velho e da velha doente.

4 Segundo Zamboni (2001, p. 126), “no nível da sintaxe, ocorre predominância de frases complexas em

Ciência Hoje (CH), e de frases simples e curtas em Ciência Hoje das Crianças (CHdC). Há maior índice

de subordinação em CH, enquanto na CHdC há maior ocorrência de frases coordenadas.” 5 Nos textos para adultos, segundo Zamboni (2001, p. 127), “Ao lado de uma sintaxe mais complexa,

aparecem vocábulos originários dos discursos de especialização. Na Ciência Hoje das Crianças, ao

contrário, o que predomina são os termos cotidianos, oriundos da linguagem familiar de todos os dias.

Quando os termos especializados são inevitáveis, interrompe-se o fluxo do discurso para inserir sua

explicação”.

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Isso se observa no livro A vovó virou bebê, no qual a menina Sofia dá ao leitor algumas

dicas – todas retiradas de materiais da Associação Brasileira de Alzheimer: “coloque

cartazes pela casa para ajudar a vovó a se localizar”; “ofereça ajuda para levá-la até o

quarto, para vestir o pijama ou para se alimentar, e caminhe com ela devagar e

lentamente”; “tranque sempre a porta da rua e retire a chave para que a sua avó não saia

sozinha e corra o risco de se perder” e outras. Tais “dicas”, evidentemente, não

funcionam apenas como meras informações neutras, mas descrevem, caracterizam e

constroem a doença, o corpo do doente (como “debilitado”, “fora de controle” etc.) e as

atitudes e comportamentos que devem ser assumidos pelos cuidadores e familiares.

O livro Blusa listrada com calça florida: uma história sobre mal de Alzheimer

lança mão de outra estratégia: a inclusão de um longo paratexto6 contendo uma espécie

de guia chamado “Nota aos pais”, assinado por Linda Scacco, psicóloga clínica,

professora de uma universidade e autora de uma história infantil sobre o mal de

Alzheimer. Conforme o paratexto, “Nota aos pais” contém informações para ajudar as

crianças a entenderem o que está acontecendo, pois elas “podem se sentir confusas,

tristes, preocupadas, atrapalhadas e bravas em face do comportamento estranho do avô

ou da avó” (SCHNURBUSH, 2010, p. 34). Aconselha-se que os pais, ao conversarem

com as crianças, façam uso de uma “linguagem simples” e pesquisem “informações

adicionais com o médico da família, para esclarecer o que é o mal de Alzheimer e

entender como ele pode afetar a família” (Idem, p. 35).

Tal como se destaca no recorte anterior, alguns dos livros analisados apresentam

as credenciais de cientistas e de membros de sociedades científicas como uma forma de

validação das informações veiculadas. Zamboni (2001, p. 104), sobre esta questão,

afirma que a busca de credibilidade se dá mediante a inserção das “falas autorizadas”,

que seguem determinados parâmetros, como o nome do especialista, a instituição a que

está vinculado, a filiação a associações ou sociedades de pesquisa e sua relevância para

o assunto em questão. Nos livros para crianças, isso não é diferente: em A vovó virou

bebê, por exemplo, recorre-se à consultoria do Dr. Norton Sayeg, “Especialista em

Geriatria e Gerontologia, presidente da Associação Brasileira de Alzheimer”, enquanto

6 Entendemos paratextos como textos acessórios à narrativa principal do livro, que tanto podem ser

amplos, como prefácios, biografias dos autores, glossários, como mais reduzidos – intertítulos, frase de

chamada na quarta capa, p.ex.

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o livro Vovô agora é cavaleiro-Sobre a vida com a doença de Parkinson apresenta um

longo paratexto sobre a Doença de Parkinson assinado pelo “Dr. Marco Prist Filho,

Neurologista, Neurocirurgião e Professor da Faculdade de Medicina do ABC

(FMABC)”. Além disso, as referências ao cientista que “descobriu” a doença de

Parkinson e a doença de Alzheimer são uma constante nos livros analisados: Minha avó

tem Alzheimer, por exemplo, nos traz uma personagem menina (que é a narradora, em 1ª

pessoa), que mora com seus pais e com Vovó Ana, que “não é como a maioria das

outras avós porque está doente. Ela tem uma doença que se chama Alzheimer. Acho

essa palavra esquisita, mas a doença tem esse nome porque foi descoberta por um

senhor que se chamava Alois Alzheimer” (MUELLER, 2006, p. 7). Já a pequena

protagonista de A vovó virou bebê, Sofia, pergunta à sua mãe: “Ah, é um bichinho que

vive na nossa cabeça, esse tal de Alzheimer?” E aquela responde: “Não, Sofia. Esse

nome não tem nada a ver com bichinhos que fazem a gente adoecer. É por causa de um

médico alemão chamado Alois Alzheimer, que viveu anos atrás e descobriu essa

doença” (PAIVA, 2008, p. 24).

Nota-se também, nos livros analisados, outra característica do discurso de

divulgação científica: a utilização de comparações, metáforas e analogias (tal aspecto é

discutido em outros estudos, como os de Nelkin e Lindee, 1995; Ripoll, 2001; Zamboni,

2001; Malavoy, 2005). Seguem alguns excertos exemplificativos:

Você sabia que tudo que aprendemos e vivemos fica guardado em uma

espécie de armário com gavetas dentro da nossa cabeça? E que essas

gavetinhas onde guardamos a coleção de lembranças se chama memória?

Quando está tudo arrumado, é só a gente querer que dá para achar o que se

quer lembrar. Mas, se as coisas ficam bagunçadas, não se encontra nada. A

cabeça da pessoa que tem Alzheimer fica numa bagunça só. Primeiro, ela não

consegue saber onde guardou as lembranças. Depois, as memórias vão

fugindo das gavetas e fica complicado recuperar o que se perdeu (PAIVA,

2008, p. 4-5).

Recentemente, mamãe me explicou isso:

- Imagine que a vida inteira da vovó Ana seja uma grande árvore. (...) A

doença de Alzheimer faz [com que] aos poucos, as lembranças de vida da

vovó Ana fiquem perdidas em sua cabeça. Imagine que agora seja outono na

cabeça dela. De um mês para outro, as folhas vão caindo, cada vez mais, da

árvore de sua vida (MUELLER, 2006, p. 16-19).

- Lembra quando o papai explicou para você que o nosso corpo pode ser

comparado a uma fábrica, e quem comanda a fábrica é o cérebro? –

perguntou a mãe.

- Lembro!

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- Lá no cérebro também fica registrado tudo que vivemos e aprendemos

durante a vida, bem guardadinho em espécies de gavetas. É a chamada área

da memória – explicou a mãe (PAIVA, 2008, p. 27).

De volta em casa, à noite, antes de dormir, comentei com vovô:

- Vô, a vó lembrou todas as histórias que eu pedi.

- É verdade. As histórias antigas, da infância, ela não esquece.

Fiquei curioso sobre o funcionamento dessa história de memória. Quando o

meu primo veio em casa, quis jogar o jogo da memória e fiquei pensando por

que eu também esquecia alguns dos pares que tinha acabado de ver. E depois

fiquei pensando por que não me lembrava de praticamente nada até os três

anos de idade, como se eu tivesse começado a existir só aos quatro.

(CYTRYNOWICZ, 2007, p. 54-55).

Vemos, assim, como as comparações entre a memória e uma árvore ou um

móvel com gavetas, ou a analogia entre o corpo e uma fábrica, na voz do personagem

adulto, do narrador ou da personagem criança, são estratégias empregadas para tornar as

ideias científicas mais acessíveis às crianças. Tais estratégias operam uma concretização

de aspectos que parecem abstratos em demasia para serem compreendidos pelos

pequenos leitores.

Também se encontra nos livros farta enumeração de características,

comportamentos e outras marcas supostamente distintivas do sujeito portador de

Alzheimer: confusão mental, esquecimento (de acontecimentos recentes, nomes de

pessoas e lugares etc.), incapacidade de planejamento, perda de direção, desorientação

generalizada e incapacidade de resolução de problemas simples. No livro A vovó virou

bebê, por exemplo, a pequena protagonista enumera as características peculiares do

doente, baseando-se na observação de sua avó: “não presta mais atenção nas coisas e

usa palavras erradas ou de um jeito esquisito, como se estivessem fora de lugar”

(PAIVA, 2008, p. 26).

O cérebro, nos livros de literatura infantil, é representado como o órgão central

dos seres humanos (a sede de tudo o que nos distingue dos outros animais), tal como

afirmam os discursos científico e biomédico. Em A vovó virou bebê, uma das

personagens afirma que “em um cérebro sadio é fácil encontrar as lembranças

guardadas. Também é mais fácil pensar, sentir as coisas, tomar decisões. Porém, se a

pessoa tem Alzheimer, o cérebro está doente. Nesse caso, a memória vai se apagando e

fica cada vez mais complicado, ou até impossível, recuperar aquilo que aprendeu ou

viveu um dia” (PAIVA, 2008, p. 27). E, em Guilherme Augusto Araújo Fernandes, o

mau funcionamento do cérebro provoca comiseração na mãe do menino Guilherme, que

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chama Dona Antônia (uma das velhinhas do asilo vizinho) de “coitada”, porque ela

havia perdido a memória.

Ainda com relação à importância dada às explicações centradas no cérebro, o

livro Blusa listrada com calça florida: uma história sobre mal de Alzheimer apresenta,

em um paratexto, a necessidade de uma correta explicação da doença para a criança:

O mal de Alzheimer é uma disfunção cerebral progressiva que afeta a

memória, o raciocínio, a capacidade de se comunicar e, com frequência, a

personalidade e o comportamento também. Repetimos: é melhor usar uma

linguagem adequada quando falar sobre a doença com a criança. Pode-se

começar dizendo algo como “A vovó tem uma doença chamada mal de

Alzheimer. É uma doença que ocorre no cérebro, mas não é uma doença que

passa de uma pessoa à outra, como uma gripe. Acontece quando as pessoas

estão muito velhas. A doença afeta o modo como as pessoas pensam e se

sentem” (SCHNURBUSH, 2010, p. 32).

Já na sinopse do livro A vovó virou bebê, pode-se ler: “a vovó Dorinha anda bem

esquisita. Sua neta Sofia percebeu que a avó não consegue se lembrar das coisas e está

meio atrapalhada. O que ela não sabe é que a vovó está com uma doença chamada

Alzheimer. Com muita delicadeza, Sofia nos ensina que o amor é o melhor remédio

para qualquer doença”. O final da obra Vovô agora é cavaleiro - Sobre a vida com a

doença de Parkinson mostra o menino Jonas refletindo sobre a nova realidade de seu

avô (diagnosticado com a doença de Parkinson) e os seus próprios sentimentos para

com ele:

Acho que é muito difícil para o vovô viver com essa doença do cavaleiro e do

tremor, não importa como ela se chama de fato. Para o vovô, tudo agora é

muito diferente. E nada mais é simples e fácil como antes. Tenho de refletir

sobre isso. (...) Depois do almoço, fui engatinhando até ele no sofá, dei-lhe

um beijo e disse:

- Ei, vovô, sabe de uma coisa? Eu agora amo você ainda mais, mais e mais!

Então vovô sorriu de novo o seu sorriso de cavaleiro, bem misterioso, sutil e

pequeno (MUELLER, 2008, p. 28).

3 PALAVRAS FINAIS

Vimos, nas páginas anteriores, como o discurso científico está sendo

incorporado às narrativas dos livros infantis sobre a doença na velhice, ora através dos

diálogos entre os personagens, na narrativa principal, ora, de forma complementar, em

paratextos que a acompanham. Algumas observações podem ser ainda enunciadas.

Page 10: Corpos Velho para Crianças

Primeiramente, vale a pena relembrar o potencial “identificatório”, em relação

ao leitor infantil, de tais obras. Em oito dos dez títulos analisados, a narrativa é feita em

1ª pessoa, pela protagonista criança, a qual de alguma forma sublinha um “antes” – em

que havia uma ligação e um afeto muito grande entre avô/avó e neto/a narrador/a – e um

“depois”, em que, face às mudanças decorrentes da doença, tal ligação precisa ser

modificada, mas mantendo-se o afeto e o amor prévios. Mesmo no na obra A vovó virou

bebê, em que a narrativa principal não é em 1ª pessoa, há, entretanto, uma forma de

Introdução feita em 1ª pessoa pela personagem Sofia, descrita como tendo 7 anos (!),

que se declara personagem principal do livro que irá ser lido e enuncia alguns conselhos

para os leitores em relação às pessoas com Alzheimer.

Observe-se ainda que a qualidade literária de tais livros é bastante desigual.

Ainda que todos – de forma mais ou menos direta - “ensinem” sobre a decadência física

e mental dos avós e da velhice em geral, eles variam de uma abordagem mais poética e

com tratamento estético, como é o caso de Guilherme Augusto Araújo Fernandes (em

que, inclusive, não há uma identificação da doença que tornou a personagem dona

Antônia desmemoriada) e de O dia em que minha avó envelheceu (em que uma menina

divide sua vida “entre o antes e o depois, desde quando minha avó ficou assim, e eu

nem sei dizer por que, nem sei explicar” (FIDALGO, 2013, p. 28), até abordagens

francamente paradidáticas, como é o caso de Vovô teve um AVC, publicado, inclusive,

por editora que tem se notabilizado por suas obras nas áreas médica e pedagógica.

A obra O dia em que minha avó envelheceu, em especial, foge ao padrão clínico-

informativo da maioria, ao narrar a história de uma menina e de sua avó que, “por causa

de problemas decorrentes do envelhecimento, se distancia do mundo e das pessoas

queridas” (sinopse da contracapa). Sem apresentar qualquer preocupação científica, o

“envelhecer” está relacionado à perda do avô sentida fortemente pela avó (“E o tempo

só remediou... a falta de meu avô para minha avó. Foi nesse dia que minha avó

envelheceu... Nada de costurar vestidos, nem bordar meias, nem fazer travesseirinhos,

bolos ou docinhos. (...) Minha avó foi costurando tristezas, saudades e faltas. Por isso,

ela envelheceu e foi envelhecendo” (FIDALGO, 2013, p. 21-23). A obra deixa em

aberto a interpretação de eventual “enfermidade” da avó:

Havia um olhar vago e triste, que por vezes tentava dizer o que não se sabia.

Não havia palavras doces, nem alegrias, só havia esquecimentos. Minha avó

dormiu num canto de sua memória. Os médicos diziam: - É depressão...

Page 11: Corpos Velho para Crianças

Outros falavam: - Melancolia... Alguns: - É tristeza... Mas agora, bem maior

do que antes, eu penso que seja o envelhecimento... O desaparecer no mundo,

num tempo sem cura que nos engole e devora. E que nada tem a ver com

idade, mas com as faltas e os vazios, as perdas e os sofrimentos que a gente

não sabe onde colocar. Talvez sejam esses os chamados “radicais livres”, que

vão destruindo nossas alegrias (FIDALGO, 2013, p. 23).

O envelhecimento é apresentado como não articulado com a idade ou, ainda,

com a biologia: assim, a menção aos “radicais livres” (tipicamente apontados como

“aceleradores do envelhecimento” pelo discurso científico) é feita de modo a deslocá-

los de um papel central no processo biológico do decaimento, colocando em seu lugar

algumas circunstâncias da vida (as faltas, os vazios e as perdas).

Por outro lado, há, em algumas obras, a reafirmação de um lugar de criança, ora

com condutas e interesses característicos, personificado em protagonistas, ou como

sujeitos de cuidado por parte dos adultos, assinalados nos paratextos. Vejamos dois

exemplos: em A nova vovó, a protagonista Fini, ao observar a cuidadora prestando

assistência à avó, reclama algumas tarefas para si, como dar de comer à vovó e lhe

pentear os cabelos. Isso é significativo, já que, no início da história, a “velha vovó”

(sem traços de qualquer doença) implicava com os penteados que Fini fazia em si

mesma. Tal aspecto aproxima a avó de um suposto mundo infantil, no qual se produzem

brincadeiras das quais, em parte, a avó é levada a participar. Em Blusa listrada com

calça florida: uma história sobre mal de Alzheimer, por sua vez, a atenção à criança é

destacada quando se afirma que as mudanças de personalidade e de comportamento dos

idosos doentes são as mais problemáticas, especialmente no caso de comportamento

“agressivo ou irracional”. Nestes casos, o paratexto recomenda:

Tanto quanto possível, proteja a criança quando o adulto estiver se

comportando agressivamente ou irracionalmente. Retire-a do ambiente, sem

rodeios, e ajude-a a superar emocionalmente o que acabou de presenciar,

usando frases simples como “O cérebro da vovó não está funcionando bem

agora. É por isso que ela está gritando com a TV. Por que você não vai para o

seu quarto por alguns minutos enquanto eu ajudo a vovó a acalmar-se?” (SCHNURBUSH, 2010, p. 32).

Observa-se, em suma, que as obras analisadas posicionam as personagens

crianças a partir de atos solidários, afetuosos e/ou interessados em entender o que se

passa com os avós. Elas participam no cuidado dos velhos doentes ou devem ser

protegidas e resguardadas de situações consideradas inadequadas para a infância.

Page 12: Corpos Velho para Crianças

Ao encerrar este breve trajeto analítico, conclui-se que ocorre, na maioria dos

livros analisados, a reificação da tradicional vocação pedagógica da literatura para

crianças, agora incorporando temas mais delicados, como a demência e a decadência

das pessoas velhas, e não mais se valendo – como em obras de outras épocas – da

alusão a ditames religiosos ou éticos, mas, sim, fazendo uso da voz legitimada e sábia

da divulgação científica.

REFERÊNCIAS COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário. São Paulo: Global, 2003.

KAERCHER, Gladis E. P. da Silva; DALLA ZEN, Maria Isabel. A velhice na literatura infantil

brasileira contemporânea. Discovering Worlds of Literacy – Proceedings of the 16th European

Conference on Reading and 1st Ibero-American Fórum on Literacies. Universidade do Minho,

Braga, Portugal, 2009. p. 1-9

MALAVOY, Sophie. Guia prático de divulgação científica. Rio de Janeiro: Casa Oswaldo

Cruz, 2005.

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FIDALGO, Lúcia. O dia em que minha avó envelheceu. São Paulo: Cortez, 2013.

FOX, Mem. Guilherme Augusto Araújo Fernandes. São Paulo: Brinque-Book, 1995.

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Page 13: Corpos Velho para Crianças

MUELLER, Dagmar. Vovô agora é cavaleiro. Sobre a vida com a doença de Parkinson. São

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PAIVA, Renata. A vovó virou bebê. 1ª Ed. São Paulo: Panda Books, 2008.

SCHNURBUSH, Barbara. Blusa listrada com calça florida: uma história sobre mal de

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STEINKELLNER, Elisabeth. A nova vovó. Rio de Janeiro: Galerinha Record, 2013.

VAN DEN ABEELE, Véronique. Vovó tem Alzha... o quê? São Paulo: FTD, 2007.