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5/20/2018 CORTÁZAR,Jlio-AsArmasSecretas-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/cortazar-julio-as-armas-secretas 1/31 1 AS ARMAS SECRETAS O leitor tem nas mãos alguns dos melhores contos de Júlio Cortázar, ou seja, alguns dos melhores contos da literatura hispanoamericana do século XX, reconhecida como celeiro de grandes mestres do gênero. Basta pensar em Jorge Luis Borges, Juan Carlos Onetti ou Juan Rulfo, para saber o que isto significa. São em geral relatos fantásticos, embora na maioria das vezes o leitor tarde a se dar conta disto, tal a trivialidade do cotidiano em que vivem as personagens, gente como a gente às voltas com a realidade banal de todo dia. Pouco a pouco, porém, se mostra o mundo minado de que verdadeiramente se trata, em sua completa e desconcertante complexidade: uma realidade porosa, aberta por estranhos interstícios, inesperadas pontes ou passagens, por onde se transfundem espaços, seres e tempos em encontros insólitos.  A prosa, armada com ambígua naturalidade, traz a marca inconfundível do escritor consciente e senhor do ofício, artista moderno que inclui sempre no que faz a consciência crítica. Da mais descarnada simplicidade, pode encaminhar-se para as frases longas e de intrincada sintaxe, flexíveis como as enguias que tanto admirava. Sugere o desalinho descuidado de quem se move à vontade, com passada larga e sem rumo, para dar de repente com o alvo certo, em sua implacável precisão, a que não sobram nem faltam palavras. Prosa que imita muito os movimentos corporais, como guiada pela cegueira do instinto, mas que traduz, na verdade, a sensualidade contorsiva do corpo em espirais da mente, na erótica e irônica presença da consciência artística que tudo supervisiona e se mostra no discurso auto-reflexivo. Misto de espontaneidade e artificio, a arte de Cortázar aqui comparece inteira, em seus jogos a sério de inquietante lucidez. Duas obras-primas, 'As babas do diabo' e 'O perseguidor', reúnem as características fundamentais da poética cortazariana, sua visão da arte como busca e rebelião; seu reconhecimento do limite em que vive o poeta em sua radicalidade, quando faz jus ao nome e encarna a sede unitiva de um perseguidor do impossível, desgarrado no espaço degradado e fragmentário do mundo moderno. Com as armas da analogia e da ironia, o poeta busca uma realidade digna do nome, por vezes entrevista nas frestas do cotidiano como uma promessa de passagem para outra coisa, detector que é de 'intervalos fulgurantes'. Na figura do fotógrafo que quer fixar a real imagem das coisas e nisto joga a vida, ou na figura do músico de jazz que persegue a verdadeira linguagem até o risco da autodestruição estão os avatares do poeta para Cortázar, quando cumprem com a mente e o coração seu autêntico destino de artista e desafiam o mundo acomodado em que nos tocou viver. O leitor verá como vale a pena reler Cortázar, dez anos depois que se calou. DAVI ARRIGUCCI JR.

CORTÁZAR, Júlio - As Armas Secretas

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    AS ARMAS SECRETAS O leitor tem nas mos alguns dos melhores contos de Jlio Cortzar, ou seja, alguns dos melhores contos da literatura hispanoamericana do sculo XX, reconhecida como celeiro de grandes mestres do gnero. Basta pensar em Jorge Luis Borges, Juan Carlos Onetti ou Juan Rulfo, para saber o que isto significa. So em geral relatos fantsticos, embora na maioria das vezes o leitor tarde a se dar conta disto, tal a trivialidade do cotidiano em que vivem as personagens, gente como a gente s voltas com a realidade banal de todo dia. Pouco a pouco, porm, se mostra o mundo minado de que verdadeiramente se trata, em sua completa e desconcertante complexidade: uma realidade porosa, aberta por estranhos interstcios, inesperadas pontes ou passagens, por onde se transfundem espaos, seres e tempos em encontros inslitos. A prosa, armada com ambgua naturalidade, traz a marca inconfundvel do escritor consciente e senhor do ofcio, artista moderno que inclui sempre no que faz a conscincia crtica. Da mais descarnada simplicidade, pode encaminhar-se para as frases longas e de intrincada sintaxe, flexveis como as enguias que tanto admirava. Sugere o desalinho descuidado de quem se move vontade, com passada larga e sem rumo, para dar de repente com o alvo certo, em sua implacvel preciso, a que no sobram nem faltam palavras. Prosa que imita muito os movimentos corporais, como guiada pela cegueira do instinto, mas que traduz, na verdade, a sensualidade contorsiva do corpo em espirais da mente, na ertica e irnica presena da conscincia artstica que tudo supervisiona e se mostra no discurso auto-reflexivo. Misto de espontaneidade e artificio, a arte de Cortzar aqui comparece inteira, em seus jogos a srio de inquietante lucidez. Duas obras-primas, 'As babas do diabo' e 'O perseguidor', renem as caractersticas fundamentais da potica cortazariana, sua viso da arte como busca e rebelio; seu reconhecimento do limite em que vive o poeta em sua radicalidade, quando faz jus ao nome e encarna a sede unitiva de um perseguidor do impossvel, desgarrado no espao degradado e fragmentrio do mundo moderno. Com as armas da analogia e da ironia, o poeta busca uma realidade digna do nome, por vezes entrevista nas frestas do cotidiano como uma promessa de passagem para outra coisa, detector que de 'intervalos fulgurantes'. Na figura do fotgrafo que quer fixar a real imagem das coisas e nisto joga a vida, ou na figura do msico de jazz que persegue a verdadeira linguagem at o risco da autodestruio esto os avatares do poeta para Cortzar, quando cumprem com a mente e o corao seu autntico destino de artista e desafiam o mundo acomodado em que nos tocou viver. O leitor ver como vale a pena reler Cortzar, dez anos depois que se calou.

    DAVI ARRIGUCCI JR.

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    JLIO CORTZAR

    AS ARMAS SECRETAS Contos Traduo e posfcio de ERIC NEPOMUCENO JOS OLYMPIO EDITORA Jlio Cortzar, 1959, e herdeiros de Jlio Cortzar Reservam-se os direitos desta edio LIVRARIA JOS OLYMPIO EDITORA S.A. Rua da Glria, 344/4 andar Rio de Janeiro, RJ - Repblica Federativa do Brasil Printed in Brazil Impresso no Brasil ISBN 85-03-00523-9 Gerncia editorial: Maria Amlia Mello Editoria: Ftima Pires dos Santos Capa: Joatan (sobre foto de tela de Luciane Malheiros) Produo e diagramao: Antnio Herranz Reviso de originais: Cludio Estrella Reviso de provas: Tereza Cardoso Fabiano Antnio Coutinho de Lacerda C854a CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Cortzar, Jlio, 1914-1984 As armas secretas: contos / Jlio Cortzar; traduo e posfcio de Eric Nepomuceno. - Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994. Traduo de: Las armas secretas. 1. Contos argentinos. I. Nepomuceno, Eric, 1948- 94-0796 . H. Ttulo. CDD - 868.99323 CDU-860(82>3

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    Cartas de mame BEM QUE PODERIA chamar-se liberdade condicional Toda vez que a zeladora lhe entregava um envelope, Luis reconhecia o minsculo rosto familiar de Jos de San Martin e isso era suficiente para compreender que novamente seria preciso atravessar a ponte. San Martin, Rivadavia, mas esses nomes eram tambm imagens de ruas e coisas, Rivadavia n2- 6.500, o casaro de Flores, mame, o caf de San Martin esquina com Corrientes onde s vezes os amigos esperavam por ele, onde o marzip tinha um leve gosto de leo de rcino Com o envelope na mo, depois do Mera bien, madame Durand, sair a rua j no era a mesma coisa do dia anterior, de todos os dias anteriores. Cada carta de mame (inclusive antes daquilo que acabava de acontecer, aquele absurdo erro ridculo) mudava de repente a vida de Luis, devolvia-o ao passado como uma bola quicando com fora. Antes mesmo daquilo que acabava de ler - e que agora relia no nibus, entre enfurecido e perplexo, sem terminar de se convencer de todo -, as cartas de mame eram sempre uma alterao do tempo, um pequeno escndalo inofensivo na ordem de coisas que Luis havia querido e traado e conseguido, adotando essa ordem em sua vida como havia adotado Laura em sua vida e Paris em sua vida. Cada nova carta insinuava por um instante (porque depois ele as apagava no exato ato de respond-las carinhosamente) que sua liberdade conquistada a duras penas, aquela nova vida recortada com ferozes golpes de tesoura na madeixa de l que os outros haviam chamado de sua vida, deixava de justificar-se, perdia p. apagava-se como o fundo das ruas enquanto o nibus corria pela rue de Richelieu. No sobrava nada alm de uma tola liberdade condicional, a piada de se viver como uma palavra entre parnteses, divorciada da frase principal e da qual, no entanto, quase sempre sustentao e explicao. E mgoa, e uma necessidade de responder imediatamente, como quem torna a fechar uma porta. Aquela manh havia sido uma das tantas manhs em que chegava carta de mame. Ele e Laura falavam pouco do passado, e quase nunca do casaro de Flores. No que Luis no gostasse de recordar Buenos Aires. Tratava-se, porm, de evitar nomes (as pessoas, evitadas fazia j tanto tempo, mas os nomes, os verdadeiros fantasmas que so os nomes, essa durao obstinada). Um dia, havia se animado a dizer a Laura: "Se fosse possvel rasgar e jogar fora o passado, como o rascunho de uma carta ou de um livro. Mas fica sempre a, manchando a cpia passada a limpo, e eu acho que isso o verdadeiro futuro." Na realidade, por que no haveriam de falar de Buenos Aires, onde morava a famlia, onde os amigos de vez em quando enfeitavam um carto postal com frases carinhosas? E a pgina impressa de La Nacin, com os sonetos de tantas senhoras entusiastas, aquela sensao de coisa lida, de para qu? E de vez em quando alguma crise de ministrio, algum enfezado coronel, algum excelente lutador de boxe. Por que no haveriam de falar de Buenos Aires, ele e Laura? Mas ela no retornava ao tempo de antes, s por acaso em algum dilogo, e principalmente quando chegavam cartas de mame, deixava cair um nome ou uma imagem como moedas fora de circulao, objetos de um mundo que se anulou na distante margem do rio. - Eh oiti, fait lourd - disse o operrio sentado na frente dele. "Se soubesse o que calor", pensou Luis. "Se pudesse andar numa tarde de fevereiro pela avenida de Mayo, por alguma ruela de Liniers."

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    Tirou outra vez a carta do envelope, sem iluses, o pargrafo estava l, bem claro. Era perfeitamente absurdo, mas estava l. Sua primeira reao, depois da surpresa, do golpe em plena nuca, como sempre era de defesa. Laura no devia ler a carta de mame. Por mais ridculo que fosse o erro, a confuso de nomes (mame deve ter querido escrever 'Vctor' e escreveu 'Nico'), de qualquer modo Laura se afligiria, seria burrice. De vez em quando cartas se perdem; esta deveria ter ido para o fundo do mar. Agora teria de jog-la na privada do escritrio, e claro que depois de alguns dias Laura estranharia: "Que esquisito, no chegou nenhuma carta de sua me." Nunca dizia sua mame, talvez por ter perdido a sua quando ainda era muito pequena. Ento ele responderia: "E mesmo, estranho. Vou mandar umas linhas para ela hoje mesmo e mandaria, espantando-se com o silncio de mame. A vida continuaria igual, o escritrio, o cinema de noite, Laura sempre tranqila, bondosa, atenta aos seus desejos. Ao descer do nibus na rue de Rennes, perguntou-se bruscamente (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) por que no queria mostrar para Laura a carta de mame. No por ela mas pelo que pudesse sentir. No se importava muito com o que ela pudesse sentir, desde que disfarasse. (No se importava muito com o que ela pudesse sentir, desde que disfarasse?) No, no se importava muito. (No se importava?) Mas a primeira verdade, supondo que houvesse outras por trs, a verdade mais imediata por assim dizer, era que se importava com a cara que Laura faria, com a atitude de Laura. E se importava consigo mesmo, claro, pelo efeito que provocaria nele a forma como Laura se importaria com a carta de mame. Seus olhos pousariam, num dado momento, sobre o nome de Nico, e ele sabia que o queixo de Laura comearia a tremer ligeiramente, e depois ela diria: "Mas que coisa estranha... o que ser que deu na sua me?" E ele saberia o tempo todo que Laura se continha para no gritar, para no esconder entre as mos um rosto j desfigurado pelo pranto, pelo desenho do nome de Nico tremendo em sua boca. Na agncia de publicidade onde trabalhava como desenhista, releu a carta, uma das tantas cartas de mame, sem nada de extraordinrio alm do pargrafo onde havia se enganado de nome. Imaginou se no poderia apagar a palavra, substituir Nico por Vctor, simplesmente substituir o erro pela verdade, e voltar com a carta para casa, para que Laura a lesse. As cartas de mame sempre interessavam a Laura, mesmo que de uma forma indefinvel no fossem destinadas a ela. Mame escrevia para ele; sempre enviava no final, s vezes no meio da carta, lembranas muito carinhosas para Laura. No importava, lia as cartas com o mesmo interesse, hesitando diante de alguma palavra retorcida pelo reumatismo e pela miopia. "Tomo Saridn, e o doutor me deu um pouco de salicilato..." As cartas ficavam dois ou trs dias sobre a mesa de desenho; Luis gostaria de jog-las fora assim que as respondesse, mas Laura as relia, as mulheres gostam de reler as cartas, olh-las de um lado e de outro, parecem extrair um segundo sentido cada vez que tornam a apanh-las e olh-las. As cartas de mame eram curtas, com notcias de casa, uma ou outra referncia situao do pas (mas essas coisas j eram sabidas atravs das notcias do L Monde, chegavam sempre atrasadas pela mo de mame). Dava at para pensar que as cartas eram sempre uma s, sucinta e medocre, sem nada de interessante. O melhor em mame que nunca se entregou tristeza que devia sentir pela ausncia do filho e da nora, nem mesmo dor - tantos gritos, tantas lgrimas no comeo - pela morte de Nico. Nunca, naqueles dois anos em que estavam em Paris, mame havia mencionado Nico em suas cartas. Era como Laura, que tambm no o mencionava. Nenhuma das duas o mencionava, e fazia mais de dois anos que Nico havia morrido. A repentina meno de seu nome no meio da carta era quase um escndalo. Simplesmente pelo fato do nome de Nico aparecer de repente numa frase com o N longo e trmulo, o O com a perninha torcida; mas era pior, porque o nome estava colocado

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    numa frase incompreensvel e absurda, em algo que no podia ser outra coisa alm de um anncio de senilidade. De repente mame perdia a noo do tempo, imaginava que... O pargrafo vinha depois de uma breve confirmao da chegada de uma carta de Laura. Um ponto, levemente marcado com uma tinta azul fraca comprada no armazm do bairro, e queima-roupa: "Hoje de manh Nico perguntou por vocs." O resto continuava como sempre: a sade, a prima Matilde levou um tombo e deslocou a clavicula, os cachorros esto bem. Mas Nico havia perguntado por eles. Na verdade teria sido fcil trocar Nico por Vctor, que era sem dvida quem havia perguntado por eles. O primo Vctor, sempre to atencioso. Vctor tinha duas letras a mais que Nico, mas com uma borracha e alguma habilidade dava para mudar os nomes. Hoje de manh Vctor perguntou por vocs. To natural que Vctor passasse para visitar mame e perguntasse pelos ausentes. Quando voltou para almoar, trazia a carta intacta no bolso. Continuava disposto a no dizer nada a Laura, que o esperava com seu sorriso amigvel, o rosto que parecia ter-se desvanecido um pouco desde os tempos de Buenos Aires, como se o ar cinzento de Paris tirasse sua cor e seu relevo. Estavam h mais de dois anos em Paris, haviam sado de Buenos Aires dois meses depois da morte de Nico, mas na verdade Luis se considerava ausente desde o prprio dia de seu casamento com Laura. Uma tarde, depois de falar com Nico, que j estava doente, prometeu a si mesmo fugir da Argentina, do casaro de Flores, de mame e dos cachorros e de seu irmo (que j estava doente). Naqueles meses tudo havia girado em torno dele como as figuras de uma dana: Nico, Laura, mame, os cachorros, o jardim. Seu juramento tinha sido o gesto brutal de quem estilhaa uma garrafa na pista, interrompe o baile com o chicotear de vidros quebrados. Tudo havia sido brutal naqueles dias: seu casamento, a partida sem delicadezas ou consideraes com mame, o esquecimento de todos os deveres sociais, dos amigos um tanto surpreendidos e desencantados. No se importava nem um pouco, nem mesmo com a ameaa de protesto de Laura. Mame ficava sozinha no casaro, com os ces e os vidros de remdios, com a roupa de Nico ainda pendurada no guarda-roupa. Que ficasse, que fossem todos para o inferno. Mame parecia compreender, j no chorava por Nico e andava como antes pela casa, com a fria e decidida recuperao dos velhos diante da morte. Mas Luis no queria se lembrar do que havia sido a tarde da despedida, as malas, o txi na porta, a casa ali, com a infncia inteira, o jardim onde Nico e ele brincavam de guerra, os dois ces indiferentes e estpidos. Agora, quase era capaz de esquecer tudo isso. Ia at a agncia, desenhava cartazes, voltava para comer, bebia a xcara de caf que Laura servia sorrindo. Iam muito ao cinema, muito aos bosques, conheciam Paris cada vez mais. Tiveram sorte, a vida era surpreendentemente fcil, o trabalho aceitvel, o apartamento bonito, os filmes excelentes. E a, chegava carta de mame. No as detestava; se faltassem, ele sentiria a liberdade cair sobre si como um peso insuportvel. As cartas de mame traziam-lhe o tcito perdo (mas no havia nada por que perdo-lo), estendiam a ponte por onde era possvel continuar passando. Cada uma o tranqilizava ou o inquietava sobre a sade de mame, recordava a economia familiar, a permanncia de uma ordem. E ao mesmo tempo odiava aquela ordem e a odiava por causa de Laura porque Laura estava em Paris, mas toda carta de mame a definia como indiferente, como cmplice daquela ordem que ele havia repudiado certa noite no jardim, depois de ouvir uma vez mais a tosse apagada, quase humilde de Nico.

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    No, no mostraria a carta a Laura. No era nada generoso substituir um nome por outro, no permitiria que Laura lesse a frase de mame. Seu erro grotesco, sua tola falta de tato por um instante - era capaz de v-la lutando com uma caneta velha, com um papel que escorregava para os lados com sua vista fraca -, cresceria em Laura como uma semente fcil. Melhor jogar a carta fora (jogou-a naquela mesma tarde) e de noite ir ao cinema com Laura, esquecer o quanto antes que Vctor havia perguntado por eles. Mesmo que fosse Vctor, o primo to bem-educado, esquecer que Vctor havia perguntado por eles. Diablico, encolhido, lambendo-se todo, Tom esperava que Jerry casse na armadilha. Jerry no caiu, e choveram sobre Tom incontveis catstrofes. Depois Luis comprou sorvetes, que os dois tomaram enquanto olhavam distraidamente os anncios coloridos. Quando o filme comeou, Laura afundou-se um pouco mais em sua poltrona e retirou a mo do brao de Luis. Ele a sentia distante outra vez, quem sabe se o que olhavam juntos j no era a mesma coisa para os dois, mesmo que mais tarde comentassem o filme na rua ou na cama. Se perguntou (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo9) se Nico e Laura haviam estado assim distantes nos cinemas, quando Nico a cortejava e saam juntos. Provavelmente conheceram todos os cinemas de Flores, a passarela estpida da rue Lavalle, o leo, o atleta que golpeia o gongo, os subttulos em castelhano por Carmen de Pinillos, os personagens deste filme so fictcios, e qualquer semelhana... Ento, depois que Jerry tinha escapado de Tom e comeava a hora de Barbara Stanvvyck ou de Tyrone Power, a mo de Nico se encostaria devagar sobre a coxa de Laura (o pobre Nico, to tmido, to namorado) e os dois se sentiriam culpados sabe-se l de qu. Bem que ele contava a Luis que no tinham sido culpados de nada definitivo; e embora no houvesse tido a mais deliciosa das provas, o veloz desapego de Laura por Nico fora suficiente para ver naquele namoro um mero simulacro inventado pelo bairro, os vizinhos, os crculos culturais e recreativos que so a essncia de Flores. Bastaria o capricho de ter ido uma noite ao mesmo salo de baile freqentado por Nico, o acaso de uma presena fraternal. Talvez por isso, pela facilidade do comeo, todo o resto havia sido inesperadamente difcil e amargo. Mas no queria recordar agora, a comdia havia terminado com a derrota branda de Nico, seu melanclico refugio numa morte de tsico. Era estranho que Laura no o mencionasse nunca, e por isso tampouco ele prprio o citasse, que Nico no fosse nem mesmo o defunto, nem mesmo o cunhado morto, o filho de mame. No comeo, isso fora um alvio, depois do confuso intercmbio de recriminaes, do pranto e dos gritos de mame, da estpida interveno do tio Emilio e do primo Vctor (hoje de manh Vctor perguntou por vocs), o casamento apressado e sem outra cerimnia alm de um txi chamado por telefone e trs minutos diante de um funcionrio com caspa nas lapelas. Refugiados num hotel de Adrogu, longe de mame e de toda a parentada desunida, Luis havia agradecido a Laura por jamais ter feito referncia ao pobre fantoche que to vagamente havia passado de noivo a cunhado. Mas agora, com um mar no meio, com a morte e dois anos no meio, Laura continuava sem mencion-lo, e ele se atinha ao seu silncio por covardia, sabendo que no fundo esse silncio o ofendia pelo que continha de recriminao, de arrependimento, de algo que comeava a se parecer com traio. Mais de uma vez havia mencionado Nico explicitamente, mas compreendia que isso no contava, que a resposta de Laura tendia unicamente a desviar a conversa. Um lento territrio proibido fora se formando pouco a pouco em sua linguagem, isolando-os de Nico, envolvendo seu nome e sua memria num algodo sujo e pegajoso. E do outro lado mame fazia a mesma coisa, confabulava inexplicavelmente no silncio. Cada carta falava dos cachorros, de Matilde, de Vctor, do salicilato, da penso de aposentada. Luis esperava que alguma vez mame fizesse aluso a seu filho para aliar-se com ela diante de Laura, obrigar Laura carinhosamente a

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    aceitar a existncia pstuma de Nico. No porque fosse necessrio, quem se importava se Nico estava vivo ou morto?, mas a tolerncia de sua lembrana no panteo do passado teria sido a prova obscura e irreverente de que Laura o havia esquecido de verdade e para sempre. Chamado plena luz de seu nome, o incubo teria se desvanecido, to fraco e intil como quando pisava a terra. Mas Laura continuava calando o nome de Nico, e toda vez que o calava, no momento exato em que teria sido natural que o dissesse, e exatamente calava, Luis sentia novamente a presena de Nico no jardim de Flores, escutava sua tosse discreta preparando o mais perfeito presente de casamento imaginvel, sua morte em plena lua-de-mel daquela que havia sido sua noiva, daquele que havia sido seu irmo. Uma semana mais tarde Laura surpreendeu-se de que no houvesse chegado nenhuma carta de mame. Calcularam as hipteses usuais, e Luis escreveu naquele mesmo dia. A resposta no o inquietava tanto, mas teria preferido (sentia isso ao descer as escadas pelas manhs) que a zeladora lhe desse a carta, em vez de lev-la ao terceiro andar. Quinze dias depois reconheceu o envelope familiar, o rosto do almirante Brown e uma vista das cataratas do Iguau. Guardou o envelope antes de sair rua e responder ao cumprimento de Laura na janela. Achou ridculo ter que dobrar a esquina antes de abrir a carta. Boby havia fugido para a rua e alguns dias depois comeou a se coar, contgio de algum co sarnento. Mame ia consultar um veterinrio amigo do tio Emlio, porque nem pensar se Boby contagiasse Negro de alguma peste. O tio Emlio achava que deveria banh-los com creolina, mas ela no estava mais disposta a esse tipo de confuso, seria melhor o veterinrio receitar algum p inseticida ou alguma coisa para misturar na comida. A vizinha do lado tinha um gato sarnento, sabe-se l se os gatos no eram capazes de contagiar os ces, nem que fosse atravs da cerca. Mas ser que essa conversa de velha iria interessar a eles?, embora Luis tenha sido sempre carinhoso com os ces e quando menino at dormia com um deles aos ps da cama, o avesso de Nico, que no gostava muito de cachorro. A vizinha do lado aconselhava espalhar p de dedet neles, porque se no for sarna, ser outra coisa, os cachorros apanham qualquer peste pela rua; na esquina de Bacacay estava um circo de animais estranhos, vai ver havia micrbios pelo ar, essas coisas. Mame no agentava mais sustos do garoto da costureira que havia queimado o brao com leite fervendo e Boby sarnento. Depois havia uma espcie de estrelinha azul (a caneta-tinteiro que grudava no papel, a exclamao de fastio de mame) e ento algumas reflexes melanclicas sobre o quanto ela ficaria sozinha se Nico tambm fosse para a Europa como parecia, mas esse era o destino dos velhos, os filhos so como andorinhas que um belo dia vo embora, h que se ter resignao enquanto o corpo agentar. A vizinha do lado... Algum esbarrou em Luis, soltou-lhe uma rpida declarao de direitos e obrigaes com sotaque de Marselha. Compreendeu vagamente que estava atrapalhando a passagem das pessoas que entravam pelo estreito corredor do metr. O resto do dia foi igualmente vago, telefonou a Laura para dizer que no iria almoar, passou duas horas num banco de jardim relendo a carta de mame, perguntando-se o que deveria fazer diante da insanidade. Falar com Laura, antes de qualquer outra coisa. Por que (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) continuar ocultando de Laura o que aconteceu? No podia mais fingir que esta carta tinha se extraviado como a outra, no podia mais acreditar que mame havia se enganado e escrito Nico em vez de Vctor, e que era to penoso que estivesse ficando gag. Definitivamente, essas cartas eram

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    Laura, eram o que ia acabar acontecendo com Laura. Nem mesmo isso: o que havia acontecido desde o dia de seu casamento, a lua-de-mel em Adrogu, as noites em que haviam se desejado desesperadamente no navio que os levava para a Frana. Tudo era Laura, tudo ia ser Laura, agora que Nico queria vir para a Europa no delrio de mame. Cmplices como sempre, mame estava falando de Nico para Laura, estava anunciando para Laura que Nico viria para a Europa, e dizia desse jeito, Europa e ponto, sabendo muito bem que Laura compreenderia que Nico ia desembarcar na Frana, em Paris, numa casa na qual se fingia delicadamente t-lo esquecido, coitadinho. Fez duas coisas; escreveu ao tio Emlio indicando os sintomas que o inquietavam e pedindo que visitasse mame imediatamente, para certificar-se e tomar as medidas que o caso pedia. Bebeu um conhaque atrs do outro e andou a p at a casa para pensar no caminho no que deveria dizer a Laura, porque afinal de contas tinha que falar com ela e informar o que estava acontecendo. De rua em rua foi sentindo o quanto lhe custava situar-se no presente, no que teria que ocorrer meia hora mais tarde. A carta de mame o enfiava, o afogava na realidade daqueles dois anos de vida em Paris, a mentira de uma paz fraudulenta, de uma felicidade da porta para fora, sustentada por diverses e espetculos, de um pacto involuntrio de silncio no qual os dois se desuniam pouco a pouco, como em todos os pactos negativos. Sim, mame, sim, pobre Boby sarnento, mame. Pobre Boby, pobre Luis, quanta sarna, mame. Um baile do clube de Flores, mame, fui porque ele insistia, imagino que queria cortejar a sua conquista Coitado do Nico, mame, com aquela tosse seca na qual ningum ainda acreditava, com aquele terno de xadrez, aquele penteado de brilhantina, aquelas gravatas de rayon to cafoninhas E eu conversava um pouco, simptico, e como no vou danar essa msica com a noiva do meu irmo, oh, dizer noiva exagerar, Luis, suponho que posso chamar voc de Luis, no ? Mas sim, acho estranho que Nico ainda no tenha levado voc l em casa, mame vai gostar muito Esse Nico to desajeitado, aposto que ainda nem falou com seu pai Tmido, sim, sempre foi desse jeito. Como eu. Do que est rindo, no acredita? que no sou o que pareo. Est um calor, no est? Srio mesmo, voc tem que ir l em casa, mame vai adorar. Ns trs moramos sozinhos, com os cachorros. Mas, Nico, uma vergonha, voc escondeu essa moa, malandro. Com a gente assim, Laura A gente diz cada coisa um para o outro... Agora, com licena, vou danar esse tango com essa senhorita. To pouca coisa, to fcil, to verdadeiramente brilhantina e gravata de rayon. Ela tinha rompido com Nico por engano, por cegueira, porque o irmo rato tinha sido capaz de vencer num arrebatamento e virar sua cabea. Nico no joga tnis, qual o que, ningum o arranca do xadrez e da filatelia, faa-me o favor. Calado, o coitado um pouca-coisa, Nico estava ficando para trs, perdido num canto do jardim, consolando-se com o xarope expectorante e o chimarro amargo Quando caiu de cama e ordenaram repouso absoluto, coincidiu justamente com um baile no Gimnasio Esgrima de Villa del Parque Eu no perderia uma coisa dessas, ainda mais que Edgardo Donato ia tocar e a coisa prometia. Mame achava que estava tudo bem que ele levasse Laura para passear, gostava dela como uma filha desde a tarde em que aparecera na sua casa pela primeira vez. Veja l, mame, o garoto est meio fraco e capaz de ficar imaginando bobagens, se for pensar nisso Quem est doente como ele imagina cada coisa, na certa vai achar que estou me engraando com Laura. E melhor ele no saber que ns vamos ao Gimnasia Mas no disse isso a mame, ningum l em casa nunca ficou sabendo que Laura e eu estvamos saindo juntos At que o doente melhorasse, claro E assim passou o tempo, os bailes, dois ou trs bailes, as radiografias de Nico, depois o automvel de

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    Ramos, o tampinha, a noite de farra na casa da Beba, as bebidas, o passeio de carro at a ponte do arroio, uma lua, essa luta como uma janela de hotel l no alto, e Laura no carro dizendo que no, um pouco de pilequinho, as mos hbeis, os beijos, os gritos afogados, a manta de vicunha, a volta em silncio, o sorriso de perdo. O sorriso era quase o mesmo quando Laura abriu a porta para ele. Havia carne assada, salada, um pudim s dez vieram os vizinhos que eram seus companheiros de canastra. Tarde da noite, enquanto se preparavam para dormir, Lus tirou a carta do bolso e colocou-a no criado-mudo. - No falei nada antes, porque no queria deixar voc aflita Mas parece que mame... Deitado, de costas para ela, esperou. Laura guardou a carta no envelope, apagou o abajur. Sentiu-a contra ele, no exatamente contra, mas a ouvia respirar perto de sua orelha. - Voc est vendo? - disse Lus, falando com cuidado. - Estou. Voc no acha que ela se enganou de nome? Tinha de ser. Peo quatro rei; peo quatro rei. Perfeito. - Vai ver, quis dizer Vctor - disse, enterrando lentamente as unhas na palma da mo. - Ah, claro. Deve ser isso - disse Laura. Cavalo rei trs bispo. Comearam a fingir que dormiam. Laura aprovara a idia de que tio Emlio fosse o nico a ficar sabendo, e os dias passaram sem que tornassem a falar no assunto. Sempre que voltava para casa, Luis esperava uma frase ou um gesto inslito de Laura, um claro naquela guarda perfeita de calma e de silncio. Iam ao cinema como sempre, faziam amor como sempre. Para Luis j no existia em Laura outro mistrio alm de sua resignada adeso a essa vida na qual nada havia chegado a ser o que poderiam esperar dois anos antes. Agora a conhecia bem, na hora das confrontaes definitivas tinha de admitir que Laura era como havia sido Nico, das que ficam para trs e s atuam por inrcia, embora empregasse s vezes uma vontade enorme em no fazer nada, em no viver de verdade para nada. Teria se entendido muito melhor com Nico do que com ele, e os dois sabiam disso desde o dia de seu casamento, desde as primeiras posies assumidas que se seguem morna aquiescncia da lua-de-mel e do desejo. Agora Laura voltava a ter o pesadelo. Sonhava muito, mas o pesadelo era diferente, Luis o reconhecia entre os muitos movimentos de seu corpo, palavras confusas ou breves gritos de animal que se afoga. Tinha comeado a bordo, quando ainda falavam de Nico porque Nico tinha acabado de morrer e eles haviam embarcado poucas semanas depois. Certa noite, depois de recordar Nico, e quando se insinuava o tcito silncio que logo se instalaria entre eles, Laura tivera o pesadelo. Se repetia de tempos em tempos e era sempre o mesmo, Laura despertava com um gemido rouco, um sacudir convulso das pernas, e de repente o grito que era uma negao total, uma rejeio com as duas mos e todo o corpo e toda a voz, de algo horrvel que caa sobre seu sono como um enorme pedao de matria pegajosa. Ele a sacudia, a acalmava, trazia gua que ela bebia soluando, acossada ainda pelo outro lado de sua vida. Dizia no lembrar de nada, era algo horrvel que no conseguia explicar, e acabava adormecendo levando seu segredo, porque Luis sabia que ela sabia, que acabava de se

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    enfrentar com aquele que entrava em seu sonho, sabe-se l debaixo de que mscara horrenda, e cujos joelhos Laura abraaria numa vertigem de espanto, talvez de amor intil. Era sempre a mesma coisa, oferecia a ela um copo dgua, esperando em silncio que Laura tornasse a apoiar a cabea no travesseiro. Talvez um dia o espanto fosse mais forte que o orgulho, se que aquilo era orgulho. Talvez ento ele pudesse lutar ao seu lado. Talvez nem tudo estivesse perdido, talvez a nova vida chegasse a ser realmente outra coisa alm daquele simulacro de sorrisos e cinema francs. Diante da mesa de desenho, rodeado de pessoas indiferentes, Luis recobrava o sentido da simetria e do mtodo que gostava de aplicar vida. J que Laura no tocava no assunto, esperando com aparente indiferena a resposta de tio Emlio, cabia a ele entender-se com mame. Respondeu sua carta limitando-se s notcias insignificantes das ltimas semanas, e deixou para o post-scriptum uma frase de correo: "Ento, Vctor fala em vir para a Europa. Todo mundo acaba viajando, deve ser por causa da propaganda das agncias de viagens. Diga a ele que escreva, podemos mandar informaes teis. Diga tambm que pode contar com a nossa casa." Tio Emlio respondeu depressa, secamente como era prprio de um parente to prximo e to ressentido pelo que no velrio de Nico havia qualificado de inqualificvel. Sem ter-se aborrecido pessoalmente com Luis, havia demonstrado seus sentimentos com a sutileza habitual em casos parecidos, esquecendo por dois anos seguidos o dia de seu aniversrio. Agora se limitava a cumprir com seu dever de cunhado de mame, e mandava secamente os resultados. Mame estava muito bem mas quase no falava, coisa compreensvel levando-se em conta os muitos desgostos dos ltimos tempos. Dava para se notar que estava muito solitria na casa de Flores, o que era lgico uma vez que nenhuma me que viveu a vida toda com seus dois filhos pode sentir-se vontade numa casa enorme e cheia de recordaes. Quanto s frases em questo, tio Emlio havia procedido com o tato que a delicadeza do assunto requeria, mas lamentava informar que no conseguira descobrir grande coisa porque mame no estava disposta a muita conversa e inclusive o havia recebido na sala de visitas, coisa que nunca fazia com o cunhado. A uma insinuao de carter teraputico, havia respondido que tirando o reumatismo sentia-se perfeitamente bem, embora naqueles dias estivesse cansada por ter de passar tantas camisas. Tio Emlio tentara saber de que camisas se tratava, mas ela se limitara a uma inclinao de cabea e a um oferecimento de xerez e bolachinhas Bagley. Mame no lhes deu tempo suficiente para discutir a carta de tio Emilio e sua manifesta ineficincia. Quatro dias mais tarde chegou uma carta registrada, embora mame soubesse de sobra que no h necessidade de mandar cartas registradas a Paris. Laura telefonou para Lus e pediu-lhe que fosse o mais rpido possvel. Meia hora mais tarde encontrou-a respirando pesado, perdida na contemplao de umas flores amarelas sobre a mesa. A carta estava na lareira, e Lus tornou a deix-la onde estava depois da leitura. Foi sentar-se ao lado de Laura, esperou. Ela sacudiu os ombros. - Ficou louca - disse. Lus acendeu um cigarro A fumaa fez com que ele chorasse. Compreendeu que o jogo continuava, que era a sua vez de mover as peas. Mas esse jogo estava sendo disputado por trs jogadores, talvez quatro Agora tinha a certeza de que mame tambm estava na frente do tabuleiro. Pouco a pouco deslizou pelo sof, e deixou que seu rosto vestisse a

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    intil mscara das mos unidas. Ouvia Laura chorar, e l embaixo os meninos da zeladora corriam aos gritos. A noite a melhor conselheira, etctera. E trouxe a eles um sono pesado e silencioso, depois que os corpos se encontraram numa batalha montona que, no fundo, no haviam desejado. Uma vez mais fechava-se o acordo tcito: pela manh falariam do tempo, do crime de Saint-Cloud, de James Dean. A carta continuava sobre a lareira e enquanto bebiam ch no puderam deixar de v-la, mas Luis sabia que ao voltar do trabalho j no a encontraria. Laura apagava as pegadas com sua fria e eficaz diligncia. Um dia, outro dia, outro dia mais. Uma noite riram muito com as histrias dos vizinhos, com um programa de Femandel. Falou-se de ir ver uma pea de teatro, de passar um fim de semana em Fontainebleau. Sobre a mesa de desenho acumulavam-se dados desnecessrios, tudo coincidia com a carta de mame. O navio chegava efetivamente a Le Havre na sexta-feira, dia 17, pela manh, e o trem especial entrava em Saint-Lazare s 11:45h. Na quinta-feira viram a pea de teatro e se divertiram muito. Duas noites antes, Laura havia tido outro pesadelo, mas ele nem se incomodou de trazer-lhe gua, e deixou que ela se tranquilizasse sozinha, dando-lhe as costas. Depois Laura dormiu em paz, de dia andava ocupada cortando e costurando um vestido de vero. Falaram de comprar uma mquina de costura eltrica quando terminassem de pagar a geladeira. Luis encontrou a carta de mame na gaveta do criado-mudo e levou-a para o escritrio. Telefonou para a companhia de navegao, embora tivesse certeza de que mame dava as datas corretas. Era sua nica segurana, porque no resto no dava nem para pensar. E aquele imbecil do tio Emilio. O melhor seria escrever a Matilde, por mais afastados que estivessem, Matilde compreenderia a urgncia de intervir, de proteger mame. Mas realmente (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) era necessrio proteger mame, justamente mame? Por um momento pensou em pedir uma ligao internacional e falar com ela. Lembrou-se do xerez e das bolachinhas Bagley, deu de ombros. Tampouco havia tempo de escrever para Matilde, e embora na verdade houvesse tempo, talvez fosse prefervel esperar pela sexta-feira, dia 17, antes de... O conhaque no ajudava mais nem mesmo a no pensar, ou pelo menos a pensar sem sentir medo. Lembrava-se cada vez com mais clareza da cara de mame nas ltimas semanas de Buenos Aires, depois do enterro de Nico. O que ele havia entendido como sendo dor surgia agora como outra coisa, algo em que havia uma desconfiana rancorosa, uma expresso de animal que sente que vai ser abandonado num terreno baldio longe da casa, para se desfazer dele. Agora comeava a ver de verdade a cara de mame. S agora a via de verdade naqueles dias em que toda a famlia fazia rodzio para visit-la, dar os psames por Nico, acompanh-la de tarde, e tambm Laura e ele vinham de Adrogu para fazer companhia, estar com mame. Ficavam apenas um pouco porque depois aparecia tio Emilio, ou Vctor, ou Matilde, e todos eram uma mesma repulsa fria, a famlia indignada pelo que tinha acontecido, por Adrogu, porque eram felizes enquanto Nico, coitadinho, enquanto Nico. Jamais suspeitariam at que ponto haviam colaborado para embarc-los no primeiro navio que estava mo; como se houvessem se associado para pagar-lhes as passagens, lev-los carinhosamente a bordo com presentes e lenos de adeus. Claro que seu dever de filho obrigava-o a escrever em seguida para Matilde. Ainda era capaz de pensar coisas assim antes do quarto conhaque. No quinto pensava de novo e ria (atravessava Paris a p para estar mais sozinho e desanuviar a cabea), ria de seu dever de filho, como se os filhos tivessem deveres, como se fossem deveres da quarta

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    srie, os sagrados deveres para a sagrada professora do imundo quarto ano. Porque seu dever de filho no era escrever a Matilde. Para que fingir (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) que mame estava louca? A'nica coisa que podia ser feita era no fazer nada, deixar que se passassem os dias, menos a sexta-feira. Quando se despediu como sempre de Laura dizendo-lhe que no viria almoar porque tinha de terminar uns cartazes com urgncia, sentia tanta certeza do resto que poderia ter acrescentado: "Se voc quiser, vamos juntos." Refugiou-se no caf da estao, menos para disfarar que para poder ter a pobre vantagem de ver sem ser visto. As 11:35h descobriu Laura por sua saia azul, seguiu-a distncia, viu-a olhar o quadro de horrios e consultar um funcionrio, comprar um passe para a plataforma, entrar e juntar-se s pessoas com o ar dos que esperam. Atrs de uma empilhadeira carregada de caixas de frutas olhava Laura que parecia duvidar entre ficar perto da sada da plataforma ou continuar por ela. Olhava-a sem surpresa, como se fosse um inseto cujo comportamento pudesse ser interessante. O trem chegou quase em seguida e Laura misturou-se com as pessoas que se aproximavam das janelas dos vages buscando cada uma o seu, entre gritos e mos que apareciam como se dentro do trem todos estivessem se afogando. Deu a volta na empilhadeira e entrou na plataforma no meio de mais caixas de frutas e manchas de leo. De onde estava veria os passageiros saindo, veria Laura passar outra vez, seu rosto cheio de alvio porque o rosto de Laura, no estaria cheio de alvio? (No era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) E depois, dando-se ao luxo de ser o ltimo uma vez que passassem os ltimos viajantes e os ltimos carregadores, ento seria sua vez de sair, desceria praa cheia de sol para beber um conhaque no caf da esquina. E naquela mesma tarde escreveria a mame sem a menor referncia ao ridculo episdio (mas no era ridculo) e depois teria coragem e falaria com Laura (mas no teria coragem e no falaria com Laura). De qualquer maneira, conhaque, sem a menor dvida, e que tudo mais fosse para o inferno. V-los passar assim em cachos, abraando-se com gritos e lgrimas, a parentada desunida, um'erotismo barato como um carrossel de parque de diverses varrendo a plataforma, entre malas e pacotes e finalmente, finalmente, quanto tempo, como voc est queimada, Ivette, mas sim, havia um tremendo sol, filha. Decidido a buscar semelhanas, por prazer ou para se aliar imbecilidade, dois dos homens que passavam perto deviam ser argentinos pelo corte de cabelo, pelos palets, pelo ar de segurana disfarando o atordoamento de entrar em Paris. Um, principalmente, se parecia com Nico, para buscar semelhanas. O outro no, e na realidade nem aquele, bastava ver seu pescoo muito mais grosso e a cintura muito mais larga. Para buscar semelhanas por puro prazer, esse outro que j havia passado e avanava na direo da sada, com uma s maleta na mo esquerda, Nico era canhoto como ele, tinha as costas um pouco largas, essa forma de ombros. E Laura devia ter pensado a mesma coisa porque vinha atrs olhando para ele, no rosto uma expresso que ele conhecia bem, o rosto de Laura quando despertava do pesadelo e erguia-se na cama olhando fixamente o ar, olhando, agora sabia, olhando aquele que se afastava dando-lhe as costas, consumada a indescritvel vingana que a fazia gritar e debater-se nos sonhos. Buscando semelhanas, naturalmente o homem era um desconhecido, viram-no de frente quando ps a maleta no cho para pegar a passagem e entreg-la na sada. Laura saiu primeiro da estao, deixou que ela tomasse distncia e se perdesse na parada do nibus. Entrou no caf da esquina e se jogou em cima de um banquinho no balco. Mais tarde no lembrava se havia pedido alguma coisa para beber, se isso que queimava sua boca era o gosto do conhaque barato. Trabalhou a tarde toda nos cartazes, sem nenhum descanso. A cada momento pensava que teria de escrever a mame, mas foi deixando

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    passar at a hora da sada. Atravessou Paris a p, ao chegar em casa encontrou a zeladora no saguo e ficou um tempinho conversando com ela Gostaria de poder ficar conversando com a zeladora ou com os vizinhos, mas todos iam entrando nos apartamentos e a hora do jantar estava chegando. Subiu devagar (na verdade sempre subia devagar para no cansar os pulmes e no tossir) e ao chegar ao terceiro andar apoiou-se na porta antes de tocar a campainha, descansando um momento na atitude de quem escuta o que acontece no interior de uma casa. Depois chamou com os dois toques curtos de sempre. - Ah, voc - disse Laura, oferecendo-lhe uma face fria. J comeava a me perguntar se voc ia ficar at mais tarde. A carne deve estar mais do que cozida. No estava mais do que cozida, porm no tinha gosto de nada. Se naquele momento tivesse sido capaz de perguntar a Laura por que havia ido estao, talvez o caf tivesse recobrado o sabor, ou o cigarro. Mas Laura no saiu de casa o dia inteiro, disse isso como se necessitasse mentir ou esperasse que ele fizesse um comentrio irnico sobre a data, as manias lamentveis de mame. Mexendo o caf, com os cotovelos sobre a toalha, deixou passar o momento outra vez. A mentira de Laura j no importava, era mais uma entre tantos beijos indiferentes, tantos silncios onde tudo era Nico, onde no havia nada nela ou nele que no fosse Nico. Por que (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) no servir a mesa para trs? Por que no ir embora, por que no fechar a mo e explodi-la contra esse rosto triste e sofrido que a fumaa do cigarro deformava, fazia ir e vir como entre duas guas, parecia encher pouco a pouco de dio como se fosse o prprio rosto de mame? Talvez estivesse no outro cmodo, ou talvez esperasse apoiado na porta como ele havia esperado, ou j se havia instalado onde sempre havia sido o amo, no territrio branco e morno dos lenis onde tantas vezes havia acudido nos sonhos de Laura. Ali esperaria, deitado de costas, fumando tambm um cigarro, tossindo um pouco, rindo com uma cara de palhao como a cara dos ltimos dias, quando j no lhe sobrava nenhuma gota de sangue sadio nas veias. Passou para o outro quarto, foi at a mesa de trabalho, acendeu o abajur. No precisava reler a carta de mame para responder como devia. Comeou a escrever, querida mame. Escreveu: querida mame. Jogou o papel fora, escreveu: querida mame. Sentia a casa como uma mo que estivesse se fechando sobre ele. Tudo era mais estreito, mais sufocante. O apartamento era suficiente para dois, estava planejado exatamente para dois. Quando levantou os olhos (acabara de escrever: mame), Laura estava na porta, olhando para ele. Luis soltou a caneta. - Voc no achou que ele est muito mais magro? - perguntou. Laura fez um gesto. Um brilho paralelo descia por suas faces. - Um pouco - disse ela. - A gente vai mudando...

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    As armas secretas curioso as pessoas acharem que arrumar uma cama exatamente a mesma coisa que arrumar uma cama, que estender a mo sempre a mesma coisa que estender a mo, que abrir uma lata de sardinhas abrir at o infinito a mesma lata de sardinhas. "Tudo excepcional", pensa Pierre alisando de modo desajeitado o cobertor azul gasto. "Ontem chovia, hoje teve sol, ontem eu estava triste, hoje Michle vir. A nica coisa invarivel que jamais conseguirei que esta cama tenha um aspecto apresentvel." No faz mal, as mulheres gostam da desordem do seu quarto de solteiro, podem sorrir (a me aparece em todos os dentes) e arrumar as cortinas, mudar de lugar um vaso ou uma cadeira, dizer s mesmo voc poderia ter a idia de botar esta mesa onde no h luz. Michle dir provavelmente coisas assim, andar tocando e movendo livros e abajures, e ele a deixar olhando-a o tempo todo, esticado na cama ou afundado no velho sof, olhando-a atravs da fumaa de um Gauloise e desejando-a. "Seis da tarde, a hora grave", pensa Pierre. A hora dourada em que o bairro inteiro de Saint-Sulpice comea a mudar, a preparar-se para a noite. Logo as moas estaro saindo no cartrio do tabelio, o marido de madame Lentre arrastar sua perna pela escada, se ouviro as vozes das irms do sexto andar, inseparveis na hora de comprar o po e o jornal. Michle no pode demorar mais, a no ser que se perca ou se atrase pela rua, com sua especial aptido para deter-se em qualquer lugar e comear a viajar pelos pequenos mundos particulares das vitrines. Depois, contar: um urso de corda, um disco de Couperin, uma corrente de bronze com uma pedra azul, as obras completas de Stendhal, a moda de vero. Razes to compreensveis para chegar um pouco tarde. Outro Gauloise, outro gole de conhaque. Sente vontade de escutar algumas canes de MacOrlan, busca sem muito esforo entre montes de papis e cadernos. Na certa Roland ou Babette levaram o disco; bem que podiam avisar, quando levassem alguma das suas coisas. E por que Michle no chega? Senta-se na beira da cama, amassando o cobertor. Pronto, agora vai ter de esticar de um lado e do outro, reaparecer a maldita ponta do travesseiro. H um terrvel cheiro de cigarro, Michle franzir o nariz e dir que h um terrvel cheiro de cigarro. Centenas e centenas de Gauloises fumados em centenas e centenas de dias: uma tese, algumas amigas, duas crises hepticas, livros, aborrecimento. Centenas e centenas de Gauloises? Sempre o surpreende descobrir-se propenso ao nmio, dando importncia a detalhes. Lembra-se de velhas gravatas jogadas no lixo h dez anos, da cor de um selo do Congo Belga, orgulho de sua infncia filatlica. Como se no fundo da memria soubesse exatamente quantos cigarros fumou na vida, qual o gosto de cada um, em que momento o acendeu, onde jogou o toco fumado. Vai ver, as cifras absurdas que s vezes aparecem em seus sonhos so mostras dessa implacvel contabilidade. "Mas ento, Deus existe", pensa Pierre. O espelho do armrio devolve-lhe o sorriso, obrigando-o como sempre a recompor o rosto, jogar para trs a mecha de cabelo negro que Michle ameaa cortar. Por que Michle no chega? "Porque no quer entrar no meu quarto", pensa Pierre. Mas para poder um dia cortar a mecha da fronte ela ter que entrar em seu quarto e se deitar em sua cama. Alto preo paga Dalila, no se chega assim toa ao cabelo de um homem. Pierre diz a si mesmo que um idiota por haver pensado que Michle no quer subir ao seu quarto. Pensou-o em silncio, como que de longe. s vezes o pensamento parece ter que abrir caminho por incontveis barreiras, at se anunciar e ser ouvido. estpido pensar que Michle no quer subir ao seu quarto. Se no chega porque est absorta diante de uma vitrine de uma loja de ferragens ou de qualquer coisa, encantada com a viso de uma pequena foca de porcelana ou uma litografia de Zao-Wu-Ki. Parece v-la, e ao mesmo tempo percebe que

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    est imaginando uma carabina de cano duplo, justamente quando traga a fumaa do cigarro e sente-se perdoado por sua bobagem. Uma carabina de cano duplo no tem nada de mais, mas o que pode fazer a esta hora e no seu quarto a idia de uma carabina de cano duplo, e essa sensao de saudade? No gosta dessa hora em que tudo se vira para o lils, para o cinza. Estira indolentemente o brao para acender o abajur da mesa. Por que Michle no vem? No vir mais, intil continuar esperando. Ser- preciso pensar que realmente no quer vir ao seu quarto. Enfim, enfim. Nada de olhar pelo lado trgico; outro conhaque, o livro comeado, descer para comer alguma coisa no bistr de Len. As mulheres so sempre as mesmas, em Enghien ou em Paris, jovens ou maduras. Sua teoria dos casos excepcionais comea a desmoronar, a ratinha retrocede antes de entrar na ratoeira. Mas qual ratoeira? Um dia ou outro, antes ou depois... Est esperando por ela desde as cinco, embora sua chegada fosse prevista para as seis; alisou, especialmente para ela, o cobertor azul, subiu como um idiota numa poltrona, espanador na mo, para soltar uma insignificante teia de aranha que no fazia mal a ningum. E seria to natural que naquele mesmo momento ela descesse do nibus em Saint-Sulpice e se aproximasse da sua casa, parando diante das vitrines ou olhando as pombas na praa. No h nenhuma razo para que no queira subir at o seu quarto. Claro que tampouco no h nenhuma razo para pensar numa carabina de cano duplo, ou decidir que neste momento Michaux, seria melhor leitura que Graham Greene. A escolha instantnea sempre deixa Pierre preocupado. No pode ser que tudo seja gratuito, que um mero acaso decida Greene contra Michaux, Michaux contra Enghien, ou seja, contra Greene. Inclusive confundir uma localidade como Enghien com um escritor como Greene... "No pode ser que tudo seja to absurdo", pensa Pierre jogando o cigarro longe. "E se no vem porque aconteceu alguma coisa; no tem nada a ver com ns dois." Desce at a rua, espera na porta. V as luzes na praa se acenderem. No bistr de Len no h quase ningum quando se senta numa mesa da rua e pede uma cerveja. De onde est pode ver a entrada da casa, portanto... Len fala da Volta da Frana; chegam Nicole e sua amiga, a florista de voz rouca. A cerveja est gelada, o caso de pedir algumas salsichas. Na entrada de sua casa o garoto da zeladora brinca saltando sobre uma perna s. Quando se cansa comea a saltar sobre a outra, sem se mover da porta. - Que bobagem - diz Michle. - Por que no iria querer ir sua casa, se havamos combinado? Edmond traz o caf das onze da manh. No h quase ningum a essa hora, e Edmond demora ao lado da mesa para comentar a Volta da Frana. Depois Michle explica o presumvel, o que Pierre deveria ter pensado. Os freqentes desvanecimentos de sua me, papai que se assusta e telefona para o escritrio, correr atrs de um txi para que no final no seja nada, uma tontura insignificante. No a primeira vez que tudo isso acontece, s mesmo Pierre para... - Fico feliz de saber que ela j est bem - diz Pierre tolamente. Pe uma mo sobre a mo de Michle. Michle pe sua outra mo sobre a de Pierre. Pierre pe sua outra mo sobre a de Michle. Michle tira a mo de baixo e a coloca em cima. Pierre tira a mo de baixo e a coloca em cima. Michle tira a mo de baixo e apoia a palma contra o nariz de Pierre.

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    - Frio como o de um cachorrinho. Pierre admite que a temperatura de seu nariz um enigma insondvel. - Bobo - diz Michle, resumindo a situao. Pierre beija sua testa, por cima do cabelo. Como ela baixa a cabea, pega seu queixo e a obriga a olh-lo antes de beij-la na boca. Beija uma, duas vezes. H o cheiro de alguma coisa fresca, de sombra debaixo das rvores. "Im wunderschonen Monat Mai", ouve claramente a melodia. Admira-se vagamente de recordar to bem a letra, que s quando traduzida tem sentido para ele. Mas gosta da melodia, as palavras soam to bem contra o cabelo de Michle, contra sua boca mida, "Im wunderschonen Monat Mai, ais...'" A mo de Michle afunda em seu ombro, crava as unhas. - Voc me machuca - diz Michle rejeitando-o, passando os dedos pelos lbios. Pierre v a marca de seus dentes na beira dos lbios. Acaricia a face de Michle e beija-a outra vez, levemente. Michle est zangada. No, no est. Quando, quando, quando vo se encontrar a ss? Para ele, difcil compreender, as explicaes de Michle parecem se referir a outra coisa. Obstinado com a idia de v-la chegar algum dia sua casa, de que vai subir os cinco andares e entrar em seu quarto, no entende que tudo se clareia de repente, que os pais de Michle vo para o stio por 15 dias. Deixa eles, melhor, porque ento Michle... De repente percebe, fica olhando para ela. Michle ri. - Voc vai ficar sozinha em casa esses quinze dias? - Como voc bobo - diz Michle. Estende um dedo e desenha invisveis estrelas, rombos, suaves espirais. Claro que sua me conta com que a fiel Babette a acompanhe essas duas semanas, houve tantos roubos e assaltos nos subrbios. Mas Babette ficar em Paris o tempo que eles quiserem. Pierre no conhece a casa, embora a tenha imaginado tantas vezes que como se j estivesse nela, entra com Michle num salozinho atopetado de mveis vetustos, sobe uma escada depois de roar com os dedos a bola de vidro onde nasce o corrimo. No sabe por que a casa o desagrada, tem vontade de sair para o jardim embora custe a acreditar que uma casa to pequena possa ter um jardim. Solta-se da imagem com esforo, descobre que feliz, que est no caf com Michle, que a casa ser diferente disso que imagina e o sufoca um pouco com seus mveis e seus tapetes desbotados. "Tenho de pedir a motocicleta ao Xavier", pensa Pierre. Vir esperar Michle e em meia hora estaro em Clamart, tero dois fins de semana para fazer excurses, ser preciso conseguir uma garrafa trmica e comprar nescaf. - Existe uma bola de vidro na escada da sua casa? - No - diz Michle. - Voc est confundindo com... Cala-se, como se alguma coisa incomodasse sua garganta. Afundado no banquinho, a cabea apoiada no alto espelho com o qual Edmond pretende multiplicar as mesas do caf, Pierre admite vagamente que Michle como uma gata ou um retrato annimo. Faz to pouco tempo que a conhece, talvez para ela tambm seja difcil entend-lo. Claro que

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    amar no nunca uma explicao, como no nenhuma explicao ter amigos em comum ou compartilhar opinies polticas. Comea-se sempre por acreditar que no existe mistrio em ningum, to fcil acumular informaes: Michle Duvernois, 24 anos, cabelo castanho, olhos cinza, funcionria em um escritrio. E ela tambm sabe que Pierre Jovilet, 23 anos, cabelo louro... Mas amanh ir com ela casa dela, em meia hora de viagem estaro em Enghien. "Chega de Enghien", pensa Pierre, espantando o nome como se fosse uma mosca. Tero 15 dias para estarem juntos, e na casa existe um jardim, provavelmente to diferente do que ele imagina, mas Michle est chamando Edmond, so mais de onze e meia e o gerente franzir o nariz se a vir atrasada. - Fica um pouco mais - diz Pierre. - Roland e Babette esto vindo a. incrvel como nunca podemos ficar sozinhos neste caf. - Sozinhos? - diz Michle. - Mas se viemos para encontrlos... - Eu sei, mas d no mesmo. Michle sacode os ombros, e Pierre sabe que o compreende e que no fundo tambm lamenta que os amigos apaream to pontualmente. Babette e Roland trazem seu ar habitual de plcida felicidade que dessa vez o irrita e o impacienta. Esto do outro lado, protegidos pelo quebra-mar do tempo; suas cleras e insatisfaes pertencem ao mundo, poltica ou arte, nunca a eles mesmos, a sua relao mais profunda. Salvos pelo costume, pelos gestos mecnicos. Tudo isolado, passado a ferro, guardado, numerado. Porquinhos satisfeitos, pobres coitados to bons amigos. Est a ponto de apertar a mo que Roland estende, engole saliva, olha-o nos olhos, depois aperta-lhe os dedos como se quisesse quebr-los. Roland ri e senta-se na frente deles; traz notcias de um cineclube, preciso ir segunda-feira sem falta. "Porquinhos satisfeitos", mastiga Pierre. idiota, injusto. Mas um filme de Pudovkin, tenha a santa pacincia, j hora de procurar alguma coisa nova. - A coisa nova - debocha Babette. - O novo. Como voc est velho, Pierre. Nenhuma razo para no querer apertar a mo de Roland. - E tinha vestido uma blusa cor de laranja, que ficava to bem - conta Michle. Roland oferece Gauloises e pede caf. Nenhuma razo para no querer apertar a mo de Roland. - Sim, uma menina inteligente - diz Babette. Roland olha para Pierre e pisca um olho. Tranqilo, sem problemas. Absolutamente sem problemas, porquinho tranqilo. Essa tranqilidade d nojo em Pierre, essa coisa de Michle estar falando de uma blusa cor de laranja, to longe dele como sempre. No tem nada a ver com eles, entrou no grupo por ltimo, mal e mal o toleram. Enquanto fala (agora questo de uns sapatos), Michle passa um dedo pela beira do prprio lbio. Nem ao menos capaz de beij-la bem, machucou-a e Michle se lembra. E todo mundo o machuca, piscam para ele, sorriem, gostam muito dele. como um peso

  • 18

    no peito, uma necessidade de ir embora e estar sozinho em seu quarto perguntando-se por que Michle no veio, por que Babette e Roland levaram um disco sem avisar a ele. Michle olha o relgio e se sobressalta. Combinam o cineclube, Pierre paga o caf. Sente-se melhor, gostaria de conversar um pouco mais com Roland e Babette, cumprimenta-os com afeto. Porquinhos bons, to amigos de Michle. Roland v os dois se afastarem, sarem rua sob o sol. Bebe seu caf devagar. - Eu me pergunto - diz Roland. - Eu tambm - diz Babette. - Afinal de contas, por que no? - Por que no, claro. Mas seria a primeira vez desde aquela. - J hora de Michle fazer alguma coisa da sua vida - diz Roland. - E se voc quiser saber minha opinio, est muito apaixonada. - Os dois esto muito apaixonados. Roland fica pensando. Marcou encontro com Xavier num caf da praa SaintMichel, mas chega cedo demais. Pede cerveja e d uma olhada no jornal; no se lembra bem do que fez desde que se separou de Michle na porta do escritrio. Os ltimos meses so to confusos como a manh que ainda no transcorreu e j uma mistura de falsas lembranas, de equvocos. Nessa vida distante que leva, a nica certeza haver estado o mais perto possvel de Michle, esperando e entendendo que no basta, isso s, no, que tudo vagamente assustador, que no sabe nada de Michle, na verdade absolutamente nada (tem olhos cinza, tem cinco dedos em cada mo, solteira, penteia-se como uma menininha), na verdade absolutamente nada. Ento, se ele no sabe nada de Michle, basta deixar de v-la um momento para que o vazio se faa um emaranhado espesso e amargo; ela tem medo de voc, tem nojo, s vezes rejeita voc no mais profundo de um beijo, no quer ir para a cama com voc, tem horror de alguma coisa, hoje mesmo, de manh, rejeitou voc com violncia (e como estava linda, e como se grudou em voc no momento de se despedir, e como preparou tudo para se reunir com voc amanh para irem juntos sua casa de Enghien?), e voc deixou a marca de seus dentes em sua boca, estava beijando-a e mordeu-a e ela se queixou, passou os dedos pela boca e queixou-se sem raiva, um pouco assustada e s, "a/5 alie Knospen sprangen"', voc cantava Schumann por dentro, pedao de animal, cantava enquanto a mordia na boca e agora se lembra, alm disso subia a escada, sim, voc subia, roava com a mo a bola de vidro onde nasce o corrimo, mas depois Michle disse que em sua casa no h nenhuma bola de vidro. Pierre desliza no banquinho, procura os cigarros. Afinal, Michle tambm no sabe muito a seu respeito, no nada curiosa embora tenha essa maneira atenta e sria de escutar as confidencias, essa aptido para compartilhar um momento de vida, qualquer coisa, um gato que sai da porta da garagem, uma tormenta na Cite, uma folha de trevo, um disco de Gerry Mulligan. Atenciosa, entusiasta e sria ao mesmo tempo, to igual para escutar e para fazer-se escutar. assim como de encontro em encontro, de conversa em conversa,

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    caram na solido do casal na multido, um pouco de poltica, livros, ir ao cinema, beijar-se cada vez mais profundamente, permitir que sua mo desa pela garganta, roce os seios, repita a interminvel pergunta sem resposta. Chove, preciso se refugiar numa marquise; o sol cai sobre a cabea, entraremos nessa livraria, amanh vou apresentar voc a Babette, uma velha amiga, voc vai gostar dela. E depois suceder que o amigo de Babette um antigo camarada de Xavier, que o melhor amigo de Pierre, e o crculo ir se fechando, s vezes em casa de Babette e Roland. s vezes no consultrio de Xavier ou nos cafs do bairro latino, de noite. Pierre agradecer, sem se explicar a causa de sua gratido, que Babette e Roland sejam to amigos de Michle e que dem a impresso de proteg-la discretamente, sem que Michle necessite ser protegida. Ningum fala muito dos outros nesse grupo; preferem os grandes temas, a poltica ou os processos, e principalmente olhar-se satisfeitos, trocar cigarros, sentar nos cafs e viver sentindo-se rodeados de amigos. Teve a sorte de ser aceito e que o deixem entrar; no so fceis, conhecem os mtodos mais seguros para desanimar os recm-chegados. "Gosto deles", se diz Pierre, bebendo o resto da cerveja. Talvez achem que j o amante de Michle, pelo menos Xavier acreditar nisso; no lhe entraria na cabea que Michle tenha conseguido se negar todo esse tempo, sem razes precisas, simplesmente negar-se e continuar se encontrando com ele, saindo juntos, deixando-o falar ou falando ela. At estranheza possvel se acostumar, crer que o mistrio se explica por si s e que a gente acaba vivendo dentro, aceitando o inaceitvel, despedindo-se nas esquinas ou nos cafs quando tudo seria to simples, uma escada com uma bola de vidro na ponta do corrimo que leva ao encontro, ao verdadeiro. Mas Michle disse que no h nenhuma bola de vidro. Alto e magro, Xavier traz sua cara dos dias de trabalho. Fala de umas experincias, da biologia como uma incitao ao ceticismo. Olha um dedo, manchado de amarelo. Pierre pergunta a ele: - J aconteceu de voc pensar de repente em coisas completamente alheias s que estava pensando? - Completamente alheias uma hiptese de trabalho e nada mais - diz Xavier. - Eu me sinto muito esquisito ultimamente. Voc devia me dar alguma coisa, uma espcie de objetivador. - Objetivador? - diz Xavier. - Isso no existe, meu velho. - Penso demais em mim mesmo - diz Pierre. - E idiota. - E Michle, no objetiva voc? - Pois justamente, ontem mesmo me aconteceu que... Ouve-se falar, v Xavier que o est vendo, v a imagem de Xavier no espelho, a nuca de Xavier, v a si mesmo falando para Xavier (mas por que tive de ter essa idia de que h uma bola de vidro na ponta do corrimo?), e de vez em quando assiste ao movimento de cabea de Xavier, o gesto profissional to ridculo quando no est no consultrio e o mdico no est vestindo o avental branco que o situa em outro plano e concede a ele outras potestades.

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    - Enghien - diz Xavier. - No se preocupe com isso, eu confundo sempre L Mans com Menton. A culpa deve ser de' alguma professora, l na infncia distante. "Im wunderschoren Monat Mo/", cantarola a memria de Pierre. - Se voc no dormir bem me avise, que darei alguma coisa diz Xavier. - Seja como for, esses quinze dias no paraso sero suficientes, tenho certeza. No h nada melhor que dividir um travesseiro, isso aclara completamente as idias; s vezes at acaba com elas, o que j uma tranqilidade. Talvez se trabalhasse mais, se se cansasse mais, se pintasse seu quarto ou fizesse a p o trajeto at a faculdade em vez de tomar o nibus. Se tivesse que ganhar os setenta mil francos que seus pais mandam. Apoiado no parapeito da Pont Neuf olha as barcaas passarem e sente o sol de vero no pescoo e nos ombros. Um grupo de moas ri e brinca, ouve-se o trote de um cavalo; um ciclista ruivo assovia longamente ao passar pelas moas, e como se as folhas secas se levantassem e comessem seu rosto numa nica e horrvel mordida negra. Pierre esfrega os olhos, lentamente endireita o corpo. No foram palavras, tampouco uma viso: algo entre as duas, uma imagem desordenada em tantas palavras como folhas secas no cho (que se levantou de encontro ao seu rosto). V que sua mo direita est tremendo contra o parapeito. Aperta os dedos fechados, luta at dominar o tremor. Xavier j estar longe, seria intil correr atrs dele, acrescentar uma nova histria ao mostrurio insensato. "Folhas secas", dir Xavier. "Mas no h folhas secas na Pont Neuf." Como se ele no soubesse que no h folhas secas na Pont Neuf, que as folhas secas esto em Enghien. Agora vou pensar em voc, querida, somente em voc, a noite toda. Vou pensar somente em voc, a nica maneira de me sentir, ter voc no centro de mim como uma rvore, soltar-me pouco a pouco do tronco que me mantm e me guia, flutuar ao seu redor cautelosamente, tateando o ar com cada folha (verdes, verdes, eu mesmo e voc mesma, tronco de seiva e folhas verdes: verdes, verdes), sem me afastar de voc, sem deixar que o resto penetre entre voc e eu, me distraia de voc, me prive por um nico segundo de saber que esta noite est girando para o amanhecer e que l do outro lado, onde voc mora e est dormindo, ser outra vez de noite quando chegarmos juntos e entrarmos na sua casa, subirmos os degraus do prtico, acendermos as luzes, acariciarmos o seu co, bebermos caf, nos olharmos tanto antes que eu abrace voc (ter voc no centro de mim como uma rvore) e leve voc at a escada (mas no h nenhuma bola de vidro) e comearmos a subir, a subir, a porta est fechada, mas tenho a chave no bolso... Pierre salta da cama, mete a cabea debaixo da torneira da pia. Pensar somente em voc, mas como pode ser que o que est pensando seja um desejo escuro e surdo onde Michle no mais Michle (ter voc dentro de mim como uma rvore), onde no consegue senti-la em seus braos enquanto sobe a escada, porque assim que pisou num degrau viu a bola de vidro e est sozinho, est subindo sozinho a escada e Michle est l em cima, trancada, est atrs da porta sem saber que ele tem outra chave no bolso e que est subindo.

  • 21

    Seca o rosto, abre as janelas para a fresca da madrugada. Um bbado monologa amistosamente na rua, balanando-se como se flutuasse numa gua pegajosa. Cantarola, vai e vem cumprindo uma espcie de dana suspensa e cerimoniosa no cinza que pouco a pouco morde as pedras do pavimento, os portais fechados. "Ais alie Knospen sprangen", as palavras se desenham nos lbios ressecados de Pierre, grudam-se no cantarolar l de baixo no tem nada a ver com a melodia, mas tampouco as palavras tm a ver com nada, vm como todo o resto, grudam-se vida por um momento e depois h como uma ansiedade rancorosa, buracos revirando-se para mostrar fiapos que se engancham em qualquer outra coisa, uma carabina de dois canos, um colcho de folhas secas, o bbado que dana compassadamente uma espcie de pavana, com reverncias que se abrem em farrapos e tropees e vagas palavras mastigadas. A moto ronroneia ao logo da rue d'Alsia. Pierre sente os dedos de Michle que apertam um pouco mais sua cintura toda vez que passam grudados a um nibus ou viram em uma esquina. Quando os sinais vermelhos os detm, ele inclina a cabea para trs e espera uma carcia, um beijo nos cabelos. - No tenho mais medo - diz Michle. - Voc dirige isto muito bem. Agora, temos de virar direita. A casa est perdida entre dzias de casas parecidas, numa colina um pouco alm de Clamart. Para Pierre a casa de Clamart soa como um refgio, a certeza de que tudo ser tranqilo e isolado, de que haver um jardim com cadeiras de palha e talvez, de noite, algum vaga-lume. - O seu jardim tem vaga-lumes? - Acho que no - diz Michle. - Voc tem cada idia... difcil falar na moto, o trfego obriga a se concentrar e Pierre est cansado, dormiu poucas horas pela manh. Ter que se lembrar de tomar os comprimidos que Xavier lhe deu, mas naturalmente no se lembrar de tom-los e, alm do mais, no vai precisar. Inclina a cabea para trs e resmunga porque Michle demora para beij-lo, Michle ri e passa a mo pelos cabelos dele. Sinal aberto. "Deixa de besteira", disse Xavier, evidentemente desconcertado. Claro que passar, dois comprimidos antes de dormir, um gole dgua. Como dormir Michle? - Michle, como que voc dorme? - Muito bem - diz Michle. - s vezes tenho pesadelos, como todo mundo. Claro como todo mundo, somente ao se despertar sabe que o sonho ficou para trs, sem se misturar com os rudos da rua, com as caras dos amigos, isso que se infiltra nas ocupaes mais inocentes (mas Xavier disse que com dois comprimidos estar tudo bem), dormir com o rosto afundado no travesseiro, as pernas um pouco encolhidas, respirando levemente, e ir v-la assim agora, vai t-la contra seu corpo, adormecida assim, ouvindo-a respirar, indefesa e nua quando ele acariciar seu cabelo com a mo, e o sinal amarelo, sinal vermelho, stop.

  • 22

    Freia com tanta violncia que Michle grita e depois fica muito quieta, como se tivesse vergonha de seu grito. Com um p apoiado no cho, Pierre gira a cabea, sorri para alguma coisa que no Michle e fica como que perdido no ar, sempre sorrindo. Sabe que o sinal vai passar para o verde, atrs da moto h um caminho e um automvel, sinal verde, algum toca a buzina, duas, trs vezes. - O que est acontecendo? - pergunta Michle. O sujeito do automvel xinga ao passar, e Pierre arranca lentamente. Estvamos no ponto em que ia v-la tal como ela , indefesa e nua. Dissemos isso, havamos chegado exatamente ao momento em que a vamos indefesa e nua, ou seja, que no h nenhuma razo para supor nem por um instante que ser necessrio... Sim, j ouvi, primeiro esquerda e depois outra vez esquerda. L, naquele teto de telhas escuras? H pinheiros, que bonito, mas que bonita a casa, um jardim com pinheiros e seus pais que foram para o stio, quase no d para acreditar, Michle, uma coisa assim no d para acreditar. Bobby, que os recebeu com um festival de latidos, salva as aparncias cheirando minuciosamente as calas de Pierre, que empurra a motocicleta at a varanda. Michle j entrou na casa, abre as persianas, torna a receber Pierre que olha as paredes e descobre que nada daquilo parece com o que ele imaginou. - Aqui deveria haver trs degraus - diz Pierre. - E este salo, claro, claro... No liga pra mim, a gente sempre imagina outra coisa. At os mveis, cada detalhe. Voc tambm tem dessas coisas? - s vezes tenho - diz Michle. - Pierre, estou com fome. No, Pierre, escuta, seja bonzinho e me ajude; temos de cozinhar alguma coisa. - Querida - diz Pierre. - Abra essa janela, para o sol entrar. E fique quieto, Bobby vai achar que... - Michle - diz Pierre. -No, espere, deixa eu subir para mudar de roupa. Tire o palet, se quiser, nesse armrio deve ter bebida, no entendo dessas coisas. Ele a v correr, subir pela escada, perder-se l em cima. No armrio h bebidas, ela no entende disso. O salo profundo e escuro, a mo de Pierre acaricia a ponta do corrimo. Michle j havia dito, mas como um desencanto em silncio, ento no existe uma bola de vidro. Michle volta com umas calas velhas e uma blusa inacreditvel. - Voc parece um cogumelo - diz Pierre com a ternura de todo homem para a mulher que veste roupas grandes demais. No vai me mostrar a casa? - Se voc quiser - diz Michle. - No achou as bebidas? Espere, voc no sabe fazer nada...

  • 23

    Levam os copos para o salo e sentam-se no sof na frente da janela aberta. Bobby faz festa para os dois, deita-se no tapete e fica o olhando para eles. - Ele aceitou voc logo de sada - diz Michle lambendo a beirada do copo. - Gostou da casa? - No - responde Pierre. - sombria, burguesa at morrer, cheia de mveis abominveis. Mas voc est aqui, com essas calas horrveis. Acaricia sua garganta, a atrai contra seu corpo, beija sua boca. Os dois se beijam-se na boca, em Pierre desenha-se o calor da mo de Michle, beijam-se na boca, deslizam um pouco, mas Michle geme e tenta se safar, murmura alguma coisa que ele no entende. Pensa confusamente que a coisa mais difcil tapar sua boca, no quer que desmaie. Solta a moa bruscamente, olha as prprias mos como se no fossem dele, ouvindo a respirao precipitada de Michle, o grunhido surdo de Bobby no tapete. - Voc vai me deixar louco - diz Pierre, e o ridculo da frase menos penoso que o que acaba de acontecer. Como uma ordem, um desejo irrefrevel, tapar-lhe a boca para que no desmaie. Estica a mo, acaricia de longe a face de Michle, est de acordo com tudo, concorda em comer alguma coisa improvisada, em que dever escolher o vinho, em que faz muitssimo calor ao lado da janela. Michle come sua maneira, misturando o queijo com as anchovas no azeite, a salada e os pedaos de caranguejo. Pierre bebe vinho branco, olha para ela, sorri para ela. Se se casasse com ela beberia todos os dias seu vinho branco nesta mesa, e olharia para ela e sorriria. - engraado - diz Pierre. - Nunca falamos dos anos da guerra. - Quanto menos se falar... - diz Michle, passando o po pelo prato. - Eu sei, mas as lembranas s vezes voltam. Para mim no foi to ruim, afinal de contas ramos crianas na poca. Como umas frias interminveis, um absurdo total e quase divertido. - Para mim no houve frias - diz Michle. - Chovia o tempo todo. - Chovia? - Aqui - diz ela, tocando a fronte. - Na frente de meus olhos, atrs dos meus olhos. Estava tudo mido, tudo parecia suado e mido. - Voc morava nesta casa? - No comeo, sim. Depois, quando veio a ocupao, me levaram para a casa de uns tios, em Enghien. Pierre no nota que o fsforo queima entre seus dedos, abre a boca, sacode a mo e xinga. Michle sorri, contente por poder falar de outra coisa. Quando se levanta para trazer a fruta, Pierre acende o cigarro e traga a fumaa como se estivesse se afogando,

  • 24

    mas j passou, tudo tem uma explicao quando a gente a busca, quantas vezes Michle ter mencionado Enghien nas conversas do caf, essas frases que parecem insignificantes e dignas de esquecimento, at que acabam sendo o tema central de um sonho ou uma fantasia. Um pssego, sim, mas descascado. Ah, ele sente muito, mas as mulheres sempre descascaram os pssegos e Michle no tem por que ser uma exceo. - As mulheres. Se descascavam os pssegos para voc eram umas bobas como eu. Seria melhor voc moer o caf. - Ento, voc morou em Enghien - diz Pierre, olhando as mos de Michle com o leve nojo que sempre sente ao ver algum descascar uma fruta. - E o que seu pai fazia durante a guerra? - Oh, no fazia grande coisa. Vivamos, esperando que tudo acabasse de uma vez. - Os alemes nunca incomodaram? - No - diz Michle, dando voltas no pssego entre os dedos midos. - a primeira vez que voc me diz que moraram em Enghien. - No gosto de falar daqueles tempos - diz Michle. - Mas alguma vez voc deve ter falado - diz contraditoriamente Pierre. - No sei como, mas eu sabia que voc tinha morado em Enghien. O pssego cai no prato e os pedaos de casca tornam a grudar na polpa. Michle limpa o pssego com a faca e Pierre sente nojo de novo, gira o moedor de caf com todas as suas foras. Por que ela no lhe diz nada? Parece estar sofrendo, dedicada limpeza do horrvel pssego mido. Por que no fala nada? Est cheia de palavras, no precisa mais que olhar suas mos, o piscar nervoso que s vezes termina numa espcie de tique, um lado inteiro de seu rosto ergue-se levemente e volta ao lugar, na outra vez, num banco de jardim de Luxemburgo, j tinha notado esse tique, que sempre coincide com um incmodo ou um silncio. Michle prepara o caf de costas para Pierre, que acende um cigarro no outro. Voltam ao salo levando as xcaras de porcelana com pintas azuis. O cheiro do caf lhes faz bem, olham-se como se no entendessem essa trgua e tudo que a precedeu; trocam palavras soltas, olhando-se e sorrindo, tomam o caf, distrados, como se toma os filtros que atam para sempre. Michle mexeu nas persianas e do jardim entra uma luz esverdeada e quente que os envolve como a fumaa dos cigarros e o conhaque que Pierre saboreia perdido num abandono macio. Bobby dorme no tapete, estremecendo-se e suspirando. - Sonha o tempo todo - diz Michle. - s vezes chora e acorda de repente, olha para todo mundo como se acabasse de passar por uma dor imensa. E quase um filhote... A delcia de estar ali, de sentir-se to bem naquele instante, de fechar os olhos, de suspirar como Bobby, de passar a mo nos prprios cabelos, uma vez, duas, sentindo que a mo que anda pelos cabelos quase no a dele, a leve ccega ao chegar nuca,

  • 25

    o repouso. Quando abre os olhos v o rosto de Michle, sua boca entreaberta, a expresso como se de repente tivesse ficado sem uma gota de sangue. Olha para ela sem entender, um copo de conhaque roda pelo tapete. Pierre est de p na frente do espelho; quase acha engraado ver que tem os cabelos repartidos no meio, como os gals do cinema mudo. Por que Michle tem de chorar? No est chorando, mas um rosto entre as mos sempre algum que chora. Afasta as mos dela bruscamente, beija seu pescoo, procura sua boca. Nascem as palavras, as suas, as dela, como pequenas feras que se procuram, um encontro que se atrasa em carcias, um cheiro de sesta, a casa sozinha, a escada esperando com a bola de vidro na ponta do corrimo. Pierre gostaria de erguer Michle nos braos, subir correndo, tem a chave no bolso, entrar no dormitrio, se estender contra ela, a sentir estremecer, comear desajeitadamente a buscar cintas, botes, mas no h uma bola de vidro na ponta do corrimo, tudo distante e horrvel, Michle ali ao seu lado est to longe e chorando, seu rosto chorando entre os dedos molhados, seu corpo que respira e sente medo e o rejeita. Ajoelhando-se, apoia a cabea no regao de Michle. Passam-se as horas, passa um minuto ou dois, o tempo algo cheio de aoites e baba. Os dedos de Michle acariciam os cabelos de Pierre e ele v outra vez o rosto dela, um comeo de sorriso, Michle o penteia com os dedos, quase o machuca fazendo fora para esticar seus cabelos para trs, e ento se inclina e o beija e sorri. - Voc me deu medo, de repente achei... Como sou boba, mas que voc estava diferente. - Quem voc viu? - Ningum - diz Michle. Pierre encolhe-se esperando, agora existe alguma coisa como uma porta que oscila e vai se abrir. Michle respira pesadamente, tem algo do nadador espera do tiro de largada. - Eu me assustei porque... No sei, voc me fez pensar que... Oscila, a porta oscila, a nadadora espera o tiro para mergulhar. O tempo se estica como um pedao de elstico, ento Pierre estende os braos e prende Michle, ergue-se at ela e beija-a profundamente, busca seus seios debaixo da blusa, ouve-a gemer e tambm geme enquanto a beija, vem, vem agora, tentando ergula nos braos (so 15 degraus e uma porta direita), ouvindo a queixa de Michle, seu protesto intil, ergue-se com ela nos braos, incapaz de esperar mais, agora, neste exato momento, no adiantar nada querer agarrar-se na bola de vidro, o corrimo (mas no h nenhuma bola de vidro no corrimo), ir lev-la para cima e ento como uma cadela, todo ele um n de msculos, como a cadela que , para aprender, oh Michle, oh meu amor, no chore desse jeito, no fique triste, meu amor, no me deixe cair de novo nesse poo negro, como pude pensar isso, no chore, Michle. - Me solta - diz Michle em voz baixa, lutando para se soltar. Acaba de rejeit-lo, olha-o um instante como se no fosse ele e corre para fora do salo, fecha a porta da cozinha, ouve-se girar uma chave, Bobby late no jardim.

  • 26

    O espelho mostra a Pierre um rosto liso, inexpressivo, uns braos que pendem como trapos, a camisa para fora das calas. Mecanicamente arruma as roupas, sempre olhando-se em seu reflexo. Tem a garganta to fechada que o conhaque queima sua boca, negando-se a passar, at que insiste e continua bebendo da garrafa, um gole interminvel. Bobby parou de latir, h um silncio de sesta, a luz na casa cada vez mais esverdeada. Com um cigarro entre os lbios ressecados sai varanda, desce ao jardim, passa ao lado da moto e vai at os fundos. Sente o cheiro de zumbido de abelhas, de colcho de felpas de pinheiro, e agora Bobby comeou a latir entre as rvores, late para ele, de repente comeou a grunhir e a latir sem se aproximar dele, cada vez mais perto e para ele. A pedrada o alcana no meio do lombo; Bobby uiva e escapa, de longe torna a latir. Pierre aponta devagar e acerta sua pata traseira. Bobby se esconde entre os arbustos. "Tenho de encontrar um lugar onde possa pensar", diz Pierre a si mesmo. "Agora tenho que encontrar um lugar e me esconder e pensar." Suas costas deslizam no tronco de um pinheiro, deixa-se cair pouco a pouco. Michle est olhando-o da janela da cozinha. Ter visto quando apedrejava o cachorro, olha para mim como se no me visse, est me olhando e no chora, no diz nada, est to sozinha na janela, tenho que me aproximar e ser bom com ela, eu quero ser bom, quero pegar sua mo e beijar seus dedos, cada dedo, sua pele to suave. - Estamos brincando de qu, Michle? - Espero que voc no tenha machucado o cachorro. - Joguei uma pedra para assust-lo Parece que ele no me reconheceu, como voc. - No diga bobagem. - E voc, no tranque a porta. Michle o deixa entrar, aceita sem resistncia o brao que rodeia sua cintura. O salo est mais escuro, quase no se v o lugar onde comea a escada. - Perdo - diz Pierre. - No sei explicar, muito insensato. Michle levanta o copo cado e tampa a garrafa de conhaque. Faz cada vez mais calor, como se a casa respirasse pesadamente por suas bocas. Um leno que cheira a musgo limpa o suor da testa de Pierre. Oh Michle, como continuar assim, sem nos falarmos, sem querer entender isto que est nos despedaando no exato momento em que...? Sim, querida, me sentarei ao seu lado e no serei tolo, beijarei voc, me perderei em seus cabelos, em seu pescoo, e voc vai compreender que no existe motivo... sim, compreender que quando quero pegar voc em meus braos e lev-la comigo, subir para o seu quarto sem lhe fazer mal, apoiando sua cabea em meu ombro... - No, Pierre, no. Hoje no, querido, por favor. - Michle, Michle...

  • 27

    - Por favor. - Por qu? Diz, por qu? - No sei, me desculpe... No se culpe por nada, a culpa toda minha. Mas temos tempo, tanto tempo... - No vamos esperar mais, Michle. Agora. - No, Pierre, hoje no. - Mas voc prometeu - diz estupidamente Pierre. - A gente veio... Depois de tanto tempo, de tanto esperar que voc gostasse um pouco de mim... No sei o que estou dizendo, tudo se suja quando digo... - Se voc conseguisse me perdoar, se eu... - Como posso perdoar se voc no fala, se mal conheo voc? O que devo perdoar? Bobby grunhe na varanda. O calor gruda as roupas em seus corpos, gruda neles o tique-taque do relgio, o cabelo na testa de Michle afundada no sof olhando para Pierre. - Eu tambm no conheo muito voc, mas no isso... Voc vai achar que estou louca. Bobby grunhe de novo. -Faz muitos anos... - diz Michle e fecha os olhos. Morvamos em Enghien, j contei isso. Acho que contei que morvamos em Enghien. No me olhe desse jeito. - No estou olhando - diz Pierre. - Sim, e me faz mal. Mas no verdade, no pode ser que faa mal a ela por esperar pelas suas palavras, imvel esperando que continue, vendo seus lbios moverem-se levemente, e agora vai acontecer, vai juntar as mos e suplicar, uma flor de delcia que se abre enquanto ela implora, debatendo-se e chorando entre seus braos, uma flor mida que se abre, o prazer de senti-la se debater em vo... Bobby entra se arrastando, vai se estender num canto. "No me olhe desse jeito", disse Michle, e Pierre respondeu: "No estou olhando", e ento ela disse que sim, que faz mal para ela sentir-se olhada desse jeito, mas no pode continuar, falando porque agora Pierre se levanta olhando Bobby, olhando-se no espelho, passa a mo pelo rosto, respira com um queixume longo, um assovio que no acaba, e de repente cai de joelhos contra o sof e enterra o rosto entre os dedos, convulso e arfante, lutando para arrancar de si as imagens como uma teia de aranha que grudou em cheio sobre seu rosto, como folhas secas que grudam em sua cara em papada. - Oh, Pierre - diz Michle com um fiapo de voz. O pranto passa atravs dos dedos que no podem ret-lo, enche o ar de uma matria pesada, obstinadamente renasce e continua.

  • 28

    - Pierre, Pierre - diz Michle. - Por qu, querido, por qu? Lentamente acaricia seu cabelo, estende para ele o leno com seu cheiro de musgo. - Sou um pobre imbecil, me perdoe. Para mim ... voc estava me di... Ergue-se, deixa-se cair no outro extremo do sof. No nota que Michle retraiu-se bruscamente, que outra vez olha para ele como antes de escapar. Repete: "Para mim ... voc estava me dizendo", com um esforo, est com a garganta fechada, e o que isso, Bobby rosna outra vez, Michle de p, recuando passo a passo sem se virar, olhando-o e recuando, o que isso, por que isso agora, por que voc vai embora, por qu? A batida da porta deixa-o indiferente. Sorri, v seu sorriso no espelho, sorri outra vez, "ais alie Knospen sprangen ", cantarola com os lbios apertados, h um silncio, o clique do telefone que algum tira do gancho, o zumbido do disco, uma letra, outra letra, a primeira cifra, a segunda. Pierre cambaleia, vagamente se diz que deveria ir se explicar com Michle, mas j est l fora, ao lado da moto. Bobby rosna na varanda, a casa devolve com violncia o rudo do motor de arranque, primeira, rua acima, segunda, sob o sol. - Era a mesma voz, Babette. E ento entendi que... - Bobagem - responde Babette. - Se eu estivesse l, acho que daria uma surra em voc. - Pierre foi embora - diz Michle. - quase o melhor que podia fazer. - Babette, se voc pudesse vir. - Para qu? Claro que irei, mas bobagem. Uma idiotice. - Cantarolava, Babette, juro... No uma alucinao, eu j disse que antes... Foi como se outra vez... Venha logo, assim por telefone no posso explicar... E agora acabo de ouvir a moto, ele foi embora e me d um d terrvel, como pode compreender o que me acontece?, coitadinho, mas ele tambm est feito louco, Babette, to estranho. - Eu imaginava que voc estava curada daquilo tudo - diz Babette com uma voz bastante desinteressada. - Enfim, Pierre no bobo e compreender. Eu achava que ele estava sabendo faz tempo. - Eu ia dizer, queria dizer, ento... Babette, juro que falou comigo cantarolando, e antes, antes... - Voc j disse, mas est exagerando. Roland tambm se penteia s vezes do jeito que quer, e no por causa disso voc o confunde, que diabo. - Agora ele foi embora - repete monotonamente Michle. - J j ele volta - diz Babette. - Bem, prepare alguma coisa gostosa para Roland, que est mais faminto a cada dia. - Voc est me difamando - diz Roland da porta. - O que est acontecendo com Michle?

  • 29

    - Vamos - diz Babette. - Estamos indo agora mesmo. O mundo conduzido como um cilindro de borracha que cabe na mo; girando levemente direita, todas as rvores so uma s rvore estendida beira do caminho; ento, gira-se um nada esquerda, o gigante verde se desfaz em centenas de lamos que correm para trs, as torres de alta-tenso avanam pausadamente, uma a uma, a marcha uma cadncia feliz na qual j podem entrar palavras, fiapos de imagens que no so as de uma estrada, o cilindro de borracha gira direita, o som sobe e sobe, uma corda de som se estende insuportavelmente, mas j no se pensa mais, tudo mquina, corpo pegado mquina, e vento na cara como um esquecimento, Corbeil, Arpajon, Linas-Montlhry, outra vez os lamos, a guarita do guarda de trnsito, a luz cada vez mais violeta, um ar fresco que enche a boca entreaberta, mais devagar, mais devagar, nessa encruzilhada tomar direita, Paris a 18 quilmetros, Cinzano, Paris a 17 quilmetros. "No me matei", pensa Pierre entrando lentamente no caminho da esquerda. " incrvel que eu no tenha me matado." O cansao pesa como um passageiro s suas costas, algo cada vez mais doce e necessrio. "Eu acredito que ela me perdoar", pensa Pierre. "Ns dois fomos to absurdos, necessrio que ela compreenda, que compreenda, que compreenda, no se sabe nada de verdade at no termos amado, quero seu cabelo entre as minhas mos, seu corpo, eu quero ela, ela, ela..." O bosque nasce ao lado do caminho, as folhas secas invadem a estrada, trazidas pelo vento. Pierre olha as folhas que a moto vai engolindo e agitando; o cilindro de borracha comea a girar outra vez direita, mais e mais. E de repente a bola de vidro que brilha debilmente na ponta do corrimo. No h nenhuma necessidade de deixar a moto longe da casa, mas Bobby vai latir e por isso escondo a moto entre as rvores e chego a p com as ltimas luzes, entro no salo procurando Michle que estar a, h somente a garrafa de conhaque e copos usados, a porta que leva cozinha ficou aberta e por ali entra uma luz avermelhada, o sol se pe no fundo do jardim, e somente silncio, de maneira que o melhor ir at a escada orientando-se pela bola de vidro que brilha, ou so os olhos de Bobby estendido no primeiro degrau com o plo arrepiado, rosnando de leve, no difcil passar por cima de Bobby, subir lentamente os degraus para que no ranjam e Michle no se assuste, a porta aberta, no pode ser que a porta esteja aberta e que ele no tenha a chave no bolso, mas se a porta est aberta j no h necessidade da chave, um prazer passar as mos pelos cabelos enquanto se avana at a porta, entra-se apoiando levemente o p direito, empurrando de leve a porta que se abre sem rudo, e Michle sentada na beira da cama levanta os olhos e olha para ele, leva as mos boca, pareceria que vai gritar (mas por que tem os cabelos soltos, por que no vestiu a camisola azul-celeste, agora est vestindo calas e parece mais velha?), e ento Michle sorri, suspira, ergue-se estendendo os braos, diz: "Pierre, Pierre", em vez de juntar as mos e suplicar e resistir, diz seu nome e est esperando por ele, olha para ele e treme de felicidade ou de vergonha, como a cadela delatora que , como se a estivesse vendo apesar do colcho de folhas secas que outra vez cobre seu rosto e que arranca com as duas mos enquanto Michle recua, tropea na beira da cama, olha desesperadamente para trs, grita, grita, todo o prazer que sobe e o banha, grita, os cabelos entre os de