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Cosme & Damião no bairro Encantado
Sandro Tebaldi
Mestrado em Antropologia – UFF
Palavras-chave: Cosme & Damião; religião; dádiva; festas religiosas.
O microcosmo do indivíduo contém o macrocosmo que o envolve e é, ao mesmo
tempo, contido nele. A parte é o Todo, o Todo está inteiro em cada uma de suas
partes. Cada um, do indivíduo e do cosmo, é como o espelho do outro e toda ação
sobre um deve agir sobre o outro. O mundo inteiro, inclusive os homens, tornou-se
“encantado.” (GODELIER, 2001, p.161)
Cosme & Damião é uma das festas religiosas mais populares da cidade do Rio de
Janeiro. Todo dia 27 de setembro, incontáveis devotos prestam o ritual de oferecer doces às
crianças, com a finalidade de homenagear os santos gêmeos. A festa de Cosme & Damião
também se caracteriza por um profundo hibridismo religioso, católicos e praticantes de
religiões de matrizes africanas, como umbanda e candomblé, se empenham, cada um com as
suas particularidades, em agradar estas divindades.
O objetivo deste artigo é documentar e apontar aspectos relevantes desta festa para
uma posterior redação de um texto etnográfico, integrante de uma dissertação. Portanto,
apresento observações etnográficas e análises preliminares, que certamente serão acrescidas
de outras fontes no decorrer da pesquisa. Importante ressaltar também que o texto agora lido
foi produzido com a intenção de atender o exíguo prazo que se configurou entre o trabalho de
campo e a entrega do texto1. Portanto, algumas informações e análises estão previamente
excluídas do texto por este motivo. O texto foi concebido, conforme veremos nas notas, para
ser apreendido junto ao ensaio fotográfico executado em campo. E por fim, as imagens
captadas para o filme documentário ainda não foram, no momento em que escrevo,
analisadas, editadas e montadas.
O trabalho de campo desenvolvido na festa aborda - através de texto, um ensaio
fotográfico e um filme documentário - o culto aos santos no Encantado, bairro tradicional do
subúrbio do Rio de Janeiro, na zona norte, nas ruas, em casas de devotos e terreiros de
1 5 de outubro de 2013 foi o prazo estipulado para a entrega deste texto.
umbanda e candomblé. A base teórica do trabalho está ligada principalmente aos conceitos de
Marcel Mauss (2003) e Émile Durkheim (2003) relativos à “dádiva”, “religião”, “magia”,
“fenômeno social total” e “técnicas corporais”. Para a compreensão do ritual, utilizamos as
análises de processos rituais propostas por Victor Turner (2005; 2008).
A execução desta pesquisa exige um exercício de desnaturalização dos fatos por parte
do pesquisador, posto que o mesmo, é morador do bairro pesquisado. Como já ressaltado por
diversos autores2, frequentemente o ofício do etnógrafo caminha no sentido de transformar o
“exótico em familiar e o familiar em exótico”. Seria o caso então, de transformar o familiar
em exótico para o pesquisador? Talvez. Pois nem tudo que é familiar é conhecido e o
desenvolvimento da pesquisa reforçou essa impressão. Apesar de morar há 3 anos no bairro e
muitos outros em bairros semelhantes, eu muito pouco ou nada conhecia, sobre os fatos
pesquisados. Processou-se uma desnaturalização daquilo que eu pensava ser, familiar, mas
que talvez não fosse tão conhecido como se esperava.
O bairro Encantado3
Situado na chamada zona norte do Rio de Janeiro, mais precisamente na XIII região
administrativa da cidade, no “grande Méier”, o Encantado é considerado um bairro de classe
média baixa. Segundo o IBGE, seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,877 o
coloca na 35ª posição entre os 126 bairros da cidade pesquisados. Com 15.021 habitantes
residindo em 5.658 domicílios, distribuídos em 106,1 hectares, o bairro é um exemplo típico
de um bairro “suburbano”, categoria de bairros que são incluídos por estarem em torno da
linha férrea que atravessa a cidade, saindo da estação de trem Central do Brasil em direção às
periferias, são os chamados “subúrbios da central4”. Da mesma forma que seus bairros
vizinhos, Piedade e Engenho de Dentro, o Encantado é um bairro que se desenvolveu em
torno de sua estação de trem, inaugurada em 1868 e hoje desativada. Junto com Piedade, foi o
primeiro bairro do subúrbio a receber luz elétrica, em 1905. A origem do nome dado ao bairro
2 Refiro-me em especial aos artigos de DAMATTA (1985) e VELHO (1978).
3 Mapa disponível em https://maps.google.com.br/maps?q=encantado+rj+mapa&ie=UTF-
8&hq=&hnear=0x997d1408969247:0xd0291bc6a700d9a,Encantado,+Rio+de+Janeiro&gl=br&ei=G95MUq_MEsTftAaAyIGIBQ&sqi=2&ved=0CIEBELYDMA4
4 As informações estatísticas foram colhidas em site da prefeitura do Rio de Janeiro:
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm
remonta a um trágico acidente ocorrido no século XIX, quando um carroceiro, após uma
enchente, foi levado e desapareceu sem deixar vestígios, com sua carroça e burro, pelo rio
Faria, que corta o bairro e segundo moradores seria um rio “encantado”, dotado de poderes
mágicos, capaz de fazer sumir aqueles que caem em suas águas revoltas5.
Talvez por ser um bairro do século XIX, a influência portuguesa se mostra bastante
evidente, principalmente na arquitetura das casas mais antigas. Porém hoje, observa-se um
acentuado contraste entre as residências mais antigas, e os muitos prédios e novas construções
que surgem devido a uma crescente demanda por imóveis na região. Isto devido às recentes
modificações urbanísticas implantadas pela prefeitura da cidade. Em especial a presença de
uma via expressa para automóveis, a “linha amarela”, que liga a av. Brasil à Barra da Tijuca,
bairro que mais cresce na cidade e que se consolida como um dos pontos economicamente
mais valorizado da cidade. A proximidade com a Barra da Tijuca, e suas praias, faz com que
um número cada vez maior de pessoas procure um imóvel no bairro, modificando as
características do mesmo. Conforme outras pesquisas já demonstraram, as interferências do
poder público, na arquitetura e na urbanização destes bairros tradicionais, causam fortes
impactos nessas comunidades6.
A cultura lusitana também está presente nas diversas festas religiosas que compõem o
calendário da comunidade, como as festas para Nossa Sr.ª da Piedade, São Pedro, São Jorge e
São Cosme & São Damião. Já desde o início da colonização portuguesa, as festas religiosas
são um importante mecanismo de propagação da fé católica e coesão da sociedade no Rio de
Janeiro7. A festa de Cosme & Damião é uma destas festas onde além da prática religiosa, os
laços sociais são reforçados.
Os santos gêmeos: breve hagiografia
5 Essa história é encontrada em diversas fontes, como o site www,históriadorio.com e nos relatos de moradores
mais antigos.
6 Encontramos um bom exemplo de interferência do Estado em bairros tradicionais do Rio de Janeiro, no caso o
Catumbi, em MELLO; SANTOS; VOGEL, 1981.
7 ABREU, 1994.
Segundo diversas fontes consultadas8, os santos Cosme & Damião são originários da
região hoje conhecida como Ásia Menor, no sul da Turquia. A hagiografia católica dos
gêmeos os apresenta como médicos, que cuidavam gratuitamente dos enfermos e propagavam
a fé cristã. Suas curas miraculosas os tornavam cada vez mais famosos, despertando a ira do
imperador Diocleciano, que no ano 287, no dia 27 de setembro, manda prender e martirizar os
médicos cristãos. Após a morte dos irmãos – depois de sofrerem perfurações por lanças e
outras tentativas de mata-los, foram decapitados - os devotos cristãos reproduziram seus feitos
em narrativas e iconografias que se espalharam por toda a Europa. São Cosme & São Damião
passam então, a serem retratados adultos, com as vestimentas corporativas dos médicos da
época, o que se manteve até os dias de hoje9. Por volta do ano 530, tornaram-se oficialmente
santos católicos, e mais tarde padroeiros dos médicos e dos farmacêuticos. O “Milagre da
Perna Preta”, retratado em quadro do século XV10
, é um exemplo de pinturas que narram os
milagres dos santos.
Na cidade do Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras, o culto aos santos gêmeos
apresenta características que o diferenciam das práticas religiosas europeias. Segundo LIMA:
“As imagens dos santos de tradição portuguesa, introduzidas no Brasil já no século XVI –
Duarte Coelho os fez padroeiros de Iguaçu, em 1530 - , mostram que eles foram como que
rejuvenescendo, para se identificar com os mitos africanos” (2005, p.31). Dá-se início um
processo de identificação e apropriação das imagens por parte dos cultos afro-brasileiros,
associando os santos gêmeos ao culto ao orixá Ibeji.
Na mitologia yorubá o nascimento de gêmeos está relacionado ao orixá Ibeji. Todos
os gêmeos são “filhos de Ibeji”. As obrigações devidas ao orixá devem começar logo após o
nascimento de seus filhos. Mais uma vez recorremos à LIMA:
É sempre o Babalaô, o sacerdote do Ifá-Orumilá, a divindade da adivinhação e do
destino, quem prescreve, depois de consultar o Ifá, no caso por meio dos búzios, do
dilogum, as obrigações devidas ao orixá Ibeji, responsável pelo nascimento dos
gêmeos entre os nagôs (ibid., p. 21).
8 A história pode ser encontrada em diversas fontes, especialmente em sites especializados, porém as
informações hagiográficas utilizadas neste trabalho são provenientes de LIMA, 2005.
9 Fotografias nº 1 e 2, feitas no Templo de Iemanjá.
10 Disponível em Biblioteca Digital Mundial: http://www.wdl.org/pt/item/3251/
O Ibeji é um orixá duplo, representado na maioria das vezes como duas crianças,
irmãos gêmeos11
. Assim, as narrativas que tratam deste orixá acentuam aspectos relacionados
a dualidades e complementaridades. Suponho então, que esse significado dual e outros
significados, encontram um eficiente significante nas belas e populares imagens dos santos
gêmeos católicos, que além dessa potencialidade estética é objeto de culto.
Preparativos para uma festa
O dia dedicado aos santos mabaças, termo que designa os gêmeos, nas línguas banto,
é caracterizado principalmente pela oferta de doces às crianças e pela valorização de atos
caridosos e solidários. Como um dos objetivos da pesquisa é realizar uma análise comparativa
dos rituais em diferentes contextos religiosos, decidi acompanhar a festa nas dimensões
católicas e umbandistas, além de uma observação in loco da distribuição de doces nas ruas do
bairro. O trabalho de campo começou alguns meses antes da festa, com a escolha da Tenda
Espírita Xangô Agodô12
, como “Casa de Umbanda” a ser observada. Após a autorização de
minhas visitas ao “centro” e a constatação de que a “festa para os erês13
” aconteceria no dia
28 de setembro, sábado, um dia após o dia “oficial14
”, realizei entrevistas informais com
alguns integrantes “filhos-de-santo” da casa, em especial com Graça15
, “braço direito” de
Dona Bolinha, mãe-de-santo e líder da tenda espírita. Através de Graça, que comanda a
preparação dos alimentos para o evento, fiquei sabendo dos preparativos para a realização da
festa, que segundo ela envolvem vários integrantes da casa e se desenrola pela semana
anterior à festa. Em uma visita, quatro dias antes da festa, Graça me mostrava os ingredientes
que serão usados enquanto diz: “É preciso fazer 27 bolos, tem que ter 27 bolos. Prova o
recheio, de nozes. Os cocos, vou ralar tudo, pra cocada. Tem uva, pêssego e todas essas frutas
que você tá vendo. Olha a quantidade de margarina! É muita margarina! Os doces somos nós
11 Para ver alguns exemplos de representação de Ibeji acessar os seguintes sites:
http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Ficheiro:Ibeji_figs.jpg;
http://www.historywiz.com/ibeji.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/File:IbejiTwins.jpg 12 Localizada na Rua Xavier dos Pássaros. Ver Fotografias nº 3 a 6.
13 Entidades que representam características infantis.
14
A igreja católica destina o dia 26 de setembro para os santos, mas a grande maioria das pessoas, consideram o
dia 27 como o dia de São Cosme & São Damião. 15 Ver fotografia nº 7. Graça é a senhora à esquerda.
que fazemos, compramos muito pouca coisa pronta, especialmente os brinquedos, porque
criança adora brinquedo né?
As conversas com Dona Bolinha16
, que não gosta de ser chamada de ialorixá, aceita
ser chamada de mãe-de-santo, mas prefere é ser chamada de Dona Bolinha mesmo, tinham
um aspecto pedagógico. Além das conversas a respeito da cosmogenia e os “fundamentos” de
seu culto, Dona Bolinha ressaltava sua devoção aos santos gêmeos:
No ano passado eu estava internada, na semana da festa, estavam todos tristes. Era
uma doença braba. Eu rezava muito pros meninos. No dia da festa fizeram um exame
e o exame sumiu. Tiveram que fazer outro exame e nesse exame deu bom, o outro ia
dar ruim, mas esse deu bom e o médico me deu alta, me liberou pra festa dos meus
meninos. Foram os meninos que me tiraram de lá! Foi mais uma graça de Cosme &
Damião!
Além das necessárias operações rituais para a festa, as dificuldades de obter recursos
financeiros para a realização da mesma também são motivo de preocupação para a líder
espiritual. Os recursos são provenientes principalmente das reservas financeiras do centro e de
contribuições dadas por filhos-de-santo da casa e devotos que frequentam a mesma. Em uma
conversa, horas antes da realização do evento, Dona Bolinha me confidenciava uma
preocupação com a quantidade de refrigerantes para a festa, que segundo ela, não seria
suficiente: “Eu coloco o que posso do meu bolso. Quem pode ajuda. Eu não posso colocar
mais. Se acabar o refrigerante, acabou. O que importa é fazer a festa, pra mim a festa mais
importante!”
Em contraste com as dificuldades financeiras da Tenda Espírita, o que observa-se é um
verdadeiro dispêndio, financeiro e de trabalho, que não corresponde ao padrão econômico do
centro. A distribuição de riquezas neste contexto não pode ser pensada através da lógica
econômica, ao associarmos a lógica desse sistema de dádiva à lógica de outros sistemas
estudados, como o potlatch17
, observamos aspectos que os aproximam, talvez confirmando a
universalidade da dádiva. Conforme ressalta Godelier, desenvolvendo as ideias de Mauss, o
dom não é “apenas uma forma de partilhar o que se têm, mas também uma maneira de se
16
Com 88 anos, Dona Bolinha dirige há 54 anos a casa. A Mãe-de-santo lamenta o fato de ser a última rezadeira
de crianças do bairro. As fotografias nº 8 e 9 são na tarde anterior à festa; a fotografia nº 10 mostra Dona Bolinha
com filha e neta; fotografias nº 11, 12 e 13 feitas durante a festa. 17 Um sistema de prestações totais do tipo agonístico, encontrado no noroeste americano e estudado por diversos
autores, em especial Franz Boas e Marcel Mauss.
combater com o que se tem” (2001, p.15), portanto, seja na terra seja no mundo espiritual, dar
o máximo possível é uma forma de combater, neste caso, o “mal” espiritual. Além disso,
assim como no potlatch, o objetivo dessas dádivas é acumular prestígio, reputação,
engrandecer o nome do doador, da casa que oferece os dons.
Há preparativos necessários também para aqueles devotos que resolvem praticar a
dádiva, a distribuição de doces e outros donativos, em suas residências ou pelas ruas. O mais
usual caracteriza-se pela compra dos materiais envolvidos nas doações e sua distribuição e
organização. Os doces oferecidos costumam vir em sacos com a imagem de Cosme &
Damião18
, mas podem também serem oferecidos bolos, “maças-do-amor”, pipocas,
refrigerantes e brinquedos. Também encontramos pessoas que doam roupas e cestas básicas,
na maioria das vezes com a intenção de favorecer os mais necessitados financeiramente. No
interior dos sacos podemos encontrar variados tipos de doces, desde os mais “tradicionais”
como cocada, pé-de-moleque, bala, pirulito, suspiro, maria mole, peitinho de moça, doce de
leite e doce de abóbora, até os mais “industrializados” como chocolates, chicletes, confetes e
jujubas. O tipo de doce determina o custo do saco. É preciso então avaliar o quanto se está
disposto a gastar, qual o dispêndio do sacrifício. Quantos sacos e que doces?
Na Rua Clarimundo de Melo, uma das principais do bairro, encontra-se o Atacadão de
doces e biscoitos Cosme & Damião19
. Perguntei à sua proprietária, Aline, moradora do bairro
- e da mesma forma que seu esposo, como seria de supor pelo nome do estabelecimento,
devota dos santos - o que se compra para a festa. Segundo ela é comum as pessoas colocarem
pelo menos 7 doces diferentes em cada saco. Pergunto a ela quanto eu gastaria para dar 100
sacos com 7 doces “tradicionais” e ela diz que em torno de R250,00. Percebo que além dos
sacos com as imagens dos santos, há outros sem referências e imagens dos santos20
, que
segundo Aline seria para evangélicos: “Não sabe da novidade? Agora os evangélicos dão
doces também!” O fato já havia sido noticiado na imprensa carioca. O jornal Extra publicou
uma matéria mostrando como as igrejas evangélicas trocam os doces recebidos nas ruas,
demoníacos, por doces distribuídos por evangélicos, segundo eles doces de cristo. O pastor
Isael Teixeira afirma em depoimento: “Se a criança come doce (de rua), pode plantar uma
18 Ver fotografia nº 90.
19 Ver fotografias nº14, 15 e 16.
20 Ver fotografia nº17.
semente dentro dela. Eles (outros religiosos) invocam os espíritos para que entrem nos
doces21
”.
Os elementos que constituem o sacrifício ofertado aos deuses, no caso doces
oferecidos à Cosme & Damião, ou Ibeji, são objetos que podem ser considerados como
mercadorias, visto que são comprados, trocados por moeda oficial. Porém, conforme proposto
por Kopytoff, as coisas mudam frequentemente de status, oscilando entre dois polos opostos,
entre as coisas que são totalmente comerciáveis e aquelas que não o são. Este processo varia
entre a mercantilização total de uma coisa, por seu caráter “comum” e sua singularização.
De um ponto de vista cultural, a produção de mercadorias é também um processo
cognitivo e cultural: as mercadorias devem ser não apenas produzidas materialmente
como coisas, mas também culturalmente sinalizadas como um determinado tipo de
coisas. (...) Além do mais, a mesma coisa pode ser tratada como uma mercadoria
numa determinada ocasião, e não ser em outra (In: APADURAI, 2008, p.89).
Ao serem colocados em sacos destinados às crianças, estes doces mudam sua condição
de simples mercadorias, adquiridas por transações comerciais, para bens destinados à dádiva.
Por seu caráter religioso, tornam-se também coisas sagradas, pois carregam toda a
significação imposta socialmente pelo grupo praticante do culto. São sacrifícios orientados
aos deuses, consequentemente sagrados.
É possível considerar também os sacos de doce pelo seu caráter simbólico. Em uma
análise exegética, operacional e posicional dos sacos, considerando-os como símbolos,
observamos sua importância, como símbolo dominante do ritual. Segundo a análise simbólica
e ritual de Victor Turner, o símbolo dominante caracteriza-se por uma “economia de
referência simbólica”, remetendo-nos ao mesmo tempo do polo normativo ao polo sensorial
(2005). Portanto, esses sacos de doces, que de mercadorias se transformam em dádiva aos
deuses, são como pontos de referência para o ritual, tudo mais acontece em torno dos
mesmos. O polo normativo situado em toda mitologia referente aos santos e representados no
símbolo, e o polo sensorial na própria experiência de dar, receber e comer os doces.
Correndo atrás de doces
21 Matéria de Bruno Cunha publicada no jornal Extra de 25 de setembro de 2012.
A principal característica desse dia é a grande quantidade de crianças deslocando-se
pelas ruas com o intuito de pegar os doces distribuídos22
. As crianças “correm atrás de doces”,
andam pelas ruas, atentos a qualquer sinal desta distribuição, basta uma aglomeração para
atraí-los. Esse era meu método. Correr atrás dos doces, correr atrás da dádiva. Utilizar o
padrão serendipity 23
e a observação participante como métodos antropológicos. Por uma
questão técnica resolvi que a minha locomoção - um pouco a esmo, mas norteada pelos
métodos escolhidos - pelas ruas do bairro, seria mais eficiente se percorrida pedalando. A
bicicleta me garantiria um deslocamento rápido sem perder a capacidade de percepção das
cenas que se desenrolavam. Andando, com uma velocidade de deslocamento menor, cobriria
um número mais reduzido de ações; de carro, seria veloz, mas perderia a agilidade, pois é
necessário estacioná-lo, e perderia muito da capacidade de observação. Além disso, existia a
necessidade de carregar o equipamento fotográfico, uma DSLR 24
nada discreta e pesada, e um
gravador digital de áudio.
Sentindo-me quase como uma unidade móvel de gravação, comecei por volta das 8
horas da manhã meu trabalho de campo. Dirigi-me para a Igreja de São Pedro 25
com intenção
de observar se existia alguma ação relacionada ao dia dos santos. Para minha surpresa o
funcionário da secretaria da igreja desconhecia, ou melhor, não lembrava que era dia dos
santos. Nenhuma atividade relativa estava programada e o padre não se encontrava na igreja.
Superada a decepção inicial, pois pretendia entrevistar o padre, recomecei o percurso e
logo alguns metros mais adiante, encontrei na porta do Templo de Iemanjá26
, Mãe Francisca
de Iemanjá distribuindo doces. A mãe-de-santo conta que nesse ano só poderá dar 300 sacos
de doces, devido às dificuldades financeiras. Muitas crianças, algumas acompanhadas de suas
mães, vem receber as oferendas, assim, os doces deixam de ser meras mercadorias para se
tornarem dádivas aos deuses, constituindo a 4ª obrigação proposta por Mauss, a de dar aos
deuses (2003, p.203). Maurice Godelier, em sua análise da 4ª obrigação, caracteriza essas
coisas dadas aos deuses, segundo ele, “oferendas e sacrifícios são dons feitos aos mortos, aos
espíritos, aos deuses...” (2001, p.50) Se os sacos de doces são oferendas, podemos deduzir
22 Ver fotografias nº 18 a 26.
23 O padrão serendipity pode ser definido como “o acaso como criação científica”.
24 Câmeras digitais reflex, no caso uma Canon 7D.
25 Ver fotografia nº 27.
26 Ver fotografias nº 28 a 33.
que as crianças nesse momento substituem os deuses, confirmando o aspecto dadivoso do
ritual, pois no sistema da dádiva, coisas, pessoas e deuses se misturam em representações
simbólicas. Gustavo e sua mãe Patrícia, que estavam pegando doces com Mãe Francisca, são
exemplos de devotos que encontrei e que demonstram o caráter ambíguo da percepção dessa
distribuição de doces. O menino de 8 anos não faz ideia dos motivos religiosos associados à
festa, enquanto a mãe enfatiza a tradição envolvida no “correr atrás dos doces”, afirmando
que repete como o filho uma prática aprendida com seus pais.
Uma quantidade incontável de crianças e de mães caminha pelas ruas. Minha condição
de pesquisador, munido de câmera fotográfica e trajando colete de fotógrafo, atrai a atenção
das crianças, que me interpelam por todo momento, com frases como: “é pra Globo?”, “vai
passar onde?”, “filma nós!”, “filma ele não moço, ele é procurado!” e outros comentários
jocosos. Há uma resistência por parte das pessoas em conversar, a maioria se limita aos
comentários pertinentes a eficiência em adquirir os doces, mostrando suas mochilas cheias e
até mesmo carrinhos de feira abarrotados de doces27
. Saber nomes, ocupação, endereço e
outras informações mais pessoais, é tarefa quase impossível. De alguns consigo descobrir que
são moradores do “morro do 18”, comunidade de baixo poder aquisitivo, localizada no bairro
vizinho, Água Santa. Estes informantes, 3 mulheres adultas e 6 crianças, com idades que
devem variar dos 2 aos 10 anos, recusam ser fotografados e dar informações pessoais, mas
confirmam minhas suspeitas de que um grande número de pessoas desta comunidade saem
em busca de doces nesse dia. Uma das mulheres afirma que “o morro desce nesse dia, meu
filho, todo mundo vem pegar doce!” Não há nenhuma referência ao caráter religioso da festa,
trata-se de conseguir os bens necessários para uma vida mais confortável. Recorro mais uma
vez a Godelier, que em sua análise sobre a caridade em nossas sociedades escreve:
Pois a sociedade laicizou-se e a caridade, se está de volta, não se apresenta mais como
uma virtude teologal, gesto de um fiel, de um crente. Ela é vivida pela maioria, crentes
e não-crentes, como um gesto de solidariedade entre seres humanos. Ela, que tinha
recuado na medida em que havia um pouco menos de excluídos e um pouco mais de
justiça social, retorna e volta a ser necessária quando, de novo, existem cada vez mais
excluídos e o Estado já não é capaz de fazer com que haja menos injustiça, menos
solidões abandonadas (2001, p.10).
27 Ver fotografias nº 34 e 35.
O devoto Cristiano, que encontrei “correndo” com seus dois filhos mais novos, uma
menina de 10 e um menino de 8 anos, é outro exemplo da ênfase na caridade e solidariedade e
a pouca observância ao caráter religioso. Além de percorrer as ruas para pegar os doces,
Cristiano também “dá doces”, segundo ele sem nenhuma conotação religiosa: “Eu dou doce
por que eu gosto de ver o sorriso das crianças, não tenho religião não, tô nem aí pra essa
história de religião, eu quero é ver as crianças felizes!”
Muitas filas se formam. Em algumas, há a necessidade de “cartões”, espécie de senha
que contém o local e o horário da entrega de doces, que são dados com o intuito de organizar
a distribuição. É o procedimento adotado por Samuel Corrêa28
, morador do bairro há 50 anos,
para evitar tumultos e aglomeração na doação dos 200 sacos de doces e das roupas que oferta
às crianças. O procedimento evita também que uma mesma criança pegue duas vezes os
sacos, ludibriando os que ofertam. Testemunhei algumas tentativas, todas sem sucesso, de
obter duas vezes os sacos. Mais uma vez a tradição do ato é ressaltada pelos devotos, nas
palavras de Samuel: “assim fazia meus pais, hoje faço eu e meus filhos”.
Como já foi dito, não são apenas doces ofertados, brinquedos e roupas também
costumam fazer parte das dádivas. Na casa de Wagner a distribuição de 150 pipas 29
chamou
minha atenção. Poucas pipas para muitas crianças, o que resultava em uma “batalha”, em
meio a braços e corpos, muitos deles adultos, por uma pipa.
O dia prosseguiu com situações semelhantes, filas, correria, discussões por colocações
nas filas e aquisição de donativos, e crianças pelas ruas, muitas crianças. Mas a rua não é
lugar para crianças, já ouvimos essa sentença algumas vezes e segundo Jane Jacobs, o ideal
urbano moderno não considera a rua como local apropriado às crianças (2000). Segundo essa
moralidade, as ruas são locais impróprios, onde as crianças podem ser submetidas a todo tipo
de influência nefasta. O lugar por excelência para as crianças se divertirem é o playground.
Portanto, esse extravasamento das crianças para o ambiente público, desafia o ideal urbano
moderno que visa segregar as crianças do convívio da vida pública, que se desenrola “lá fora”,
sem controle.
Toda a vida do bairro é englobada pela “corrida aos doces”. Mesmo aqueles adultos
que não buscam doces, são “assaltados” pelas ondas de crianças que tomam as ruas. Os bares
estão cheios, homens bebem em um clima de alegria maior do que seria de se esperar em um
28
Rua Cruz e Souza nº 256. Ver fotografias nº 36 a 40. 29
Rua Parituna. Ver fotografias nº 41 a 46.
dia de semana. A maioria das escolas suspendem suas aulas. Vizinhos conversam em suas
calçadas. Os noticiários das televisões mostram a festa em diferentes bairros. E crianças,
muitas crianças correndo. A vida no bairro pulsa. Essa constatação reforçou ainda mais minha
intenção de abordar a festa de Cosme & Damião como um fato social total. As ideias de
Mauss, sobre o que seriam esses singulares momentos da vida social, se cristalizavam ao
perceber toda a vivacidade das relações sociais que se mostravam naquele dia. Para melhor
expressão do que é esse fato social total, nada melhor do que recorrer à fonte, ao mestre
Marcel Mauss:
Todos esses fenômenos são ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos, e
mesmo estéticos, morfológicos etc. São jurídicos, de direito privado e público, de
moralidade organizada e difusa, estritamente obrigatórios ou simplesmente aprovados
e reprovados, políticos e domésticos simultaneamente, interessando tanto as classes
sociais quanto os clãs e as famílias. São religiosos: de religião estrita, de magia, de
animismo, de mentalidade religiosa difusa. São econômicos: pois as ideias do valor,
do útil, do ganho, do luxo, da riqueza, da aquisição, da acumulação e, de outro lado, a
do consumo, mesmo a de dispêndio puro, puramente suntuário, estão presentes em
toda parte, embora sejam entendidas diferentemente de como as entendemos hoje
(2003, p. 309).
A festa para os erês
Conforme citado, no dia 28 de setembro, às 8 horas da noite, aconteceria a festa de
Cosme & Damião na Tenda Espírita Xangô Agodô. Para esse dia, havia combinado com Dona
Bolinha que acompanharia toda a preparação da festa, o que incluía além de acompanhar a
arrumação da casa e a preparação de alimentos, assistir a uma cerimônia que “abre” a casa,
prepara para o que virá depois. Essa cerimônia, que é programada para ser realizada à tarde,
para dar tempo de todos descansarem para a festa que acontece à noite, consiste na
incorporação mediúnica pelo líder espiritual, de uma entidade, Vó Benedita, ou Tia Maria
Benedita da Bahia, uma espécie de protetor específico daquele centro. A cerimônia só pôde
ser fotografada até o momento em que Vó Benedita “desce”, o que já havia sido combinado
previamente30
. Dona Bolinha já havia me dito que Vó Benedita não gosta de ser fotografada, o
30 Ver fotografias nº 47 e 48.
que ficou confirmado pelas palavras da própria vovó, no momento em que fui receber meu
passe31
. Ela me disse: “Pode fotografar vovó não, senão vai estragar sua câmera!”
Foi a única vez que vi Dona Bolinha incorporando uma entidade. Durante a festa que
relatarei em seguida, em nenhum momento a mãe-de-santo “recebe” entidades, apenas os
filhos-de-santo executam a incorporação. A cerimônia não difere muito das outras cerimônias
que já havia assistido e que tem a finalidade de oferecer passes e consultas. Primeiramente
executam cânticos, acompanhados de percussão, para Exu, orixá que segundo a mitologia
yorubá, é responsável por “abrir os caminhos”. Em seguida as preces são voltadas para Oxalá,
o orixá pai de todos no panteão destas divindades. Após me despedir confirmo minha
presença e de meus “acompanhantes”. Durante o tempo que estava no centro, recebi diversas
vezes o convite para que trouxesse meu filho, o que achei que seria interessante, por me
aproximar um pouco mais do devoto tradicional e me distanciar da imagem de pesquisador,
que era acentuada pela presença da câmera. Comuniquei que traria também um assistente para
me auxiliar na captação de áudio e minha esposa, o que foi aceito sem reservas.
No horário combinado estávamos todos lá. O Centro espírita já se encontrava lotado.
O local destinado aos espectadores, que não ultrapassa os 12 m2 e deve ter a capacidade para
cerca de 20 pessoas sentadas, não permitia a entrada de mais ninguém. Muitas pessoas,
crianças e adultos, aguardam no corredor. Conversando com os devotos que estão no
corredor, percebo que alguns estão ali exclusivamente pela distribuição de doces, que as
pessoas do bairro consideram a das mais fartas, sem se importar com a religiosidade da festa.
Curioso também constatar que apesar de minhas pesquisas indicarem a apropriação das
imagens dos santos por parte das religiões de matrizes africanas, associando as imagens de
Cosme & Damião ao Ibeji, somente ouvi alguma referência a este orixá quando conversava
com Dona Bolinha sobre essa relação. Ninguém espontaneamente se referiu ao orixá Ibeji,
Dona Bolinha quando fez essa referência, fez incentivada pelo meu interesse. O que se ouve
sempre é a referência às “crianças”, erês, entidades que mimetizam comportamentos infantis.
Como era de se esperar há um grande zelo com a decoração da festa. O bolo,
confeitado com morangos, colocado sobre uma mesa, dentro do espaço reservado para o
ritual, ocupa posição de destaque na sala. Os espectadores, ou a audiência, são separados da
“área cerimonial”, que mede cerca de 25 m2, por uma mureta de cerca de meio metro. À
31
O passe é uma prática que consiste em uma espécie de limpeza espiritual. Nesta ocasião, Vó Benedita rezou
algumas partes do meu corpo e soprou um pó branco, que segundo me disseram tratava-se de pemba, um tipo de
giz cilíndrico.
frente encontra-se o gongá, espécie de altar onde são colocadas as imagens das divindades
cultuadas32
. Divido em duas partes, o gongá apresenta em sua parte superior imagens de
divindades católicas como Cristo, Nossa Senhora, São Jorge e São Benedito. A parte inferior
é ornamentada com uvas, bananas, mamões, pêssegos e outras frutas e encontramos as
imagens de Cosme & Damião e entre eles, em tamanho menor, Doú33
, entidade que os cultos
afro-brasileiros complementaram às imagens dos santos gêmeos. A presença dessas imagens
católicas ajuda a caracterizar o aspecto híbrido do culto.
Antes do início da cerimônia, é servido a todos uma “torta salgada34
”. Uma sequência
de cadeiras de vime está disposta em uma organização que remete ao caráter hierárquico do
ritual. A cadeira maior destinada à Dona Bolinha e ao seu lado os integrantes mais
“graduados” da casa. Os demais filhos-de-santo, já todos paramentados com suas roupas
brancas e suas guias nos pescoços, formam de pé um semicírculo. O ritual se inicia com as
orações católicas, O Pai Nosso e a Ave Maria são entoados fervorosamente por todos os
presentes, filhos-de-santo e audiência. Dona Bolinha comanda as ações apenas com olhares,
sentada em sua cadeira, seus gestos sutis determinam o que deve ser feito. Os três ogâns
35presentes começam a tocar seus atabaques, anunciando que um orixá “descerá”, montará
seus cavalos, ou seja, será incorporado por um dos filhos-de-santo. Cânticos referentes à
mitologia do orixá que se anuncia são executados. Alguns integrantes ligados ao ritual,
“viram no santo”, começam a “espiritar36
”, o gestual, junto à música e o ritmo da percussão,
indica que é Xangô, orixá a quem a casa é consagrada, que se faz presente. As expressões
faciais se modificam, como se uma nova personalidade estivesse naquele corpo, configura-se
um estado de transe. Cada orixá possui além de cânticos próprios que tratam de sua mitologia
e ritmos específicos de se tocar o atabaque, um gestual que o diferencia dos outros e permite
sua identificação por todos. Neste momento, uma das filhas-de-santo, Eulina, “filha de
sangue” de Dona Bolinha, se aproxima impedindo que eu filmasse e pede para eu somente
filmar quando os erês aparecerem. Já era a 2ª vez que ela me pedia para que não filmasse,
32 Ver fotografias nº 51, 52 e 53.
33 Há muitas histórias sobre a origem de Doú, algumas delas associam o menino menos a um irmão. Para
conhecer melhor as histórias ver LIMA, 2005, p. 22-33.
34 Ver fotografias nº 54 e 55.
35 Responsáveis por tocar os atabaques, proteger a casa e outras funções cerimoniais. Ver fotografias nº 57 e 58.
36 Ouvi essa expressão de um filho-de-santo, seria o ato de receber entidades. Ver fotografias nº 59 a 69.
sendo que na 1ª ela apenas acenou de longe. Resolvi atender seu pedido. Após uma sequência
de músicas, Xangô dá lugar à outra divindade, o orixá Ogum. Repete-se o esquema de
cânticos, toques de atabaque e gestual específico. Com o fim da participação de Ogum é
anunciado um intervalo.
O intervalo é destinado para o momento mais esperado pelas crianças, a distribuição
de doces e brinquedos. Os filhos-de-santo organizam filas para a distribuição37
. Aos
convidados são oferecidos refrigerantes, bolos, manjás, cocadas, pedaços de melancia, cachos
de uva e outras frutas. Para as crianças, além dos sacos de doce, são oferecidos brinquedos
como bolas, bonecas, carrinhos, jogos de tabuleiro e outras quinquilharias infantis. Neste
momento, a comensalidade, o ato de dividir e comemorar, de comer junto, tão caros a esses
fenômenos, é celebrado. Confirma-se também a função de adquirir prestígio para a casa, pois
quanto mais se dá, mais prestígio se obtém (GODELIER, 2011, p. 25).
Como se fosse um espetáculo teatral, retornamos para um 2º ato, este caracterizado por
apresentar entidades mais “acessíveis”. Os caboclos, entidades que mimetizam
comportamentos que seriam característicos dos índios, são os primeiros a surgir. O
procedimento é semelhante, com uma diferença fundamental em relação às performances
anteriores, ao contrário dos orixás, que nunca falam coisas inteligíveis, as entidades
“inferiores” aos mesmos, como caboclos, erês e pretos velhos, interagem com as pessoas ao
redor, conversam, brincam, dão conselhos. Logo após a “subida” dos caboclos, “surgem” os
convidados de honra, a quem a festa é dirigida. A chegada dos erês transforma a festa. A
solenidade que até então configurava o ritual, principalmente na presença dos orixás, é
substituída por uma alegria e um entusiasmo que parece atingir a todos. Os ogans cantam
músicas com letras que falam das “crianças”:
Lá no céu tem três estrelas
Todas três em carreirinha
São Cosme & Damião
A outra é Mariazinha
37 Ver fotografias nº 70 a 75
Dos cerca de doze filhos-de-santo que se revezam nas tarefas de “virar no santo” e
auxiliar aqueles que estão “virados”, apenas 3 incorporam as “crianças”. Rolam pelo chão,
correm, brincam com os convidados, falam como crianças38
. De todas as “incorporações”
observadas, aquelas destinadas a “receber as crianças” são as que parecem exigir maior
capacidade física. A “assistência” os chama pelos nomes, consigo identificar dois erês,
Joãozinho e (curiosamente) Damião. A interação é intensa. Alguns dão brinquedos aos erês,
outros dão alimentos, como um saco de mangas espadas39
.
Poderíamos considerar os estados de consciência apresentados por estes filhos-de-
santo como uma espécie de transe? Sem dúvida, assim como as práticas xamanísticas
estudadas por diversos antropólogos, e conforme ouvi da boca de alguns integrantes da casa,
essas pessoas realmente acreditam, ou melhor, possuem fé. Segundo Lévy-Strauss, esse
dispositivo que permite essa alteração de estado de consciência, é obtido graças ao potencial
simbólico contido, sua “eficácia simbólica40
.
Podemos encontrar uma forma de entender esse processo na obra de Durkheim. Sobre
a relação entre fiel e fé religiosa o autor afirma:
Eles sentem, com efeito, que a verdadeira função da religião não é nos fazer pensar,
enriquecer nosso conhecimento, acrescentar às representações que devemos á ciência
representações de uma outra origem e de um outro caráter, mas sim nos fazer agir, nos
ajudar a viver. O fiel que se pôs em contato com seu deus não é apenas um homem
que percebe verdade novas que o descrente ignora, é um homem que pode mais. Ele
sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para
vencê-las (2003, p.459).
Isso não impede, no entanto, que haja um aprendizado, um conjunto de gestos e
movimentos que garantam uma execução ideal da representação. Sobre essas técnicas
corporais, Marcel Mauss enfatizava o caráter social de sua utilização e transmissão:
Essa adaptação constante a um objetivo físico, mecânico, químico (por exemplo,
quando bebemos) é efetuada numa série de atos montados, e montados no indivíduo
não simplesmente por ele próprio mas por toda sua educação, por toda sociedade da
qual faz parte, conforme o lugar que nela ocupa (2003, p. 408). 38 Ver fotografias nº 76 a 85.
39 Ver fotografias nº 86 a 89.
40 Refiro-me aos artigos “A eficácia simbólica” e “O Feiticeiro e sua magia”, ambos publicados em LÉVI-
STRAUSS, 1975.
Conforme já referido anteriormente, o ritual também apresenta uma certa analogia
com um espetáculo de música ou teatro. Essa impressão é fortalecida pela disposição da
audiência em relação ao que se desenvolve no ritual; pelas músicas que são executadas com
extrema habilidade por ogans, cantadas por filhos-de-santo e audiência; a “cenografia” e os
“figurinos” elaborados; as performances de seus filhos-de-santo, como se fossem integrantes
de uma “companhia teatral”. E finalmente, o fato de se tratar de um drama, uma narrativa que
se desenrola com o intuito de confirmar os mitos que compõem o culto.
Mais perguntas que conclusões
O objetivo desse trabalho, como já foi sugerido, é apontar para um estudo mais
profundo sobre as manifestações da dádiva em nossas sociedades contemporâneas. Se alguma
conclusão pode ser tirada a partir dos fatos observados, ela diz respeito à confirmação de que
apesar de vivermos em uma sociedade mercantil, caracterizada por um excessivo apego às
coisas materiais, a dádiva, seja direcionada aos deuses, como forma de obter uma “proteção”
valiosa, sagrada, ou direcionada aos homens, com a finalidade de obter alianças, se mostra
viva e potente. Ao contrário das relações mercantis, onde se valorizam as coisas, as relações
estabelecidas pela dádiva reforçam as relações entre pessoas, são estas que mais apresentam
valor. É dessa forma, por exemplo, que tanto os devotos “da rua”, quanto a Tenda Espírita e
Dona Bolinha, constroem novos laços sociais e fortalecem os já existentes, embora se
verifique fortes hierarquias.
Há de se estudar com mais afinco os diversos pontos levantados no trabalho de campo
e muitos outros que por motivos diversos nem sequer foram citados. O que realmente explica
a apropriação das imagens católicas pelos cultos afro-brasileiros? Como seria a festa em um
terreiro de candomblé? Quais são as mitologias que tratam do assunto? Suas músicas? E
outras religiões? Como são os devotos evangélicos? Qual é a exegese das diversas pessoas
abordadas sobre os santos e o fenômeno? Quais as estruturas do estado de transe? Quem
realmente são essas pessoas? E como era no passado? Em outros bairros? Qual a influência
do equipamento fotográfico na relação com as pessoas retratadas? Como associar o material
fotográfico e audiovisual ao texto? Como analisar as imagens? Seria a distribuição de dons,
um recurso ideológico que mascara as desigualdades sociais? Quais os conflitos que podemos
encontrar?
Que fique claro, o trabalho apenas começou!
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