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REVISTA USP, São Paulo, n.62, p. 134-147, junho/agosto 2004 134 Cosmologia, quintessência e aceleração do universo

Cosmologia, Quintessência e Aceleração Do Universo

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    Cosmologia,quintessnciae aceleraodo universo

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    E JOS ADEMIR SALES DE LIMAJOS ADEMIR SALESDE LIMA professor doIAG-USP e da UFRN.

    PRELDIO DE UMANOVA REVOLUO CIENTFICA?

    m 1998, as medidas de distncia e velocidade de afastamento das supernovas mostraram, com

    grande preciso, que o universo est se expandindo ace-leradamente. Esse resultado alterou drasticamente a nos-sa viso do cosmos, pois, sendo a gravidade uma foraatrativa, a expanso deveria ser desacelerada, conforme seacreditou durante muitas dcadas.

    No contexto da teoria da relatividade geral, propostapor Einstein em 1915, esse fenmeno pode ser explicadopela existncia da chamada quintessncia ou energia escu-ra, uma componente extra e desconhecida de energia cujoefeito gravitacional lquido repulsivo e supera a atraogravitacional ordinria entre as partes do universo. Isola-damente, essa descoberta gerou um novo desafio s pr-prias leis da fsica, j que a nova componente no previstapelo modelo padro da fsica de partculas.

    Qual a natureza da quintessncia? Ser um campocsmico fundamental que existe desde os primrdios douniverso, e que se manifesta no presente apenas devido aoalto grau de diluio da matria csmica? Como sero osltimos estgios da evoluo do universo se a quintessn-cia for a componente dominante, ou seja, qual o destino docosmos na presena dessa componente extra? Qual a razodo nome quintessncia? Ser essa substncia uma ver-so ps-moderna do quinto elemento (transparente, inalte-rvel e impondervel), que foi essencial para tornar a

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    cosmologia grega consistente? Ou serapenas mais uma metamorfose do ter pr-relativstico?

    O presente estgio acelerado do univer-so nos remete a outras perguntas no me-nos interessantes, por exemplo: sabemosque o universo se expande, mas desde quan-do est acelerado? Talvez mais importan-te: ser possvel acelerar o universo sem apresena da quintessncia? Em caso afir-mativo, qual a teoria que dever substituira relatividade geral?

    Sem dvida, as questes acima fazemparte das indagaes mais candentes e pal-pitantes da cincia contempornea, e talcomo ocorreu na Grcia antiga e durante oRenascimento, estas e outras perguntasrelacionadas empurram novamente a astro-nomia e a cosmologia para a fronteira doconhecimento cientfico.

    RELATIVIDADE GERAL ECOSMOLOGIA

    Desde o seu nascimento na Grcia anti-ga (1), as pesquisas em cosmologia foramfundamentais para a formao de uma con-cepo cientfica da natureza. Mesmo naausncia de uma lei de movimento, Eud-xio, Aristteles e Ptolomeu formularam ummodelo cosmolgico esfrico, finito egeocntrico que perdurou por mais dequinze sculos.

    A Revoluo Astronmica, iniciadacom as contribuies de Coprnico, Keplere Galileu, chegou ao apogeu com a teoriagravitacional newtoniana, e figura at osdias de hoje como uma coluna-mestra so-bre a qual se apia a nossa viso do mundomoderno. Essa afirmao adquire um sig-nificado mais contemporneo quando con-sideramos o desenvolvimento alcanadopela fsica gravitacional do sculo XX.

    A construo da relatividade geral porEinstein, baseada na idia de um espao-tempo curvo, revelou uma teoria de gravi-tao mais precisa e dotada de uma feno-menologia extraordinariamente mais rica

    do que a teoria newtoniana. A teoria deEinstein generalizou a teoria de Newtonem diversos aspectos prevendo, por exem-plo, a existncia das ondas gravitacionais.Tal fenmeno, de natureza tipicamenterelativstica, substitui a noo errnea de ao a distncia (presente na teoria deNewton) ao estabelecer um limite para avelocidade de propagao dos distrbiosgravitacionais. Sendo esse limite dado pelavelocidade da luz no vcuo, a gravitao sereconcilia com a viso de um campo fsiconascida e lapidada pelo eletromagnetismode Faraday, Maxwell, Heaviside e Lorentz. importante ressaltar que a relatividadegeral tambm explica a origem da foragravitacional como sendo uma deforma-o do contnuo espao-tempo. Quando osefeitos de curvatura so desprezveis (cam-po fraco), a dependncia da fora com oinverso do quadrado da distncia fenome-nologicamente adotada por Newton recuperada.

    Atualmente, a compreenso fornecidapelo paradigma einsteiniano para umaampla variedade de fenmenos j pode serconsiderada uma parte essencial da hist-ria das cincias do sculo XX, emboramuitas de suas conseqncias permane-am desconhecidas, ou no devidamenteexploradas.

    Mesmo durante seu perodo de consoli-dao, a relatividade geral foi aplicada comenorme sucesso, no apenas ao sistema solar(desvio do perilio de Mercrio e deflexoda luz da estrelas no campo do Sol), mastambm no problema cosmolgico. Os re-sultados no domnio cosmolgico foramconfirmados com a descoberta da expan-so do universo, em 1929, pelo astrnomoamericano Edwin Hubble. O estado deexpanso csmica ou recesso das gal-xias um fenmeno que havia sido previs-to alguns anos antes pelo fsico-matemti-co russo Alexandr Friedmann atravs deseus modelos de big-bang. Em linhas ge-rais, o que atualmente chamamos decosmologia moderna um produto diretoda teoria gravitacional de Einstein com asobservaes astronmicas dos grandes te-lescpios e, portanto, como os demais ra-

    1 Os registros indicam que a as-tronomia nasceu na Babilnia,mas a cosmologia foi um pro-duto da cultura grega. Surgiucomo herdeira da tradio filo-sfica e matemtica estabele-cida na Grcia pelos filsofospr-socrticos.

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    mos da fsica moderna, tipicamente umadisciplina criada pela fsica do sculo XX(ver a linha evolutiva na Figura 1).

    OS PILARES DO BIG-BANG

    No modelo cosmolgico padro, o uni-verso em grande escala homogneo eisotrpico. Essa hiptese chamada deprincpio cosmolgico, e representa umaextenso csmica do princpio de Coprnico(a Terra no ocupa uma posio privile-giada no espao). Matematicamente, issosignifica que todas as posies e todas asdirees espaciais no universo so equiva-lentes.

    Nesse modelo, o cosmos inicia sua evo-luo a partir de uma grande exploso (big-bang) com densidade e temperatura extre-mamente altas (densidade de Planck =~1094gramas/cm3 e temperatura de Planck =~1032

    K), valores que caracterizam o chamadoestado singular inicial. Nos estgios subse-qentes, o universo se expandiu e esfriourapidamente, um efeito que permitiu a for-mao das galxias, das estrelas e final-mente da prpria vida. A fantstica varia-o de temperatura ao longo de sua evolu-o significa que o universo um sistemafsico mpar, para o qual os conceitos e tc-nicas matemticas desenvolvidas nos maisvariados campos da fsica de altas ener-gias a baixas temperaturas podem serrelevantes para estabelecer os detalhes dahistria csmica.

    As principais descobertas observacio-nais que sustentam a cosmologia do big-bang so:

    1) A lei de Hubble, a manifestao maisdireta da expanso universal.2) A nucleossntese cosmolgica, que per-mitiu determinar a evoluo e as abundn-cias csmicas dos elementos leves. Esseprocesso desempenha um papel crucialcomo condio de contorno para entenderos primeiros instantes do big-bang, e tam-bm limitar os parmetros fsicos dos mo-delos (as abundncias observadas dos ele-mentos mais leves, tais como, hidrognio,deutrio, hlio e ltio, no so explicveispor uma sntese exclusivamente estelar).3) A radiao csmica de fundo (RCF) de3K, uma verdadeira pedra da Roseta (2)para a cosmologia, pois permitiu estabele-cer as chamadas eras csmicas, relacionan-do tempo com temperatura, e assim deter-minando as condies fsicas reinantes emcada estgio da evoluo do universo.

    A cosmologia moderna foi iniciada por Einstein (1917), ao propor ummodelo de universo esttico. Em 1922, Friedmann obteve as soluesexpansionistas, posteriormente denominadas de cosmologias do big-bang(grande exploso) por Fred Hoyle. Desde a descoberta da expanso douniverso (1929), acreditava-se que o universo se expandiadesaceleradamente, pois a gravidade uma fora atrativa. Em 1998, asobservaes de supernovas do tipo Ia mostraram que a expanso estacelerada. Esse resultado marcou o incio da cosmologia contempornea.

    Figura 1

    2 A pedra da Roseta permitiu adecifrao dos hierglifos e areconstituio da histria egp-cia. O papel correspondentena cosmologia desempenha-do pela radiao csmica defundo de 3K. A descrio dopassado trmico do universo (eda fsica associada) s foi pos-svel em 1965, ao se medir atemperatura dessa radiao.

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    4) As observaes indiretas da matria es-cura, uma componente no-luminosa dematria (de origem primordial) que permeiao universo em diversas escalas, sendo muitomais abundante do que a matria luminosabarinica (ver artigo de Laerte Sodr nestedossi).

    Uma descrio dinmica do universoexige o conhecimento de pelo menos trsparmetros fsicos: o parmetro de Hubble H0 que mede a presente taxa de expan-so, o parmetro de desacelerao q0 que mede a variao da taxa de expanso(se o universo acelera ou desacelera), e oparmetro de densidade 1i que mede acontribuio relativa de cada componentedo fluido csmico (i =1,2,3,.etc. denota umacomponente especfica). O valor total doparmetro de densidade tambm umaquantidade importante, pois determina se ageometria espacial do universo fechada,aberta ou plana (ver Figura 3) .

    No modelo padro, o universo umamistura de quatro componentes: brions

    (prtons e nutrons) que, juntamente comos eltrons, so responsveis pela luz dasgalxias (1b), os ftons da radiao csmi-ca de fundo (1y), os neutrinos (1v) e a ma-tria escura (1M). Este quadro no era ain-da completamente coerente, pois havia-dois problemas com o chamado modelopadro, um terico e outro observacional.No cenrio favorito dos tericos, o par-metro de densidade total, ou seja, a somados parmetros das quatro componentes,1T = 1b+ 1y+1v+1 M, igual a 1 e, portanto,o universo seria espacialmente plano (verFigura 2). Essa condio foi teoricamenteprevista no incio dos anos 80, pelos cha-mados cenrios inflacionrios (3) (ver arti-go de Raul Abramo).

    No entanto, diversas observaes inde-pendentes indicavam 1T=~ 0.3, um valor bemmenor do que a unidade. Esse valor corres-ponde, basicamente, ao parmetro de den-sidade da matria escura fria, cerca de 10vezes maior do que 1b o parmetro dedensidade da matria luminosa e aproxi-madamente 5.000 vezes maior do que a con-tribuio dos ftons e neutrinos.

    Existia ainda o problema da idade. Asestruturas mais velhas observadas no uni-verso, os aglomerados globulares gruposcom cerca de 105-6 estrelas apresentavamuma idade entre 13 e 14 bilhes de anos(ver artigo de Beatriz Barbuy). Essa idade muito maior do que os 9,9 bilhes de anoscalculados pelo modelo com matria escu-ra fria e 1T =1. O quadro descrito acima re-sume a situao at meados da dcada de 90.O modelo plano com matria escura fria (colddark matter na literatura inglesa) um mo-delo desacelerado, pois tem q0=1/2 (mode-los com valores positivos de q0 so sempredesacelerados). A relao 1T = 2qo sem-pre vlida para modelos do tipo Friedmann,e como 1T sempre positivo, isso significa

    Figura 2

    Descoberta da expanso do universo. Diagrama original de Hubble mostrando que asgalxias se afastam com uma velocidade proporcional distncia. Um resultado que foiconfirmado para dezenas de milhares de galxias. A recesso das galxias foi a primeirapreviso do big-bang observacionalmente verificada.

    3 A inflao foi um breve eventode expanso acelerada, supos-tamente provocado por umatransio de fase que aconte-ceu no universo primitivo. Aocorrncia da inflao funda-mental para o processo de for-mao de galxias ter umaorigem causal.

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    que o modelo padro prev um universodesacelerado (qo > 0) e, conseqentemente,um baixo valor para a idade do universo.Em geral, um valor negativo de q0 no erasequer considerado como hiptese de tra-balho pelos tericos, pois a gravidade umafora atrativa.

    importante tambm mencionar que aconstante cosmolgica, R, foi introduzidapor Einstein em 1917 com a finalidade ex-clusiva de obter um universo esttico. SeR pode evitar o colapso da matria sob aode sua prpria gravidade, tal como ocorrena soluo esttica, tambm ser capaz deacelerar um universo em expanso. Contu-do, aps a descoberta da recesso das gal-xias, o criador renegou a criatura. Em 1931,Einstein considerou que a introduo daconstante cosmolgica foi o grande equ-voco de sua vida acadmica, classificando-a no apenas como uma hiptese desneces-sria, mas que tambm afetava a prpriabeleza da relatividade geral; uma teoria semparmetros livres (4).

    Fazendo um contraponto com a visode Einstein, os cosmlogos, que no tinhamum motivo observacional convincente paradesprezar a constante cosmolgica, conti-nuaram com a mente aberta, tratando Rcomo uma possibilidade terica. O primei-ro deles foi Georges Lematre, ainda nadcada de 30, que associou a contribuioda constante cosmolgica com uma poss-vel soluo para o problema da idade. Umavez libertado, o gnio R no queria voltarpara a garrafa! Como um resultado dessaprtica, a comunidade cientfica vem assis-tindo, desde o incio dos anos 30, a umverdadeiro festival de morte e ressurreioda constante cosmolgica, a ltima delasprovocada pelas recentes observaes desupernovas.

    SUPERNOVAS E ACELERAODO UNIVERSO

    Aps o trabalho de Hubble, estabele-ceu-se rapidamente um consenso nas co-munidades dos astrnomos e cosmlogos.Para se ter mais informaes sobre a geo-metria do universo e o seu estado de expan-so seria necessrio medir velocidades edistncias de objetos cada vez mais afasta-dos, de preferncia, situados nos confinsdo universo. O objetivo central era medir oparmetro q0. Medidas de velocidades sorelativamente simples e de grande preci-so, pois so baseadas no chamado efeitoDoppler. Para um universo em expanso,tal efeito se traduz no desvio para o verme-lho das linhas espectrais dos objetos dis-tantes. Esse desvio espectral quantificadopelo parmetro de redshift z, que represen-ta um tipo de medida tica da velocidadede afastamento.

    Toda poro esfrica do universo pode ser vista como uma bola cujo raio R(t) uma funodo tempo. O volume cresce com o cubo do raio e a temperatura diminui com o seu inverso:o universo se expande e esfria. A geometria espacial do universo definida pelo parmetro dedensidade total 1T. A geometria do universo esfrica, plana ou aberta se 1T for,respectivamente, maior, igual ou menor do que 1.

    Figura 3

    4 Teorias fundamentais da fsicageralmente no apresentamparmetros livres, e represen-tam o mximo do ideal tericoa ser atingido num determina-do campo. Uma nica previ-so malsucedida suficientepara eliminar tais teorias.

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    Por outro lado, medidas de distncia emcosmologia envolvem o conhecimento deduas quantidades fsicas da luz emitidapelos objetos L e F chamadas deluminosidade absoluta e luminosidade re-lativa (ou fluxo de energia), respectivamen-te. Em termos dessas quantidades, a distn-cia de luminosidade empiricamente defi-nida como DL = (L/4/F)1/2. A luminosidadeabsoluta, L, a quantidade total de energiaque o objeto emite por segundo, enquantoF a quantidade de energia coletada porunidade de rea e de tempo no espelho (ouno detector) do telescpio, ou seja, o fluxode energia recebido. A segunda facilmen-te mensurvel, mas a primeira precisa serestimada, o que geralmente feito atravsde uma propriedade fsica do objeto. Acurva experimental procurada pelos obser-vadores DL (z).

    Um gigantesco esforo foi canalizadopelos astrnomos, ao longo de vrias dca-das, visando estabelecer os melhores indi-cadores de distncia, conhecidos na litera-tura como velas-padro. Embora as gal-xias fossem os candidatos naturais, a deter-minao de sua luminosidade absoluta L(com a preciso necessria) envolve mui-tas dificuldades, j que galxias so entida-des compostas, formadas por uma infini-dade de estrelas. Portanto, a grande solu-o para esse problema seria identificarobjetos simples que brilhassem tanto quantoas galxias, e que tivessem a sua lumino-sidade L definida com boa preciso. Noincio dos anos 90 comeou a ficar claroque para seguir adiante era preciso apelarpara o brilho extremo das supernovas.

    A supernova uma gigantesca explo-so que representa a destruio termonu-

    Distncia em funo redshift z para os dados de supernovas (adaptado de Perlmutter et al.).A parte colorida um zoom do pequeno retngulo na parte superior. As regies amarela e lilsrepresentam os possveis universos acelerados e desacelerados. As linhas verde (SCDM) e azul(OCDM) so as previses tericas dos modelos de Friedmann. SCDM e OCDM significam modelopadro (plano) e modelo aberto com matria escura fria. A linha vermelha um modelo aceleradocom constante cosmolgica. Mesmo visualmente os dados favorecem o modelo acelerado.

    Figura 4

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    clear de uma estrela. Essa exploso lanaenergia no espao em quantidades extraor-dinrias. O brilho total de uma supernova de cerca de 10 bilhes de estrelas iguais aonosso Sol, e, portanto, rivaliza com o bri-lho de uma galxia inteira e com uma van-tagem adicional: sendo um nico corpo,sua luminosidade absoluta pode ser (e temsido) determinada com grande preciso.

    Existia, contudo, uma dificuldade ine-rente ao uso das supernovas como velas-padro. A freqncia desse tipo de explo-so numa galxia de cerca de um eventoem mdia a cada 50 anos. Tnhamos por-tanto um grande dilema: precisvamos dassupernovas, mas essas velas eram raras ealeatrias! Em termos prticos, seria umabsurdo completo algum pedir tempo detelescpio para observar futuras explosesde supernovas!

    Duas equipes independentes de astr-nomos, envolvendo diversas universidadesem vrios continentes, resolveram esseproblema quase simultaneamente, estabe-lecendo o que podemos chamar de um ver-dadeiro experimento astronmico (paradiferenciar da observao passiva). Os doisgrupos, liderados, respectivamente, porBrian Schmidt (High Z Supernova SearchTeam) e Saul Perlmutter (SupernovaCosmology Project), adotaram a seguintemetodologia na caa das supernovas. Nolugar de se observar uma nica galxia comum grande telescpio, faziam-se duas ima-gens consecutivas da mesma regio do cu(separadas por um intervalo de trs sema-nas), envolvendo cerca de 1.000 galxiasem diferentes distncias. Repetindo a mes-ma estratgia para 100 regies distintasteremos no total cerca de 100.000 galxiasobservadas.

    Por que o intervalo de trs semanas entreas duas imagens? Pelo fato de a explosode uma supernova do tipo Ia chegar ao seubrilho mximo aproximadamente nesseperodo, aps o qual a intensidade decrescerapidamente e a supernova distante se tor-na invisvel.

    No final do ms as duas imagens sosuperpostas. Qualquer ponto luminoso adi-cional um bom candidato a supernova,um evento que deve ser altamente provvelde acontecer, pois agora se observam cercade 100.000 galxias simultaneamente. Umavez identificado o ponto luminoso adicio-nal aponta-se imediatamente o telescpioespacial Hubble para a supernova e deter-mina-se a sua luminosidade absoluta L, o

    Diagrama no espao (1R , 1M). Os contornos representam as anlises realizadas pelos dois

    grupos. Os valores dos parmetros se encontram na regio acelerada (branca), com umelevado nvel de confiana estatstica. A faixa transversal azul so os dados da radiao csmicade fundo obtidos pelos experimentos do Boomerang e Maxima em 2001. Esses experimentosforam os primeiros na histria da cosmologia a fixar 1T = 1. Note que os resultados desupernovas e da RCF so ortogonais (um fato referido como concordncia csmica!).

    Figura 5

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    que permite calcular a distncia. Natural-mente, a disponibilidade quase sincroniza-da dos grandes telescpios em terra com otelescpio espacial Hubble uma boa me-dida da dimenso e da responsabilidadesubjacente aos projetos envolvendo as ob-servaes de supernovas.

    Essa verdadeira engenharia astron-mica permitiu (at o ano de 1997) a iden-tificao de mais de uma centena desupernovas (Figura 4). As medidas dasdistncias e velocidades desses objetos com a preciso necessria estenderamo chamado diagrama de Hubble-Sandagepara distncias e velocidades inima-ginveis at meados da dcada de 90. Osdados apresentados na Figura 4 podemtambm ser analisados de uma forma al-ternativa que tambm bastanteilustrativa (ver Figura 5). A distncia deluminosidade, DL (z), pode ser expressacomo um produto do inverso do parme-tro de Hubble H0 por uma funo P quedepende dos diversos parmetros de den-

    rvore genealgica da quintessncia. As supernovas (SNe) do tipo Ia fornecem a evidnciamais direta da expanso acelerada (q0 < 0). Os dados da Radiao Csmica de Fundo (RCF)implicam que o universo plano (1T = 1). Por subtrao da matria escura temos 1Q = 0,7(70% do universo quintessncia!). Modelos com expanso acelerada resolvem facilmente oproblema da idade do universo.

    Figura 6

    sidade e do redshift z. Para um modelocom constante cosmolgica R, por exem-plo, temos:

    DL (z) = cH01 P (1R , 1M , z)

    onde c = 3.1010 cm/s a velocidade da luz.Como a distncia de luminosidade e o pa-rmetro z so medidos, no lugar de traarum grfico de DL como uma funo de zpara valores fixos de 1Re 1M (Figura 4), mais conveniente (e pedaggico) estudar oespao dos parmetros (1

    R, 1M), ou seja,

    construir o grfico de 1R como uma funo

    de 1M para os valores observados de DL e z(Figura 5). importante tambm enfatizarque a expresso exata para DL(z), tal comoescrita acima, tambm est de acordo coma lei de Hubble para pequenos valores doredshift. De fato, no limite de baixosredshifts (z = v/c

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    tria e sua estrutura de larga escala (verFigura 6).

    Esse conjunto de observaes implicatambm que o universo atual basicamen-te formado por brions (elementos pesa-dos), ftons, neutrinos, matria escura, almda substncia extra que acelera o univer-so. Sendo esse ltimo o quinto e o maisabundante dos componentes bsicos (cer-ca de 70% da energia e da matria do uni-verso), o que justifica sua denominao dequintessncia nome anteriormente con-sagrado pela tradio grega pr-socrtica.

    Embora os dados de supernovas tenhamsido originalmente analisados no contextodos modelos com constante cosmolgica(energia do vcuo), atualmente existemvrios candidatos a quintessncia conviven-do na literatura; todos compatveis com osdados existentes at o presente. Portanto,mesmo considerando que o problema damultiplicidade de candidatos no foi aindaresolvido pelo confronto direto com osdados obtidos at o presente, muitas ques-tes esto sendo investigadas. A mais im-portante delas, sem sombra de dvidas, saber qual a natureza da quintessncia, poissua abundncia csmica caso esta com-ponente exista j est determinada (70%de todo o contedo csmico).

    COMO ACELERAR O UNIVERSO?

    A idia de quintessncia quinto ele-mento como um tipo especial de matriapreenchendo o cosmos foi originalmenteintroduzida pelos gregos. Na cosmologiaaristotlica, por exemplo, o universo seriafinito, esttico e formado por cinco elemen-tos primordiais: gua, ar, terra, fogo e quin-tessncia. O quinto elemento seria umasubstncia diferente das outras; transparen-te, inaltervel e impondervel; uma mat-ria-prima que formaria a Lua, os planetas(diferentes da Terra), o Sol e as estrelas. Aquintessncia era um elemento essencialpara tornar o modelo cosmolgico gregoconsistente. Na viso filosfica dos gre-gos, os elementos pesados deveriam cair

    para o seu lugar natural (o centro da Terra),contudo, a Lua mesmo parecendo pesadano cai. Provavelmente, isso explica a ori-gem da quintessncia como substncia for-madora dos corpos celestes e, como tal, noprecisaria cair.

    luz do renascimento cientfico e darevoluo newtoniana, podemos afirmarque a quintessncia surgiu para resolver umproblema de acelerao, um conceito desconhecido pelos gregos que permiti-ria sustentar a Lua e os demais corpos ce-lestes em suas rbitas.

    Como foi visto, as observaes de super-novas combinadas com outros resultadosindependentes esto indicando (com gran-de preciso) que o universo se expande ace-leradamente. Portanto, fundamental com-preender como a quintessncia (ou energiaescura) pode acelerar o universo e, princi-palmente, no contexto da relatividade ge-ral, qual deve ser o seu atributo bsico.

    A gravidade da matria normal (densidade positiva) sempre atrativa e portanto provoca desacelerao, ouseja, o parmetro q0 > 0 (curva cncava para baixo).

    Figura 7A

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    Primeiro vamos entender como poss-vel acelerar o universo. Em grande escala,o universo espacialmente homogneo eisotrpico, sendo modelado por um fluidoperfeito (na realidade uma mistura de flui-dos) com densidade total de matria-ener-gia l e uma presso p. Matematicamente, ouniverso ser acelerado ou desacelerado sea curva descrevendo o fator de escala comouma funo do tempo for cncava ou con-vexa, respectivamente (ver Figuras 7A e7B). Esse comportamento depende apenasdo sinal da soma l + 3p. No modelo semquintessncia essa soma sempre positiva,o que implica uma curva cncava (Figura7A). Nesses modelos (dominados por ma-tria escura fria), temos l > 0 e a pressototal praticamente nula. De fato, a mat-ria escura se comporta como um fluido sempresso, e devido ao alto grau de diluiodo universo a presso positiva oriunda dasoutras componentes (brions, ftons eneutrinos) tambm desprezvel. Isso ex-plica por que os modelos da classe deFriedmann so todos desacelerados, inde-pendente do valor do parmetro de densi-

    dade. Portanto, para se ter um parmetro dedesacelerao negativo (modelo acelera-do), preciso que exista uma componentecom presso suficientemente negativa, deforma tal que a soma lM + lQ + 3pQ sejamenor do que zero.

    Segue das consideraes acima umaconcluso inevitvel: no contexto da rela-tividade geral s possvel acelerar o uni-verso se existir uma componente extra compresso suficientemente negativa.

    A presso da quintessncia deve satis-fazer a desigualdade pQ < (lM + lQ)/3 .Nesse caso, como mostrado na Figura 7B,a curva do fator de escala se torna convexa.

    Embora considerando que essa novacomponente modifica a viso tradicionaldo universo, o desconhecimento de sua na-tureza, ou equivalentemente, a inexistn-cia de um candidato natural oriundo, porexemplo, da fsica de partculas, tem pro-vocado um intenso debate e estimuladomuitas especulaes. Pelo menos cincocandidatos foram propostos na literaturarecente:

    1) constante cosmolgica R;2) campos escalares (R, V(q));3) modelos com decaimento do vcuo R(t);4) matria X (px = tlx , t< 0);5) gs de Chaplygin.

    A lista acima no exaustiva o sufici-ente para incluir todos os candidatos poss-veis como se poderia pensar primeira vista.A propriedade comum desses candidatos ter presso negativa, e como essa a con-dio bsica para um universo acelerado,existem vrias outras possibilidades, oca-sionalmente, discutidas na literatura.

    A constante cosmolgica R o candi-dato tradicional o mais simples do pon-to de vista matemtico (por ser constante!). uma proposta de quintessncia espacial-mente uniforme e independente do tempo,interpretada como um fluido relativsticoobedecendo a equao de estado, p

    6 =

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    vrios fenmenos qunticos, tais como odesvio espectral das linhas do tomo de hi-drognio (lamb shift) e no chamado efeitoCasimir (atrao de placas metlicasdescarregadas no vcuo).

    No entanto, existe um problema funda-mental associado com esse candidato, o qualtem sido usualmente denominado de pro-blema da constante cosmolgica. Sendobreve, no mnimo surpreendente que o li-mite cosmolgico da densidade de energiado vcuo difira das expectativas tericas emmais de 100 ordens de magnitude (10120).Este um problema localizado na interfaceunindo astrofsica, cosmologia e teoria qun-tica de campos, e que tem sido consideradopor alguns autores como a maior crise dafsica moderna. Num certo sentido, pode-mos dizer que esse problema atua como umaverdadeira espada de Damocles sobre a so-luo de uma constante cosmolgica para opresente estado acelerado do universo. Na-turalmente, a existncia desse problema temsido um grande estmulo para as pesquisapor candidatos alternativos.

    O segundo candidato o campo esca-lar q o que foi originalmente batizadode quintessncia por Paul Steinhardt e co-laboradores. Contudo, a denominao ge-nrica de quintessncia para qualquer umdos candidatos acima apropriada, poisqualquer um deles o quinto e mais abun-dante dos elementos. Como ocorre numsistema massa-mola, cada campo escalar caracterizado pelo seu potencial V(q).Embora no existam muitos exemplos con-cretos de partculas escalares na fsica,muitas solues com presso efetiva nega-tiva so possveis nesse caso, dependendoda forma do potencial. Por questes degeneralidade e uma melhor fundamenta-o matemtica, depois da constantecosmolgica, o campo escalar tem a prefe-rncia dos tericos.

    O terceiro candidato (termo R(t)) baseado na idia de que a densidade de ener-gia do vcuo no precisa permanecer cons-tante, podendo decair continuamente aolongo da histria csmica. A variao de Rcom o tempo seria devido interao dovcuo (troca de energia) com as outras

    componentes, com a densidade do vcuodiminuindo ao longo da expanso. Essesmodelos tentam reconciliar o pequeno va-lor presentemente observado de R com ovalor absurdamente alto sugerido pelas teo-rias de campo. Nesse sentido, pode-se di-zer que R pequeno porque o universo muito velho. Esses modelos geram entropia,ocorrendo uma produo de matria e ener-gia a expensas da energia do vcuo.

    O quarto candidato uma simplesparametrizao que generaliza a forma tra-dicional das equaes de estado, usualmen-te utilizadas em cosmologia. O parmetrot negativo para poder acelerar o univer-so. Finalmente, temos o gs de Chaplygin(5), um candidato cuja descrio mais fun-damental foi recentemente justificada viateoria de cordas, embora sua origem pri-meira tenha sido a teoria de fluidos.

    Na realidade, mesmo considerando queestamos atravessando um perodo extraor-dinrio na cosmologia observacional, osdados existentes ainda so insuficientespara determinar qual o melhor dentre osvrios candidatos a energia escura; numclaro sinal de que observaes mais preci-sas so necessrias para testar as hiptesese suas previses bsicas. Em particular, issosignifica que a determinao de parme-tros cosmolgicos continuar a ser a metacentral das investigaes no futuro prxi-mo. O propsito fundamental da pesquisaatual em cosmologia descobrir a naturezada quintessncia. Naturalmente, a situao um pouco desconfortvel tanto do pontode vista terico quanto observacional, poiso paradigma emergente mais complexodo que o cenrio tradicional proporciona-do pelo modelo de Einstein de Sitter. Almdisso, existe a matria escura, o que podeinduzir algum a pensar que estamos dian-te de mais uma gerao de epiciclos,equantes e deferentes tal como ocorreu nomodelo ptolomaico. Contudo, bom lem-brar que os status da matria escura e daquintessncia so bem distintos. Embora amatria escura no tenha tambm sido de-tectada em laboratrio, existe uma srie decandidatos oriundos da fsica de partculascuja natureza bem estabelecida. Atual-

    5 S. A. Chaplygin foi um fsico-matemtico russo que deu im-portantes contribuies emmecnica de fluidos no inciodo sculo XX. A presso de umgs do tipo Chaplygin nega-tiva. Sua equao de estado dada por p = A/l, onde A um parmetro positivo.

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    mente, vrios experimentos visando a suadeteco em laboratrios terrestres estoem andamento (ver artigo de RogrioRosenfeld).

    A quintessncia, junto com a matriaescura, responde por cerca de 95% do con-tedo total de matria e energia que preen-che o cosmos (os 5% restantes so das ou-tras trs componentes). Diferente da mat-ria escura, que no relativstica e sempresso, a quintessncia relativstica e tempresso negativa. Embora dominante, suadensidade extremamente pequena, e afraca interao com a matria ordinria,provavelmente, tornar impossvel suaidentificao em laboratrio.

    realmente um tempo de conflitos edvidas. No entanto, estamos vivenciandoo momento mais excitante do desenvolvi-mento da cosmologia, pois, embora pre-servando alguns aspectos da fsica bsica,um novo protagonista invisvel, que nofoi previsto pela fsica de partculas, pare-ce ter definitivamente tomado a cena. Aquintessncia responsvel por uma gra-vidade repulsiva e, potencialmente, podealterar profundamente a nossa viso tradi-

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    KRAUSS, L. Antigravidade Cosmolgica. Scientific American Brasil 1 (2003)._____. Quintessence: The Mistery of Missing Mass in the Universe. New York, Basic Books, 2000.LIMA, J. A. S. Alternative Dark Energy Models: An Overview. Brazilian Journal of Physics 34, 194 (2004).OSTRIKER, J. P. & STEINHARDT, P. J. O Universo Quintessencial. Scientific American Brasil 1 (2003).PEEBLES, P. J. Cosmologia Moderna. Scientific American Brasil 1 (2003).RIESS, A. G. & TURNER, M. S. Da Desacelerao para a Acelerao. Scientific American Brasil 22 (2004).

    cional de espao, tempo e matria.Por outro lado, caso a quintessncia no

    exista, nossa melhor teoria gravitacionalsofrer um golpe fatal, pois aparentementeno h outra maneira de acelerar o universono mbito da relatividade geral. Uma alter-nativa que vem sendo examinada na litera-tura que a gravidade possa ser diluda nasdimenses extras. Esse o esquema maispromissor oferecido pela atual teoria decordas e de membranas. Um conflito dedoutrinas ser inevitvel. Contudo, essechoque no deve ser visto como uma cats-trofe para a cincia do cosmos, e sim comouma grande oportunidade para os espritoscriativos.

    No atual estgio da fsica, para avan-armos no entendimento da natureza pre-ciso investir na compreenso do cosmos o nosso sistema maior , a ltima fronteirana busca do conhecimento. Nesse contex-to, a natureza da quintessncia (ou sua ne-gao!) juntamente com outros problemasda cosmologia contempornea iro desem-penhar um papel extremamente relevantena construo do novo paradigma quenortear a cincia do sculo XXI.

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