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Cossutta, F. Elementos para a leitura de textos filosóficos. Tradução Ângela de N. Begnami, Milton Arruda, Clemence Jouet-Pastré e Neide Sette. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 0. Introdução - O método aqui não pode nem dispensar a análise nem substituí-la, mas deve guiar o leitor que a dificuldade dos textos entusiasma e desorienta. 0.1 Problemas de método - O método abrange três dificuldades: 0.1.1. O impasse do bom senso – É de simples “bom senso” entender inicialmente o método como sendo um conjunto de receitas de como fazer. Todos dizem “é preciso aprender a ler”, sem que nunca as regras de leitura sejam explicitadas. Reforça-se o sentimento de que somente leem aqueles que sabem ler, ou que filosofar não se aprende como se aprende outras disciplinas. 0.1.2. Limites da linguística – Somos tentados a escorar o método numa ciência constituída do discurso filosófico. Pensamos que a linguística permita certa renovação das práticas de análise. Esta é uma disciplina na qual as diferenças entre tipos de método e de objeto se recortam e se desfazem perpetuamente. Além disso, as escolhas implicam opções fundamentais sobre a natureza da linguagem, da língua e do discurso. Desse modo, os problemas epistemológicos remetem a decisões filosóficas; vemo-nos fechados na filosofia quando pensávamos apreendê-la do exterior. Assim, em vez de transpor um quadro teórico avançado para um ganho de inteligibilidade minimo, melhor usar algumas categorias confiáveis cuja generalidade nos permitirá evitar observações de mero bom senso e fugir ao empirismo, mas que não dependem apenas da linguística. 0.1.3. Dificuldades filosóficas – Outro obstáculo: Parece que toda obra filosófica (uma característica do gênero) elabora, ou pretende, as condições de sua validade, e, portanto, enuncia as regras de sua leitura; de forma que estaríamos presos dentro de cada obra. Entretanto, se cada filosofia explicita as condições de possibilidade de sua leitura, descobrimos ai um fenômeno geral para escapar das contradições que fazem da filosofia um perpétuo confronto. Observando que todas as obras constroem uma teoria geral do conhecimento, do sentido e da linguagem, deduze-se daí uma teoria da produção de sentido. Vê-se que a objeção precedente do circulo vale igualmente neste caso. Cada um quer escapar do circulo de interpretações e todos ai adentram no momento em que tentam evitá-lo. Isso atesta que encontramos fenômenos gerais que manifestam as propriedades especificas da reflexão filosófica. Mas como apreendê-los? Pela filosofia? Seria contraditório com o já afirmado. Por uma disciplina filosófica? Correríamos o risco de cair nos impasses já descritos. Face a esses obstáculos, estamos frente a um dilema: dispomos de teorias elaboradas e que desenvolvem uma concepção geral do sentido, porém elas oferecem só um interesse prático fraco. 0.2 Como transpor essas dificuldades? - A aprendizagem da leitura só pode ser filosófica; nada pode dispensar a reflexão. Entretanto, não significa a inutilidade de uma tentativa metodológica. A análise dos obstáculos nos leva a consciência da particularidade da filosofia: trata-se de um texto que visa a universalidade e que, para atingi-la, deve apagar sua singularidade, a qual todo olhar dirigido a história atesta. Isso nos encoraja a procura de mecanismos gerais com os quais a filosofia se produz como tal nos textos: Funções gerais que digam o que torna um texto filosófico. Tomamos duas: Todo texto filosófico tenta mediatizar a relação do particular ao universal, e o que torna as filosofias contraditórias é o que as aproxima. Muitas outras hão. Toda filosofia deve, implícita ou explicitamente, validar sua própria possibilidade enunciativa; deve efetuar escolhas em face da exigência que comanda sua ordenação: ordem da descoberta, ordem lógica (razões) e ordem da exposição. Cada filosofia resolve de modo diverso esse problema, podemos até construir uma tipologia das formas de resolução. É possível interpor uma solução intermediária, nem engajada demais numa problemática determinada nem muito diretamente dependente de uma teoria do discurso com fundamentos frágeis. Deve-se evitar reduzir o texto a uma única dimensão, como a argumentação ou a análise conceitual. Um texto é um conjunto complexo “estratificado” e encadeado numa linearidade do tempo e da escrita. Essas dimensões se cruzam graças a uma série de referências internas que colocam em co-presença ideal todos os momentos do desenvolvimento. 0.3 Por onde começar? - Só iniciamos a apossar-nos dum pensamento quando, ao ler, uma passagem se enriquece com o conteúdo de fragmentos precedentes, graças a reativações constantes. A estranheza inicial dum estilo vai cedendo a uma familiaridade tal que torna o leitor capaz de percorrer novamente, e com maior facilidade, o itinerário proposto e engendrar o texto, pondo a funcionar os mecanismos de pensamento que este efetua. Para isso é preciso ler e reler, eis a dificuldade (é necessário aplicar-se para distinguir o

cossutta, f. elementos para a leitura de textos filosoficos. tradução. são paulo_ martins fontes, 2001

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Cossutta, F. Elementos para a leitura de textos filosóficos. Tradução Ângela de N. Begnami, Milton Arruda, Clemence Jouet-Pastré e Neide Sette. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

0. Introdução - O método aqui não pode nem dispensar a análise nem substituí-la, mas deve guiar o leitor que a dificuldade dos textos entusiasma e desorienta.

0.1 Problemas de método - O método abrange três dificuldades:

0.1.1. O impasse do bom senso – É de simples “bom senso” entender inicialmente o método como sendo um conjunto de receitas de como fazer. Todos dizem “é preciso aprender a ler”, sem que nunca as regras de leitura sejam explicitadas. Reforça-se o sentimento de que somente leem aqueles que sabem ler, ou que filosofar não se aprende como se aprende outras disciplinas.

0.1.2. Limites da linguística – Somos tentados a escorar o método numa ciência constituída do discurso filosófico. Pensamos que a linguística permita certa renovação das práticas de análise. Esta é uma disciplina na qual as diferenças entre tipos de método e de objeto se recortam e se desfazem perpetuamente. Além disso, as escolhas implicam opções fundamentais sobre a natureza da linguagem, da língua e do discurso. Desse modo, os problemas epistemológicos remetem a decisões filosóficas; vemo-nos fechados na filosofia quando pensávamos apreendê-la do exterior. Assim, em vez de transpor um quadro teórico avançado para um ganho de inteligibilidade minimo, melhor usar algumas categorias confiáveis cuja generalidade nos permitirá evitar observações de mero bom senso e fugir ao empirismo, mas que não dependem apenas da linguística.

0.1.3. Dificuldades filosóficas – Outro obstáculo: Parece que toda obra filosófica (uma característica do gênero) elabora, ou pretende, as condições de sua validade, e, portanto, enuncia as regras de sua leitura; de forma que estaríamos presos dentro de cada obra. Entretanto, se cada filosofia explicita as condições de possibilidade de sua leitura, descobrimos ai um fenômeno geral para escapar das contradições que fazem da filosofia um perpétuo confronto. Observando que todas as obras constroem uma teoria geral do conhecimento, do sentido e da linguagem, deduze-se daí uma teoria da produção de sentido. Vê-se que a objeção precedente do circulo vale igualmente neste caso. Cada um quer escapar do circulo de interpretações e todos ai adentram no momento em que tentam evitá-lo. Isso atesta que encontramos fenômenos gerais que manifestam as propriedades especificas da reflexão filosófica. Mas como apreendê-los? Pela filosofia? Seria contraditório com o já afirmado. Por uma disciplina filosófica? Correríamos o risco de cair nos impasses já descritos. Face a esses obstáculos, estamos frente a um dilema: dispomos de teorias elaboradas e que desenvolvem uma concepção geral do sentido, porém elas oferecem só um interesse prático fraco.

0.2 Como transpor essas dificuldades? - A aprendizagem da leitura só pode ser filosófica; nada pode dispensar a reflexão. Entretanto, não significa a inutilidade de uma tentativa metodológica. A análise dos obstáculos nos leva a consciência da particularidade da filosofia: trata-se de um texto que visa a universalidade e que, para atingi-la, deve apagar sua singularidade, a qual todo olhar dirigido a história atesta. Isso nos encoraja a procura de mecanismos gerais com os quais a filosofia se produz como tal nos textos: Funções gerais que digam o que torna um texto filosófico. Tomamos duas: Todo texto filosófico tenta mediatizar a relação do particular ao universal, e o que torna as filosofias contraditórias é o que as aproxima. Muitas outras hão. Toda filosofia deve, implícita ou explicitamente, validar sua própria possibilidade enunciativa; deve efetuar escolhas em face da exigência que comanda sua ordenação: ordem da descoberta, ordem lógica (razões) e ordem da exposição. Cada filosofia resolve de modo diverso esse problema, podemos até construir uma tipologia das formas de resolução. É possível interpor uma solução intermediária, nem engajada demais numa problemática determinada nem muito diretamente dependente de uma teoria do discurso com fundamentos frágeis. Deve-se evitar reduzir o texto a uma única dimensão, como a argumentação ou a análise conceitual. Um texto é um conjunto complexo “estratificado” e encadeado numa linearidade do tempo e da escrita. Essas dimensões se cruzam graças a uma série de referências internas que colocam em co-presença ideal todos os momentos do desenvolvimento.

0.3 Por onde começar? - Só iniciamos a apossar-nos dum pensamento quando, ao ler, uma passagem se enriquece com o conteúdo de fragmentos precedentes, graças a reativações constantes. A estranheza inicial dum estilo vai cedendo a uma familiaridade tal que torna o leitor capaz de percorrer novamente, e com maior facilidade, o itinerário proposto e engendrar o texto, pondo a funcionar os mecanismos de pensamento que este efetua. Para isso é preciso ler e reler, eis a dificuldade (é necessário aplicar-se para distinguir o

essencial). Cada filosofia acaba por prescrever as condições de sua leitura, não há um método universal; mas encontra-se procedimentos e experiências comuns. Ler um texto é colocar-se de imediato diante das operações que efetuam seu sentido e conferem unidade, o que nos leva a duas funções (a seguir).

0.3.1. Unidade dada pelas referências internas – A primeira função é tudo que confere ao texto a sua coesão interna. Ler é fazer um constante movimento de vaivém que liga e sobrepõe as partes da frase e as frases entre si, para construir uma unidade global. A leitura avança linearmente por imposição do dispositivo material da escrita, mas se desenvolve também numa simultaneidade virtual com os limites de nossa memória. Um trabalho de estruturação global e de dinâmica textual. É, também, compor percursos possíveis, diferentes daqueles efetivamente realizados, redistribuindo os constituintes por meio dum constante experimentar, assim, é difícil determinar, a priori, uma unidade de leitura, pois os “limites” são vagos. Um “trecho” só vale como fixação provisória de limites que se deslocam e se reorganizam, é unidade móvel e lacunar que a análise reinscreve em conjuntos também flutuantes. Se não é possível determinar os limites do fragmento, podemos, situando-nos no âmago da discursividade concreta, determinar quais são os constituintes mínimos de um texto filosófico. A unidade textual englobante não pode ser determinada a priori. Marcas materiais constituem indícios que devem ser interpretados a medida que a leitura se acompanha de referências múltiplas, desenvolvendo ndo toda a complexidade textual progressivamente. Gradualmente se desenham horizontes sucessivos que ampliam e delimitam simultaneamente a leitura. Somos sempre conduzidos da análise local a de unidades textuais mais vastas. Explicitar esses horizontes segundo as indicações dadas pelo próprio filosofo, ou de acordo com seus próprios imperativos (variáveis em função da finalidade da leitura), permitirá a compreensão mais profunda do trecho escolhido e um estudo da maneira pela qual as doutrinas se constroem em conjuntos coerentes. Esta análise se torna ainda mais difícil visto ser preciso considerar, ao mesmo tempo, os aspectos dinâmicos e estruturais. Portanto a dificuldade é considerável: O fragmento, unidade flutuante, nos convida, sob a cadeia linear, a analisar a complexidade textual constituída por operações filosóficas elementares; então ele se integra em conjuntos mais vastos, com dimensões variáveis, construídos através da composição geral da obra.

0.3.2. Unidade dada pela função enunciativa do sujeito - A segunda é tudo que se relaciona com a unidade conferida pela voz oculta na impessoalidade do conceito. Essas referências enunciativas permitem compreender como se organizam os modos de exposição, a forma do processo de pensamento, a repartição da fala e a disposição das teses. Abordando a leitura, somos integrados num sistema de marcas que nos reserva um lugar. Tais referências dizem respeito ao que se deve e nos permite compreender. O texto depende duma “presença” que se retirou, mas que deixa no vazio um traço decifrável. Não uma presença metafísica, mas a que coloca as marcas (função sujeito). Essa presença constitui o ponto de origem das construções de sentido e estrutura a forma de presença do leitor, assim como as formas sob as quais os discursos evocados, ou convocados, são submetidos e dispostos numa perspectiva unificada. Comece-se a ler buscando esses traços explícitos ou implícitos de um referente tanto exterior quanto interior que se dá como “autor”. Agrupando-os podemos traças um retrato em negativo do filósofo, e analisar a sombra projetada na escrita. Não propomos um estudo geral das condições de produção do discurso filosófico (não se trata de tentar reinscrever a biografia na obra), queremos apenas destacar as operações pelas quais o texto constrói uma referência as dimensões biográficas e institucionais, ou constrói-se através dessas referências.

1. A cena filosófica -

1.1 Aparelho formal de enunciação filosófica -

1.1.1. a) - Primeiro o leitor buscará as marcas explicitas da enunciação filosófica, referindo os enunciados, ou grupos, aos três polos pessoais que os inscrevem na ordem discursiva:

O texto se põe como uma polifonia enunciativa organizada em torno da referência formada no nome próprio, no pronome pessoal em primeira pessoa ou denominações de escola. Coloca-se a reflexão sobre a dependência de um locutor tido como aquele que o produz ou assume a responsabilidade pelo texto. Não há correlação simples entre o locutor exterior e a voz que se faz ouvir no texto. Não se trata dos efeitos sociais que resultam dele, queremos entender como o texto coloca em cena sua relação com instituições e práticas sociais, agenciadas do interior da função de autor.

Essa posição impõe as marcas pelas quais o processo de leitura e o papel do leitor são definidos simultaneamente. As marcas dirigidas ao leitor não são indiferentes; negligenciamos com frequência a função de endereçamento. Elas nos associam ao desenrolar da reflexão e dão forma a presença do leitor, atribuindo-lhe um estatuto que ele aceita ou recusa.

Essa relação entre o enunciador e o co-enunciador constitui o quadro do desenrolar das análises e demonstrações, e possibilita separar a interioridade textual (espaço/tempo partilhado na leitura) de um

mundo ao qual o filósofo se refere. Essa relação exclui todos que designa com o pronome pessoal na terceira pessoa ou seus substitutos. A figura do outro permite integrar a pluralidade de opiniões e recuperá-la, ou relativizá-la, em favor da hegemonia das teses que o texto defende.

1.1.2 b) - Textos filosóficos além de expor teses obtidas de conceitualizações, ou argumentações niveladas e encadeadas; se estratificam em planos diferenciados, graças as perspectivas operadas pelas referências da enunciação filosófica. Chamemos aparelho de enunciação filosófica a matriz produtora das marcas textuais que atestam a presença de sujeitos falantes. O filósofo deve reconhecer os limites que as línguas naturais impõe aos sujeito dum ato de comunicação, o fato de que as afaste, ou analise, não o dispensa de apoiar-se nelas. Os três eixos de análise explicitados se inscrevem no dispositivo das coerções que se impõem a todo locutor (a linguagem só é possível porque cada locutor se coloca como sujeito, remetendo a si próprio como eu nesse discurso). A estrutura linguística que subtende a enunciação filosófica tem propriedades: A relação entre pronomes pessoais é caracterizada por uma dissimetria interna entre a primeira e a

segunda pessoa (correlação de subjetividade), nas duas há, simultaneamente uma pessoa implicada e um discurso sobre essa pessoa (em segunda); “tu” é necessariamente designado por “eu” e não pode ser pensado fora da relação colocada a partir do “eu”.

As duas primeiras pessoas são unidas por uma “correlação de personalidade” e se opõem a terceira, que comporta uma indicação de enunciado sobre alguém ou algo, mas não dirigido a uma pessoa específica,

Essas dissimetrias permitem entender como o texto se organiza uno, delimitando o espaço interior da interlocução, e integrando a diversidade externa. Um conjunto de operações permite, em torno da referência enunciativa, conferir uma sequência textual: são os dêiticos, que organizam as relações espaciais e temporais em torno do sujeito tido como referência. Ler supõe a compreensão intuitiva das relações assim colocadas. 1.1.3. c) - Se é preciso remeter o texto a esse aparelho formal de enunciação, não quer dizer que ele possa ser reduzido a isso: sobre a estrutura inicial numerosas operações se constroem, permitindo a especificação discursiva da enunciação filosófica. Devido aos modos de designação serem múltiplos e polimorfos é preciso analisar as regras dessas transformações, que podem depender de reelaborações sucessivas e das formas de exposição. Pode parecer estranho, mas os textos que colocam em cena o sujeito enunciador em primeira pessoa são bastante numerosos e múltiplos rastros das operações enunciativas permanecem e desempenham um papel importante na estrutura das argumentações, análises conceituais e modos de exposição. A cena filosófica é o resultado desse trabalho de escrita pelo qual o filósofo representa o pensamento no âmago do texto. É formada pelo conjunto das operações derivadas da estrutura enunciativa que se enriqueceu.

1.2 O sujeito em primeira pessoa, centro de perspectiva - 1.2.1. O enunciador universal – Todas as hipóteses supõem a presença de uma função textual centrada na

referência enunciativa do sujeito, fonte da construção do ponto de vista no sentido da produção do texto e ponto de fuga onde se encontram as linhas diretivas que o leitor deve seguir no seu trabalho de interpretação. Por vezes não encontramos traços enunciativos diretos, mas sustentamos que todo texto de filosofia é determinado a partir de uma referência enunciativa que distribui a fala e coordena os elementos de análise em uma perspectiva una. O filósofo pode apagar os rastros da construção da reflexão, ao apresentar as coisas como se o desenrolar se engendrasse automaticamente por progressão interna dos conteúdos. É a tentativa de abolir a própria noção de perspectiva que se traduz num dispositivo graças ao qual o filósofo se anula como que para deixar a verdade falar por si, mas deixa rastros. Leve-se em conta que cláusulas de destaque sempre permitem separar um enunciado de seu contexto quando tem a forma de uma asserção que veicula uma tese (elemento doutrinário minimo que se sustenta per si), com a condição de relacionar-se com um questionamento implícito. Constatando que esses enunciados são extraídos, formando enunciados transmissores; etiquetados por um nome próprio, que assegura a sua pertença a um corpo da doutrina; constatamos que a fórmula de asserção, que visa comunicar certeza, atesta a presença de um locutor na enunciação. Mesmo em enunciados fora de qualquer contexto e referência, ainda seria possível reconstituir indiretamente o rastro dum processo enunciativo, graças ao conteúdo proposicional: é a referência universal veiculada pelos conceitos ou colocada por um quantificador que introduz obliquamente o enunciador universal, uma vez que ele não designa só aquele a quem remete o nome próprio, mas todo leitor em geral. O apagamento das marcas não significa a ausência de investimento, nem que não haja um procedimento visando transformar a convicção do interlocutor, mas apresenta-as como realizadas (como o sujeito enunciador universal apagado). O enunciador tende a colocá-las assim para transformar o campo por um ato mimético e antecipador. O regime enunciativo designa numa unidade a forma predominante da incumbência enunciativa; o que não significa que haja apenas uma, mas que diferentes registros se subordinam a um deles.

1.2.2. Função autor – O apagamento não é total mesmo quando a exposição tende a maior objetivação das análises. Os mais frequentes são regimes mistos conjugando sujeito enunciador universal e sujeito referência,

assegurando a função autor. Esta sustenta as operações pelas quais o texto fornece um vestígio e a imagem de uma presença que garante a autoria e o controle do discurso. A função universalizante aparece, mas está de fato articulada com a segunda, que opera para garantir a coesão e desenrolar do texto. Essa possibilidade de variar a forma de presença dos sujeitos dentro do mesmo texto é o regime enunciativo. Se levantarmos esses indícios obtemos um tipo de projeção semiconsciente da personalidade do autor, que não é só biográfica, mas permite traçar um perfil que constitui o “ideal do ego” filosófico. O jogo entre as instâncias tem efeitos mais importantes do que sugere sua presença. Pode acontecer de todo um capítulo estar preso a uma determinação enunciativa ocultada pelo enunciador universal, o que torna sempre delicado o estudo dum trecho isolado do seu contexto. Os diversos registros enunciativos unem-se num regime enunciativo característico.

1.2.3. Sujeito de identificação participadora – Consiste em utilizar, ao construir uma obra filosófica inteira, as características e transformações autorizadas pela passagem da dimensão funcional do sujeito enunciador a uma dimensão ontológica associada, o “eu” como função identificadora. Esse “eu” funciona como um índice de subjetividade dotado de um papel universalizante. Existe uma relação entre emprego dos índices de subjetividade na língua dos filósofos e o estatuto filosófico que eles outorgam a subjetividade.

1.2.4. Índices de subjetividade e biografia – Nos precedentes, a dimensão subjetiva ou biográfica fica neutralizada; entretanto, precisamos estar atentos a existência de textos que integram dados biográficos ao fazerem referência as circunstâncias da edição. A subjetividade enunciativa é, também, suscetível a numerosas variações. Não trata-se de aprofundar o estudo desse empregos, mas de mostrar que ele é possível. Ao lado da construção de espaços interiores, próprios a meditação, vemos itinerários intelectuais, lugares de diálogo consigo mesmo. Porém, por vezes a hipertrofia subjetiva toma a forma da invectiva, do jogo pseudonímico ou do delírio megalômano. Todas essas formas ligam de uma maneira original o modo de desenvolvimento da reflexão e o estatuto concedido aos conceitos ou a crítica do uso deles.

1.2.5. Resumo – Os meios explícitos tratando da operação ou do sujeito do qual procede podem aparecer sob quatro tipos, podendo combinações de graus variáveis complicar a tarefa do leitor, além de ser uma marca específica da doutrina e oferecer uma imagem intra filosófica da atividade ou do autor no texto. São eles:

Universal – Uma reconstrução indireta permite evidenciá-lo, reúne sob uma forma vazia (ausência aparente de enunciação) todas as referências possíveis, e que engloba a segunda e a terceira pessoa;

De referência – Assegura a função do autor; seu conteúdo é neutralizado, mas pode suportar remissões situacionais e biográficas; garante a cena filosófica e construção do espaço textual;

De identificação – Torna possível exibir, a título de caso particular, o conteúdo de uma consciência, mas, pela generalidade, tem um alcance universal. Aqui a primeira pessoa é forma de exposição e conteúdo;

Singularizado – De enraizamento autobiográfico, inaugura a explicitação de elementos objetivos, ou então coloca enunciados correlatos de uma particularidade que se dá como exemplar.

1.3 Variações sobre o destinatário –

1.3.1. O papel do outro na cena filosófica: Mediação e destinação – Reconhecemos que o sujeito enunciador coloca as duas outras pessoas, particularmente a segunda (que abre o texto para o mundo exterior). O destinatário não é só o alvo, constitui uma mediação entre o autor e ele mesmo, por um lado, e, por outro, entre a fonte enunciadora e a comunidade visada. O destinatário não é puramente passivo, ele opõe a resistência potencial de sua incompreensão, preconceitos e objeções. Esse jogo pode efetuar-se tanto no interior de uma consciência que se cinde e opõe-se a si mesma, quanto dialogada (quer seja homogênea, por um único locutor, quer por dois interlocutores). Pode-se dizer que o diálogo é a forma originária da atividade filosófica. A segunda pessoa possibilita o pensamento silencioso pela integração do exterior à interioridade consciente, e assegura a exteriorização do dito, graças a presença do outro implicada na posição da primeira pessoa. Inversamente, permite introduzir a perspectiva adversa que será necessária reduzir ou compreender, e autoriza uma estratégia discursiva que busca transformar o campo geral das opiniões em filosofia. O destinatário representa um papel primordial para a recepção do texto pela cena social e institucional em que se inscreve e dá estrutura interna, já que define a legibilidade. A ausência de marcas explicitas não significa que a função não é assegurada, ela atua através de operadores indiretos. Para a função autor posições funcionais são consignadas ao destinatário, desenhando a imagem pela qual adquire um estatuto filosófico. Seus elementos não são nem estáticos nem isolados, mas encontram-se ligados segundo figuras reconhecíveis que garantem transformações internas ao texto ou organizam modos de exposição específicos.

Universal – A destinação não é evocada, confunde-se com o enunciador universal, mas sua presença pode ser atestada indiretamente;

Inclusivo – Conjuga o enunciador e o leitor sob as marcas da primeira pessoa ;

De exclusão – Se baseia numa diferenciação marcada por um “o leitor” impessoal e neutro, ou pela assimilação aos outros (adversários e massa da opinião).

A esses traços de inclusão/exclusão se superpõe, respectivamente, o registro graduado da proximidade íntima e o distanciamento (marcado pela ironia, a invectiva e injurias nos atos do exercício polêmico). Cada texto agencia a seu modo o destinatário, mas observamos certos percursos tipos: doutrinas de exposição objetiva privilegiam a enunciação universal com interferências locais ou pontuais da função de endereçamento; as que privilegiam a destinação, e buscam validar-se aplicando um processo de comunicação, partindo da multiplicidade inicial das perspectivas possíveis trabalham para aproximar o leitor e eventualmente incluí-lo no discurso, como se ele estivesse em condições de apropriar-se do próprio mecanismo de reflexão a ponto de engendrá-lo. Essas transformações afetam a estrutura do texto e do pensamento.

1.3.2. Formas e gêneros constituídos sobre o primado da segunda pessoa - A posição do

destinatário altera a cena filosófica do mesmo modo que contribui para formá-la; certos textos vão até se construir sobre essa dualidade

1.3.2.1. Correspondências e cartas filosóficas – Distinga-se a correspondência autentica, dotada duma dualidade enunciativa real, da fictícia, ou livre de respostas, que pode formar-se por uma lógica interna una. As formas de implicação do leitor variam. A reflexão, normalmente, se desenrola com liberdade, no tom de conversa, apoiando-se no interlocutor com intimidade. Quando a personalidade deste é conhecida a dimensão polêmica aumenta. A cena filosófica epistolar pode combinar um pensamento denso e argumentado, digressões e tom de confidência, mas a presença do outro perde sua autonomia, e só funciona se convocada.

1.3.2.2. O diálogo filosófico – Uma forma onde toda a virtualidade da bipolaridade enunciadora desenrola-

se, mantendo a unidade do espaço, é o diálogo; com a ressalva de a repartição das falas dos sujeitos, aparentemente de igual importância, dá-se num espaço de interlocução feito por um locutor que se apaga, delegando sua tese ao personagem que o representa. Isto distingue fortemente as obras polêmicas do diálogo, além deste construir um cenário totalmente significante e personagens fictícios cujos traços têm um alcance filosoficamente significativo. Platão conecta o exercício do diálogo ao movimento ascensional da dialética. Os imitadores revestem o exame da tese oposta e o jogo de objeções e respostas com um interveniente sem consciência, o que dá grande liberdade ao autor, pois agencia, a sua conveniência, a natureza, repartição e duração das intervenções, como se a discussão se elaborasse segundo suas próprias leis. O diálogo cria a sensação da presença viva dos interlocutores e realiza todas as figuras discursivas necessárias à filosofia; de múltiplas perspectivas a redução pela argumentação, e integra o leitor, que usufrui de certa ubiquidade.

1.3.3. Funções didáticas e pedagógicas – A primeira pessoa servia a manifestação da verdade, a segunda é a ancoragem da função de destinação com qual o texto amplia-se no sentido da conversão e do conflito. O processo de efetuação do verdadeiro supõe se dirigir da ignorância a compreensão, ampliando-se do individual ao comunal. O leitor, de presença marcada no texto, é o marco de duas funções essenciais:

A didática – Procura provocar a compreensão, reúne todos os traços referentes às condições de compreensão e de legibilidade do texto.

A pedagógica – Pressupõe sempre a didática (sem recíproca). Visa alterar o pensamento e se estende a tudo que possibilita a conversão do leitor.

A filosofia assim cria uma progressão metódica que torna o leitor um discípulo, engendra a autonomia na qual ele encontra o mestre. Estas funções entram no texto a titulo secundário ou se limitam a certas passagens. Em regra, os autores dissociam formas de dominância didático-pedagógicas, usando-as em obras especiais.

1.4 Terceira pessoa, função intertextual e polêmica – 1.4.1. Integração da pluralidade dos pontos de vista a cena filosófica - Enquanto primeira e

segunda pessoas são solidárias, a terceira forma um vácuo na enunciação, aberto a acolher referências ao domínio contextual de todas as doutrinas e práticas. Os modos de referência e os conteúdos são extremamente diversificados. Cada filosofia deve resolver a sua inserção no campo preexistente de saberes e práticas, pois sua articulação, decisiva em sua constituição, é crucial para compreendê-la. Instaurar uma perspectiva filosófica só pode ser feito frente a uma configuração já estabelecida, contra quem o pensamento reconquista sua autonomia, além do dever de impor-se por um trabalho rigoroso de validação. O texto, pelas referências, tece uma rede de intertextualidade sobre a qual poderá se construir a função dialógica, que garante o contexto em que a doutrina surge (as filiações e rupturas do processo de formulação, nisto ligado a função polêmica, que valida suas informações). Tais referências serão explicitas ou implícitas. Compreenda-se a quem e de que maneira o texto, através da função dialógica, constrói seu espaço no campo das posições filosóficas, fechando e encerrando a si no mesmo movimento, pois é o enunciador que, do centro da

perspectiva, assegura a preparação do que é integrado. Aqui também há encenação; a pluralidade ora é apresentada de maneira neutra e distanciada, ora submetida a uma dramatização intencional, a depender de como a doutrina elabora, ao nível dos conteúdos, sua relação com a filosofia em geral.

1.4.2. Não ponto de vista ou ponto de vista absoluto – A variedade de formas da terceira pessoa

transforma a relação de força no universo filosófico a que se refere o texto. As vezes usa-se formas fortemente polêmicas, outras parecem abolir qualquer consideração de ponto de vista, mas o silêncio e a palavra absoluta têm existência meramente teórica. Dificilmente imaginamos um texto puramente citacional. A abolição da perspectiva obtêm-se pela posição de um ponto de vista único, sem nenhuma dimensão dialógica. Entretanto, não encontram-se realmente desligados do contexto, colocam-se excluindo-o, mas ao mesmo tempo o supõem, deixando aos exegetas o cuidado de reconstruir as relações. Entre os extremos encontramos uma grande diversidade de referências que procedem por integração ou exclusão explicitas.

1.4.3. Formas de integração e demarcação – Cada filosofia procura encontrar sua origem num começo radical, mas é apenas um recomeço. Observa-se uma série de atitudes que evidenciam as estratégias de separação pelas quais uma filosofia se constitui a partir de outra:

O simulacro – Os epígonos imitam verbalmente o discurso em moda.

A reprodução mimética – O discípulo se esforça para atingir a fidelidade.

A reprodução idêntica – A posição enunciadora do mestre é apropriada, ao mesmo tempo em que se é englobado no seio doutrinal.

A reprodução ampliada – Aplica-se o sistema de pensamento a novos domínios.Ao lado dessas filiações reverentes, vemos outras marcas de filiação com sofrimento e ruptura, indiferença e esquecimento. Nestas pode-se distinguir do discípulo que do interior da doutrina a desestabiliza até rupturas polêmicas. Reconstruir tais figuras atribui lugar e posição aos enunciadores, identificável a partir de todo um aparelho complexo que gira entorno do texto e completa o jogo (prefácios, notas de rodapé, etc.). É preciso recompor o sistema de tensões ou alianças estruturando o campo polêmico em que o texto ganha sentido para entender como se estratifica a massa enunciativa filosófica, num perpetuo movimento de reorganização.

1.4.4. Esquemas de refutação – A filosofia pressupõe o espaço aberto a discussão e ao exame, uma tese deve situar-se invalidando as adversas. O diálogo filosófico perpetua o antagonismo e a luta pelo reconhecimento da verdade, é o combate um de seus componentes fundamentais, daí as refutações terem uma função exclusiva.

1.5 Conclusão – A cena filosófica, polo de unificação textual, assegura um suporte ao desenrolar da reflexão, dotando o texto de uma perspectiva. O regime enunciativo é fonte de diversificações garantidas pelos diferentes registros pessoais. Os enunciados são remetidos a um sujeito fonte (conjunto dos enunciadores, articulado à referência que indica o autor locutor produtor do texto). Esses modos de atribuição são formas de expressão, elaborando uma perspectiva exclusiva e una, que se determina supondo um espaço externo, no qual outros enunciadores também assumem posição. Em cada uma das três posições enunciativas efetuam-se referências externas e desenha-se a imagem interiorizada dos atores, permitindo a delimitação de um plano de interioridade discursiva oposto a um domínio de natureza externa. Sobre essas posições edificam-se as funções fundamentais da discursividade filosófica:

Primeira – Tudo que diz respeito a verdade e sua efetuação na linguagem e na ordem do discurso;

Segunda – As funções didática e pedagógica que estabelecem a inteligibilidade do texto e o caminho que conduz ao domínio doutrinal;

Terceira – A dimensão polêmica e dialógica que constrói a intertextualidade em constante reelaboração.

2. Os conceitos Filosóficos – A filosofia procede por conceitos, porém várias doutrinas criticam suas fraquezas. É essencial a filosofia poder modular os seus modos de explicitação, mas é o conceito o intermediário entre concreto e abstrato; do qual ela faz usos variados ao trabalhar seus limites, rumo a abstração (que, se vazia de sentido, anuncia sua própria morte). A filosofia é reexame e redefinição do conceito, então como analisar a natureza e as funções que ele ocupa? Embora sejam elementares a reflexão, os conceitos são construídos, e esta elaboração é parte determinante da atividade filosófica. É preciso analisar a instalação dos conceitos fundamentais duma teoria e a desconstrução dos anteriores. A filosofia constitui seu vocabulário tomando as categorias oferecidas pela língua e doutrinas anteriores. Não há língua filosófica, mas uso filosófico. Devemos considerar os procedimentos em que unidades de sentido são fixadas, ligadas, hierarquizadas para constituir um universo autônomo de significação. Esse universo é fechado a medida que obedece regras de coerência interna muito rigorosas que garantem a necessária ligação ente as noções. O pensamento é mantido por essas definições a medida que ele, por elas, coloca o seu próprio

objeto. O que fecha-o sobre si mesmo, condiciona sua abertura para o mundo. Uma densa rede de categorias tende a produzir um quadro de inteligibilidade do real. O conceito é uma entidade assinalável por um vocábulo e uma função mediadora que organiza a ordem interna do discurso.

2.1 Processo filosófico da construção do sentido –

2.1.1. Construção da função conceitual – 2.1.1.1. Semântica conceitual - Se não há filosofia sem conceito, e se o conceito é um função, devemos

analisar o modo pelo qual sua significação se instaura no texto e os papéis atribuído-lhes na discursividade filosófica. Fixar e delimitar o sentido dos termos depende de operações complexas e específicas que chamamos processo de instauração do sentido, que pode estar disposto em lugares especiais do texto ou surgir nas elaborações segundo a necessidade. Essa atividade, fundamental, pela qual uma doutrina reorganiza o universo da língua lhe permite liberar-se das precedentes e criar um universo significativamente autônomo. Mas não basta fixar o sentido, é preciso ainda integrá-los em contextos que concorram para a construção do significado. Não se pode dissociar um conceito de seus usos, não permanecem isolados. É o sistema de remissões e de relações que desenha o campo conceitual de uma doutrina. Não é o contexto imediato de um doutrina que constitui o seu horizonte de sentido, mas a doutrina na sua mais ampla extensão. O sistema filosófico delimita um contexto global que, em última instância, define o sentido dos elementos que ele contém. O que convida a análise das recorrências, paráfrases ou transformações. No entanto, para não torna-se um meado inextrincável é necessário tente-se primeiro distinguir bem os usos de um conceito das operações explícitas de determinação do sentido. Chama-se semântica conceitual o conjunto dessas operações pelas quais o filósofo deliberadamente explicita o significado das expressões que emprega.

2.1.1.2. Diversidade das semantizações conceituais na sua relação com o enunciador - O núcleo definitório (o conceito) deve conter:

O termo significante – Escolha do termo, fixação do significante;

O sentido – Traços definitórios, elementos diferenciadores estabelecendo a relação inter conceitos;

A referência – Elemento extralinguístico manifestado através do exemplo e do caso particular.Outras operações podem estar inseridas, como explicações meta semânticas que permite ao autor explicitar, argumentar ou comentar sua elaboração definitório. Assim as variações e figuras que atestam a presença do enunciador sujeito e a disposição da função polêmica desempenham seu papel nessas elaborações de sentido.

2.1.1.3.Consequências Filosóficas – O fato de prestar atenção ao sentido leva a observações sobre a linguagem em geral, sobre a significação, de tal modo que se é levado a elucidar filosoficamente o próprio uso da linguagem. As instaurações de sentido têm um papel fundamental no início da elaboração da doutrina, mas a forma de seu emprego depende igualmente do estatuto geral que ela atribui ao sentido. O trabalho da análise baseia-se em grande parte na clarificação do sentido, donde, obtemos sucessivamente:

Semantizações que instauram o campo conceitual da doutrina; Reflexões metodológicas sobre problemas do sentido das expressões filosóficas, com a consequente

possibilidade de separar as que têm sentido das que não têm; A possibilidade de fazer a análise repousar sobre considerações de sentido.

Qualquer trabalho explicito sobre o sentido indica escolhas motivadas; os autores se justificam, argumentam a propósito das distinções. Isso nos leva a firmar que as operações de semantização requerem uma validação, sob qualquer forma. Não é necessário que a justificação seja no momento em que as operações intervêm; é suficiente que seja explicitado dentro da doutrina. As vezes as definições são fundadas apenas na sua “auto evidência”, noutras os seus constituintes encontram-se em elaborações ulteriores. Cada filosofia está aberta a domínios já construídos e tende igualmente a um fechamento semântico. A semantização conceitual explora as virtualidade da língua natural a fim de construir um universo cuja pertinência deve fundamentar.

2.1.2. O conceito como função significante -

2.1.2.1.Estatuto do conceito na relação predicativa – Quando aborda-se um texto filosófico deve-se determinar o sentido das expressões como se reinventasse a linguagem. A unidade de sentido é constituída pela frase, suporte da relação predicativa da qual o conceito é elemento. O conceito entra em um duplo sistema de relações: relações com outros conceitos exteriores a frase e relações com outros elementos na proposição. A forma linguística que permite a inserção do conceito na relação predicativa é a nominal. A possibilidade de dizer alguma coisa sobre o mundo supõe a instauração de uma relação dentro de um enunciado entre o termo determinado, que constitui a periferia, e um centro, que é predicado; a posição assim

definida é funcional: “o verbo e o nome são como dois polos de um campo magnético no interior do qual as categorias oscilam, sofrendo atração de um ou outro.” Forma-se o eixo fundamental pelo qual as línguas “se aproximam das coisas dando-lhes acesso ao dizível. A filosofia desdobra essa função, meta textual, em tantos níveis quantos possível. O recorte do sentido efetuado pela língua funciona como um prisma que o filósofo reestrutura ao delimitar suas próprias categorias conceituais. A língua oferece recursos para a apreensão de realidades permanente e ideais, mas a gramática limitará a conceitualização filosófica.

2.1.2.2. Substantivação – Essa oposição verbo-nominal é fundamental, mas a filosofia considera que a dualidade construída pela língua pode ser questionada e transformada, uma vez que os termos que designam processos ou qualidades podem oscilar em direção ao polo nominal. A constituição dos conceitos supõe um mecanismo que permite submeter todas as formas a categoria nominal, a substantivação. É um procedimento que permite fixar objetos de pensamento mediante uma forma linguística; que mantêm todas as virtualidade que ela sintetiza, no campo da representação, com certa estabilidade, e dá forma a qual a reflexão se aplica.

2.1.2.3. Forma do geral – Forma do nome e função normalizante não explicam a formação do conceito, é preciso acrescentar a função generalizante assumida pelo que concorre ao mesmo tempo para indicar a generalidade da propriedade designada e a extensão da classe a qual se refere. A conceitualidade não se fundamenta sob qualquer tipo de nomes. Distinguem-se habitualmente os nomes próprios (denotam um ser individual e definido), os nomes comuns (universais genéricos, definidos por propriedades inerentes a seus elementos) e os abstratos (universais caracterizantes, termos que denotam qualidades e ações que podem ser associadas a indivíduos). A abstração e a universalidade podem ser efetuadas sob qualquer forma, com a condição de passar pela dessubstancialização (considera não o ser concreto, mas o que faz que ele seja ele), desquantificação (trata de todos, não de um número definido) e desreferenciação (categoriza propriedades atribuídas apenas indiretamente a objetos do mundo). Este apresenta um paradoxo: uma referência indireta pela criação de uma significação autônoma e a necessidade de, a cada momento, ser relacionada a dados ou a um vivido. Num texto filosófico temos a impressão dum universo que constrói seu próprio sistema de referências, mas a medida que nos familiarizamos, temos a sensação de que nele a muito do nosso mundo.

2.1.2.4.O conceito como função – O conceito filosófico apresenta-se como um operador textual que, graças as propriedades da língua, permite categorizar o real ou o ser integrado no domínio do dizível. Para tal articula um significante (figura do léxico) a um sentido (propriedades que o especificam) e uma referência (entidades extralinguísticas), o que proibi-nos de reduzi-lo a uma dessas dimensões. É um objeto do pensamento construído dentro da ordem da representação, pela qual tentamos atribuir, inequívoca e explicitamente, a significação que queremos as palavras, as coisas e a sua relação (razão pela qual uma das tarefas filosóficas essenciais consiste em proceder a conceitualização). É um complexo funcional, cujos componentes cada doutrina arranja a sua maneira, alternada ou simultaneamente, além de poder agir sobre as relações que unem os três polos entre si. Esse trabalho, que instaura a conceitualidade da doutrina, constitui a semântica filosófica. O conceito torna-se, não só o elemento visado pela reflexão, mas o medidor das operações pelas quais o autor procura justificar os dados a que se refere. Intervém em três tipos de relação:

Cada conceito está associado a outros, cujo conjunto forma o campo semântico da doutrina; O conceito entra como elemento na proposição, formando o núcleo permissor da colocação das teses

do processo demonstrativo; As relações semânticas e predicativas interferem com a referência pela qual a doutrina visa um mundo

a fim de dar-lhe um sentido. O conceito estabelece estreita coordenação entre dimensão semântica, lógica e ontológica. A diversidade das exposições discursivas depende da maneira como combinam esses três fatores.

2.1.3. Estatuto das definições -

2.1.3.1.Definição da definição – A presença do conceito é atestada pelo termo significante (signo), a forma nominal e geral, a unidade lexical. Esse procedimento é econômico, por permitir a estabilidade do sentido e da referência, dentro da diversidade de contextos de utilização. É indispensável que essa correlação possa ser fixada implícita ou explicitamente, a fim de que em presença de um dos três elementos possamos explicitar os outros dois. Definir um conceito é fixar sentido, referência, produzir suas relações e fornecer as regras que permitiam sua reutilização. Ela deve:

Tornar o conceito reconhecível e manipulável nas analises (expressar em termos); Permitir o reconhecimento, seja por explicitação semântica das propriedades, seja explicitando as

propriedades comuns e específicas dos objetos designados; Descrever ou indicar a possibilidade de uma exposição dos elementos denotados.

2.1.3.2. Os constituintes da definição – A aparente simplicidade esconde um conjunto de operações que é

preciso esclarecer. Não existe definição filosófica independente da doutrina. A definição associa sempre o termo significante aos seus correlatos semânticos e referenciais. Distingui-se um núcleo definitório composto de requisitos mínimos, e expansões que os explicitam ou enriquecem.

Clausula definitória – É a marca (um “por”, etc.), comporta uma indicação de ordem enunciativa;

Definido – É o termo colocado em situação de tema ou referência pela clausula definitória, retirando-o de todos os contextos prévios de emprego e operando uma atribuição semântica.

Definidor – O conteúdo da definição, é colocado em equivalência com o definido, o feixe unidades minimas suficientes para distingui-lo de qualquer outra coisa.

2.1.3.3. Além da definição – As definições contribuem para gerar a conceituabilidade própria de uma doutrina, não só apartam um conceito de seu domínio de origem como propõem as regras de sua reescrita. Articulando sentido e referência possibilitam reescrever o conceito sob outras formas, ou, a parir de diversos empregos de um termo, reconstruir sua definição. É difícil isolar o núcleo definitório dos elementos que o cercam porque o conceito vê-se perpetuamente enriquecido no decorrer de suas utilizações, ao ponto de ser o sistema inteiro seu contexto de definição. O processo de identificação (definição) deve tender a economia de meios, mas nada limita o ganho de significado, o que explica poder-se passar da definição a elucidação mais completa. O conceito não se limita ao significante, mas é função que limita o sentido. O mesmo ocorre no conjunto textual: A partir da definição vão se esboçar duas formas de estruturação, a que pela caracterização do sentido irá estabelecer relações entre conceitos e chegar a um verdadeiro campo conceitual, e a que permitirá uma hierarquização conceitual assegurando a doutrina seu domínio dum mundo que ela torna inteligível. Essas formas de expansão permitem um andamento interno em que o universo de sentido se desdobra sobre si mesmo, e um objetivo que garante a doutrina sua eficácia ontológica.

2.2Da língua ao conceito: estruturação do campo conceitual -

2.2.1. Campo nocional, campo conceitual -

2.2.1.1. Língua materna e uso filosófico da língua – As características descritas supõem uma relação com a língua natural, que não é só o veículo, mas um meio dotado de autonomia, dentro do qual o filósofo abre caminho em direção ao conceito. Há uma heterogeneidade dos materiais de conceitualização. O filósofo age para unificar as noções numa rede homogênea e densa, mas não se serve passivamente de um estoque de expressões feitas: uma filosofia depende menos do vocabulário que ela emprega do que da maneira como o pensamento procede para produzir o sentido. No campo nocional (conjunto da terminologia doutrinal), qualquer que seja o domínio, será preciso assinalar a significação anterior da noção, afim de medir o desvio produzido. O campo conceitual é formado pela integração da terminologia numa totalidade sistêmica, que pode ser flexível, até imprecisa. Não há conceito fora do processo de pensamento que lhe garanta sua área de significação; a definição é um procedimento sintético, do qual só o contexto verbal fixa os limites.

2.2.1.2. Vocabulário técnico e obscuridade filosófica – A dificuldade ao confrontar-se com esse

universo obscuro e fechado tem origem dupla: O filósofo constrói um universo definido e ordenado que desnorteia o leitor pela perda de

inteligibilidade. Sentimo-nos perdidos porque os termos conservam para nós resíduos de significação, que é preciso afastar em proveito de uma atribuição precisa de sentido. Quando esse for efetuado pelo autor devemos fazer um esforço de memória, sem o que somos confrontados com termos que nos parecem vazios de sentido.

A abstração conceitual produz uma “rarefação”. Os textos são tão densos e abstratos que parece impossível relacioná-los a uma experiência observável. Somos obrigados a nos deixar levar pelo encadeamento demonstrativo, salvo se nos referimos constantemente as definições, o que interrompe a continuidade do pensamento.

Essas duas dificuldades não são dissociáveis, pois ambas manifestam uma ambiguidade do uso filosófico da língua (geração de um universo de idealidades). A conceituação permite manipular os termos significantes sem (re)explicação permanente do sentido e referência, condição de sua eficácia operatória. O fechamento semântico é apenas a contrapartida da autonomia que permite ao pensamento construir seu objeto próprio, mas lhe é necessário manter a exigência de retorno ao mundo da experiência comum, o que obriga a ligar estreitamente pedagogia e ontologia. Há uma tensão entre essas duas exigências complementares. A filosofia cria um universo denotativo, porem não oferece um substituto estético do visível, apenas um esquema de inteligibilidade e encontra nisso a sua legitimidade. O problema da obscuridade terminológica revela-se falso, pois é característica natural. A dificuldade redobra se considerarmos que cada filosofia opera escolhas sobre o estatuto da língua, não apenas em função da sua doutrina, mas também em função dos modos de exposição pelos quais ela faz variar o agenciamento de seus conteúdos. A relação do filósofo com a

linguagem está ligada a uma filosofia da linguagem, se ele só pode construir suas teses através desse recurso ao trabalho sobre e dentro da língua, não se sabe mais como escapar a essa circularidade antológica.

2.2.2. Estrutura semântica do campo conceitual – Os modernos pensam o significar além da definição do sentido de um signo pelo recorte simultâneo do significante e do significado, intervindo o valor que resulta das formas dentro da língua. Descobrimos, ao invés de ideias dadas antecipadamente, valores que emanam do sistema. Porém, se os significados são vistos como puras diferenças dentro do sistema, não se pode continuar a conceber a língua como um repertório de palavras ao qual corresponderia adequadamente o repertorio das coisas. A língua não seriam um espelho passivo, mas uma força que opera ativamente para a constituição e transmissão da experiência humana. O filósofo toma as formas e desenvolve uma nova ordenação semântica. Os linguistas analisam as relações a partir de critérios formais, criando categorias metalinguísticas. Dessas relações as mais importantes (havendo outras derivadas por combinação destas):

Hiponímia – relação entre um termo subordinado (hipônimo) e um superordenado (hiperônimo). O hiperônimo é mais abrangente, mas o hipônimo inclui mais determinações definitórias (a abrangência e compreensão são inversamente proporcionais).

Contrariedade – A distinguir:

◦ Complementariedade – A oposição é complementar, a negação de um implica afirmação do outro;

◦ Antonímia – A oposição é graduável (só dois vocábulos restam-se a comparação), o que a distingue da complementariedade;

◦ Reciprocidade – A relação é inversa.

Incompatibilidade – Trata-se de opostos dentro do sistema. Distingue-se a explicita (a negação é sintática) e a implícita (proposições dotadas dum campo lexical onde são incompatíveis entre si).

Sinonímia – Relação de implicação reciproca ou equivalência, vale para uma unidade lexical e para grupos em construção sintagmática.

Essas relações não permitem, per si, engendrar o complexo campo conceitual filosófico. No entanto, formam a ossatura na qual o sistema se edificará, possibilitando o estabelecimento das identidades, das diferenças e hierarquizações entre conceitos. O conceito faz o sistema, mas também o sistema faz o conceito. Podemos assim compreender numa passagem explicativa como se efetua o posicionamento dos conceitos pelo jogo das diferenças semânticas, mas esse esboço possui malhas muito frouxas para dar conta da complexidade das relações dos conceitos. Todos os léxicos obedecem a essas relações, a particularidade dos textos filosóficos consiste em reformular explicitamente, ao nível conceitual, o que a língua oferece. Cada doutrina propõe uma interpretação filosófica da identidade, da diferença e da semelhança. Aprofundemos essa observação:

Para o linguista o estado da língua é que determina os valores da palavra (são as possibilidades de relação que definem um campo de emprego no discurso). O filósofo opera na organização dos signos e não nos signos organizados, arquitetando a relação entre conceitos de um modo nem “arbitrário” nem “convencional”, mas necessária de tal forma que possa transcrever o ser no dizer.

Em filosofia, campo conceitual é a rede semântica que une os conceitos entre si num sistema explícito, onde as classes têm uma instabilidade essencial. De modo ideal, a filosofia é uma tentativa de construir um campo homogêneo e fortemente coerente, que recubra o campo do real. No entanto, essa formulação é excessivamente esquemática, pois o campo conceitual não visa diretamente o real, mas constrói uma representação “ideal”, estruturando um universo de denotação que lhe possa ser associado, o que não significa que o campo conceitual seja redutível a um sistema formal.

O texto filosófico opera com relações semânticas e com uma tematização explícita, de tal forma que as relações entre conceitos podem tornar-se conceitos. O filósofo opera em três níveis:◦ Opõe por hiponímia níveis de hierarquização entre conceitos;◦ Caracteriza a relação em termos semânticos;◦ Se acham elas próprias elaboradas conceitualmente como categorias fundamentais do sistema.

Todas as relações que subtendem a conceitualidade de uma doutrina deveriam ser conceitualizadas. A noção de relação se acha elaborada graças ao par conceitual, que implica em duas consequências: a possibilidade de conceitos se basearem na substantivação, dependente da relatividade da oposição entre sujeito e predicado (somada a possibilidade de colocar predicados em oposição a elementos de uma nova relação, como se essa diferença devesse ser reabsorvida e pensada dentro da doutrina – podemos sempre predicar sobre uma predicação – ), e a filosofia ser caracterizada pela auto explicação de suas categorias semânticas (o que leva a circularidade). Uma particularidade fundamental da filosofia: ela própria está, enquanto objeto do mundo, sujeita ao esquema conceitual que ela organiza.

3. A referência: do conceito ao exemplo -

3.1Referência e denotação -

3.1.1. Complexidade dos fenômenos referenciais – O fechamento semântico do campo conceitual é uma exigência de método, mas a dimensão referencial é essencial por permitir escapar a dicotomia entre um “mundo de abstrações” e um “das realidades”. Os conceitos reestruturam, na ordem da representação, a relação com o mundo a fim de torná-lo inteligível. A referência permite focalizar o mundo exterior, e até especificar seu estatuto ontológico. As entidades assim distinguidas constituem o denotado, do que o objeto concreto é só uma forma particular (a filosofia visa idealidades). Pela complexidade dos fenômenos não se pode formular referências sem articulá-la na oposição dos termos significantes e no sentido que a definição lhe propõe. Os conceitos se hierarquizam pela proximidade do referente, há várias maneiras de passar de um denotado referenciado fisicamente para a categoria mais abstrata e de reintegrar o dado sob o conceito. O objetivo referencial não é uma simples identificação, mas supõe relações complexas de reconstrução do mundo. A doutrina propõe o denotado seja como um dado fatual, seja como o substrato das estruturas conceituais, ao mesmo tempo que ele é também o resultado de uma elaboração na ordem do discurso.

3.1.2. Estrutura dupla do denotado – Se o plano denotativo não se restringi ao dos objetos concretos, a referência supõe um recorte desses objetos. A estrutura conceitual não é simplesmente um decalque do real, mas deve poder referir-se a ele. Ao lado do objeto ostensivo constrói-se referências as entidades abstratas.

3.2 Formas do recurso ao caso particular – Os casos particulares, como as metáforas, intervêm de forma localizada e relativamente restrita. Eles podem, por sua força específica, ser estudados por si mesmos. Se o mesmo caso particular cristaliza todo o campo de análise conceitual, pode-se analisar a maneira dele intervir na trama discursiva dominante, a fim de compreender o grau de abstração (estudo feito em conjunto com as abstrações metafóricas). Podemos assim compreender como a doutrina estrutura a nossa representação do real, e como os exemplos permitem uma intrusão “confirmativa” desse real só acessível graças a função conceitual. O substrato ontológico de uma doutrina produz dentro dela efeitos de real que permitem a filosofia escapar da ordem da ficção. Distinguem-se duas grandes formas: na primeira, nos referimos aos objetos que se organizam sob o conceito (introduzida pela referência predicativa, é comandada pela própria natureza do objeto); na segunda a referência é correlativa ao ato da enunciação (dependente da esfera de representação que o sujeito enunciador pode formar). Entre referência predicativa e enunciativa, formas mistas ou cruzadas são possíveis. Três as formas principais de recurso ao caso particulares e, consequentemente, três tipos de funções referencias que garantem a condição do substrato ontológico:

3.2.1. Sistema quase referencial: o particular indefinido – O que identifica o caso particular seria sua não particularidade. Ele explicita o substrato ontológico do conceito e ilustra a tese no seu conjunto. A descrição faz dele um modelo. Entre uma dimensão referencial suspensa pela ficção e um levantamento dos fatos, a filosofia constrói formas mistas dotadas da evidência de constatação, mas informadas pelas categorias das quais constituem o preâmbulo. Quer esteja em posição descritiva, ilustrativa ou sub-colocada, o denotado, sob a forma do caso particular, funciona como geral. É particular a preposição que diga respeito a alguns indivíduos (indeterminados) duma classe, ou mesmo a um só se indeterminado (oposto ao singular – um sujeito determinado e único), logo vale para o geral. As apresentações utilizando dêiticos (“singular indefinido”?!) funcionam como se uma pseudo referência fosse necessária, não só para dar uma base fatual ao conceito, como para criar no discurso um efeito de presença real, dando a doutrina sua ancoragem no ser.

3.2.2. Sistema inter referencial – Ao lado do quase referencial funciona o sistema plenamente referencial. Digamos inter referencial, por pressupor um real comum ao enunciador e ao leitor (comum a todos os co-enunciadores). Uma doutrina que não utiliza remissões ainda é datável, referível a um autor, a um lugar, pelo menos implicitamente, apoiada no que ela recusa com seu silêncio dialógico. Esse universo pode ser objeto duma discussão ou numa interpretação, mas o importante é o autor se referir a algo dum saber comum e que englobe o leitor ao supor a continuidade e a consistência de um mundo que os integra. Enquanto no quase referencial o discurso filosófico era a condição de possibilidade que permite construir um mundo, aqui é a presença efetiva do mundo que é condição do discurso. Os filósofos misturam essas duas formas para acumular seus efeitos, variando a dosagem e o emprego dos procedimentos. Uma traz o poder de inteligibilidade (a construção denotativa) a outra a inscrição da realidade da linguagem. A função de referência assegura portanto uma dupla ancoragem ontológica as doutrinas filosóficas; a primeira (quase referencial), ao propor o particular indefinido, funda de fato a universalidade do referido; a segunda (inter referencial), ao propor a singularidade, assegura o poder do discurso filosófico sobre o real.

3.2.3.Sistema autorreferencial – É uma possibilidade intermediária. Os referenciais enunciativos supõem uma situação correlativa ao ato de enunciação, e uma remissão a esse ato que coloca duas presenças simultâneas e dois domínios referenciais associados: presença do locutor, do enunciador, do espaço-tempo da

enunciação e da linearidade do discurso. Isso significa que o texto, a medida que podem referir-se a si mesmo por suas marcas enunciativas, define-se como seu próprio domínio de referência (seu próprio denotado). Essa possibilidade é extremamente importante, a medida que o leitor está diretamente implicado nos efeitos de realidade e de presença imediata assim produzidos. Está enunciação constitui um mundo por completo, colocando o universo textual por autorreferência numa variedade de formas:

3.2.3.1. Co-presença externa e interna –

3.2.3.1.1. Co-presença externa – Distinguimos referência particular e singular, mas desta última arriscamos a formula paradoxal de singular indefinido. Para o enunciador, eles estão presentes no próprio momento do ato de pensamento. O leitor, reapropriando-se do presente enunciativo o “visualiza”, desta vez no seu espaço mental, que se torna assim único, mas qualquer, pois cada um representará diferentemente. O efeito é diferente do particular indefinido, já que a distância do objeto indicado no seu campo externo opõe-se aqui a proximidade imediata da própria coisa. Um ato de indicação ostensivo. Isso gera um domínio de co-presença que tem a propriedade de se abrir para a interioridade e para a intersubjetividade com valor universal.

3.2.3.1.2. Co-presença interna – É uma transformação referencial complexa. O fato de se poder passar como que de uma interioridade consciente a uma outra, e depois a qualquer uma, mostra bem a estranheza referencial do filosófico, que pode interiorizar num espaço intersubjetivo o campo referencial, graças a uma encenação das consciências tornadas permeáveis umas as outras.

3.2.3.2. Autorreferência subjetiva – Supõe uma identificação de consciências, sem exibir a consciência do enunciador, como outros o fazem. Situar a perspectiva discursiva no interior de uma consciência singular é o mecanismo textual deste estatuto ontológico. O plano conceitual passa a se auto exemplificar, o enunciador passa de sujeito do discurso para objeto. Obtém-se efeitos muito mais precisos pois a função autorreferencial permite juntar efeito de presença, de realidade e de verdade. A autorreferência é auto fundadora: a posição simultânea do dado (consciência) e do ato que incide nele (dúvida) permite uma perda progressiva do real, até que surja a ligação irredutível entre ser, pensamento e sujeito. Um autor sempre pode tomar a si próprio como “objeto”, seja por indicações biográficas ou editoriais, seja através da oposição aos seus adversários.

3.2.3.3. Autorreferência textual – O texto filosófico se constrói num espaço/tempo de leitura homogêneo. Um sistema de referências e remissões aplicado simultaneamente ao espaço e ao tempo do texto permite essa auto designação. Ela autoriza antecipações e retornos as passagens as quais a atenção do leitor é remetida. É neste sentido que o texto contribui a si mesmo com seu próprio universo referencial, de dois modos: Privilegiando uma defasagem entre o momento de enunciação e aquilo que se refere; Privilegiando o simultâneo, abolindo de uma só vez a distância entre o ato que “visa” e o objeto “visado”.

3.3Funções filosóficas do caso particular -

3.3.1. As diversas funções do exemplo - O caso particular não se opõe ao conceito, ele é um dos elementos constitutivos da função conceitual, já que esta garante a conversão permanente do abstrato para o concreto e vice-versa, logo tem como funções:

Didática – Desempenha um papel importante a medida que o texto garante a modificação da perspectiva do leitor e facilitar sua compreensão;

Ontológica – Os casos particulares tendem a formar um substrato ontológico, que permite colocar a presença correlativa do mundo no discurso, comprovando sua ancoragem no real (isso supõe três domínios de referência – o universo inter referencial, o denotativo quase referencial e o autorreferencial textual – além dos efeitos ontológicos ligados a metáfora);

Heurística – A transparência do ser no discurso estando colocada como ideal, cumpre explorar o dado, seus contornos, procurar os traços do real, é o exemplo suporte privilegiado dessa exploração;

Validação – A validação supõe ao mesmo tempo os encadeamentos demonstrativos e a comprovação da evidência fatual. Estes casos oferecem um duplo registro de validação: colocam como um fato irrecusável a presença, fora das proposições, de um referente que as confirma, e supõem o compartilhar, pelo autor e leitor, de um domínio de experiência comum (desempenha assim um papel na argumentação).

3.3.2. Regulação filosófica do uso dos exemplos – Os filósofos, graças a função meta textual, têm a possibilidade de refletir sobre o uso que fazem dos exemplos em seus textos. Eles explicitam o estatuto filosófico do conceito, e assim são capazes de pensar a relação entre o particular e o geral. É preciso procurar onde e como essa análise intervêm no sistema.

3.3.3. Circularidade referencial e fechamento ontológico – O estudo nos leva a interrogar sobre a natureza da filosofia. A referência não é pura ficção, pois pretende visar o real e corroborar o discurso fundamentando-o: O substrato ontológico duma doutrina é tanto condição da elaboração da abstração quanto seu resultado. Existe realmente “dado” em filosofia, já que as regras que o permitem são as mesmas decorrentes de sua presença? A língua e a cultura já têm uma formalização prévias do pensar e agir, nesse sentido não há instauração filosófica originária. A tarefa do filósofo é deslocar, e eventualmente destruir, as formar antigas por uma reconstrução ontológica, que comporta o risco de uma circularidade interna. Teremos então de considerar como efetivo o desdobramento da referência para um mundo? Não há resistência das coisas que faria não se poder dizer “qualquer coisa”, ainda que essa coisa tivesse a aparência do necessário? Desse modo, a atividade filosófica seria puramente estética. Essas indicações nos permitem entender o que distingue filosofia e arte: A obra romanesca propõe um substituto referencial ao produzir na ordem da ficção, e com ajuda de procedimentos narrativos, um equivalente do mundo. Por sua própria estrutura a obra filosófica só revela um mundo com a condição de que seja reconstruída a referência do discurso descritivo. É efetivamente de nosso mundo que os textos filosóficos tratam, e é para torná-lo inteligível que os filósofos o transpõem para o discurso através dum universo denotativo ideal. Escapa-se ao “círculo”, mas a relação com o mundo é oblíqua, pois idealidades filosóficas desempatam o pensamento e o mundo num jogo de espelhos.

4. Função das metáforas no texto filosófico – A metáfora é um fenômeno restrito, tanto no uso que dela é feito quanto pelo valor a ela atribuído. Seu alcance é tão marginal quanto a descrição do seu emprego. Os filósofos contribuíram para o seu descredito ao afirmar que só serve de adorno ao texto, ou para facilitar a compreensão, ou, ainda, aumentar a persuasão. Razões históricas hão para tal atitude: A filosofia ocidental teria surgido como recusa a imagens sob a espécie do mito. Haveria uma antinomia original entre o esforço filosófico de inteligibilidade e o peso concreto da imagem que veicularia irracionalidade e ignorância. Os filósofos deveriam romper com a imagem religiosa, em seu uso poético, mistico ou mítico, e o peso do preconceito e da opinião em seu uso estereotipado, procurando “purificar” a linguagem que empregam da carga de obscuridade que ela veicula. A metáfora está para o conceito, como o inefável está a palavra, ela quebra o andamento demonstrativo e rompe a homogeneidade da representação conceitual. Porém, não há grau zero de metaforização, porque a língua comporta imagens “imersas”, levando o discurso filosófico a empregar metáforas “gastas” que mal se percebem. A relação conceito imagem mostra-se mais complexa do que parece; não apenas o filósofo parece obrigado a dominar o recurso das imagens, como deve desconfiar de sua proliferação, que representa um risco de subversão interna para a filosofia. Assim, a imagem tem um estatuto filosófico ambíguo, devido a qualquer tentativa externa ou interna parecer destinada ao fracasso já que as categorias que regeriam a análise descritiva e as classificações dependeriam elas próprias, direta ou indiretamente (na perspectiva retórica ou linguística), do campo filosófico. A perspectiva não é nem descritiva nem simplesmente classificatória, mas quer dar conta da complexidade textual, articulando a operação de metaforização a todas aquelas que contribuem para o desdobramento da trama textual. É possível explicitar os tipos de imagens para determina-lhes a função, os efeitos de sentido na conceitualização em que se “enxertam”. A significação filosófica de seu uso aparecerá após o exame detalhado das regras que o comandam, e não o contrário.

4.1 Definição – As metáforas suspendem a exposição abstrata para substituí-la por outro plano de significação, caracterizado pelo uso de imagens, cuja função parece oferecer um equivalente concreto da análise. As analogias, alegorias, comparações, imagens, metáforas e mitos baseiam-se no mesmo princípio. Parecem ornamento ou concessão pedagógica, porém, o recurso metafórico está profundamente engajado na elaboração filosófica. Definimos a operação metafórica como a transferência de propriedades pertencentes a um domínio de referências concreto e de imagens, para o encadeamento abstrato dominante. Pode dar-se em formas variáveis de transferência e tipos de equivalência. As operações metafóricas particulares:

Imagem – Fusão do plano de imagens concreto e do plano abstrato numa relação de identidade; opera ordens diferentes ao operar uma substituição identificadora;

Metáfora – Aproxima por contiguidade elementos supostamente análogos, substituindo o termo comparado pelo que compara;

Analogia – Transposição de uma relação ou ligação assimilável entre dois planos (enquanto a imagem e a metáfora condensam-se graças a uma identificação, a analogia – e a comparação – supõe a semelhança da relação e justapõe os elementos da cadeia textual);

Comparação – Uma analogia que funciona em dois termos, já a metáfora é uma analogia condensada;

Modelo metafórico – Transpõe de um plano para outro um sistema de relações pertencentes ao domínio concreto figurado, que desenvolve-se ao substituir a análise ou a argumentação por esse domínio.

Alegoria – Personifica a ideia, colocando-a em cena através de um desenvolvimento de caráter narrativo, é uma montagem no imaginário de elementos emprestados dos domínios práticos, técnicos ou míticos.

Mito – Substitui a análise conceitual por conjuntos narrativos já elaborados pela tradição ou que obedecem a regras de organização próprias;

Fábula – Sintetiza, num quadro ou numa cena viva de tipo anedótico ou imaginário, uma construção abstrata explicitada eventualmente por uma “moral”.

Não se trata de construir uma tipologia das metáforas, mas reconhecer suas formas e sua função nos textos.

4.2Funcionamento metafórico -

4.2.1. Localização e marcadores – É possível definir alguns grandes tipos de emergência metafórica em função da presença ou da ausência de marcadores.

4.2.1.1. Metáforas adormecidas, metáforas latentes – A língua utiliza suportes concretos e figurados para designar ideias gerais (designações metafóricas latentes), ainda que algumas filosofias se construam mais próximo da língua. Além do mais, o texto filosófico não constrói suas categorias reelaborando o vernáculo, mas engendra-se imitando formas de elaboração anteriores, de modo que algumas metáforas acabam se desvalorizando ao ponto de mal serem perceptíveis. Elas supõem uma espécie de arquivo “inconsciente” dotado de codificações pré-construídas que se oferecem “espontaneamente” a escrita filosófica e produzem efeitos textuais que perpetuam a presença de discursos esquecidos, ou falsas evidências. Essas metáforas gastas, cujo emprego não tem efeito especifico, mas podem produzir um efeito residual que supõe uma dimensão intertextual, é o grau 0 de metaforização. Distinga-se a latência do desgaste, pois as “metáforas adormecidas” podem ser despertadas, constituindo um embreante metafórico para uma reelaboração que ou reativa o tema, ou subverte-o, desloca-o e desvia-o.

4.2.1.2. Ausência de marcadores explícitos – Em inúmeros casos nada prepara para a metáfora. Existem marcas sintáticas, mas sem solução de continuidade com o nível do discurso abstrato, embora exista uma mudança de regime com a intervenção das imagens (grau 1). Sua emergência pode efetuar-se graças a uma metáfora gasta que faz o papel de embreante metafórico, ou por uma expressão inicial que conjuga o sentido próprio e o figurado. A emergência metafórica é determinada do interior de uma filosofia dada e sua ocorrência remete ao conjunto do campo metafórico considerado.

4.2.1.3. Marcadores explícitos e atribuições – Diz-se metáfora de grau 2 quando marcadores explícitos assinalam sua emergência; esse operadores diversos se repartem em um espectro que vai da imagem a comparação. As vezes indicam ao mesmo tempo a natureza da operação e uma glosa sobre seu emprego (grau 3). O texto pode tematizar as regras de emprego ou o estatuto da imagem em relação ao conceito; esse meta metafórico (grau 4) indica a existência de um ponto em que o metafórico se explicita filosoficamente. A metáfora se inscreve no texto oscilando entre uma presença neutra ou bem acentuada (em geral, graus 1 e 2).

4.2.2. Extensão e densidade -

4.2.2.1. Extensão metafórica – o lugar ocupado por uma metáfora pode -ser:

Pontual – Limitada a um termo, frequentemente um adjetivo;

Enquadrada – De forma rapidamente fechada, uma vez que não tem autonomia no texto (cabe ao leitor operar sua transposição);

Irradiada – Consiste numa junção de elementos metafóricos coordenados entre si com uma série de termos embreantes (a análise se desenvolve acompanhada de um “halo” de imagens);

Intrincada – O texto estabelece um vaivém entre os dois registros.Os limites dessas formas são aproximados, uma vez que, a partir dos embreantes metafóricos, numerosas expansões vão permitir a metáfora contaminar um trecho inteiro ou constituir uma sequência autônoma muito longa, utilizando um suporte narrativo como o mito.

4.2.2.2. Densidade metafórica – A análise dos marcadores, das formas de ocorrência e extensões permite determinar a importância quantitativa do metafórico em determinado texto (é preciso matizar esse critério considerando indicações qualitativas). É preciso fazer o levantamento do conjunto das metáforas disseminadas ou articuladas segundo regras que precisamos explicitar. Sem a análise dos “conteúdos” é impossível compreender o vínculo entre as imagens, nem suas reações com os processos de análise e argumentação.

4.2.3. Estudo interno do domínio metafórico – Ao dissociar a imagem da trama abstrata, pode se

reconstituir segmentos metafóricos e estudá-los por eles mesmos, temática e funcionalmente.

4.2.3.1. Análise interna de um segmento metafórico -

4.2.3.1.1. Segmento efetivo e domínio de referência – As vezes o segmento (conjunto dos elementos de metaforização) mostra-se bastante individualizado com seu embreante (termo que opera a substituição), seus núcleos e eventuais expansões, mas, em regra, os dados são mais complexos. Tema metafórico é o elemento de conteúdo utilizado. Relacionando o segmento efetivo a um virtual (conjunto de variáveis efetiváveis no mesmo tema), reconstituímos o domínio de referência metafórico. Cada domínio tem sua organização própria, pois articula a percepção do mundo pelas propriedades semânticas da língua, da forma arcaica do mítico, há outras formas de saber e de elaborações filosóficas. Esse arquivo não está morto e o texto que dele se utiliza o faz em função de regras de seleção (aspectos de um domínio são retidos) e de reorganização, pois é preciso redistribuir na cadeia discursiva os elementos selecionados. Encontramos dois tipos de regras, conforme partamos da escrita que constrói o texto ou dos domínios de imagem pré-estruturados. No primeiro, o modo pelo qual um aspecto do processo de reflexão se desenvolve metaforicamente, no segundo partimos de um universo de referência figurado para compreender como ele interfere no campo conceitual.

4.2.3.1.2. Regras de seleção -

Sequencial – O domínio metafórico processa o ordenamento da imagem conservando as relações;

Conotativa – Desarticula as organizações lineares do discurso, retendo apenas elementos parciais que são rearticulados as expressões abstratas (certas constelações de termos são transportadas, conservando-se as regras semânticas que as ligam; as vezes vários domínios metafóricos se associam em função de compatibilidades semânticas).

Vemos que as expansões (multi metáforas) são possíveis devido aos domínios semânticos estrem unidos por regras de interação, e porque o texto as associa criando superposições ou novos enxames que conferem ao uso do metafórico seu caráter proliferante, dando longa margem de inversão ao filósofo.

4.2.4. Multiplicidade temática e organização – Muitos textos misturam os domínios de referência, utilizando agenciamentos sequenciais ou conotativos e formas variadas de emergência ou extensão, corre-se o risco de uma anarquia metafórica se não houver regras de unificação e hierarquização dos temas e formas. Quando a metáfora é bem delimitada ou a constelação é muito bem estruturada, a unidade é conferida pelas regras de organização do domínio e de construção do processo textual. Mas pode ocorrer da imagem produzir uma sobrecarga que rompe a organização analítico conceitual, ou que as associações liguem domínios incompatíveis ou desconexos. Os mecanismos que coordenam os temas e as metáforas entre si são variados.

4.2.4.1. Paralelismo, redundância e complementariedade – Os domínios convocados surgem quase simultaneamente a partir de um embreante e reforçam por acumulação ou aproximação o efeito desejado.

4.2.4.2. Cena metafórica – Há casos onde o domínio metafórico confere o princípio de estruturação textual. Trata-se do processo de construção da cena metafórica, pois o domínio de referência impõe os conteúdos, estruturas e processos ao segmento desenvolvido no texto; e unifica a exposição porque está construído como uma cena dotada de unidade de tempo e espaço. Mas em outros casos é inteiramente montada a partir de elementos pertencentes a domínios heterogêneos, hierarquizados sob um tema ou sequência dominante.

4.2.4.3. Esquema metafórico – Outros textos, utilizando materiais dispares, sem unidade de roteiro nem dominância da conceitualidade, são, no entanto, fluidos e coerentes. Encontramos a presença subjacente de um esquema metafórico quando a coerência e o desenvolvimento da sequência são engendrados por uma imagem arquétipo que é uma forma abstraída; essa imagem/forma, estática ou dinâmica, assegura a passagem entre o conceitual e o figurado. “Arquétipo” mais pelas propriedades fundamentais do sistema de pensamento em que ela é produzida do que em determinações inconscientes. As metáforas empregadas no texto filosófico não são elementos adventícios, mas estão profundamente engajadas no coração da doutrina, sobretudo quando a reflexão faz uma critica ao conceito; no entanto, encontram-se em níveis diferentes e para compreender sua função é necessário determinar os critérios de sua importância.

4.3Funções da metáfora no texto filosófico -

4.3.1. Como avaliar a importância da metáfora -

4.3.1.1. Importância quantitativa – Se reagruparmos o conjunto das indicações dadas poderemos dar medidas quantitativas, porém pobres de mais se as tomarmos por si mesmas. Seria preciso uma porção mais

vasta de texto, a fim de descobrir correlações significativas entre temas filosóficos e metafóricos; podemos no entanto obter preciosas indicações ao analisar o tipo de operações textuais aos quais elas se relacionam (onde o critério quantitativo dá lugar ao qualitativo).

4.3.1.2. Que aspecto da análise filosófica é metaforizado – Todos os aspectos da reflexão são substituíveis por imagens, mas nem tudo é metaforizado, e a análise do alvo da metáfora permite percebê-lo.

4.3.1.3. Regulação metafórica ou conceitual – A dinâmica e a estruturação do texto são assegurados por diversos elementos; se todos contribuem pra isso, há, no entanto, uma operação dominante, o suporte fundamental do processo textual. Essa dominância pode muito bem ser efetuada pela metáfora. O critério anterior demonstra que pode-se substituir um nível qualquer de discursividade, o que significa que toda operação de reflexão pode fazê-lo também. Consequentemente podemos encontrar casos em que o conjunto ou uma maior parte dessas operações são metaforizadas. É importante compreender que a análise de tipo conceitual abstrata acha-se ela própria submetida ou integrada no sistema de regras metafóricas, ao ponto de podermos falar de uma regulação metafórica do conceitual e, em casos limites, da absorção de um no outro.

4.3.1.4. Estatuto filosófico da metáfora – É claro que não podemos abordar o estatuto textual da metáfora sem considerar o filosófico da doutrina estudada. Em razão do estatuto ontológico ou gnoseológico dado a imagem ou a linguagem, o uso, a relevância e as funções da metáfora variarão. Assim o uso nunca é neutro, mas sempre filosoficamente determinado. e raramente é explicitado no momento de seu uso. Seu estudo exige localizar tais fatores na doutrina (o que supõe uma metafórica geral). Não se deve generalizar apressadamente a importância respectiva do uso e do estatuto, pois nem todos os textos terão um uso linear.

4.3.1.5. Testes de ocorrência – A partir destes critérios submeteremos o texto a variações a fim de determinar o grau de contingência ou de necessidade do recurso metafórico.

Apagamento – Tenta-se suprimir todos os traços de sequências metafóricas; se o apagamento não altera a análise a metáfora possui um grau fraco de necessidade (é redundante e complementar).

Tradução – Transpor a metáfora nos termos abstrato da doutrina (ela constitui um substituto do conceitual); quando impossível, o recurso a metáfora constitui o único meio de expressão adequado (a ruptura metafórica indica um aquém ou além da linguagem).

Substituição temática – Se uma figura é substituível por outra dentro da metaforização, então indica uma fraca necessidade temática; construamos classes de equivalência metafórica, e regras de transformação ligarão os domínios em subconjuntos compatíveis. Uma forte necessidade temática confere a metáfora a dimensão da visão.

Estes teste avaliam a importância do uso metafórico no seio das análises filosóficas, permitindo recortar os critérios. Se é possível aplicar o apagamento, a substituição temática e a tradução, o regime metafórico encontra-se fortemente subordinado, do contrário tende ao poético ou o mítico. Mas ao lado desses extremos outras formas decorrem do entrecruzamento dos critérios de ocorrência. As diversas combinações servem de condutor do estudo da importância para a análise da função das metáforas. Com efeito, esse recurso (se é verdade ser sempre filosoficamente determinado) tem ocorrência não arbitrária, resultante de uma regra de composição interna da doutrina com seus modos de expressão e de exposição.

4.3.2. Função filosófica do uso da metáfora -

4.3.2.1. Mediação intra discursiva: metáfora integradora – Quando o conjunto de critérios e testes de ocorrência concordam, trata-se de um uso homogêneo. Se emprego quantitativo é fraco, só alguns aspectos são metaforizados, a dominância não é metafórica, seu emprego é extrínseco a doutrina, e a análise depende de uma retórica totalmente secundária. Porém, mesmo quando a função é fraca, as metáforas pertencem a discursividade filosófica como algo particular; a imagem aqui é completamente determinada em sua forma e sua utilização pelo nível teórico da doutrina. A metáfora é um dos meios de desdobramento dos “conteúdos” filosóficos, que se efetuam em formas expressivas diferenciadas. A expressão metafórica é um patamar abstrativo fraco, já que é reabsorvida, e mediatiza a doutrina com seus destinatários (funções didática e pedagógica). Nesse uso integrativo é reconhecível a presença duma teorização do metafórico em geral.

4.3.2.2. Mediação extra discursiva: a metáfora desintegradora do discurso e substituição do indizível – Se é impossível substituir, traduzir ou apagar, os critérios de importância se unem dando a metáfora um papel privilegiado, esta não é mais uma mediação interna no desenrolar da doutrina; ela rompe o encadeamento discursivo e indica regiões do ser ou formas de experiência inacessíveis de outros modos. Encontramos nessa mediação metafórica características inversas do tipo anterior, não é só a imagem fonte de sentido, mas constitui um critério de interpretação para todas as formas abstratas que a partir daí são

desqualificadas ou relativizadas. Caso não obtenha-se três desses testes de ocorrência homogêneos, nem critérios de importância significativos, isso nos leva a considerar funções intermédias.

4.3.2.3.Função heurística da modelização metafórica – É utilizada como procedimento de descoberta; ao passar por um plano concreto figurado, espera-se obter indicações das quais se tirará um proveito na abstração. Podemos falar de função modelizante quando o núcleo figurado e suas extensões oferecem traços característicos transferíveis por analogia ao plano conceitual. A transferência é heurística quando obtemos pela transposição uma determinação de particularidades anteriormente desconhecidas. É aqui um desvio forçado na análise filosófica. Os processos são diversos mas a analogia é privilegiada. O interesse do paradigma é estender-se por uma superfície de análise que fará frutificar todos os aspectos do modelo, graças a uma dupla transferência: a das características ou distinções, mas também a da evidência de um nível, da qual o outro por sua vez se apropria.

4.3.2.4. Função erística: metáfora demonstrativa – Nesse uso a metaforização é usada para reforçar a evidência de uma tese ou a validade de um raciocínio. A analogia permite o raciocínio do qual a metáfora constituí um momento. Dá-se a metáfora uma polivalência funcional: seu papel pode ser importante ou secundário, mas jamais é extrínseco a construção textual.

4.3.3. Significação geral da metáfora filosófica – A metáfora tem um papel estrutural, quer se tente dominá-la, quer seja o centro do texto. Nesses usos, a metáfora constitui uma fonte de tensão interna, é fator de criação que reduz os planos de expressão, mas é risco de desintegração do texto, ameaçado de incoerência verbal ou retorno ao silêncio.

4.3.3.1. A metáfora como risco -

4.3.3.1.1. Uso controlado, uso incontrolável? - A atitude dominante na filosofia ocidental consiste em relativizar a utilização das imagens, regulando seu emprego por meio de uma dependência em relação ao sistema. Mas essa meta é ameaçada pelo risco de uma subversão metafórica do conceitual. A abstração não pode ser atingida, senão por formas suporte de análise que são de um nível de abstração inferior; por outro lado, a língua implica o metafórico latente, o filósofo sempre busca uma “purificação” que expurgue a imagem ou a domestique, mas o processo de abstração encontra seu limite no risco de uma perda de sentido.

4.3.3.1.2. O funcionamento da metáfora transgride as regras de construção filosófica – A lógica da metáfora provêm do simbólico, já a conceitualidade demonstrativa afasta a polissemia e as conexões vagas. Cada imagem engendra outra e se espalha, essa profusão corre o risco de interromper a cadeia argumentativa, e a substituibilidade feita sobre cadeias temáticas imprecisas pode provocar efeitos ontológicos.

4.3.3.1.3. A filosofia como denegação da metáfora – A metáfora distância e aproxima planos inicialmente heterogêneos; para limitar a abertura engendrada pela série infinita das aproximações figuradas, seria preciso encontrar a imagem única. A filosofia é tomada pelo dilema: ou controlar a metáfora (cujo controle verdadeiro seria a supressão, que é impossível), ou aceitá-la, correndo o risco do campo conceitual dissolver-se. A solução adotada geralmente consiste em tentar captar a dinâmica criativa da metáfora, reprimindo ao mesmo tempo seus efeitos perversos: ela está disseminada, mas existe uma explicitação teórica de seus usos lícitos. Porém o problema ressurge, esse movimento quer reduzir a metáfora, e ela própria se torna metáfora do ser que o sistema pretende significar.

4.3.3.1.4. Da metáfora ao poético – A metáfora permite desqualificar o discurso abstrato e instaurar uma nova relação entre o ser e o dizer. No entanto comporta um risco destruidor. Primeiro a subversão da metáfora pelo conceito, na linguagem a tendência abstrativa é tão consubstancial quanto a metáfora. A imagem nunca é totalmente original e seu emprego pode liberar um “conteúdo” bem menos originário do que aparenta. Assim, um certo número de códigos preside a escrita metafórica, que doutra não poderia ter a pretensão de traduzir uma experiência única. Logo, a visão metafórica do mundo constitui um modo de inteligibilidade do real tomado integralmente. A filosofia reelabora camadas de sentido pré-constituídas, constrói diferenciações internas entre graus de abstração, em seguida retorna através da metáfora que o próprio sistema constituiu em sua origem. O segundo risco: para evitar a contaminação da imagem pelo conceito, filósofos buscam uma forma de expressão que coincida com a experiência inefável. As palavras traem tanto quanto produzem, por tal oscila-se entre o silêncio e uma série de metáforas de metáforas. Resta encontrar uma forma adequada de linguagem que permita a mediação figurada estabilizar-se entre o indizível e a degenerescência verbal. Cabe a poesia o privilegio de substituir a conceitualidade filosófica que falta (assegurando, para além das ocultações metafisica, um desvendamento do ser que se oferece da forma originária no modo poético). Nessa ótica o texto se realiza sobre sua própria impossibilidade, e a inclinação poética, profética e mistica pode

significar tanto o fim da filosofia quanto uma renovação. A presença da metáfora na filosofia designa-lhe seus limites: se a metáfora desestabiliza o conceitual, é o abstrato que trabalha a imagem.

4.3.3.2. A metáfora como oportunidade. Seu papel na construção filosófica – A filosofia dá importância preponderante ao estabelecimento de teses baseadas em conceitos e validadas por demonstrações. A utilização das metáforas contribui a instalação desse dispositivo e em certos casos o fundamenta, desempenhando um papel triplo: ontológico, entrexpressivo e criador.

4.3.3.2.1. Ontologia e referência oblíqua – A medida que os segmentos metafóricos selecionam e reorganizam elementos que tomam emprestados dos domínios de referência metafórica, eles trazem para o interior do discurso de acolhida as referências construídas por esses domínios. Os mundos assim virtualizados oscilam entre o mundo possível e o efetivo (real), mas (distinguindo a metáfora do exemplo) ainda que as referências sejam colocadas numa realidade, elas são sempre distantes do mundo efetivo visado pela linguagem. Falamos então de referência oblíqua ou indireta, pois esse horizonte ontológico se acrescenta ao sistema das referência conceituais. Isso coloca o problema da compatibilidade e das interferências entre os dois modos. As filosofias sistemáticas operam um fechamento ontológico, pois se o metafórico nelas é comandado do interior pelo dispositivo doutrinal, a ontologia residual veiculada pela metáfora deve igualmente ser submetida a ontologia geral. Nas filosofias que privilegiam a metáfora, esta constitui o operador referencial privilegiado, a medida que reduz a distância que a linguagem havia exacerbado entre o ser e nós. A imagem oferece não uma indicação, mas aquilo mesmo que designa (o que não pode ser dito apenas se mostra).

4.3.3.2.2. Entrexpressividade metafórica – A metáfora atua como função de tradução multidirecional, um dispositivo pelo qual formas expressivas heterogêneas convertem e trocam suas propriedades. Se distingue das formas de equivalência entre conceitos ou esquemas de pensamento, pois estes são regidos pelas propriedades explicitas da doutrina, enquanto a entrexpressividade metafórica procede por aproximação, associação ou contiguidade. Ela introduz um coeficiente de variação interpretativa perigoso se a distância se acentua, ou se equivalem, pois em ambos haveria tendência a anulação de sentido. A metaforização constrói translações analógicas que se entrecruzam com as anteriores e contribuem para a entrexpressividade do sistema. A função que a metáfora desempenha num fragmento textual é dificilmente apreensível, ao menos em profundidade, sem referência ao campo metafórico na unidade textual englobante. Ela só constitui uma unidade em si ao nível de conjuntos mais amplos, dos quais apenas uma metafórica geral pode dar conta.

5. Estrategias discursivas e argumentação em filosofia -

5.1 Problema de método: objetos e instrumentos de validação – Tocamos aqui o cerne da atividade filosófica, demonstrativa onde não é. Para facilitar a formulação dum instrumento de leitura, escolhemos uma perspectiva “integrativa”, englobando fenômenos discursivos ligados a legitimação: a filosofia visa “dar razão”, seja sob qual forma o faz (não é a única, mas diferencia-se por sua impossibilidade de direito de separar a legitimação da afirmação que valida). Não se pode separar as justificações e só reter os dogmas, a atividade filosófica consiste no estabelecer e ligar as teses; nisso a filosofia é antidogmática por excelência (um sistema de teses não é simples crença, mas convite a reflexão). Parece possível revelar, nos textos filosóficos, os “paradigmas” capazes de dar conta dos aspectos que a justificação assume: o “conteúdo” de pensamentos e seus modos de desdobramento estão tão intimamente ligados, que pode-se explicar, ao lado de formas canônicas de demonstração e argumentação, usos específicos ou formas inovadoras; e a relação entre reflexão e demonstração pode ser esboçada a medida que a filosofia explicita conscientemente a relação entre suas teses e o respectivo modo de estabelecimento. Para tal faz-se necessário alargar a ideia do processo de legitimação, tanto nos objetos quanto nos meios.

Processo de legitimação – Permite legitimar, ao interlocutor, uma asserção pelo raciocínio, pela prova e o que mais contribuir para identificar o estatuto de verdadeiro ou falso nela mesma. Engloba da simples afirmação a demonstração complexa; tudo o que reforça ou estabelece, ao mesmo tempo, o índice de verdade e o de credibilidade de uma proposição. O discurso como um todo corre o risco de aparecer como processo de validação, e, em certo sentido, é verdade que todo o desenvolvimento da reflexão tem como base tal fim. No entanto precisa-se das marcas especificas desse processo.

Objeto de validação – O que está em jogo no processo (as teses e operações que são objeto da reflexão).O método de análise deve se adaptar a diversidade dos modos e objetos de validação (a discursividade filosófica não é nem lisa nem monológica, ela articula formas de expressão múltiplas que se unificam na dinâmica probatória, o que requer um instrumento adequado a essa diversidade).

5.1.1. Objetos de validação filosófica –

5.1.1.1. Localização, delimitação das sequências – Na validação distinga-se o validante (meio de legitimação) do validado (elemento a ser justificativo). O primeiro passo é isolar os conjuntos de validação, constituídos pelo núcleo por validar, com frequência uma tese ou enunciado doutrinal, e os meios empregados para tal. Cumpre diferenciar o lugar que o validado ocupa de sua função, são múltiplas as formulações que as distingue. A distinção entre validado e validante é funcional já que o validado pode transforma-se em um elemento demonstrativo, bem como um argumento pode requerer justificação. Essa diferença permite formas complexas nas quais esses elementos têm interação constante. Avaliamos, com essa observação, o quanto a estrutura do discurso filosófico depende da sequência dos argumentos e das provas.

5.1.1.2. Análise da natureza das sequências - Isolados os núcleos, analise-se sua natureza. É preciso aceitar que todos os pontos da prática textual filosófica estão sob a exigência de validação, mesmo o todo doutrinal. Escolhas feitas no tratar dos assuntos, o uso do método de análise ou de demonstração, podem também ser objeto de demonstração ou (de modo mais fraco) justificação. O que importa nas razões é mais o fato de serem fornecidas do que sua natureza. As vezes a validação não intervém explicitamente, mas o simples afirmar constitui uma justificação implícita: um enunciado declarativo é posto no discurso como um argumento (mínimo). A posição da asserção faz dela proposição e, portanto, raciocínio. Com dois efeitos: Todo enunciado doutrinal passível de ser separado do conjunto onde se encontra construído seu sentido e

fundado em razão possui um índice de validade por sua forma declarativa, separá-lo de todo o contexto e restituir por análise o que pode justificá-lo constitui uma forma de validação.

Já que todos os aspectos da ação filosófica são alvo de validações, é avaliável nos textos aquilo que é de fato; pode-se igualmente firmar correlações entre o modo de validação e o tipo de operação em que age.

5.1.1.3. Extensões, auto validações – Textos que tratam sua própria possibilidade requerem um momento de auto fundação, quando se tenha de suporte só a própria evidência. Isso só ocorrerá se o texto maximiza os processos de validação estendendo-os a toda doutrina, para que o conjunto repouse sobre uma evidência originária que unifica os conteúdos e métodos. Assim, examinando a natureza dos elementos sob justificação é colocado o problema da sistematicidade (tudo em filosofia está sob a exigência validação). Pode-se objetar: Essa afirmação mostra a impossibilidade do que ela afirma, já que seria preciso uma fonte de

autenticação exterior, mas essa referência exige ser validada. Os filósofos respondem pela colocação de um princípio auto fundado (condição de possibilidade do discurso filosófico). Refuta-se a objeção cética que forçaria o regresso ao infinito, expondo-se ao risco de uma fuga para diante, pela qual o sistema se estende, o que encurralaria o filósofo no paradoxo da totalidade. A exposição sistemática evita o regresso infinito ou a arbitrariedade fundadora ao exibir diretamente a estrutura inteligível.

Essa afirmação é desmentida pelos fatos, visto que numerosos textos não recorrem aos raciocínios nem a exposição sistemática, mas a formas fragmentárias, animadas por uma lógica em primeira pessoa ou de ordem metafórica. O estudo desse fenômeno mostrou que esse emprego tinha ele próprio um valor probatório (a validação é efetuada por uma captura “direta” que só a imagem autoriza, com exclusão da conceitualidade e da demonstração que impedem ou ocultam a relação com o ser).

5.1.1.4. Unificação das visadas demonstrativas e argumentativas numa estratégia discursiva - Argumentação – Conjunto de aspectos da validação que dependem da enunciação filosófica tal

como a definimos. A filosofias na perspectiva dialógica, polêmica ou didática procura estabelecer uma posição contra outras e constrói sua hegemonia através de um combate de argumentos em que o interlocutor é ao mesmo tempo testemunha e objeto da disputa. A argumentação constrói oposições irredutíveis ou faz o distanciamento inicial tender a unidade universal.

Demonstração – Todos os aspectos da validação pelos quais os enunciados da doutrina aspiram a verdade independentemente de um ato de comunicação.

A demonstração é uma relação entre proposições veiculadas por enunciados, enquanto a argumentação põe esses enunciados em relação por intermédio dos enunciadores. Se privilegiarmos exclusivamente a primeira, empobrecemos a análise, na medida em que reconhecemos nos textos esquemas de raciocínio reduzíveis a esqueletos; isso deixa de lado toda uma parte do trabalho de prova. Contentar-se com a argumentação resulta em atomizar o texto em inúmeras operações pragmáticas impedindo o reconstituir dos movimentos gerais da validação. Chamamos estratégia de validação o conjunto de procedimentos pelos quais a dimensão demonstrativa e argumentativa estão ligadas com vistas a validação de uma tese. É a análise desta estratégia que não sacrifica nenhum aspecto da realidade textual. Certamente, o discurso filosófico utiliza raciocínios cuja natureza e as formas podem ser explicitadas em uma tipologia, mas essas abordagens se aplicam especialmente a textos efetivos dos filósofos que se utilizam da mecânica de esquemas gerais. Cada doutrina utiliza os recursos da demonstração e da argumentação de maneira original, aclimatando-os ao seu método, criando novas formas ou disposições determinados pelos conteúdos doutrinais. Cada doutrina é levada a tematizar o estatuto que concede aos métodos, a verdade e as provas, de modo que a filosofia se mostra caracterizada pelo seu movimento de auto

validação ou de auto fundação. O uso que ela faz do processo de validação depende de sua posição teórica com respeito ao raciocínio e a persuasão. Nossa abordagem deve propor quadros gerais que permitam analisar essa profusão de operações, sem pressupor uma homogeneidade do processo probatório filosófico, e, mais importante, compreender de que modo o texto unifica numa estratégia discursivas esses múltiplos efeitos de sentido que contribuem para persuadir e convencer. Tal leitura fará aparecer: os fenômenos textuais que dependem da estruturação demonstrativa ou argumentativa e a maneira pela qual a estratégia discursiva articula esses fenômenos.

5.1.1.5. Estudo de um exemplo que liga as duas perspectivas – (aqui o autor analisa a estrutura dos diálogos de Platão sob as indicações dadas)

5.1.1.6. Textos com dominância demonstrativa, textos com dominância argumentativa – Como era com os sujeitos enunciadores, constatamos que os dois modos de visar, embora sempre presentes, podem variar e dar ao texto um aspecto mais francamente demonstrativo ou argumentativo. Três possibilidades: Certas formas exibem privilegiadamente as estruturas demonstrativas que constituem então esquemas de

raciocínio e o princípio de organização que rege a exposição; Outros quebram a lógica do raciocínio em proveito de usos predominantemente argumentativos;

Formas mistas são mais frequentes, mas é preciso avaliar segundo que dosagem as conjugam; na maioria dos textos filosóficos não há grande homogeneidade de seus componentes, formando uma justaposição mais ou menos feliz das visadas argumentativa e demonstrativa. A maioria oferece prevalência do demonstrativo (tenhamos presente que o demonstrativo é implicitamente argumentativo, já que opera uma transformação das perspectivas), com interferências argumentativas de suporte ou exemplo.

O uso da estratégia discursiva depende das operações que ela tende a abonar. Outro fator que explica as diferentes dosagens de argumentativo e demonstrativo é a mesma complexo doutrinal poder ver-se reescrito em formas diferentes em razão das “intenções” que determinam a posição do destinatário na enunciação.

5.2 Quadro enunciativos da argumentação –

5.2.1. Cena filosófica e argumentação – A posição da cena filosófica permite um repartição dos enunciados entre os interlocutores, dos quais o enunciador constitui o agente principal. Esse estrutura de enunciação organiza funções cuja associação ou prevalência determinam as formas de expressão filosófica. A cena filosófica fornece assim os quadros e o suporte pelos quais se organiza a argumentação. No pseudo diálogo os atuantes tem um lugar determinando de antemão pelo autor que, impondo um percurso argumentado, irá progressivamente invalidar outras perspectivas. O modo do discurso determina previamente o dispositivo da prova, propondo um tipo de interação discursiva que substitui o procedimento da prova pelo da aprovação. É nesse sentido que o processo enunciativo oferece suporte ao processo demonstrativo, o que não significa que este possa ser reduzido aquele, mas que será preciso levar em conta os dois aspectos e sua interação, já que o ato pelo qual se instaura o discurso filosófico é a instância necessária para a efetuação do verdadeiro. Nos textos que privilegiam as estruturas demonstrativas, a dimensão da argumentação deverá ser reconstituída através dos indícios deixados no texto pelas operações enunciativas

5.2.2. Posição da cena enunciativa e papel da primeira pessoa na argumentação – Em torno do enunciador, pivô do processo textual, pode efetuar-se duas formas de universalização que tendem dar as teses seu coeficiente de certeza.

Universal – A presença do “autor” é contingente em relação ao processo de validação, do qual ele é instrumento; constitui por si um modo de validação, já que tende a reduzir a pluralidade das perspectivas a um “não ponto de vista” tão geral que engloba a totalidade da classe dos destinatários potenciais.

Subjetiva – O sujeito na primeira pessoa encarrega-se duma singularidade forte, obtida por recursos biográficos ou formas exaltadas de individualização, mas longe de implicar uma relatividade das teses em relação aquele que enuncia (observa-se haver uma coerência entre esse tipo de discurso e a teoria filosófica da subjetividade e da verdade da doutrina – eis um ponto de passagem entre literatura e filosofia – ). Um universo biográfico, não é só o suporte, mas a própria função argumentativa e seu uso, aparentemente oposto a demonstração, pode vir a protagonizar a validação filosófica.

5.2.3. Efeitos da função didático-pedagógica na argumentação – O filósofo deve integrar e refutar o que se opõe a sua tese, convencer o seu leitor e atingir a universalização da teoria. A colocação da relação com o destinatário obedece aos imperativos complementares da conversão e da explicação. Devemos destacar os elementos que indicam esse trabalho a fim de perceber os efeitos provocados na argumentação, como redundâncias e o recurso mais frequente ao exemplo ou metáfora. Mas o desejo de explicar também pode levar a resumir e reduzir, ao ponto do texto só oferecer argumentos mínimos ou propor a doutrina sem

os processos de validação. Assim, a função didático-pedagógica oferece a argumentação esquemas de organização que permitem o agenciamento dos elementos de validação e funções argumentativas.

5.2.4. Efeitos da função dialógico polêmicas na argumentação – Trata-se aqui de caracterizar como verdade teses que o filosofo deseja promover, eliminando os obstáculos e ameaças que seus adversários representam. As funções dialógica e polêmica pode oferecer suas formas características a argumentação, propor-lhe quadros de construção, modos de progressão. Um pensamento só se constitui por diferença das teses de que se afasta, mas acontece dos vestígios desse processo serem apagados, ou de aparecerem apenas de forma alusiva, quando cabe ao leitor restabelecer o contexto.

5.2.4.1. Dimensão dialógica e refutação não polêmica – Se polêmica é combate de argumentos, toda a filosofia é atravessada por essa tensão; a leitura nos permite, porém, operar uma distinção: A invalidação não polêmica, ou refutação, obedece a um contrato partilhado entre os supostos adversários, ao passo que a polêmica, no sentido próprio, põe em questão as regras do discurso. A polêmica põe em jogo as pessoas e suas relações com as instituições, enquanto a refutação se situa no espaço ideal da reflexão que ela organiza, montando, por um mecanismo ad hoc, os quadros cênicos onde irá se desenrolar a invalidação. O texto deve propor ao mesmo tempo um modo de integração das teses que se defrontam e um processo de invalidação; em regra o autor pretende agir o mais objetivamente possível. Somos levados a investigar nos textos de que maneira se articulam as funções dialógica e refutacional, destacando a forma como eles procedem: O inventário do campo conflituoso; A seleção dos aspectos da doutrina considerados e os modos de restituição; A inserção daquilo que irão invalidar; A adaptação no discurso do sistema que acolhe; A escolha do procedimento de refutação.É preciso analisar a maneira como as refutações dão forma as demonstrações que elas pretendem recusar. Sempre há disposição de forma apropriada do texto alvo pelo texto fonte; isso não supõe nenhuma malevolência, mas deve-se as condições da discursividade filosófica que só pode constitui-se “contra”, o que a obriga a construir a imagem do outro. Voltamos a encontrar circularidade que os problemas de referência e de ontologia tinham posto em evidência a propósito do conceito. Toda a proposição doutrinal parece marcada por uma circularidade argumentativa, que parece própria a todo esforço de refutação. Eis o processo: Para refutar a tese é preciso apresentá-la, transpondo-a para fora do contexto inicial;

Essa transposição a desnatura; Essas formas de apresentação e os mecanismos de refutação são os resultados ou, pelo menos, a

antecipação de uma elaboração doutrinal.Há portanto uma circularidade, salvo se o discurso dispõe os elementos estabelecendo deslocamentos ou desvios que autorizam sutis efeitos de retroação. O que está em jogo é o universo filosófico: ele precisa englobar o que lhe é exterior, mas em regra tem-se a impressão de ser um simulacro. Se assim for, cada doutrina está encerrada em um solipsismo irredutível (questão que excede nosso quadro metodológico). Distinguimos duas grandes formas de esquema refutacional, conforme a posição respectiva dos enunciadores: O ponto de vista do enunciador se elabora progressivamente destacando-se da pluralidade teórica inicial; O ponto de ancoragem é constituído pela posição prévia do sujeito referência que incorpora as teses

adversárias. Aqui há duas possibilidades:◦ A construção doutrinal se efetua através da refutação prévia de uma adversário privilegiado;◦ O sujeito referência acolhe a tese adversária e a integra com uma objeção virtual ao desenvolver sua

própria tese.A complexidade vem da possibilidade de superpor e justapor operações em conjuntos cuja originalidade final depende ao mesmo tempo do domínio que o autor demonstra e do estatuto filosófico que concede a validação. Essas possibilidade explicitam o esquema refutacional.

5.2.4.2. A forma polêmica da argumentação – O escrito polêmico intervém na interação polêmica afim de pesar no debate e de instaurar a hegemonia duma perspectiva, trata-se de escritos de circunstâncias que não valem necessariamente por si, mas que devem ser relacionados as circunstâncias em que surgem para serem compreendidos. Cumpre repostá-los aos texto do adversário incriminado, bem como as partes em que se acha elaborado o núcleo doutrinal. Isso não significa falta de interesse filosófico, pode até ocorrer que formem, pelo jogo de respostas, um conjunto em que a coerência e o encadeamento são obtidos graças a essa dinâmica. A forma da argumentação não é determinada diretamente pela inserção do discurso na polêmica, é a cena filosófica que dispõe a enunciação num modo de organização que reproduz aspectos da polêmica: A presença do modelo do combate ou da busca de legitimidade; A redução simplificadora a duas teses cuja oposição tem um valor simbólico; Um confronto sem escapatória que deve necessariamente findar com a vitória de um campo;

A presença de objetos de disputa institucionais cujos medidores devemos encontrar no texto.Essa enunciação polêmica pode objetivar a forma geral do dispositivo argumentado ou um de seus aspectos.

5.2.4.3. Desqualificação irônica do adversário – A polêmica pode concentrar o discurso sobre a desqualificação do adversário enquanto enunciador, seja quando se fazem reprimendas contra sua pessoa, seja quando é posta em questão a relação que ele instaura com seus próprios enunciados. É o que se pode chamar de refutações oblíquas. A ironia constitui um dos meios de invalidação obliqua do adversário, tanto mais eficaz se ela supuser ao mesmo tempo um distanciamento de si mesma e uma implicação do outro no discurso. A invalidação irônica é um aspecto da invalidação polêmica, enquanto a desqualificação incide sobre os enunciados do adversário que se procura vencer pela força do argumento, a ironia incide sobre o ato enunciador através do qual o outro tenta produzir teses.

5.2.4.4. Função polêmica na argumentação – Isso leva a conclusão de que a estruturação polêmica desempenha um papel importante e ambíguo na argumentação e demonstração: Ora aumenta a singularidade de uma posição, ora leva a um emaranhamento dos pontos de vista e ao

aprofundamento da problemática (ganhando universalidade); Pode cristalizar a argumentação ou dinamizá-la; utilizando o tom e as formas da oralidade ela transforma

a relação filosófica em um combate onde a mordacidade critica e a ferocidade do propósito levam o leitor a pergunta se a filosofia não é só um substituto da violência, nos atolando nas chicanas dos interlocutores; os aspectos demandistas e inquisitórias passa a frente das exigências da reflexão ponderada, mas perseguindo as contradições internas e definições insuficientes, a polêmica torna-se o motor da argumentação, já que é preciso voltar a validação, num movimento de incessante retomada.

Desse modo, a polêmica tende a assegurar o mais alto grau de validação das teses filosóficas, introduzindo, sustentando ou renovando sua demonstração.

5.2.5. Argumentação e modalidade: o papel dos operadores modais na validação filosófica – O filósofo precisa produzir movimentos de acesso ao verdadeiro, situando seu enunciado em relação a critérios de certeza, modulando expressões de forma que o grau de adesão que lhes confere seja explicitado. São fórmulas tão frequentes que não lhes damos atenção. Modalização são as operações pelas quais um enunciador avalia o fundamento, a admissibilidade ou o grau de certeza de um ato enunciativo. Há grande diversidade de meios disponíveis nas línguas naturais para marcar as modalizações (de verbetes a locuções). Elas são constantemente disseminadas ao longo dos esquemas de validação ou refutação, como se o “dizer” antecipasse o “fazer”: ao afirmar “é evidente” o filósofo coloca a demonstração como efetuada, de modo que a modalização desempenha um papel de influenciador. A formalização da demonstração textual através de operadores modalizantes permite que se produza a adesão do leitor ao apresentar no texto a verdade que se busca como já efetuada. O papel das modalidades: O enunciador avalia o enunciado ou seu conteúdo, do ponto de vista da verdade e da validade, de tal maneira que essa avaliação transforme a convicção dos destinatários e crie uma atmosfera de adesão. Na leitura é difícil perceber com precisão o que depende da modalidade, não só por heterogeneidade das marcas linguísticas, mas devido ao emaranhamento muito forte com as incumbências enunciativas pelas quais o enunciador se torna presente em seu próprio discurso; é preciso estudar os fenômenos modais em relação com outras operações ligadas a estrutura enunciativa. Esclareceremos três níveis de complexidade das modalidades argumentativas.

5.2.5.1. Asserção e neutralização modal – Para perceber a presença das operações modais, é preciso dissociar o modalizador do que ele afeta (núcleo proposicional). Na maioria, os textos oferecem proposições sem afetação modal aparente, mas a ausência da marca não significa ausência de modalização, já que essa proposição constitui para o autor uma posição de verdade. O primeiro nível de modalização aparece com um enunciado colocado como uma certeza, seja negativa ou positiva. A interrogação permite suspender a afetação modal e interrogar sobre a afirmação ou negação, bem como sobre a própria possibilidade da asserção, remetendo a um nível pré-modal. Não confundamos esse apagamento com procedimentos de neutralização através dos quais o índice modal é suspenso para que a proposição possa ser examinada.

5.2.5.2. Modalidades lógicas e percurso modal da argumentação – O primeiro nível supõe a oposição binária entre os valores de verdade, um segundo nível põe em jogo um tipo de avaliação que pode ser apresentado ora de forma discreta, ora de forma contínua. Distinga-se entre as modalidades:

Problemáticas – Que abrange valores de possibilidade; Assertóricas – Que abrangem valores de verdade (como acima); As apodíticas – Que abrange valores de necessidade.

Poderíamos assim traçar o seguinte registro de variação modal: necessário ↔ certo ↔ provável ↔ equiprovável ↔ possível ↔ contingente ↔ impossível. A passagem pode dar-se em ambos os sentidos. Estabelecemos o regime modal de um fragmento, ou grupo, ao atribuir um índice modal capaz de deslocar-se

ao longo da cadeia graças aos conectores. As regras de encadeamento constroem percursos modais que constituem a formalização da demonstração da perspectiva enunciativa. Para subjugar a tese do adversário, cumpre dissociá-la das modalidades fortes, remetê-la do apodítico ao assertivo, e desqualificá-la.

5.2.5.3. Modalidades avaliativas e meta modalizações – Nessa análise notamos que os mesmo índices são transcritos por vários operadores: a riqueza semântica excede o valor modal. Portanto, não basta remetê-los aos esquemas de modais, é preciso analisá-los como a imagem positiva ou negativa do enunciado. O autor assim realiza o comentário sobre suas enunciações afim de traçar um caminho para a argumentação e de completá-la. A modalidade serve de suporte a um trabalho interno do discurso, que lhe permite assegurar sua “credibilidade”, ao criar para o destinatário condições que tornam sua adesão necessária; estabelecer a verdade e convencer que são indissociáveis. Constatamos que a modalização não é só uma função operatória da discursividade filosófica, mas é objeto de uma explicitação no interior da doutrina. As reformulações modais integram-se num conjunto de fenômenos que dependem duma atividade meta textual, pelo qual o texto filosófico torna pensável suas condições de possibilidade e efetuação.

5.2.6. Explicação meta textual de validação -

5.2.6.1. Tematização do processo do processo de validação – Importa assinalar os fragmentos em que o autor explica sua concepção de argumentação, pois assim poderemos analisar a maneira como um sistema se constrói dominando seu próprio desdobramento. Os processos de validação são a articulação entre o método e o conteúdo, se é que essa distinção não é puro artifício. A argumentação e a demonstração permitem fundar o conteúdo doutrinal, mas submetem-se a ele, já que devem ser legitimadas, e os métodos de raciocínio dependem, por um lado cuja importância será preciso avaliar, das categorias e esquemas de pensamento elaborados na doutrina. O enunciador sempre tem interesse em explicitar as regras que tornam suas enunciações legitimas, o que não significam que sejam, mas que dão todos os sinais de ser. Essa explicitação reforça a validade das teses, sobretudo quando se referem à lógica que se supõe aceita por todos.

5.2.6.2. Explicitação dos postulados de argumentação – Essa explicação supõe que o leitor aceite as indicações da lógica e da argumentação da filosófica ocidental, a própria possibilidade de demonstração supõe a aceitação dessas regras do discurso. Contudo, as regras de argumentação nem sempre são pressupostos partilhados unanimemente pela comunidade filosófica, elas própria são objetos de disputa; seria, assim, preciso distinguir entre filosofias que, embora opostas, repousem sobre postulados de discurso e validação comuns. Toda tentativa filosófica deve fundar sua pretensão a dizer, antes mesmo de pretender dizer o verdadeiro, logo, embora os postulados sejam compartilhados é necessário explicitá-los para escapar a objeções. No interior desses espaço interno é necessário que se proceda a uma tematização argumentativa, pois embora a construção suponha as regras lógicas de raciocínio como condição necessária, ela só chega a uma elaboração nova produzindo uma lógica de validação específica. Isso nos conduz a uma nova característica da propriedade meta argumentativa.

5.2.6.3. Relação entre a argumentação e seu fundamento teórico na doutrina – A maioria das grandes doutrinas resolve a circularidade com um refinamento que é difícil de analisar aqui; contentemo-nos em analisar três grandes formas de resolução: Proceder uma legitimação argumentada dos modos de raciocínio e escalonar planos de explicitação,

enfrentando o risco de regressão ao infinito, para chegar a um princípio indemonstrável auto evidente; Encontrar um fundamento comum ao conteúdo doutrinal e seus processos de legitimação; frente a

circularidade, identificar um elemento que seja seu próprio critério, ao mesmo tempo que constrói a proposição principal da doutrina;

Conjugar a explicitação total e a identidade entre método e conteúdo; frente ao risco de indecisão entre dialelo e dilema. Fazer de tal modo que o final e o começo se identifiquem sem aniquilar o percurso.

Poderíamos esboçar tipos de construção sistemática, mas na leitura é preciso limitar-se a análise dos trechos de explicitação argumentativa, em especial os que tratam das regras de sua legitimidade, até que se manifeste a ligação entre essa auto explicitação e os problemas de método pelos quais os filósofo fundamenta sua doutrina. Essa ligação entre método, argumentação e exposição cabe também para filosofias que pretendem subverter sistemáticas de formas canônicas, substituindo-as por outras formas de validação, ou desqualificando-as. As retomadas de validação desempenham um papel fundamental na construção filosófica; não só porque relaciona todas as partes do discurso, o que faz da tentativa filosófica algo único no pensamento humano, mas porque nos permite mostrar as limitações que esse discurso se impõe para chegar a uma validação que realize seu ideal de racionalidade.

5.3 Conclusão – As indicações dadas não permitem por si explicar a totalidade dos fenômenos de argumentação (ainda menos de demonstração). Quisemos, a partir da estruturação geral da enunciação

filosófica, mostrar o que depende dela na estratégia discursiva. Para ser completo seria necessário: Uma análise das regras de construção das argumentações que podem variar em complexidade, o que

supõe a definição dos elementos que entram no raciocínio; Uma exploração das demonstrações e o esclarecimento de sua articulação com as argumentações. Com a argumentação tocamos em uma função filosófica essencial: a construção e a legitimação das teses, seu papel mais visível e fundamental, e que permite também construir e legitimar outros elementos da doutrina, além de desempenhar um papel importante na repartição de subconjuntos que constituem a totalidade sistemática, já que a ordem de exposição deve ser pensada.

6. Unidade e coerência do texto filosófico – A cena filosófica garante o lugar das grandes funções textuais, resta-nos entender como seus elementos ordenam-se em unidades textuais coerentes. O dispositivo enunciativo das pessoas não garante per si a homogeneidade e a progressão da reflexão, ele integra a unidade numa voz, divide as palavras e papéis segundo regras, mas não dá a compreender como as análises se encadeiam. As formas pelas quais se marca a presença ou a intervenção dos enunciadores não delimitam só a cena onde estes se organizam, elas intervém na constituição da noção de tempo e espaço que permitem a cena desenvolver-se. A possibilidade de isolar fragmentos, materializados sob a forma de livro impresso, confirma a existência dum espaço onde o texto se unifica. O conhecimento das regras de construção textual (organização dos diversos constituintes num todo coerente e articulado em sequências) permite definir o “espaço unificado” onde podemos situar as análises. Um texto filosófico não é formado só por sequências lineares sucessivas, desdobra-se num espaço multidimensional, analisável pelo levante metódico das marcas que as operações deixam no texto ao assegurar sua composição. È preciso procurar das marcas tipográficas aos operadores difusos na cadeia textual, passando pelos indícios de unidade no modo do autor introduzir o tema, pois eles permitem relacionar o conjunto dos componentes da análise filosófica. Essa relação acontece na sucessão horizontal e vertical, sendo possível referir-se a uma passagem anterior ou antecipar o que se segue. Isso leva a organizar o estudo dos fatores de construção de acordo com dois eixos: A atividade pela qual o autor tematiza sua própria análise e atividade discursiva, permitindo afirmar um

domínio global sobre seu discurso graças a um complexo de hierarquizações enunciativas; Atividades concernentes aos encadeamentos internos; as distribuições operadas efetuam substituições e

remissões entre as partes do discurso, construindo a rede de referências intertextuais. Ao examinar os operadores de coerência, chama atenção um ponto em comum: dependem da estrutura enunciativa subjacente a discursividade filosófica.

6.1Tematizações e hierarquias enunciativas –

6.1.1. Temas, problemas e tematizações – Busquemos a função unificadora e constitutiva que instaura o espaço homogêneo da leitura. O desenrolar do texto pode ser tributário a questões fixadas pelas doutrina nalgum momento, bem como os títulos oferecem um vislumbre das intenções do autor, merecendo interpretação. Tais observações indicam que a unidade temática, ainda que reconhecível num quadro cultural, não é dada de forma fixa, engendra-se no texto por uma questão que se põe como o começo da atividade filosófica. A posição da cena filosófica, problematizações e esboços de conceitos supõem que o enunciador possa retomar seus enunciados, dispondo do espaço nocional, analítico e demonstrativo no qual a reflexão se constrói, operando uma coincidência ente o ato de enunciação e o da auto tematização (o autor refere-se a sua própria atividade filosófica). Nosso objetivo é entender como age no texto a função tema ao ordenar os conteúdos e a forma de sua exposição e pensar funcionalmente os elementos tematizados e o ato que os tematiza, que não devem ser dissociados, pois são relativos. A tematização pode sempre torna-se objeto de uma tematização, processo que precisa se deter, sob pena duma regressão ao infinito (lugar-comum na refutação filosófica); escapa-se ao colocar uma auto tematização que nada supõe exceto ela mesma, mas, antes de constituir um limite, desempenha o papel criador multiplicando os planos da análise. O pensamento pensando a si mesmo engendra diversos níveis de expressão e permite hierarquizar e dispor seus conteúdos a ponto de se indagar se essa não é uma propriedade fundamental a filosofia. A posição simultânea das tematizações e referência coordena num todo os momentos da análise e permite conscientizar-se da criação do pensamento. A análise supõe uma distância entre a reflexão sobre métodos, argumentação e seu emprego, abrindo os múltiplos planos, mas pode preencher essa distância a fim de coincidir consigo mesma numa evidência doadora de sentido. A tematização exige nos enunciados que se possa distinguir aquilo do que se diz (tema), daquilo que se diz a respeito dele (rema), operadores que permitem trabalhar os enunciados, veículo das proposições, tornar a dispor seus constituintes e valorizar um entre eles. Vários meios permitem modular os enunciados e avaliar seu conteúdo. As operações modais permitem igualmente hierarquizar enunciados e percursos. Esse trabalho permite a um pensamento ágil desenvolver-se com riqueza e vigor.

6.1.2. Autorreferência e função meta textual – As formas precedentes de diferenciação dos planos supõem poder o texto referir-se a si mesmo (autocitação e autodesignação, esta de alcance variável); como o

poder de designar a função enunciativa, o conteúdo dos enunciados e o processo de enunciação, de tomar por tema a reflexão concluída ou em movimento, e de usar as propriedades autorreferências de enunciados para fundamentar ou refutar. A autorreferência é o suporte da enunciação pelo qual o autor intervém em seu texto para explicar a significação e legitimar as formas; parafraseando-se permanentemente, ampliando pelo comentário seu discurso e aprofundando-o eventualmente. A função meta textual é a capacidade de um texto de auto referir-se, permitindo explicitar seus próprios processos enunciativos, constituir-se como doutrina e eventualmente completar-se numa totalidade sistemática.

6.1.2.1. A filosofia caracteriza-se pela auto reflexão – Tomar-se por objeto, como método, é um dispositivo que permite ao pensamento produzir-se e desenvolver-se considerando os atos em que tomou seu objeto, que, por sua vez, são objetos de uma nova tematização; até atingir limites ligados mais a economia da doutrina que a contingências de circunstâncias. Tais fronteiras definem um corpus, cujos limites externos e internos são correspondentes. Os internos permitem tarefas de auto elucidação que impedem a regressão ao infinito; são pontos de ancoragem do pensamento, sob a forma de enunciados que se auto validam oferecendo um fundamento último. A volta do pensamento oferece a obra limites, possibilidade dum acabamento, abertura e torna possível a perenidade, já que dá um caráter virtualmente ilimitado a elaboração.

6.1.2.2. A filosofia se constrói na ordem do discurso – Essa função meta textual permite ao pensamento se desenvolver na escrita, submetendo a reflexão as normas discursivas enquanto tematiza os princípios de sua expressão. A análise filosófica constrói o espaço no qual se desenvolve, enquanto é construída graças as funções textuais derivadas das propriedades da língua. Não pode desenvolver-se sem a meta textualidade, onde o texto volta-se sobre si, autorizando estratos de significação, entre os quais se instauram relações complexas. Reagrupando os procedimentos diretos e indiretos, somos levados a reunir os elementos meta textuais num subconjunto autorreferencial a doutrina, descobrindo que:

• A filosofia talvez seja o resultado da tentativa realizada para superar as dificuldades lógicas com que se depara todo esforço lógico conduzido por meio da linguagem;

• A série de tematizações faz da obra filosófica um conjunto efetuado de atos do pensamento e conjunto virtual de atos da apreensão reflexiva. A atividade filosófica tona-se uma criação continua para qual contribui aquele que consente no esforço da leitura.

No entanto, a leitura não está entregue ao acaso, os próprios textos oferecem indicações que nos situam na reflexão e nos orientam no interior de um todo.

6.2 Construções das referências internas –

6.2.1.Definição da função - Uma das dificuldades essências dos textos filosóficos, e se deve a atividade filosófica, é ter de ficar atento ao que já foi enunciado. Deve-se perpetuamente reconstituir cadeias de transmissão ou retomar as definições para entender a significação duma passagem. O filósofo deve garantir uma forte continuidade textual e uma sólida coerência, de modo ao leitor estar concentrado no “presente” duma análise enquanto consciente de tudo o que precede. O texto oferece mecanismos capazes de realizar o encadeamento entre frases, ou seus conjuntos, e de tornar virtualmente possível qualquer outro momento da análise ou da doutrina. A referência intratextual é a função geral que assegura a continuidade e a coerência discursiva. Evocamos o papel ontológico que desempenharia a enunciação quando ela constrói o universo discursivo, colocando em torno do enunciador o sistema de coordenadas que determinam sua expressão (referência ao espaço tempo do discurso). A referência interna depende também da enunciação. Assegurar a transitividade ao longo da cadeia de enunciados é identificar o movimento da reflexão através da diversidade de seus momentos (continuidade interna). Garantir a coerência do conjunto discursivo supõe poder relacionar um ponto dessa cadeia com qualquer enunciado ou agrupamento efetuados ou não.

6.2.2. Mecanismos que asseguram a referenciação – Essas operações intervém do interior da frase a relações de lugares textuais disjuntos. Após ter identificado os níveis de organização implicados por essas operações, proceda-se o estudo da sua forma. Podemos distinguir:

Substituições – Contribuem para assegurar a continuidade micro textual;

Remissões – Garante a coerência textual permitindo construir o macro contexto, de alcance variável e pode designar a totalidade dos enunciados a medida que são produzidos. O macro contexto pode transpor os limites dum texto e dum pensamento e incluir os textos oferecidos pela função dialógica.

A fim de reconstituir as referencias intratextuais de um corpus e entender seu funcionar, é importante notar: Localização – Permite avaliar a densidade e a complexidade da rede constituída.

Lugar doutrinal - o alcance da remissão e se esse trajeto torna a inserir elementos anteriores ou se relaciona o tema atual ao anterior.

Elemento ao qual se referem – O elemento sobre o qual incidem é de importância e natureza variável.

Tratamento filosófico – A passagem objeto da remissão determina sua função Meios – Modos pelos quais substituições e remissões são feitas

Compreendamos a maneira, usando propriedades da língua, duma operação complexa desempenhar seu papel. Ela não pode ser vista como um mero instrumento, mas como elemento constituinte da doutrina. Esta pode efetivamente analisar os meios de referenciação que lhe permitem controlar a disposição de seus conteúdos.

6.2.3. Substituição e continuidade discursiva – A discursividade filosófica impressiona pelos diversos níveis linguísticos que põe em cena, com continuidades semânticas e substituições sintáticas associando-se a operadores da enunciação. Deve-se evitar confundir esses elementos com conectores lógicos que asseguram o encadeamento dum raciocínio. estes, ao oferecerem transições ou articulações, asseguram a continuidade da demonstração por meio de regras lógicas explicitáveis. Queremos identificar conectores discursivos que asseguram a continuidade textual necessária ao desenrolar das análises, mas, em raciocínios muito rigorosos, um marcador univoco serve de indicação para as duas funções. São os riscos dessa ambiguidade que levam o lógico ao uso duma “linguagem ideal” (símbolos). O filósofo exprime-se pelas línguas naturais porque acredita se beneficiar das riquezas semânticas que elas vinculam, e prefere dar, junto com o resultado de seus pensamentos, as marcas da atividade viva que lhe deu sentido e a qual seu pensamento dá sentido. A presença de esquemas formais de raciocínio não exclui a necessidade de ligar entre si esses modos de validação e interrompê-los para ilustrá-los, compará-los ou citá-los, devendo efetuar-se por meio das substituições.

6.2.4. Remissões e coerência discursiva – Há remissões que a partir de qualquer lugar podem visar um ponto qualquer. O problema se complica, pois as remissões devem necessariamente acompanhar-se de um sistema de coordenadas e referências homogêneo. O aparelho formal de enunciação oferece operadores capazes de realizar essa função, usando simultânea ou alternadamente dois sistemas de referência:

Um sistema amplo permite assinalar zonas a partir de um ponto de origem constituído pelo presente enunciativo ou um índice. Associa dêiticos espaçotemporais a marcas de aspectos ligados as formas verbais, mas substituí-los por paráfrases ou glosas enriquece as remissões. O sistema é rudimentar mas permite referenciações complexas. É limitado devido a origem “deslocar-se” pelo texto, o sistema torna-se móvel e somos englobados no processo de leitura, A referenciação é interna.

Um sistema fixo e exterior a enunciação, usando o suporte material do texto ao instituir coordenadas numéricas (notas, etc.). Pode formar uma malha cerrada, mas o essencial é oferecer uma referenciação continua e autorizar remissões precisas, assim as citações ocorrem com maior economia de meios.

Outros critérios permitirão especificações intermediarias: Chega-se, aqui, a noção de modo de exposição, de quem esses agenciamentos são instrumento privilegiado, nos levando a pensar que têm um papel filosófico, ainda que pareçam extrínsecos. Podemos distinguir dois tipos:

Sistemas de referenciação que englobam o conjunto do texto mediante uma malha uniforme de função quase cartográfica. As indicações numéricas dependem por vezes das condições da edição e nem tudo se devem ao autor. Aqui é difícil separar os aspectos contingentes do que depende da própria doutrina.

Sistema de referenciação numa rede de significação imediatamente filosófica (o modo de organização da exposição coincide com a estruturação da doutrina).

As referências internas ao texto, a quem da forma, não são só indicadores pelos quais o autor nos conduz, segundo uma progressão determinada, ou que nos permitiriam recorrer a sua obra; são um componente integral, pois manifestam princípios de organização que dependem em última instância do conteúdo filosófico da doutrina, pois ela pode voltar a ser expressa segundo outras variáveis. Revela-se cada vez mais o que faz a unidade do espaço/tempo em que se desenvolvem as análises filosóficas. Os textos que lemos, constituem o resultado de equilíbrio e conflitos entre uma dupla exigência: assegurar o rigor dos encadeamentos evitando excessivos retornos, e dar um caráter coerente ao conjunto doutrinal, o que supõe remissões. Essa busca desemboca nas estrategias que regulam a ordem de exposição.

6.3Unidades do texto e ordem de exposição -

6.3.1.Estrutura enunciativa e modelo geral de exposição – O que faz a unidade de uma passagem? Não podemos dissociar tematização, hierarquização e percursos modais, nem isolá-los da rede de substituições e remissões, nem é possível considerá-los em separado da cena filosófica. A unificação textual global, que conjuga o trajeto e as relações entre elementos é a composição; estabelecedora da ligação entre todo e partes, dinâmica e estrutura, construção e exposição, conteúdos de análise e processos que a efetuam, concentrando-os ou desdobrando-os no sistema. A composição é a maneira pela qual as diferentes fontes de unidade se associadas numa unidade englobante, é o que permite um trecho “fazer sentido”. A cena estabelece as coordenadas, distribui a palavra aos enunciadores, e responde a preocupações pedagógicas e polêmicas mediante a explicitação, refutação, ou fornece o material bruto que obriga o leitor a reconstruir os elementos implícitos das demonstrações e argumentações. Hierarquização e distribuição dos enunciados,

apoiadas sobre remissões de alcance múltiplo, irão associar-se a esse sistema enunciativo segundo regras básicas de coordenação da composição textual. Dispomos então de uma matriz enunciativa geral da discursividade filosófica, ao menos na forma escrita. Cada função tem um polo de unidade e uma fonte de diversificação (matrizes de variação e sistemas de transformação regulada, funcionando correlativamente, garantem a unidade textual e as formas complexas e diversas que pode-se ter). Compreendamos, a partir daí, como funciona o texto e quais são os constituintes mínimos da discursividade filosófica.

6.3.2.Correlação entre forma de exposição e dispositivo enunciativo – As grandes formas da expressão filosófica podem ser analisadas graças a essas regras de composição. A diversidade se deve as combinações que as estruturas oferecem. Nem todos os textos usam todas as funções ao explicitar. Entre formas minimas e densas, a maioria serve-se de formas mistas, ora privilegiando um aspecto, ora tentando conciliar as varias funções. O que confere a homogeneidade, a unidade, são fatores de dominância que unificam e especificam a exposição e construção: para que a estruturação e a dinâmica sejam homogêneas, é preciso que elas se harmonizem privilegiando qualquer função da matriz enunciativa: Encontramos formas “puras” estruturadas por uma função dominante e formas mistas que tentam integrar dimensões múltiplas. Não queremos fazer um inventário, as formas se engendram, se dissolvem, se transformam. Encontramos na maioria das vezes os seguintes casos:

6.3.2.1. Dominância da série dos enunciados sobre a enunciação – (O autor indica as características da organização textual desse modelo exemplo).

6.3.2.2. Dominância dos enunciados que veiculam as teses e argumentações ponderada - (O autor indica as características da organização textual desse modelo exemplo).

6.3.2.3. Dominância das dimensões enunciativas - (O autor indica as características da organização textual desse modelo exemplo, seguido de). Haver uma forma geral de enunciação filosófica, que explicaria a repetição de procedimentos idênticos (sejam quais forem os estilos impostos pela época, doutrinas e instituições); não significa que cada filosofia não tenha um tom próprio, mas que sua originalidade decorre mais do poder se sua reflexão. A forma da exposição e o desenvolvimento doutrinal são o verso e o reverso indissociáveis da reflexão em ato. Evidentemente será preciso estudar o tipo de correlação que une as formas de exposição e as dimensões conceituais da doutrina, que se completo suporia ao mesmo tempo ter analisado a “forma do conteúdo” filosófico (estruturas conceituais) e conhecer as formas de construção global de uma obra filosófica (formas gerais de exposição).

6.3.3. Posições doutrinas e escolhas de posição – Se uma doutrina privilegia, por razões intrínsecas, uma forma de exposição, nada a impede de voltar a ser expressa sob outras formas. Cada doutrina tem seus textos guias nos quais o autor consegue sua integração máxima, que é melhor sucedida quando usa a tendência de expor-se em figuras privilegiadas. A unificação do espaço discursivo e dos processos de pensamento, é muitas vezes, sintetizada por formas figuradas, como na progressão pedagógica e na polêmica (como se um “objeto” do mundo devesse servir de substrato ou de esquema ontológico para a elaboração da enunciação filosófica). Os modos de exposição e da construção são comandados, muitas vezes, por essa imagem unificadora integrada a doutrina. O filósofo delimita domínios, estigmatiza abusos, soluciona conflitos no uso das faculdades, comprovando a existência de um vínculo estreito entre essas formas figurativas da cena filosófica e os termos e operações que regem a progressão da análise. As funções que dissociamos são indissociáveis, mas não indiscerníveis, a individualização só pode ser feita ressaltando as relações que mantém entre si, ou com outros fenômenos. Podemos concluir essa abordagem constatando que o texto não é o lugar neutro de exposição de um pensamento. A escrita é o lugar onde o pensamento se expõe ao olhar e ao risco do confronto; lugar em que um pensamento se constrói através da resistência que lhe oferece a língua, as teorias pré-constituídas e sua própria inercia (resistências que lhe permite mobilizar recursos insuspeitos de expressão). Conceitualização e demonstração pertencem ao processo de análise, são sempre feitos por meio de uma enunciação que focaliza e ordena o dispositivo textual, e cumpre não confundir os dois aspectos nem exagerar a importância de um. O fato da pluralidade de formas de exposição para uma mesma concepção ser frequente não constitui uma objeção, mas atesta que em filosofia a escrita é necessariamente reescrita, já que ela pretende uma articulação total entre o ser e o dizer. Assim, construir um objeto de pensamento e montar um modo de expressão são dois aspectos indissociáveis do ato filosófico.

(Preferir um resumo ao original é trocar a Galateia pelo Frankenstein)