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 MOVIMENTOS SOCIAIS E CIDADANIA: UMA NOVA DIMENSÃO PARA A POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL MARIA DAS DoRES COSTA 1 A emergência dos movimentos sociais no Brasil; 2. Pers- pectivas teóricas dos MS; 3. Movi men tos sociais cidadania e política social. Neste artigo a autora discute os movimentos sociais e a cidadania como uma nova dimensão para a política so cia l no Br asil . Na primeira parte , a emergê n cia dos movimentos sociais no Brasil é discutida e articulada com o modelo de capitalismo monopolista do Estado e o regime político autoritário do país de pois de 19 64 . A segunda par te esboça uma análise de alguns pensamentos teó ricos sobre os movimentos sociais, com ênfase na perspectiva da natureza de classe atribuída a esses movimentos. Por fim, a autora discute os movimentos sociais como um espaço político para a conquista da cidadania no Brasil. Neste sentido, é destacada a política social do Estado como oampo legítimo para a prática política dos atores dos movimentos sociais na busca dos seus direitos de cidadania. 1 . A emergência dos movimentos sociais no Brasil A crescente expansão de novas formas de mobilização e organização na so- ciedade civil brasileira, a partir da década de 70, configurada nos chamados m o- vimento s soci ais MS ), v em sendo objeto d e estudo entr e cientistas e trabalha dores sociais do país. Na verdade, essa forma de manifestação das classes populares no Brasil não é recente, acompanhando o desenvolvimento do capitalismo no país após os anos 3 0 B esse modelo de desenvolvimento que, a partir dos anos 50, desencadeia um processo de industrialização, responsável pelo incremento da divisão social do tra balho , e que faz emergir, nas grandes metrópoles brasileiras, um aglome rado da força de trabal ho necessária a o se u dese nvolvimento e rep rod uçã o. Isto se dá sem que o aparato estatal passe a criar, concomitantemente, novos servi ços e equipamentos coletivos que atendam às necessidades sociais da mão-de obra que acorreu àquelas metrópo les. Isto signifi cou, de saída, uma exclusão ra dical de extensas camadas da população dos benefícios da urbanização e o con seqüente agravamento das suas condições de reprodução. Contudo, a intensificação dos MS verifica-se nos meados da década de 70, quando o Brasil tem consolidado o modelo de capitalismo monopolista de Es Trabalho elaborado em janeiro de 1987. Doutora em serviço social DSW) pela Tula ine University, USA, e profe ssor a do Pro grama de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Endereço da autora: Rua Joaquim Fabrício, 299/702 - 59.010 - Natal, RN.)

Costa 1988 Movimentos Sociais e Cidadania 14637

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Otimo texto para ajuda na área juridica em relação aos movimentos sociais e a cidadania no Brasil atualmente

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  • MOVIMENTOS SOCIAIS E CIDADANIA: UMA NOVA DIMENSO PARA A POLTICA SOCIAL NO BRASIL *

    MARIA DAS DoRES COSTA **

    1. A emergncia dos movimentos sociais no Brasil; 2. Pers-pectivas tericas dos MS; 3. Movimentos sociais, cidadania

    e poltica social.

    Neste artigo a autora discute os movimentos sociais e a cidadania como uma nova dimenso para a poltica social no Brasil. Na primeira parte, a emergn-cia dos movimentos sociais no Brasil discutida e articulada com o modelo de capitalismo monopolista do Estado e o regime poltico autoritrio do pas de-pois de 1964. A segunda parte esboa uma anlise de alguns pensamentos te-ricos sobre os movimentos sociais, com nfase na perspectiva da natureza de classe atribuda a esses movimentos. Por fim, a autora discute os movimentos sociais como um espao poltico para a conquista da cidadania no Brasil. Neste sentido, destacada a poltica social do Estado como oampo legtimo para a prtica poltica dos atores dos movimentos sociais na busca dos seus direitos de cidadania.

    1 . A emergncia dos movimentos sociais no Brasil

    A crescente expanso de novas formas de mobilizao e organizao na so-ciedade civil brasileira, a partir da dcada de 70, configurada nos chamados mo-vimentos sociais (MS), vem sendo objeto de estudo entre cientistas e trabalha-dores sociais do pas.

    Na verdade, essa forma de manifestao das classes populares no Brasil no recente, acompanhando o desenvolvimento do capitalismo no pas aps os anos 30. B esse modelo de desenvolvimento que, a partir dos anos 50, desencadeia um processo de industrializao, responsvel pelo incremento da diviso social do trabalho, e que faz emergir, nas grandes metrpoles brasileiras, um aglome-rado da fora de trabalho necessria ao seu desenvolvimento e reproduo. Isto se d sem que o aparato estatal passe a criar, concomitantemente, novos servi-os e equipamentos coletivos que atendam s necessidades sociais da mo-de-obra que acorreu quelas metrpoles. Isto significou, de sada, uma excluso ra-dical de extensas camadas da populao dos benefcios da urbanizao e o con-seqente agravamento das suas condies de reproduo.

    Contudo, a intensificao dos MS verifica-se nos meados da dcada de 70, quando o Brasil j tem consolidado o modelo de capitalismo monopolista de Es-

    * Trabalho elaborado em janeiro de 1987. ** Doutora em servio social (DSW) pela Tulaine University, USA, e professora do Pro-grama de Ps-Graduao em Administrao da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. (Endereo da autora: Rua Joaquim Fabrcio, 299/702 - 59.010 - Natal, RN.)

    Rev. Adm. pbl.. Rio de Janeiro, 22(2):3-10. abr./jun. 1988

  • tado. Pela lgica desse modelo, o Estado, ao criar grande parcela da riqueza, configura-se em propriedade teoricamente coletiva, muito embora, contraditoria-mente, se privatize para servir ao grande capital, transformando-se, assim, em alavanca da acumulao privada.

    t esse padro de acumulao que, nas recentes conjunturas, tem-se apoiado em estratgias fortalecedoras da crescente insero do pas na diviso interna-cional do trabalho, gerando condies inestimveis para uma economia oligop-!ica no pas. Ao mesmo tempo, a forma tendencial desse processo de acumula-o engendrou, entre 1968 e 1978, um crescimento da produtividade do traba-lho, em termos reais, de 32%, contra um processo de pauperizao absoluta da maioria dos trabalhadores, cujos salrios medianos descresceram em 15% no mesmo perodo. ~

    Foi dentro dessa lgica que se verificou o excepcional crescimento econmico no pas no perodo do conhecido "milagre econmico" (1970-73), cuja poltica, posta em prtica pelo regime militar, "tornou as famlias mais ricas, riqussimas, permitindo-lhes sustentar um padro de vida faustuoso, em contraste com a po-breza de grande parte da populao". 2

    Situa-se na mesma conjuntura da crise econmica do "milagre" no pas a crise de legitimidade do regime militar, implantado em 1964. Representativo de uma fora autoritria poltico-institucional, este regime simbolizou a represso, o cer-ceamento da liberdade de expresso, o controle e a desarticulao de todos os mecanismos tradicionais de representao do pas.

    t, portanto, no bojo dessa crise orgnica - Estado capitalista-monopolista x regime poltico-autoritrio - que os MS emergem com solidez no cenrio urba-no brasileiro, constituindo novas foras polticas e sociais que se articulam e rea-tivam a sociedade civil. De um lado, essas novas foras se opem s relaes autoritrias que permeiam a totalidade da vida social; de outro, essas mesmas foras, vitimadas pelo modelo econmico excludente, tomam conscincia das suas necessidades bsicas de reproduo (educao, sade, transporte, sanea-mento, equipamentos sociais, etc.), elegendo para suas lutas um conjunto de rei-vindicaes sociais e polticas.

    2. Perspectivas tericas dos MS

    Enquanto os MS emergem e assumem suas formas de luta na dcada de 70, somente '11.a presente dcada que os estudiosos comearam a discuti-los teori-camente. De certa maneira, a discusso sobre esses movimentos representou, na expresso de Cardoso," uma "rajada de ar fresco" na produo do conhecimento dos cientistas sociais brasileiros, que no haviam acompanhado as transformaes ocorridas na sociedade.

    A'nalisando a literatura, verifica-se que um dos pontos ainda no suficiente-mente precisos nas interpretaes dos MS no Brasil refere-se prpria entidade, ou seia, ao objeto MS.

    1 Kowarick, Lcio. Proceso de desarrolo dei Estado en Amrica Latina y polticas sociales. Accin Crtica. (5):613. 1979. 2 Singer. Paul. Repartio de renda: pobres e ricos sob o regime militar. Rio de Janeiro, Zahar, 1986. p. 75. 3 Cardoso. Ruth C. L. Movimentos sociais urbanos: balano crtico. In: Sociedade e poltica no Brasil ps-64. So Paulo, Brasiliense, 1984. p. 215-39.

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  • Silva e Ribeiro,4 tentando configurar o ncleo central de um paradigma para o estudo dos MS, afirmam:

    " ( ... ) sua pedra de toque uma concepo analtica que se aproxima das manifestaes coletivas como formas de expresses populares, alternativas, i'llde-pendentes e espontneas (tanto no sentido de no-institucionais quanto de no-dirigidas desde de fora). Sua especificidade frente a outros movimentos popu-lares sempre dada por contraste: menos institucionalizado, mais 'popular' (no sentido de no-fabril), etc."

    Deste ponto de vista, depreende-se a natureza autnoma dos MS e sua des-vinculao em relao a instncias poltico-ionstitucionais como partidos polti-cos, movimentos operrios e sindicais. Assim sendo, parece provvel que a en-tidade MS estaria representada por manifestaes coletivas e espontneas de movimentos, que apontam e reivindicam o atendimento das necessidades sociais de reproduo dos seus atores.

    Todavia, o principal problema nas interpretaes tericas dos MS no Brasil si-tua-se em dois aspectos fundamentais. De um lado, a atribuio de natureza de classe a esses movimentos, em contraste com a heterogeneidade dos segmentos da populao que os compem. De outro, o compornente poltico-ideolgicodos mesmos, pela desvinculao em relao a instncias polticas de partidos e/ou sindicatos, uma vez que eles se mobilizam e se organizam em espaos prprios.

    Segundo Durham,5 a dificuldade, nessas interpretaes, .. ( ... ) deriva, em grande parte, do fato desses movimentos no se enquadrarem nas expectativas que os estudiosos e os militantes polticos haviam construdo sobre a forma pela qual deveria ocorrer a transformao poltica da sociedade brasileira e sobre os instrumentos adequados para essa transformao."

    Essa expectativa, discutida, entre outras correntes, pelos estudiosos da margi-nalidade social, partia da idia de sociedades divididas. Descrentes da viabili-dade da forma clssica de luta entre as classes fundamentais (burguesia e prole-tariado), postulavam, esses estudiosos, que a ruptura entre os excludos do sis-tema produtivo capitalista e os nele i'llseridos configuraria uma nova contradio estrutural, que geraria um movimento transformador na periferia do mundo ca-pitalista. Transferia-se, assim, para as "massas marginais" o papel histrico de transformao social. 6

    Sem pretender aprofundar as tendncias nas i'llterpretaes tericas dos MS no Brasil, parece oportuno fazer algumas observaes sobre o assunto. Para tanto, tomar-se- como referncia a perspectiva marxista de Gramsci para analisar o papel histrico dos MS na transformao da sociedade brasileira. No pensame'll-to gramsciano, o entendimento de transformao social implica, de sada, uma concepo fundamental, que a de totalidade social, que compreende o enten-dimento de uma globalidade orgnica dentro de uma relao dialtica entre o conjunto da infra-estrutura e da superestrutura e determinada pela base ecO'l1-mica. 7

    4 Silva, Luiz A. M. da & Ribeiro, Ana C. T. Paradigma e movimento social: por ondl1 andam nossas idias? Cincias Sociais Hoje, So Paulo, Cortez. 1985. 5 Durham, Eunice Ribeiro. Movimentos sociais: a construo da cidadania. Novos Estudos Cebrap, n. lO, p. 24-30, out. 1984. 6 Cardoso, Ruth C. L. op. cito p. 215. 7 Carvalho, Alba M. P. de. A questo da transformao e o trabalho social. So Paulo, Cortez, 1983. p. 27-8.

    Movimentos sociais e cidadania 5

  • Compreendida a totalidade social como uma relao dialtica, a "transforma-o social passa a ser concebida como um processo global que se faz simulta-neamente no terreno econmico e no ideolgico atravs da luta poltica". 8

    Conforme observado anteriormente, os MS se manifestam como formas de expresses independentes, espontneas e autnomas, com representatividade he-terognea de diferentes setores e segmentos da sociedade (operrios, ambulantes, empregados do comrcio, empregadas domsticas, pequenos comerciants, donas-de-casa, funcionrios pblicos. dentre outros), o que nem explica a desvincula-o dos mesmos dos sindicatos de categorias especficas, nem tampouco supe que os MS os substituam. Acrescente-se a este raciocnio o sentido popular "no-fabril" desses movimentos, o que sugere que a sua mobilizao no toma, obje-tivamente, como referncia, a esfera da produo, isto , os conflitos nas rela-es sociais da produo. Refora esta observao o ponto de vista de Nasci-mento,9 de que" ( ... ) os MS constituem canais de expresso dos trabalhadores autnomos e subempregados alijados 'automaticamente' dos sindicatos e margi-nais poltica, situados nos bairros perifricos das grandes cidades".

    Em articulao com as observaes acima, vale a pena fazer algumas consi-deraes sobre a natureza de cla~se dos MS no Brasil, na perspectiva da luta poltica, no terreno ideolgico. Isto remete necessariamente ao pensamento gramsciano de ideologia, que a concebe atravs do poltico, numa postulao de que a ideologia obrigatoriamente poltica. Sugere-se, nessa concepo, a no-o de Que a eficcia da ao ideolgica estabelece um vnculo orgnico entre ideologia e classe social, de maneira que a "ideologia s constitui uma fora efe-tiva enquanto concepo de mundo de uma classe". 10

    No se contesta que os MS no Brasil so novas formas sociais com manifesta-es de luta poltica. Todavia. as lutas desses movimentos, por um lado, desatre-ladas das instncias polticas dos partidos e sindicatos (em face da representati-vidade heterognea dos setores e segmentos da sociedade que agregam) no suge-rem uma concepo de mundo vinculada classe do proletariado. Por outro lado, essas lutas, conotando reivindicao para atender s carncias coletivas da popu-lao, mais localizadas na esfera da reproduo, no transcendem a ao do poder pblico, das polticas sociais. Dentro destas perspectivas, parece limitado configurar a luta desses movimentos como uma luta poltica de enfrentamentos ao ente Estado capitalista.

    Dessas observaces entende-se ser prematura concluir por uma natureza de classe no interior dos MS no Brasil. No estgio atual e com as caractersticas que apresentam, questionvel inferir suas lutas no terreno econmico e visualizar a presena de uma ideologia vinculada organicamente a um projeto poltico da classe dominada, dirigido transformao da sociedade brasileira.

    Uma outra linha de interpretao terica dos MS no Brasil vem baseada nas formulaes de Manuel Castells e J ea'l1 Lojkine,11 que consideram o paradigma do "urbano" no capitalismo monopolista das sociedades desenvolvidas para expli-cao desses movimentos. Muito embora marcante no pensamento terico bras i-

    8 Id. ibid. p. 31. 9 Nascimento. E. P. de. Movimentos sociais: algumas teses discutveis - algumas observa-es intempestil'as. Recife. Centro Josu de Castro de Estudo e Pesquisas, 1985. mimeogr. 10 Carvalho. Alba M. P. de. op. cit. p. 37. 11 Castells. Manuel. A questo urbana. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1983; Lojkine. Jean. O Estado capitalista e a questo urbana. Trad. Estela dos Santos Abreu. So Paulo. Martins Fontes. 1981.

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  • leiro, essa interpretao tambm no parece suficiente e/ou adequada para expli-car o fenmeno dos MS no Brasil. Neste sentido, Cardoso12 faz a seguinte obser-vao: "( ... ) preciso no esquecer, entretanto, que esses autores que colo-cavam em evidncia as chamadas 'novas contradies urbanas' tinham como pano de fundo as manifestaes que sacudiam as sociedades desenvolvidas durante a dcada de 60. Os negros, as mulheres, os estudantes em maio e 68 e as comu-nidades hippies ou os objetores de conscincia eram setores que se autodefiniam como marginais sociedade industrial e propunham um novo modo de vida."

    Essa assertiva sugere que a interpretao terica dos MS no Brasil passa pela compreenso mesma da formao social e econmica da sociedade brasileira, o que implica em entender que a produo do saber sobre os MS '110 Brasil (par-tindo das condies concretas em que eles acontecem) passa necessariamente pelo saber dos atores desses movimentos. E um saber que parece despontar no interior dos MS no Brasil o saber da cidadania, que se cO'Ilstri na prtica dos seus atores, na medida em que dirigem suas reivindicaes para as polticas sociais do Estado.

    3. Movimentos sociais, cidadania e poltica social

    A noo de conquista da cidadania pelos atores dos MS ganha corpo entre os estudiosos brasileiros.

    Para Durham,13 esses movimentos sociais so novas formas de atuao que tm potencial para a construo de uma cidadania popular. Na opinio dessa autora, "a transformao de necessidades e carncias em direitos ( ... ) pode ser vista como um amplo processo de reviso e redefinio do espao da cida-dania".

    Na verdade, pensar a cidadania pensar a democracia. f: sob o pano de fundo da democracia que um conjunto de direitos sociais, civis e polticos assegurado aos indivduos de um Estado - Nao. O reconhecimento e a garantia desses direitos so a segurana do indivduo, por um lado, das condies necessrias e indispensveis sua manuteno e reproduo e, por outro lado, da sua parti-cipao na comunidade poltica do Estado nacional. Noutras palavras, pensada no interior de um processo democrtico, a questo da cidadania passa pela arti-culao entre igualdade social e liberdade poltica, de tal maneira que a existn-cia de uma condio e garantia da outra.

    Existe uma grande distncia entre essa noo de cidadania e a realidade da cidadania no Brasil. Para entend-la, fundamental situar o Estado autoritrio que, no perodo de 1930 a 1945, na busca de legitimao, consagrou e/ou doou as leis sociais aos trabalhadores, numa tentativa de suprimir os conflitos sociais da poca. Assim que se tem afirmado, que: "( ... ) na histria brasileira, cida-dania social e cidadania poltica se desentenderam. As polticas sociais flores-ceram sob o autoritarismo de Vargas, primeiro, e, depois, dos militares, de maneira que ( ... ) os direitos sociais se afirmaram quando os direitos civis e polticos foram suprimidos ( ... ) e que acentuada esta distncia no ps-64, um

    12 Cardoso, Ruth C. L. op. cit. p. 216-7. 13 Durham, Eunice. op. cito p. 756.

    Movimentos sociais e cidadania 7

  • Estado de mal-estar social foi a resultante perversa do divrcio entre cidadania poltica e cidadania civil. 14

    Resulta desse contexto que a questo da cidadania no Brasil vem subordinada a uma lgica autoritria-corporativa que, por um lado, imprime o controle estatal sobre os sindicatos, e, por outro, impe um modelo corporativista de gesto das polticas sociais, citando-se, como exemplo, a legislao trabalhista de previdn-cia social, entre outras.

    Esta caracterstica da cidadania no Brasil tem sido objeto de anlise e crtica por parte de vrios estudiosos brasileiros. Para este trabalho, tomou-se a contri-buio crtica de Santos,15 para quem a cidadania no Brasil entendida como cidadania regulada.

    Segundo esse autor, a cidadania regulada extrai as razes do conceito de cida-dania no de um cdigo de valores polticos, mas de um sistema de estratificaco ocupacional, definido por norma legal. O critrio ocupao o que determina e regula a condio da cidadania. Portanto, so cidados aqueles Indivduos loca-lizados em ocupaes reconhecidas e definidas por lei, e, conseqentemente, a expanso da cidadania s se d na medida em que novas profisses e/ou ocupa-es so regulamentadas.

    Dentro dessa concepo de cidadania regulada, expurgada dos direitos de cidadania a grande massa da populao brasileira marginalizada - desempre-gados, subempregados, empregados instveis, ambulantes, biscateiros, etc. -, expulsa do sistema produtivo, massa essa que, nas sociedades urbanas, sobrevive apenas das atividades do chamado setor informal da economia.

    Neste contexto, a conquista da cidadania no Brasil tem duas implicaes. De um lado, incorporar verdadeira cidadania, ampliando esta condio para uma cidadania plena, os brasileiros "enquadrados" na cidadania regulada. De outro lado, incorporar a essa mesma dimenso de cidadania (cidadania plena) os indi-vduos "pr-cidados" ou "a-cidados", expulsos do sistema produtivo, portanto, sem profisso regulamentada, sem carteira profissional e sem sindicato que lhes permitam ter sequer a condio de cidadania regulada. 16

    Todavia, os MS apresentam-se como o espao concreto e legtimo para con-quista e ampliao dos direitos de cidadania, inclusive para os "pr-cidados", pois, como afirma Nascimento,I, "os MS situam-se no recndito irredutvel da sociedade civil, nos interstcios mais profundos da cidadania, dos direitos indi-viduais dos cidados face ao Estado". Assim que, no desenvolvimento de suas lutas, utilizando mecanismos de protesto e presso, os indivduos os mais diver-sos encontram uma identidade coletiva, tornando-os iguais, na medida em que experimentam, no cotidiano, as mesmas carncias. Atravs desse processo de lu-ta e de prtica poltica vivenciada no interior desses movimentos, os seus atores

    14 Almeida, Maria H. T. de. l! tempo de novos direitos. Novos Estudos Cebrap, n. 2, p. 1. jul. 1983. 15 Santos. Wanderley J. dos. Cidadania e justia. Rio de Janeiro, Campus, 1979. p. 75-6. 16 A instituio recente do seguro desemprego (Decreto-Iei n. 2.283, de 27 de fevereiro de 1986) parece reforar a noo da cidadania regulada e legitimar a condio dos "pr-cida-dos", na medida em que beneficia apenas os desempregados do setor produtivo e exclui a massa de desempregados crnicos, subempregados, ambulantes, que sobrevive das atividades do setor informal da economia. 17 Nascimento, E. P. de. op. cit. p. 11.

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  • ultrapassam a noo de carncia para a afirmao de direitos. Assim que pas-sam a afirmar seus direitos ao saneamento bsico, energia eltrica, educa-o, assistncia mdica, s creches, posse da terra.

    Na luta pela conquista dos seus direitos, os MS passaram a imprimir uma no-va qualidade aos conflitos sociais, na forma de enfrentamento do regime polti-co autoritrio e da ao do poder pblico e suas polticas sociais. Notadamen-te na conjuntura da redemocratizao do pas, esses novos atores ampliaram a noo dos seus direitos polticos e estabeleceram um confronto na legitimidade do regime poltico vigente, ao se oporem s relaes autoritrias e repressivas em uso. Em assim fazendo, vm forando o seu reconhecimento na cena poltica, na busca de legitimao dos seus direitos polticos auto-evidentes - garantia de liberdade, direito associativo, direito de voto -, e perseguindo seus direitos cidadania poltica.

    No enfrentamento do poder pblico e do aparato institucional das polticas sociais, os atores dos MS reivindicam como direitos - e no como concesso, privilgio ou doao paternal - as condies materiais necessrias ao conjunto da reproduo social. Nesta confrontao, os MS legitimam seus direitos sociais e ampliam o espao para a conquista da cidadania social. Nessa relao de con-flito, avaliam a legitimidade e o poder do Estado para superar a tenso contra-ditria entre as exigncias da reproduo do capital, de um lado, e, de outro, as necessidades de reproduo da fora e trabalho.

    Sabe-se que, como componente essencial das relaes de produo capitalista, o Estado capitalista o gestor simultneo e contraditrio do capital e da fora de trabalho. No bojo desta cO'l1tradio, o Estado estabelece uma vinculao or-gnica entre a acumulao e a sua interveno, objetivando assegurar a reprodu-o das relaes de produo capitalista. ~, portanto, na dinmica desta vincula-o que as polticas sociais se definem. Todavia, a interveno do Estado atra-vs das polticas sociais no se desenha no interesse exclusivo das classes domi-nantes que o representam. Assim, se, por um lado, como exigncia do prprio capital, a poltica social do Estado entendida como uma forma de organizar as condies de reproduo da fora de trabalho, por outro lado ela tambm incor-pora os interesses e reivindicaes das classes subalternas.

    ~ nessa perspectiva que se entende que os MS, ao tomarem conscincia cole-tiva dos seus direitos sociais e polticos, alargam os espaos democrticos para reviso e redefinio da cidadania no Brasil; abrem avenidas para a conquista da cidadania plena para todos os membros da comunidade. O terreno da inter-veno do poder pblico, atravs das polticas sociais, desponta como um espao legitimado pelos MS para a prtica poltica na conquista desses direitos, pois, se por um lado as polticas sociais do Estado despertam os atores dos MS para o atendimento de suas necessidades de reproduo, por outro a conscincia polti-ca que desenvolvem no interior desses movimentos cria e recria o saber da cida dadania em face de seus direitos sociais e polticos.

    Summary

    In this article the author discusses the social movements and the citizenship as a new dimension for the social policy in Brazil. In the first sectiO'l1, the emer-gence of these movements in Brazil and their relation with both the model of monopolist capitalism of State and the authoritarian political regime of the coun-

    M;'imenlos sciais e cidadania 9

  • try after-64 are discussed. In the second section, an analysis is made on some theoretical point of views conceming these movements. Emphasis is given on the perspective of nature of class of the social movements. Finally, the social movements are discussed as the political space to the conquest of citizenship in Brasil. The social policy of the State is oovisioned as the concret and legitimated field to the poltical practice of the social movements' actors towards conquering citizenship rights.

    Iniiao, moeda & modelos macroeconmicos - o caso do Brasil de Carlos Lem-gruber 141 pginas

    Eug!'110 Gudin visto por seus contemporneos 160 pginas

    O problema do caf no Bra-s1l de Antonio Delfim Netto 259 pginas

    editados pela FGV Ar:lise econmica do fen-mEno demogrlco no Bra-sildeEdyLUlzKogut 114 pginas

    Os efeitos das minidesvalo-rizdes na economia brasi~ lei! a de Eduardo Matarazzo Suplicy-2.ed. 254 pginas

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    409 pginas Gonalves de Souza j ~--------------------- -----------.-------- -------------"

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