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7/24/2019 COSTA. Os Bolivianos Em Corumb
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MANA 21(1): 35-63, 2015 DOI http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p035
OS BOLIVIANOS EM CORUMB-MS:
CONFLITOS E RELAESDE PODER NA FRONTEIRA
Gustavo Villela Lima da Costa
A cidade de Corumb-MS, fundada em 1778, tem em torno de 100 milhabitantes (IBGE 2010) e est situada na fronteira com a Bolvia, a partir
das cidades de Puerto Quijarro e Puerto Suarez, em uma regio de grandefluxo de pessoas e mercadorias. Ao longo de sua histria, Corumb recebeu
migrantes de vrias regies do Brasil e de diversas nacionalidades e etnias,
principalmente do Paraguai e da Bolvia, alm de srios, libaneses e palestinos(chamados na cidade de turcos ou rabes), assim como portugueses e
italianos, entre outros.O rio Paraguai, navegvel desde o atual estado de Mato Grosso, passan-
do por Corumb, Assuno (Paraguai), desaguando no rio Paran, chegandoao porto de Rosrio (Argentina), indo at as cidades de Buenos Aires e Mon-
tevidu, promoveu a circulao de pessoas de diversas nacionalidades pela
bacia platina. preciso ressaltar ainda que esta era (e ainda ) uma regioocupada por etnias indgenas inseridas no que hoje so territrios do Brasil
e da Bolvia e que j transitavam, h muito tempo, pelas atuais fronteirasdestes pases. Alm disso, a cidade tem um importante contingente militar
(e estatal) que promove uma grande rotatividade de pessoas de vrios esta-
dos do Brasil, o que implica grande diversidade cultural e social. A fronteira(seja em funo da defesa nacional e da presena do aparato estatal, seja
pelas oportunidades de negcios) um dos principais fatores de atrao depessoas para a regio e favorece oportunidades de trabalho ou de ascenso
social e econmica, sendo utilizada como um recurso material e simblicopor esses atores sociais.
Em 2009, iniciei minhas pesquisas etnogrficas em Corumb, procu-
rando entender principalmente os conflitos entre brasileiros e bolivianos nafronteira em torno do comrcio informal (Costa 2010, 2011, 2013a, 2013b,
2014). Os conflitos devem ser vistos, desde Simmel (1964), no apenas emseus aspectos negativos, mas como uma forma de interao social especfica,
em que as contradies entre as partes envolvidas acabam por criar uma
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espcie de unidade a partir de suas tenses. Outro aspecto muito interes-
sante da obra de Simmel o fato de que o conflito representa a base para a
mudana nas sociedades, o que adquire um matiz especfico nas reas defronteiras nacionais, como espaos em permanente construo e negociao.
Ao estudar os conflitos, no pretendo negar a importncia de outrasformas de interao, baseadas em relaes de reciprocidade mais horizon-
tais entre brasileiros e bolivianos na fronteira, e muito menos desconsiderarprocessos de trocas culturais e sociais na regio. O que pretendo desvendar
so alguns aspectos das relaes de poder, que se tornam mais visveis, em-piricamente, por meio da anlise dos conflitos sociais. Parto do pressuposto
de que as diferenas, ao mesmo tempo em que so formas de classificao,objetificam essas relaes de poder.Essas reflexes estabelecem um dilogo com o pensamento de um dos
precursores dos estudos de fronteiras nacionais na Antropologia brasileira,Roberto Cardoso de Oliveira. A respeito das relaes entre nacionalidade e
etnicidade, ele afirma:
assim que em ambos os lados da fronteira se pode constatar a existncia de
contingentes populacionais no necessariamente homogneos, mas diferenciados
pela presena de indivduos ou grupos pertencentes a diferentes etnias, sejam
elas autctones ou indgenas, sejam provenientes de outros pases pelo processo
de imigrao. Ora, isso confere populao inserida no contexto de fronteira um
grau de diversificao tnica que, somado nacionalidade natural ou conquistada
do conjunto populacional de um e de outro lado da fronteira, cria uma situao
sociocultural extremamente complexa (Cardoso de Oliveira 2006:107).
A partir desta perspectiva, podemos indagar: Quais as relaes que se
estabelecem entre identidade, etnicidade e nacionalidade na fronteira Brasil-
-Bolvia? Como articular a noo de fronteira estatal com as fronteiras sociaise simblicas na regio? Quais os significados dos conflitos entre brasileiros
e bolivianos, para alm dos fatores econmicos? De que maneira as polticasde segurana e de represso ao comrcio informal e ilegal reproduzem, na
prtica, discursos e representaes sobre o outro na fronteira?Para tentar responder a estas questes, este artigo est dividido em trs
partes. Na primeira, abordo as intersees entre nacionalidade e etnicidade
como critrios de classificao na fronteira e as representaes estigmatizan-tes sobre os bolivianos produzidas no lado brasileiro. Na segunda, discuto
as estratgias de trabalho dos bolivianos em Corumb em torno do comrcioinformal, relacionando etnicidade e nacionalidade com as oportunidades de
trabalho e com as formas de organizao social. Por fim, nas consideraes
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finais do artigo,busco compreender quais os efeitos sociais da deslegitimaoprogressiva dos bolivianos no lado brasileiro, manifestados nas polticas de
controle e vigilncia na fronteira, em torno da criminalizao das prticasde trabalho informal.
Dessa forma, pretendo mostrar como os modos de classificar os bolivia-
nos em Corumb, em conjunto com a situao do trabalho precrio e informala que esses atores sociais tm de recorrer para sobreviver na regio, acabam
reforando os estigmas que recaem sobre o grupo. a partir dessa situaoque os coloca como desclassificados sociais, margem da sociedade, que se
legitimam e so postas em prticas as polticas atuais de restrio e controle
dos bolivianos, sob o paradigma da legalidade e da segurana pblica.
Nacionalidade e etnicidade na fronteira Brasil-Bolvia
H nas regies de fronteiras certamente espaos sociais de circulao, de fluxos
e trocas, ou mesmo de hibridismo cultural que vo muito alm da economiae do dogma da soberania. As fronteiras so espaos de contnua reinveno
identitria e cultural, apresentando um dinamismo prprio. Por sua vez, essas
interaes na fronteira tambm so permeadas por conflitos. Existe, ento,a construo de discursos e representaes que se baseiam no princpio de
identidade contrastiva1(Cardoso de Oliveira 2003) e acabam reforando outrasfronteiras sociais e culturais. A noo de fronteira, entendida tanto como limite
dos Estados nacionais quanto como construo social e simblica de limites
entre grupos, deve ser pensada em conjunto para dar conta dos fenmenosaqui estudados (Pimenta 2011). A prpria fronteira estatal no deve ser na-
turalizada, ou seja, analisada como um dado em face das outras fronteirassimblicas e sociais, pois ela tambm parte de processos classificatrios, que
esto sempre sendo construdos ao longo do tempo.2
Torna-se importante entender como se do os processos de organizao
social por meio dos quais se mantm as distines entre ns e os outros
na fronteira Brasil-Bolvia ao longo do tempo. Em primeiro lugar, observa-seque grupos dominantes, sobretudo no lado brasileiro, impem seu poder
de nomeao aos bolivianos, objetivando suas classificaes dos outros,e criam, a partir dos discursos, os prprios grupos sociais e suas hierarquias
(Bourdieu 1989). Dessa forma, constata-se uma assimetria de poder na qualest presente a ideia de superioridade-inferioridade manifestada nos discur-
sos e nas prticas do lado brasileiro. Isto estrutura tambm a construo de
preconceitos e de dominao simblica dos bolivianos, assim como determinaas possibilidades de acesso ao trabalho formal e aos direitos.
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A nacionalidade constitui uma categoria central na vida dos moradoresfronteirios, que organiza o espao cotidiano, determina o acesso a direitos
ou define a situao de estrangeiros, e condio para tornar-se pessoana vida local (Grimson 2003:18). No entanto, diferentemente da fronteira
Brasil-Argentina estudada por este autor, a identidade na fronteira Brasil-
-Bolvia pode ser problematizada no apenas por critrios de nacionalidade(brasileiros/ bolivianos), mas tambm por critrios tnicos (ndios/ no ndios).
H uma dupla alteridade do boliviano em solo brasileiro: ao mesmo tempoem que visto como um outro nacional (estrangeiro), representado como
um outro indgena, duplicando, em grande medida, o estigma social que
recai sobre o grupo. Grande parte dos migrantes e residentes bolivianos nafronteira tem, de fato, sua origem nos Aymara ou nos Quchua (do altiplano),
alm dos Kambas e dos Chiquitanos, das terras baixas.Como se operacionalizam, nesse contexto, tais distines tnicas? De
que forma a etnicidade constitui um critrio de hierarquizao e organizaosocial na fronteira Brasil-Bolvia? Para responder a estas questes, faremos
uma breve reviso do conceito de etnicidade nos trabalhos de Fredrik Barthe Roberto Cardoso de Oliveira.
Para Barth (2000), so as fronteiras, a partir de processos de excluso
e incluso, e no o contedo cultural, que definem os grupos tnicos eexplicam sua persistncia. Nas palavras do autor, torna-se claro que as
fronteiras tnicas permanecem apesar do fluxo de pessoas que as atraves-sam (Barth 2000:26), ou seja, as distines tnicas dependem justamente
da interao social com o outro e no de uma diferena naturalizadaou anteriormente definida pelos contrastes culturais. Portanto, a identidade
tnica construda e transformada na interao entre os grupos sociais,
contribuindo para organizar, inclusive, o teor dessas interaes. Outro pontoimportante levantado por Barth diz respeito atribuio e aos critrios de
pertencimento como caractersticas fundamentais da etnicidade. Segundoo autor, a distino tnica ocorre quando uma pessoa se v como parte de
um grupo tnico distinto e assim vista, em funo de critrios especficos,por aqueles que no fazem parte do grupo.
De maneira semelhante a Barth, Roberto Cardoso de Oliveira (2003)
aponta a importncia do contato para a diferenciao tnica, que no se ba-seia nunca em uma essncia que distinguiria os grupos sociais. Observa-se,
ento, como os atores sociais identificam-se e so identificados por outrosnessas regies em situaes de cultura do contato, isto , num conjunto
de representaes (em que se incluem tambm os valores) que um grupotnico faz da situao de contato em que est inserido e nos termos da qual
classifica (identifica) a si prprio e os outros (Cardoso de Oliveira 2003:130).
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O autor acrescenta ao debate a dimenso do conflito e das assimetriasde poder nessas interaes, assim como a ideia de que a identidade tnica
pode ser manipulada por atores sociais em situaes ambguas, como asfronteiras nacionais. Para Cardoso de Oliveira, as propriedades estruturais
do processo de identificao tnica so:
a) o carter contrastivo da identidade tnica e seu forte teor de oposio com
vistas afirmao individual ou grupal;
b) sua manipulao em situaes de ambiguidade, quando se abrem diante do
indivduo ou do grupo alternativas para a escolha (de identidades tnicas)
base de critrios de ganhos e perdas (critrios de valor e no como mecanismosde aculturao) na situao de contato (:131).
A manipulao das identidades em reas de fronteira muito importante
para entendermos, por exemplo, os processos de adaptao dos bolivianosem Corumb e seu acesso a servios, como atendimento sade e educa-
o, sobretudo no caso dos indivduos que possuem dupla nacionalidade.Isto demonstra tambm que as identidades nunca so rgidas e monolticas,
ainda mais nas fronteiras, entendidas como espaos liminares.
Devido situao dos bolivianos em Corumb, considerados ao mesmotempo estrangeiros e ndios pelos brasileiros, h grandes semelhanas
com o processo de contato intertnico entre ndios e no ndios no Brasil,embora essa interao nas fronteiras no ocorra apenas no interior do mes-
mo espao nacional (como o caso do contato intertnico entre ndios e asociedade nacional).
A ideia de frico intertnica (Cardoso de Oliveira 2003, 1976), por
exemplo, que ocorre em um sistema inter e transnacional, nos permite enten-der a fronteira como um local de contato entre grupos nacionais (e no ape-
nas grupos tnicos) irremediavelmente vinculados, em suas contradies,a partir justamente de seus conflitos (manifestos) e suas tenses (latentes)
(Cardoso de Oliveira 2003:120). Esses conflitos e tenses, engendrados pela
frico de etnias e nacionalidades postas em conjuno, estruturam a vidasocial na fronteira e forjam as diferenas e as hierarquias entre grupos. Se
a etnicidade uma forma de interao entre grupos operando no interior decontextos sociais comuns, as reas de fronteira (como as reas de frico
intertnica, noutro momento) representam contextos privilegiados para a des-crio e a anlise da produo social da diferena nacional (Silva 2007:342).
Um dos maiores desafios de nossas pesquisas etnogrficas trabalhar
com essas interaes sociais (entre nacionalidades e etnias) na fronteiracomo um espao de ambiguidade e tenso, entendidas no apenas em seus
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sentidos negativos, pois tambm favorecem processos criativos de interaoe reinveno cultural e identitria.
Muitos indivduos de origem boliviana so nascidos em Corumb eilustram bem essa situao intersticial de suas identidades. Essas pessoas
possuem os documentos de identidade brasileiros, estudam nas escolas bra-
sileiras, prestam o servio militar obrigatrio, so bilngues, em sua maioria,mas continuam sendo chamados de bolivianos pelos brasileiros. Como mui-
tos desses atores sociais vivem no lado boliviano da fronteira, continuam amanter os laos culturais e identitrios com a Bolvia, identificando-se, em
muitas ocasies, como bolivianos e no como brasileiros (mesmo que nas-
cidos no Brasil). Algumas professoras de Corumb relataram que os alunosbolivianos sabem mais de feriados e datas histricas da Bolvia do que do
Brasil (Moraes 2012). Em algumas ocasies, entretanto, esses indivduosacionam suas identidades de brasileiros, sobretudo quando necessitam de
servios e direitos do lado brasileiro da fronteira, como acesso educao, sade, moradia e ao trabalho.
A geografia peculiar dessa fronteira, cercada pelo Pantanal, em rela-tivo isolamento, intensifica a interdependncia entre brasileiros e bolivia-
nos, j que as cidades de Corumb e Ladrio,3no lado brasileiro, e Puerto
Quijarro e Puerto Suarez, no lado boliviano, esto distantes dos principaiscentros urbanos, seja de Campo Grande (450 km), seja de Santa Cruz de
La Sierra (mais de 600 km). O insulamento dessas cidades contribuiu paraforjar uma figurao social especfica (Elias 2006),4alm de estilos de vida,
representaes e padres de interao muito peculiares ao longo do tempo.
Na BR-262, que corta o Pantanal, h uma placa que indica simbolicamenteo peso da distncia, na cidade de Miranda (a 200 km a leste de Corumb):
prximo posto de gasolina a 150 km. Nesse trecho, a estrada construda comoum aterro avana sobre a imensido do Pantanal, no h sinal de celular
e h pouqussima presena humana. Mas no nos enganemos, a passamcaminhes, mercadorias e pessoas, em um fluxo intenso atravs da fronteira
(alm da rodovia, das ferrovias, da hidrovia e dos aeroportos).
Nessa situao de interdependncia entre essas cidades, h uma ne-gao histrica da condio de cidade fronteiria por parte dos moradores
de Corumb, resumida na frase: a fronteira l, e no aqui. Os corumba-enses associam a fronteira Bolvia e a identidade de fronteirios apenas
aos bolivianos. Essa separao no apenas simblica, mas fsica tambm.Entre o centro da cidade de Corumb e a linha de fronteira, em Arroyo
Concepcin, distrito de Puerto Quijarro, percorrem-se aproximadamente
5 km na rodovia Ramon Gomez, que segue paralela ao canal do Tamengo,no lado direito (que liga o rio Paraguai baa Cceres, no lado boliviano).
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Do lado esquerdo, fica a pista do aeroporto de Corumb e depois o cemitrioNelson Chamma, antes do pedgio. Da em diante, at a linha de fronteira
quase todos os terrenos esto situados em rea militar ou estatal e no hconstrues em uma rea de mata fechada. Cercas de arame farpado separam
os territrios nacionais prximos linha divisria.
As ltimas construes no lado brasileiro so o Clube Recreativo deSubtenentes e Sargentos (Cresse) e as instalaes da Receita Federal e da
Polcia Federal, que so prdios de instituies de controle e vigilncia. Essapaisagem e esse ordenamento urbano no se construram ao acaso e visam
ao controle soberano da linha de fronteira pelo Estado brasileiro, alm de
proibir a ocupao dos terrenos prximos fronteira, com o objetivo de im-pedir que as cidades de Corumb e Puerto Quijarro se conurbem totalmente,
tornando-se uma s cidade.A prpria situao de liminaridade coloca a fronteira, cujo statuspossui
algo de indefinvel e ambguo, como um local vulnervel e perigososimbolicamente, por romper com a estabilidade ideal dos sistemas culturais
(Douglas 2012:119). Os bolivianos, sobretudo aqueles que dependem decruzar diariamente a linha divisria entre os pases para sobreviver, viven-
ciam em Corumb uma situao ambgua e marginal (no sentido de estarem
margem da sociedade, principalmente no que se refere aos direitos), nosinterstcios das estruturas de poder, muitas vezes nos limites entre o legal
e o ilegal.Nessa fronteira, que o Estado brasileiro quer manter relativamente
afastada e controlada, podemos considerar que os bolivianos tambm estocruzando fisicamente barreiras sociais quando circulam entre Puerto Qui-
jarro e Corumb. Ao mesmo tempo em que esto excludos do padro social
vigente, representam uma ameaa simblica s pessoas com statusmaisdefinidos. De acordo com Douglas (2012):
O perigo est nos estados de transio, simplesmente porque a transio no
nem um estado nem o seguinte, indefinvel. A pessoa que tem que passar
de um a outro est ela prpria em perigo e o emana a outros. O perigo con-
trolado por um ritual que precisamente a separa do seu velho status, a segrega
por um tempo e, ento, publicamente, declara seu ingresso num novo status
[...] ter estado nas margens ter estado em contato com o perigo, ter ido
fonte do poder (:119-20).
Nesse processo de representao da alteridade na fronteira, a cons-
truo negativa do outro sustenta a prpria identidade brasileira, ou seja,o boliviano se constri no imaginrio brasileiro fora dos parmetros que
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definem os valores civilizados. Nesse contexto, a imagem do outro ga-nha contornos especficos em Corumb, na medida em que a Bolvia vista
por parte da populao como smbolo do atraso, da pobreza e da falta decivilidade, de higiene, das leis. Esses estigmas podem ser resumidos nas
categorias identitrias de chocos, collas ou simplesmente ndios ou
bugres. Percebe-se, em inmeras conversas com moradores de Corumb,que a Bolvia representada como um lugar sem lei e corrupto. Voc
j dirigiu na Bolvia? L no tem lei, cada um faz o que quer. E a polcia l?So todos corruptos... qualquer coisinha errada querem dinheiro... e quando
eles vm aqui, no querem seguir as leis... no Brasil a lei pra todo mundo.
Outra categoria que aparece recorrentemente em Corumb sobre aBolvia e os bolivianos o binmio sujeira/doena. Existe uma viso difusa
no lado brasileiro que considera que os bolivianos no tm higiene e, porconseguinte, as cidades bolivianas fronteirias seriam foco de doenas. Enfer-
midades como a raiva, a leishmaniose e a dengue aparecem como problemasno tratados no lado boliviano, o que produz o discurso da fronteira como
rea de contgio, na qual a enfermidade representa um signo de corrupofsica e moral, um signo de falta de civilizao (Hardt & Negri 2000:132).
Trs casos, que presenciei, ilustram essa imagem difusa na sociedade
corumbaense (Costa 2013a).5Eu passeava com meu cachorro e pergunteia um rapaz sobre possveis surtos de leishmaniose na cidade. O rapaz
apontou na direo da Bolvia e me disse vem tudo de l. Aqui fogo...l no tem controle. Esses bolivianos so muito porcos!. No ano seguinte
eu contra dengue e ainda no sabia que estava doente quando fui realizar
um trabalho de campo em Santa Cruz de La Sierra, na Bolvia. A doenase manifestou nesta cidade, e eu retornei a Corumb para o tratamento.
Muitas pessoas disseram pegou dengue na Bolvia.... Um terceiro exem-plo pode ser encontrado em entrevista, quando uma moradora de Corumb
afirmou que, quando criana, ao cruzar a fronteira para Puerto Quijarro,sua me a obrigava a prender o cabelo, para evitar o contgio de piolhos,
e continuou, assim que chegvamos em casa, ramos obrigados a tomar
banho imediatamente. Estes exemplos expem as representaes sociaisno lado brasileiro que consideram a fronteira como rea de contgio, em
que o banho aparece simbolizando um ritual de limpeza desse contatocom o outro que se quer evitar. O boliviano como cruzador de fronteiras
fsicas e sociais torna-se, simbolicamente, um poluidor duplamente nocivo,primeiramente porque cruzou a linha e, em segundo lugar, porque colocou
as pessoas em perigo (Douglas 2012:170).
A questo da esttica aparece nos discursos como mais um critriode classificao social. Em geral, as pessoas do lado brasileiro se referem
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a Puerto Quijarro como um lugar feio, em contraposio beleza deCorumb, vista como polo turstico. A noo de feira nesses discursos se
estende tambm aos prprios bolivianos e no apenas ao lugar. Ao longo dotempo, escutei de alunos e alunas da graduao da UFMS, em geral em tom
de brincadeira nos corredores da Universidade, as seguintes frases: Voc
boliviana... no engana ningum... bugra!; em outra ocasio uma mulherse sentiu ofendida ao ouvir um elogio, seguido da pergunta sobre sua origem
(tanto indgena quanto boliviana): Voc bonita! Tem um cabelo de ndia,n? Voc descendente de bolivianos?. Em uma entrevista, uma moradora
de Corumb exemplifica essa representao sobre beleza/feiura em relao
a critrios tnicos ao associar o boliviano a um fentipo especfico e estig-matizado: Minha amiga namora um boliviano. Mas ele bonito. branco,
de Santa Cruz, tem olhos claros e tudo! Nem parece boliviano... Deus melivre namorar um choco desses a....
Mais uma categoria discursiva presente na vida social de Corumb aquela que associa o boliviano pobreza. Esses discursos so muito
semelhantes aos que identificou Vila (2000), na fronteira do Mxico com osEstados Unidos, nas cidades de El Paso (Estados Unidos) e Ciudad Juarez
(Mxico), em que os estadunidenses produzem um discurso de que All
poverty is mexican (toda pobreza mexicana) (Vila 2000:86). Essa vin-culao dos bolivianos a uma classe especfica, vistos como pobres, gera
inmeros discursos de benevolncia do poder pblico brasileiro comobenfeitor dos bolivianos, seja no atendimento de sade, seja na matrcula
nas escolas (em uma pressuposio tcita de superioridade e de que elesdependem de ns).
Podemos pensar nas representaes sociais construdas entre brasi-
leiros e bolivianos na fronteira a partir da leitura de Mary Douglas (2012).A autora, estudando os rituais de passagem, utiliza os conceitos de pureza
e perigo e as antinomias como pureza/impureza, limpeza/sujeira, cont-gio/purificao, beleza/feiura e ordem/desordem como ferramentas para
compreender a ordem social e as representaes da alteridade. Em grandemedida, as construes sociais e as representaes do outro na fronteira so
forjadas a partir dessas antinomias, como se nota nos recorrentes discursos
sobre as convenes sociais a respeito da higiene. Douglas afirma quea sujeira relativa e que representa essencialmente desordem. No h
sujeira absoluta. Ela existe nos olhos de quem v (:12). A autora entendeque as concepes sobre sujeira e poluio se inserem em um dilogo de
reivindicaes de statussocial, em funo das convenes sociais, a partirdas quais algumas poluies so usadas como analogias para expressar
uma viso geral da ordem social (:14).
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De forma anloga, os brasileiros produzem discursos a respeito desseencontro cultural com o outro na fronteira como foco de um contgio
ou perigo que se quer evitar, ou seja, como uma reao etnocntrica auma suposta ameaa s normas ideais do grupo (associadas aos discursos
de nacionalidade), calcadas na ideia de pureza e na segurana do pr-
prio sistema cultural, avesso s contradies. Cruzar a fronteira sair dazona de conforto, obrigando seus moradores a entrarem diretamente em
contato com outros sistemas sociais e culturais e, portanto, se torna um atode poder (Douglas 2012) carregado de significados e que estrutura a ao
social, a interao e as relaes sociais entre os grupos que a interagem,
em um cenrio de forte alteridade.Autores que estudaram a dinmica migratria da Bolvia para a Argen-
tina tambm identificaram formas de preconceito em relao aos bolivianos(preconceito cultural, racial e social), a partir das quais se produzem repre-
sentaes sobre a falta de higiene e de cultura dos bolivianos, chamadospor algumas pessoas de maneira estigmatizante de bolitas na Argentina.
Benencia e Karasik (1996), por exemplo, narram a expulso de imigrantesbolivianos da fronteira argentino-boliviana, considerados pelas autoridades
locais como responsveis pela epidemia de clera na regio nos anos de 1990,
por causa de seus supostos costumbres. Destaca-se tambm a percepo,por parte dos autores, da existncia de uma dupla alteridade dos bolivia-
nos em solo argentino (estrangeiros e indgenas), de maneira semelhante aoque descrevo na fronteira em Corumb (ver Grimson 1997; Benencia 2004;
Karasik & Benencia 1998; Benencia & Karasik 1996; Karasik 2012). Almdisso, processos semelhantes de estigmatizao e hierarquizao social em
relao aos migrantes paraguaios fronteirios so descritos e analisados na
fronteira Argentina-Paraguai por Betrise e Nadali (2007).Algumas das representaes sociais baseadas em assimetrias de poder
na fronteira relacionam os bolivianos s prticas ilegais em Corumb. Essepreconceito pode ser notado a partir de discursos difusos entre a populao
e de alguns interlocutores, como o de um mototaxista da cidade que entre-vistei e que nos serve de exemplo. J que havia estudado anteriormente os
conflitos entre taxistas brasileiros e bolivianos na fronteira (Costa 2011),
perguntei ao mototaxista sobre os possveis conflitos existentes entre osmototaxistas oficiais e os clandestinos na cidade. Isto porque, do mesmo
modo que os taxistas esto cadastrados pela prefeitura, h um sistema oficialde trabalho dos mototaxistas em Corumb, que pagam por suas licenas e
usam um colete e capacetes amarelos que os identificam, autorizando-os apegar passageiros na rua. Alm disso, eles esto distribudos em pontos pela
cidade. Apesar dessa regularizao, h inmeros motoqueiros que cobram
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para levar passageiros de maneira independente, portanto de modo irregular,do ponto de vista da prefeitura e dos mototaxistas cadastrados. Eu indaguei
a J., um mototaxista cadastrado, se havia muitos bolivianos pilotando motose transportando passageiros de maneira clandestina, j que a maioria dos
mototaxistas no cadastrados na cidade de brasileiros (ao contrrio dos
taxistas ilegais, de origem boliviana).
Tem uns bolivianos que trazem passageiros l da Bolvia. Eles tiram os coletes
e trazem. Mas no muito no. Os clandestinos so brasileiros mesmo. S que
a populao de Corumb, se voc for ver, tudo bolivianado, tem me, av
boliviana... e a eles preferem fazer tudo ilegal tambm. Eles so assim... socriados desse jeito.
Continuamos a conversar e o mototaxista me contou como achava
caro pagar as taxas da moto exigidas pela prefeitura de Corumb e quepor isso no comprava nada da moto no Brasil. Essa moto tem cinco anos
e eu nunca coloquei gasolina no Brasil! Eu me recuso a dar dinheiro progoverno brasileiro. S compro gasolina na Bolvia. Compro pneu l... tudo.
Vou comprar aqui pra qu?.
Notamos na fala do mototaxista dois aspectos que nos parecem maisrelevantes. Quando se refere populao bolivianada de Corumb como
uma razo para as prticas ilegais, J. pressupe haver uma natureza de-generada dos bolivianos, como se os atos ilegais decorressem da ndole
determinada pelo sangue de parte da populao que se recusaria a cumprira lei por ter origem boliviana. Novamente observamos o recorrente racismo
e a associao das prticas irregulares na fronteira com os bolivianos, cuja
prpria condio de moradores no lado brasileiro tida como ilegal e cujasposies de trabalho so vistas como a de concorrentes.
Entretanto, logo em seguida, o prprio J. afirma comprar gasolinailegalmente na Bolvia, pois se sente roubado pelo governo brasileiro ao
pagar muitos impostos. Nesse sentido, J. produz uma justificativa moral e
econmica para comprar gasolina na Bolvia, escapando classificao deilegal atribuda pelo prprio mototaxista aos bolivianos. Os ilegais so os
outros, e algumas prticas nas margens da legalidade feitas por ele seriamaceitas e justificadas pelo fato de o Estado brasileiro cobrar muito e no
dar nada em troca. Outro aspecto fundamental presente implicitamente emsua fala o das representaes sobre a Bolvia, os bolivianos e a fronteira
por sua utilidade (ou seu aspecto de recurso de sobrevivncia). A fronteira
aparece primordialmente nesses discursos como um lugar til, onde se fazemcompras, ou ainda como se sua utilidade fosse uma compensao pelo fato
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de se ter de conviver com vizinhos indesejveis ou com os problemas queparte dos moradores de Corumb acredita emanarem da fronteira, como
crimes, enfermidades e misria social.Outros casos demonstram de que forma ocorre a reproduo social dos
preconceitos na fronteira. Tomemos como exemplo a situao das crianas
de origem boliviana na cidade de Corumb (as quais podem ser filhos depais bolivianos, embora nascidas no lado brasileiro) que tem gerado algumas
pesquisas no MEF (Mestrado em Estudos Fronteirios da UFMS). Em umestudo de caso, em uma escola pblica de Corumb, um aluno de origem
boliviana, filho de me brasileira e pai boliviano, pediu ao seu pai para que
no o buscasse mais na escola, pois temia as brincadeiras preconceituo-sas dos colegas, com vergonha pelo fato de seu pai ser boliviano (Ribeiro
2011). As pesquisas realizadas nas escolas de Corumb demonstram que opreconceito em relao aos bolivianos explcito, seja pelo bullying, ou por
outras formas de discriminao (Ribeiro 2011; Moraes 2012). Um caminhointeressante de pesquisas se abre permitindo novos dilogos com Roberto
Cardoso de Oliveira, quando ele trabalha com a noo de identidade ne-gativa, no contato entre ndios e no ndios:
Dentre as compulses desagregadoras que mais eficazmente afetam os grupos
indgenas em contato sistemtico com a sociedade nacional, estariam as que
atingem diretamente os seus contingentes infantis. A permanncia contnua em
situaes de discriminao desperta desde cedo nas crianas uma conscincia
negativa de si ou, em termos de Erikson, uma identidade negativa que se
prolongar na juventude e maturidade, raramente transformvel numa iden-
tidade positiva capaz de auxiliar o indivduo ou o grupo a enfrentar situaes
crticas (Cardoso de Oliveira 2003:127).
H, portanto, uma questo de dupla alteridade do boliviano, como es-trangeiro e indgena. Retomamos a anlise de categorias como bugre ou
ndio e sua importncia no sistema classificatrio de Mato Grosso do Sul
(com a segunda maior populao indgena do Brasil), e que tem para amplossetores sociais no ndgenas um sentido pejorativo, seja nos discursos, muito
semelhantes s representaes descritas acima em relao aos bolivianos(sujeira, preguia, indolncia, feiura, doena etc.), seja na prtica, a partir
da difcil situao fundiria do estado, com a constante expulso dos indge-nas de suas terras, a violao dos direitos humanos e a violncia no campo.
Em grande medida, o ndio representa para as elites polticas de Mato Grosso
do Sul a imagem do atraso, associado ainda a um estado de natureza,que deve ser domado, civilizado e desenvolvido com o avano da fronteira
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do Estado brasileiro, objetivado, atualmente, pelo agronegcio. Assim, osbolivianos (vistos do lado brasileiro como sinnimo apenas de suas etnias
do altiplano) representam nesse contexto local um outro indesejado, umafronteira que deve ser mantida como limite, como barreira.
Etnizao dos bolivianos em Corumb
A partir do que foi exposto at aqui se percebe que os bolivianos em Corumb
formam minorias, grupos diferenciados no mbito das sociedades globais,
em posies subalternas (Cardoso de Oliveira 2005:9). Entende-se que asetnias em um contexto de fronteira nacional devem ser consideradas no
apenas em si mesmas, mas inseridas em outro quadro de referncia: o quadro(inter)nacional. Esse quadro marcado por um processo transnacional, cujo
determinador social, poltico e cultural passa a ser a nacionalidade, maisdo que a etnicidade, cuja ambiguidade abre espao para a manipulao
das identidades tnicas e nacionais em conjuno (Cardoso de Oliveira2006:108). Os bolivianos como minorias tnicas e nacionais na cidade de
Corumb passam por um processo constante de etnizao de suas identi-
dades nacionais quando entram em territrio brasileiro:
Naturalmente, falar de etnizao socorrer-nos do conceito de etnicidade [...]
definido como envolvendo relaes entre coletividades no interior de sociedades
envolventes, dominantes, culturalmente hegemnicas e onde tais coletividades
vivem a situao de minorias tnicas ou, ainda, de nacionalidades inseridas no
espao de um Estado-nao (Cardoso de Oliveira 2006:89).
A partir da leitura de Hannerz (1974), podemos pensar nas relaes
que se estabelecem entre etnicidade e oportunidades sociais e de trabalhono ambiente urbano de Corumb. Hannerz entende que os grupos tnicos
urbanos podem ser estudados como grupos de interesse (interest groups),
em disputa com outros grupos pelos recursos na arena pblica. A etnicidadee, no caso da fronteira, a nacionalidade tambm so idiomas que promo-
veriam a solidariedade entre os indivduos como um dever moral (Hannerz1974:39). So inmeras as questes que surgem em nossos estudos a partir
da compreenso das relaes entre etnicidade, nacionalidade e relaes detrabalho na fronteira.
Quando nos referimos ao trabalho informal, basicamente no comrcio,
destacamos os seguintes locais de trabalho, em Corumb, por sua importnciae volume de mercadorias: as feiras de rua itinerantes, onde predominam os
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hortifrutis (cultivados no lado boliviano e nos assentamentos rurais no ladobrasileiro), roupas, CDs, peas de bicicleta, fraldas, brinquedos, em sua
maioria Made in China, trazidos da Bolvia; a Feira Bras-Bol (espcie decameldromo local, que foi fechada em 2013, onde predominava a vendade roupas e calados), ou as lojinhas (estes so pontos de comrcio fixo,
em imveis urbanos de Corumb, com os mesmos produtos da Feira Bras--Bol). Existem ainda os camels de rua, em nmero mais reduzido, e os
vendedores de artesanatos bolivianos para turistas, especialmente na porta
dos hotis. Grande parte desses pontos de comrcio informal ocupadapor bolivianos, o que vem gerando reaes do poder pblico, apoiadas por
setores sociais e econmicos da cidade de Corumb, principalmente pelaAssociao Comercial (Costa 2013b).
Em uma entrevista com um taxista brasileiro na cidade de Corumb,escutei o seguinte argumento:
Eu j fui contrabandista, no nego! Trazia direto mercadoria contrabandeada
da Bolvia... at que me pegaram! E essa bolivianada a passa todo dia dizendo
que feirante... todo mundo feirante agora... no sou contra eles trabalharem,
mas a lei tem que ser pra todos. Por que eles podem vender e a gente, brasileiro,
no? Vai voc vender... a pra voc ver!
Essa fala do taxista aponta para uma importante questo na fronteira,
revelando conflitos em torno do comrcio informal, que percebido pormoradores de Corumb como feito apenas por bolivianos. Embora esse co-
mrcio no seja exclusivamente feito por eles, como veremos neste artigo,h algumas razes que explicam sua predominncia no comrcio de rua
em Corumb, assim como sua maior visibilidade. De fato, a atividade de
comrcio informal feita por bolivianos mais visvel em Corumb por setratar de feiras e comrcios de rua e pelos critrios de classificao do lado
brasileiro, a partir dos quais os marcadores sociais da diferena contribuempara a diviso entre ns e eles (modos de vestir as tranas e as roupas
coloridas das mulheres bolivianas, os modos de falar espanhol, quchua,aymara tcnicas de corpo e assim por diante).
Alm disso, de fato, os bolivianos exercem um contrapoder em que
passam a ocupar o comrcio informal de rua em Corumb mediante es-
tratgias de passagem de mercadorias (principalmente a passagem diriade pequenas quantidades), nas chamadas competncias circulatrias(Telles 2009),6negociando mercadorias a preos mais baixos (em funo da
moeda boliviana valer menos) e negociando sua permanncia no espao
de rua junto s autoridades brasileiras (como foi o caso da Feira Bras-Bol,
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que funcionou na semilegalidade por mais de 20 anos na cidade). A prpriacidade de Corumb depende do abastecimento de produtos do outro lado
da fronteira, como o caso de hortifrutis nas feiras da cidade, assim comode roupas, eletrodomsticos, entre outros.
Isto no significa que brasileiros no tenham lojas em que possam
vender roupas no tributadas, ou que no sejam scios de bolivianos nessesnegcios. Quando constatamos que grande parte do comrcio informal na
fronteira realizada por bolivianos, isto no quer dizer que no existam bra-
sileiros trabalhando com mercadorias no tributadas na cidade, cruzando afronteira com mercadorias ilegais, ou mesmo participando ativamente desse
comrcio na fronteira. O que notamos em nossas pesquisas que a maiorparte dos brasileiros envolvidos no comrcio de roupas no tributadas, no
comrcio popular, so os sacoleiros que, em geral, no vivem em Corumb.Assim, utilizamos, a partir de Oliveira (2013), a distino entre os comer-
ciantes que vivemnafronteira, como o caso dos feirantes da Bras-Bol, e
os comerciantes que vivem dafronteira e que vo levar esses produtos parao interior do Brasil, como o caso dos sacoleiros.
Em entrevista com um dos poucos feirantes brasileiros,7que venderoupas Made in China nas feiras de rua, pudemos entender alguns aspec-
tos da interao entre comerciantes brasileiros e bolivianos. Chamou-nos aateno, em sua entrevista, como ao longo do tempo na convivncia diria
do trabalho na feira o entrevistado mudou a forma pela qual representava
os bolivianos: de concorrentes a compadres, de rivais a parceiros comer-ciais. Foi possvel perceber tambm como a partir dos laos sociais, como
o compadrio, o entrevistado conseguiu melhores acordos comerciais, paraalm das trocas culturais e dos laos afetivos e pde se estabelecer como
comerciante de roupas na fronteira.
Quando comecei h dez anos atrs, eu no gostava dos bolivianos... achava que
eles estavam invadindo nosso espao. Nem falava com eles e ia brigar direto na
prefeitura. At que um tiozinho da banca do lado veio falar comigo: voc acha
que ns somos seus concorrentes? Voc est mirando no inimigo errado... ns
estamos juntos. Ns no somos inimigos. As palavras dele ficaram na minha
cabea. E a eu vi que era verdade. Hoje a gente luta pra permanecer na feira
trabalhando contra essas presses a. Os bolivianos so gente boa, depois que
voc entende eles... hoje sou amigo deles, vou na Bolvia direto, almoar na
casa de amigos, nas festas... Sou padrinho de um monte de crianas. L eles tm
padrinho pra tudo: formatura, nascimento, 15 anos... ento hoje trabalhamos
juntos, entende?
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As relaes sociais que se constroem entre brasileiros e bolivianos,como o compadrio, no exemplo acima, propiciam o cruzamento das fronteiras
tnicas e nacionais por parte de alguns atores sociais, reinventando suasidentidades nesse processo. O cruzamento de tais muros invisveis tem
benefcios prticos tambm: por parte dos comerciantes brasileiros, facilita a
aquisio de mercadorias por menor custo e potencializa as competnciascirculatrias para cruzar a fronteira com as roupas para Corumb; os boli-
vianos, por sua vez, ganham mediadores brasileiros diante do poder pblicoe aliados na proteo de seus postos de trabalho, alm de consumidores bra-
sileiros indicados pelo compadre, por exemplo. O compadrio adquire, ento,
um aspecto poltico, como uma estratgia de proteo social na fronteira, aopropiciar a entrada do brasileiro em um circuito de reciprocidade e solidarie-
dade junto a um grupo minoritrio.8Este tipo de relao social proporcionaa defesa conjunta de interesses e, do ponto de vista econmico, favorece o
comrcio a partir da formao de redes de confiana, crdito, reciprocidadee obrigao entre indivduos dos dois lados da fronteira.
Esse feirante pode ser considerado como parte de uma minoria entre oscomerciantes informais brasileiros nos comrcios populares de rua em Corum-
b. O que se observa que os brasileiros que se dedicam ao comrcio informal
em Corumb tendem a utilizar suas casas como extenso para seus negcios seja para realizar promoes (vendas antecipadas de almoos ou comidas
entre vizinhos), ou para vender lanches (hambrgueres ou cachorros-quentes),seja para abrir um salo de corte de cabelos, bicicletarias ou outros servios.
Nesses pequenos negcios caseiros tambm se extrai o lucro com passagemde mercadorias na fronteira, porm em menor escala. Em geral, so produtos
comprados na Bolvia e que servem para o trabalho, como, por exemplo, leo
de cozinha, mquinas de cortar cabelo, panelas, entre outros, que garantemuma economia na prestao de servios, ou seja, no so prioritariamente
produtos adquiridos no lado boliviano para revenda direta.Muitos moradores de Corumb (brasileiros ou bolivianos) tambm
utilizam suas casas como depsito de mercadorias dos feirantes por estarem
situados em ruas prximas das itinerantes feiras de rua ou da antiga FeiraBras-Bol. A partir dessa situao abrem-se importantes questes relativas s
relaes entre casa, famlia e comrcio, atravs da hibridao dos espaos darua e dos tipos de comrcio feitos nas prprias casas, protegidos do espao
pblico da rua e dos controles do Estado e menos visveis para a populao,o que refora a visibilidade da atividade informal das feiras e dos comrcios
de rua, em que predominam os bolivianos.
Outro fator que explica a predominncia dos comerciantes bolivianosno comrcio de rua o fato de que a moeda boliviana vale menos do que
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o real (R$)9e, assim, esses comerciantes bolivianos, principalmente os quevivem do outro lado da fronteira, conseguem no apenas um lucro maior nas
vendas, mas tambm impedir a concorrncia de comerciantes brasileiros,que no podem baixar tanto seus preos. De acordo com outro comerciante
brasileiro em Corumb: no d pra competir com os bolivianos. Eles so
que nem praga, que nem formigas... invadem mesmo... pra eles qualquerreal dinheiro... a moeda deles l no vale nada... com R$ 1 eles compram
coisas do outro lado....A presena e a permanncia desses comerciantes informais bolivianos
acabam beneficiando tambm os consumidores, em especial os de baixa
renda em Corumb, que dependem desse comrcio fronteirio para adquiriros mais variados produtos, desde roupas, produtos eletrnicos, fraldas at
hortalias a preos mais acessveis. importante lembrar que, pelo fato deCorumb estar distante dos centros produtores no Brasil, as mercadorias
tendem a chegar com preos mais elevados em funo dos fretes, da dis-tncia de Corumb de centros produtores e distribuidores de mercadorias.
Retomando Hannerz (1974), podemos pensar como se estabelecem asrelaes entre etnicidade e estratificao social a partir de sua vinculao
com etnias e classes sociais nos Estados Unidos, o que contribui para o re-
foro dos esteretipos e das estigmatizaes feitas pelos grupos dominantesna busca pelo controle dos recursos simblicos e materiais. assim que os
bolivianos, situados nos estratos sociais mais baixos da sociedade corumba-ense, cientes de que disputam espao com setores dominantes na cidade,
tm que levar em conta no apenas sua etnicidade, mas sua nacionalidadecomo fatores para sobreviver e para realizar atividades empreendedoras na
cidade de Corumb. Um exemplo dessa situao est na escolha de alguns
bolivianos em retirar o Documento Fronteirio10 numa tentativa simblicade amenizar sua alteridade, adquirindo sobretudo direitos de moradia no
lado brasileiro, cientes de sua condio tnica e nacional estigmatizada,tanto do ponto de vista legal quanto do simblico.
Em geral, de acordo com Silva (2013), so os comerciantes informais
aqueles que procuraram retirar o documento junto Polcia Federal, sob ajustificativa de que precisam se amparar em documentos que legalizem sua
situao no Brasil: quanto mais documento, melhor. Alm disso, este autorressalta o papel dos mediadores, sejam os do Consulado boliviano, sejam os
da Associao dos Comerciantes da Feira Bras-Bol, incentivando as pessoasa retirar o referido documento. Este um exemplo de como a etnicidade e a
nacionalidade, como formas de organizao social, podem fomentar a aes
de solidariedade e as estratgias de sobrevivncia na fronteira a partir deum documento que garante uma identidade formalizada.
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Os bolivianos, em Corumb, podem ser pensados numa analogia com
o estrangeiro que, na definio de Simmel (1971), no um indivduo
que passa por uma localidade, como o viajante eventual, mas algum quechega hoje e fica amanh (Simmel 1971:143). H, portanto, uma condi-o sociolgica especfica do boliviano, enquanto estrangeiro, como aquele
que faz parte da cidade, mas ao mesmo tempo est fora dela e a confronta
(e confrontado por ela, em grande medida), gerando tenses nesse statusambguo. Esta posio do estrangeiro se torna ainda mais aguda justamente
quando ele se estabelece definitivamente nesse novo lugar. Esses indivduosno so vistos por uma parcela da populao de Corumb como legtimos
moradores do lugar, o que implica a prpria mobilidade potencial dessegrupo, como se percebe nas trajetrias pessoais dos comerciantes bolivianosdesde o altiplano, passando por Santa Cruz de La Sierra, pela fronteira, em
Corumb, chegando at So Paulo.De acordo com Simmel, em toda a histria da humanidade a atividade
comercial que permite que o estrangeiro, como um mercador, possa viverem um lugar distante de sua origem. assim que o boliviano se insere em
Corumb, trazendo mercadorias que no so produzidas na regio, estabe-
lecendo redes que se estendem para longe da fronteira, o que, alis, permitesempre um dinamismo e uma criatividade que outras atividades produtivas,
como a agricultura, por exemplo, no possuem (os prprios rabes dacidade de Corumb se estabeleceram na fronteira com o comrcio).
Alm disso, como afirma Simmel, o estrangeiro ocupa um espaoespecfico de trabalho, que no vai ser preenchido, em geral, por outros
indivduos locais. Os bolivianos, porm, passaram a migrar para a fronteira
e para a cidade de Corumb, sobretudo a partir da dcada de 1990, comorevendedores de roupas Made in China, o que progressivamente os colo-
cou na posio de competidores com os lojistas formalizados da cidade que,em sua maioria, so de origem rabe (srios, libaneses e palestinos). Pode-
-se considerar que os rabes, estabelecidos econmica e politicamenteh algumas geraes em Corumb, j no se consideram estrangeiros,
adotando em alguns momentos a identidade de brasileiros ou corumba-
enses, passando os caracteres negativos dessa condio de forasteiro aosbolivianos. Foi precisamente essa relao intrnseca entre o estrangeiro e a
atividade comercial que permitiu aos rabes e aos bolivianos viverem em
Corumb, onde as demais posies econmicas e os postos de trabalho jse encontravam ocupados por residentes e locais. A prpria fronteira comoum lugar propcio aos negcios, pelo diferencial fronteirio (diferentes
moedas e legislaes), se torna um local atrativo para os migrantes e os
comerciantes.
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Observamos tambm que, na medida em que alguns bolivianos se tor-
nam empreendedores, patres de si mesmos e comeam a lucrar e a ascender
socialmente, aumenta o sentimento de rivalidade com setores comerciaisestabelecidos. Tanto os setores comerciais concorrentes em Corumb (so-bretudo do comrcio formal) quanto o Estado (em todas as suas esferas)
passam a explicitar esse conflito e o incmodo com a situao, buscando
reforar os controles, exigindo a tributao devida sob a hegemonia dos dis-cursos da legalidade e o reforo da condio do estrangeiro. Alm disso,
preciso dizer que a maioria dos bolivianos no vota no Brasil, tornando-seinvisveis aos olhos dos polticos locais, que no veem o grupo como um
possvel nicho eleitoral. De outro lado, percebemos que h uma resistnciapor parte dos bolivianos a partir de estratgias de sobrevivncia em tornoda sua coeso social e da sua proteo social no que diz respeito s suas
interaes cotidianas e aos seus mediadores (ethnicbrokers) e organizaestnico-nacionais, como o Centro Boliviano-Brasileiro, o Consulado Boliviano
em Corumb, e suas associaes, como a Associao de Comerciantes daFeira Bras-Bol.
As vinculaes tnicas e/ou nacionais tambm contribuem para promo-
ver cotidianamente o recrutamento de trabalhadores, a partir de redes deparentesco e localidade desde a Bolvia, principalmente do altiplano, para
Corumb (Paes de Andrade 2014). Em inmeras entrevistas e conversasinformais, ao perguntarmos aos bolivianos como vieram para Corumb, a
maioria responde que se mudou por causa da vinda de parentes ou mesmode vizinhos. Como eles fizeram a vida na fronteira, convenceram os demais
a vir para a regio onde j estavam estabelecidos. H na cidade de Corum-
b, portanto, a predominncia de trabalhadores do altiplano que passarama controlar, em grande medida, o comrcio informal da cidade, assim como
do outro lado da fronteira, o que aponta para estudos futuros a respeitodesse ethosempreendedor e comerciante, centrado nos valores do trabalho
e da poupana, vinculado etnicidade e aos laos de parentesco na Bolvia.De acordo com Guaygua (2009), o parentesco andino, considerado pelo autor
como um parentesco transnacional, o tecido social que vai estruturar as
redes migratrias na Bolvia:
No mundo andino, concebe-se a famlia como o espao no qual os distintos
membros compartilham obrigaes e estabelecem relaes de reciprocidade
e solidariedade. Nesse sentido, a famlia funciona como uma rede de rela-
es de parentesco, que facilita e d suporte ao processo migratrio, com um
papel central na hora de superar as condies adversas de sobrevivncia dos
integrantes do ncleo familiar. Neste sentido, a famlia andina em ambas as
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cidades est longe de ser uma instituio social imutvel e alheia realidade
que a rodeia. Atravs de uma variedade de mecanismos se transforma e adapta,
desafiando mudanas sociais, concepes tradicionais e fronteiras nacionaispara continuar sua funo de reproduo social diante da separao de seus
membros (Guaygua 2009:1).
As relaes de etnicidade podem prover, portanto, os recursos extrater-ritoriais, nas palavras de Hannerz (1974), a partir dos quais se estabelecem
relaes com os locais de origem na Bolvia, seja no envio de mercadoriaspara o Brasil, seja nas remessas de dinheiro para casa, ou na chegada de
novos imigrantes para a fronteira, por exemplo.
Consideraes finais: controle, vigilncia
e excluso social na fronteira
Resta saber quais os efeitos polticos dessas hierarquizaes, objetivando os
discursos de poder que tm efeitos reais na vida das pessoas na fronteira. Nos
ltimos anos, percebemos uma presena cada vez mais ostensiva do Estadobrasileiro, preocupado com os crimes fronteirios e com sua soberania, nas
reas de fronteira, entendida nessas polticas federais apenas do ponto devista da defesa e da segurana nacional e no como reas de convivncia
e de interdependncias culturais, sociais, polticas e econmicas. Ao longodo tempo, a presena dos comerciantes bolivianos e principalmente do co-
mrcio das roupas no tributadas tm fomentado aes do poder pblico,
influenciado tanto por demandas polticas locais, sobretudo da AssociaoComercial de Corumb, quanto por demandas nacionais de segurana na
fronteira e que visam coibir a entrada de produtos no tributados no Brasil.Destacamos entre as medidas do governo federal, a criao e a implantao
do Plano Estratgico de Fronteiras (PEF), a partir de 2011, que prev uma s-rie de aes e medidas no sentido de reforar a vigilncia e o monitoramento
das fronteiras brasileiras e que tiveram grande impacto local, inclusive com
o aumento do efetivo do aparato de segurana, com a presena ostensiva daFora Nacional na cidade.
Alm disso, foi implantado o Gabinete de Gesto Integrada de Fronteira
(GGIFRON), da Secretaria de Estado de Justia e Segurana Pblica Sejusp/MS, responsvel pela gesto integrada das foras de segurana nafronteira para o combate aos crimes fronteirios. Essas tecnologias de poder
atuam sobre a circulao de pessoas e mercadorias na fronteira, governa-
mentalizando11e disciplinando no apenas os moradores dessas regies,
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sobretudo aqueles que dependem da fronteira para sobreviver, mas tambmos prprios funcionrios do Estado e outros segmentos sociais (Foucault 1979).
Sob o paradigma da legalidade e da segurana nacional amparadopelo direito, esses dispositivos fronteirios proveem a captao de recursosprivados e pblicos para financiar projetos de interveno (como foi o caso
do fechamento da feira Bras-Bol), de operaes de vigilncia na fronteira e,mesmo, de obteno de lucro a partir dessa poltica de securizao (empresas
de segurana, fabricantes de armas, drones de vigilncia e todo o aparato
de tecnologia de vigilncia). Esses dispositivos operam sob a justificativa dasegurana pblica local e da defesa nacional nas fronteiras, como discur-
sos produtores de verdades e que tm como efeitos o controle efetivo e ahierarquizao de pessoas na fronteira, a partir de critrios de classificao
sociais, tnicos e nacionais. assim que se torna necessrio compreenderde que forma so postos em ao esses dispositivos fronteirios de controle
da populao (prticas, discursos, tcnicas, saberes), para entendermos a
articulao entre vrios agentes e agncias que atuam na fronteira, a ge-rando conhecimento e administrando a populao que habita essa regio,
com base em diversos princpios de legitimidade.A ideia da fronteira como limite e como rea de segurana nacional
muito importante para a histria de Corumb, cujo evento simblico ehistrico mais significativo foi a sua ocupao pelos paraguaios na Guerra
da Trplice Aliana (entre 1865 e 1867), fato que gerou a posterior ocupa-
o militar efetiva da regio. Marcia Anita Sprandel (2005) apresenta umagenealogia sobre os estudos de fronteiras e limites no Brasil a partir da
proclamao da Repblica, demonstrando como as diversas publicaesde intelectuais, gegrafos, diplomatas, militares, ou seja, de uma minoria
intelectualizada e ligada aos aparelhos de poder, contriburam desde osdiscursos, calcados na geopoltica, para a formao do Estado nacional no
Brasil, no apenas na demarcao dos limites, mas principalmente na incul-
cao de um iderio nacional. Identificamos a importncia desses discursosdebatidos pela autora, principalmente os que se referem ideia de uma
fronteira brasileira definitivamente demarcada e militarizada, aos projetosde nacionalizao das fronteiras brasileiras, ou concepo de fronteira
como foco de tenso entre pases.O texto de Sprandel nos instiga a pensar sobre a permanncia do pen-
samento geopoltico nos meios militares e diplomticos nacionais (Sprandel2005:154) que so reatualizados nas polticas pblicas atuais, sobretudo emtorno da questo da segurana nacional, cujos efeitos sociais analisamos
neste artigo. A significativa presena militar na regio (18 Brigada de In-fantaria de Fronteira, com sede em Corumb, e o 6 Distrito Naval, situado
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em Ladrio) contribui para a eficcia, a permanncia e a difuso dessesdiscursos e dessas prticas na regio.
O Estado, como afirmam Das e Poole (2008), no tende a se desarti-cular ou a se debilitar em suas margens territoriais ou sociais, muito pelo
contrrio. De acordo com as autoras, nessas margens se tornam mais visveis
os pressupostos necessrios para o funcionamento do Estado, que a conti-nuamente redefine seus modos de governar, legislar e de controlar tanto o
territrio quanto as populaes. Nesse sentido, nos interessa pensar comoo Estado pe em prtica mecanismos que podem garantir ou deslegitimar
as identidades na fronteira, tendo como smbolo paradigmtico o posto de
controle, como espao cheio de tenso no qual os pressupostos acercada segurana, da identidade e dos direitos podem ser repentinamente e,
s vezes, violentamente negados (Das & Poole 2008:24).Desde 2009, analisamos, a partir dos eventos que estudamos etnogra-
ficamente, o que consideramos ser um fechamento progressivo da fronteirapara os trabalhadores bolivianos na cidade de Corumb (como efeito dos
dispositivos fronteirios) e o reforo das hierarquias sociais em funo dareificao dos discursos de pertencimento nacional e de excluso tnica.
Segue uma breve apresentao cronolgica desses eventos recentes, que
servem para demonstrar os efeitos reais do poder onde ele exercido naprtica: no dia a dia da fronteira.
Em 2009, houve a operao Bras-Bol, da Polcia Federal e da ReceitaFederal, que na vspera do Natal apreendeu as mercadorias da feira Bras-Bol
(que funcionou por cerca de 20 anos em Corumb), criminalizando as ativi-dades da feira. Esta operao sem precedentes na cidade, por sua dimenso
e violncia simblica, abriu caminho para a deslegitimao progressiva do
trabalho informal na cidade sob o paradigma da legalidade (Costa 2010), oque veio a desembocar no fechamento definitivo da feira no ano de 2013.
No ano de 2010, acompanhamos o conflito entre taxistas brasileiros etaxistas bolivianos e a regulao do espao da rua pela Prefeitura de Co-
rumb, a partir da demanda do sindicato dos taxistas de Corumb (Costa2014). Um dos efeitos dessas medidas foi a restrio da liberdade de ir e vir
na fronteira, com a visvel diminuio de carros com placa da Bolvia rodando
na cidade de Corumb e a afirmao de um pressuposto de que os bolivianosque podem circular na cidade so aqueles que tm alguma utilidade para
Corumb, ou seja, so apenas aqueles que abastecem a cidade, sem os quaisno haveria as feiras e a venda de hortalias.
Em 2011 (ver Costa 2011), houve um protesto na fronteira, no lado bo-liviano, pedindo a negociao do governo boliviano com autoridades brasi-
leiras, criticando a Portaria 440 da Receita Federal do Brasil, que restringiu o
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trabalho dos sacoleiros e diminuiu consideravelmente o comrcio em PuertoQuijarro. Tal manifestao tambm teve carter simblico, ao denunciar o
preconceito de que so vtimas os bolivianos na fronteira e em Corumb.No ano de 2013, entre maio e junho, aconteceram duas operaes de re-
presso ao comrcio informal na cidade de Corumb de grandes propores.
A primeira delas foi o fechamento definitivo da Feira Bras-Bol, a feirinha,no dia 16 de maio, e a outra foi a operao No Caminho, deflagrada no dia
02 de junho, que fechou mais de 30 estabelecimentos comerciais, conhecidascomo as lojinhas de bolivianos na cidade. No caso da Feira Bras-Bol, a
interdio foi uma medida municipal; a operao No Caminho, por sua vez,
foi realizada pela Receita Federal, a Polcia Federal e pelo Exrcito brasileiro,demonstrando uma confluncia de interesses de setores locais de Corumb
com polticas federais de controle e vigilncia na fronteira. Essas prticasde controle e vigilncia acabam por tornar explcitas as divises nacionais
e tnicas na fronteira, a partir das quais se estruturam as estratgias dosrgos de governo, como a Polcia Federal, a Receita Federal, a Prefeitura de
Corumb e os critrios de incluso e excluso de grupos sociais na fronteira.A pesquisa aqui apresentada procurou entender, portanto, quais os
significados e as motivaes estruturais que ordenaram esses eventos,
demonstrando a eficcia do poder simblico dessas classificaes e dessesdiscursos. A partir desta anlise, observa-se que no se trata apenas de
conjunturas locais (disputas pelo comrcio local) ou nacionais (polticas desegurana na fronteira) que promoveram recentemente o recrudescimento do
controle e a deslegitimao progressiva dos bolivianos e seus descendentesem Corumb. Esses processos se baseiam tambm em estruturas simbli-
cas de longa durao construdas em torno de representaes calcadas em
antinomias como ndios/brancos, brasileiros/estrangeiros, a partir das quaisesses discursos e essas aes so postos em prtica no presente.
Da, novamente seguimos as pistas deixadas por Roberto Cardoso de Oli-veira quando afirma que um momento privilegiado para estudar empiricamente
o fenmeno da identidade quando estas identidades esto em crise, isto ,quando so defrontadas com situaes de extrema ambivalncia no interior de
sistemas sociais (Cardoso de Oliveira 2006:8). Atravs, ento, dos seus des-
caminhos que podemos compreender os processos de construo e recons-truo identitrios, pois esses momentos de crise, apresentados nos exemplos
etnogrficos de conflitos na fronteira, explicitam as relaes de poder, assimcomo as representaes de si e dos outros. A partir dessa leitura, entendemos
que a regio de fronteira entre Estados nacionais torna mais visveis essascrises identitrias, o que pode contribuir, empiricamente, para a anlise de
tais processos, nos quais se articulam identidade, etnicidade e nacionalidade.
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A passagem dos modelos tericos das reas de contato intertnico nointerior do pas para o entendimento do contato social nas fronteiras gera
debates muito interessantes e provocadores. Um dos principais aspectos quepermitem este dilogo, em nosso ponto de vista, est em pensar o papel doEstado-nao em interao com grupos sociais distintos em seu territrio
e quais conflitos e processos sociais decorrem dessa relao assimtrica depoder, no apenas entre o Estado e os moradores, mas entre grupos tnicos
e nacionais. Compreender como a identidade se reconstri nesses cenrios
ambguos de fronteira, quais discursos e representaes so produzidos equais os efeitos sociais, morais e polticos desses processos so desafios em
nossas pesquisas. Essas investigaes devem estar pautadas na busca cons-tante de trabalhar com um aparato terico, que tem como efeito moral e social
o rompimento dos preconceitos e a explicitao de formas de dominao, natradio antropolgica, de apontar caminhos para o respeito diferena e
para a considerao e o reconhecimento do outro em sua dignidade.
Recebido em 16 de julho de 2014
Aprovado em 12 de fevereiro de 2015
Gustavo Villela Lima da Costa Professor Adjunto de Antropologia na Uni-versidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail:
Notas
1A identidade contrastiva parece se constituir na essncia da identidadetnica, i.e., na base da qual esta se define. Implica a afirmao do ns diante dosoutros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirma como tal, o faz como meio dediferenciao em relao a alguma pessoa ou grupo com que se defronta. umaidentidade que surge por oposio. Ela no se afirma isoladamente (Cardoso deOliveira 2003:120).
2Agradeo a generosa leitura crtica e as sugestes feitas pela antroploga eprofessora Dra. da UNIOESTE, Regina Coeli Machado e Silva. Agradeo tambmos debates e os dilogos com o antroplogo lvaro Banducci Junior, professor Dr.da UFMS. Eventuais problemas e falhas deste artigo so, porm, de minha inteiraresponsabilidade.
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3Ladrio, fundada em 1778, possui aproximadamente 20 mil habitantes, e um enclave no municpio de Corumb. Considera-se informalmente que Ladrio eCorumb formam uma rea conurbada, j que a distncia entre os dois centros deapenas 6 km, mesma distncia entre os portos municipais.
4De acordo com Norbert Elias, o convvio dos seres humanos em sociedadestem sempre, mesmo no caos, na desintegrao, na maior desordem social, uma formaabsolutamente determinada. isso que o conceito de figurao exprime. Os seres hu-manos, em virtude de sua interdependncia fundamental uns dos outros, agrupam-sesempre na forma de figuraes especficas [...]. Essas figuraes possuem peculiari-dades estruturais e so representantes de uma ordem particular [...] (Elias 2006:26).
5
Como este artigo procura dar um sentido terico mais abrangente a pesqui-sas anteriores, utilizo novamente alguns exemplos etnogrficos e entrevistas maissignificativos publicados em outros artigos e que ganham aqui novas interpretaes,junto com a maior parte de material indito.
6De acordo com Telles (2009), esses atores sociais so portadores de compe-tncias circulatrias (quer dizer, saber passar pelas fronteiras, contornar as restries,os controles e as fiscalizaes), transformando-se em atores de amplas transfernciasinternacionais de mercadorias (Telles 2009:160).
7Ao todo contabilizamos mais de 20 barracas que vendem roupas (em geral tra-zidas da Bolvia) nas feiras de rua e apenas uma delas tinha como dono um brasileiro.
8Para Giddens, os membros de um grupo minoritrio esto em desvantagemem relao maioria da populao e tm um certo sentido de solidariedade de gru-po, de pertencerem ao mesmo grupo. A experincia de serem objeto de preconceitoe discriminao amplifica normalmente os sentimentos de lealdade e interessescomuns (Giddens 2008:250).
9
Mesmo com as variaes eventuais de cmbio, um real equivale a trs boli-vianos: 1R$ (um real) = 3Bs$ (trs bolivianos).
10Em 12 de janeiro de 2009 foi promulgado pelo governo brasileiro, atravs doDecreto n 6.737, o Acordo entre o Governo da Repblica Federativa do Brasil e oGoverno da Repblica da Bolvia para Permisso de Residncia, Estudo e Trabalhoa Nacionais Fronteirios Brasileiros e Bolivianos, que reconhece que as fronteirasque unem os dois pases constituem elementos de integrao de suas populaese permite, em seu Artigo I, ingresso, residncia, estudo, trabalho, previdncia so-cial e concesso de documento especial de fronteirioa estrangeiros residentes em
localidades fronteirias. A relao de vinculao das cidades fronteirias, nestedecreto, a seguinte: Brasileia (Brasil) a Cobija (Bolvia); Corumb (Brasil) a PuertoSuarez (Bolvia); Cceres (Brasil) a San Matas (Bolvia) e Guajaramirim (Brasil) aGuayaramirim (Bolvia). Este documento denominado localmente apenas comoDocumento Fronteirio e passou a ser utilizado, sobretudo, por comerciantes in-formais de origem boliviana em Corumb.
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11O conceito de governamentalidade definido por Foucault como o conjuntoconstitudo pelas instituies, procedimentos, anlises e reflexes, clculos e tticasque permitem exercer esta forma bastante especfica e complexa de poder, quetem por alvo a populao, por forma principal de saber a Economia Poltica, e porinstrumentos tcnicos essenciais os dispositivos de segurana (Foucault1979:293).
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Resumo
A partir de pesquisas etnogrficas realiza-das desde 2009 em Corumb, na fronteiraBrasil-Bolvia, procuro compreender al-guns aspectos das relaes de poder quese tornam mais visveis por meio da anlisedos conflitos sociais entre brasileiros ebolivianos. Para organizar os principaistemas envolvidos nessa pesquisa, o artigoest dividido em trs partes. Na primeira,
abordo as intersees entre nacionalidadee etnicidade como critrios de classificaosocial na fronteira e as representaesestigmatizantes sobre os bolivianos pro-duzidas no lado brasileiro. Na segunda,discuto as estratgias de trabalho dosbolivianos em Corumb em torno do co-mrcio informal, relacionando etnicidadee nacionalidade com as oportunidades de
trabalho e as formas de organizao social.Por fim, nas consideraes finais, buscocompreender quais os efeitos sociais dadeslegitimao progressiva dos bolivianosno lado brasileiro, manifestados nas pol-ticas de controle e vigilncia na fronteira,a partir da criminalizao das prticas detrabalho informal.Palavras-chaveFronteira, Nacionalidade,Etnicidade, Conflito, Corumb.
Abstract
Through ethnographic studies conduct-ed since 2009 in Corumb, in the Brazil-Bolivia border, I seek to unravel someaspects of power relations that becomemore visible through the analysis ofsocial conflicts between Brazilians andBolivians. To organize the main issuesinvolved in this research, the article isdivided into three parts. In the first part,
I will discuss the intersections betweennationality and ethnicity as criteria forclassification at the border and the pejo-rative representations of Bolivians pro-duced on the Brazilian side. In the sec-ond part, I discuss the work strategiesof Bolivians in Corumb in the informaleconomy, relating ethnicity and nation-ality with job opportunities and forms of
social organization. Finally, the last partof the paper seeks to understand thesocial effects of the progressive delegiti-mization of Bolivians on the Brazilianside, manifest in political control andsurveillance at the border, and throughthe criminalization of informal workpractices.Key words Border, Nationality, Ethnicity,Conflict, Corumb.