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    O DESAPARECIMENTO DOS MONSTROSJean-Jacques Courtine

    Gostaria de lhes contar uma cena que presenciei, em Paris,alguns anos atrs. Esta cena se passa no metr, na estao SaintMichel. Um homem aproxima-se do vago, trazendo nos bra-os uma espcie de pacote pesado. Abre a porta* do trem edeixa o pacote cair no cho. Imediatamente, o embrulho se desdobra e comea a mover-se. Os passageiros, atnitos, imobili-zam-se. No se trata de um objeto, mas sim de um ser humano,um homem-tronco, que se desloca sobre os braos semelhan-a de Johnny Eck, o personagem cuja imagem foi preservadapelo filme Freaks, rodado em 1932, por Todd Browning.

    Eis que um monstro irrompeu subitamente, em pleno dia,

    num vago de metr de uma estao do bairro do QuartierLatin. As portas se fecham, e o metr reparte. Umatransformao extraordinria se produziu, ento, entre os pas

    *. As portas dos trens mais antigos do metr de Paris no se abrem automa-ticamente. e sim atravs de unia manivela. (N. da T.)

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    sageiros: alguns, apressadamente, aglutinam-se diante da por-ta mais distanciada do homem sem pernas, prestes a saltar dovago na parada segu inte. Outros se escondem em seus liv rosou desaparecem por trs do jornal. Os mais indiferentes secontentam em olhar para o teto. Fico estupefato, me-nos emrazo da inquietante apario do que pelo pnico silenciosoque ela desencadeou: diante desse corpo monstruoso, asconversas silenciaram e os olhares se desviaram. O vazio sefez em torno de um monstro humano. Tal fato despertou emmim a vontade de compreender as origens e as causas desteconstrangimento instantneo, deste embarao coletivo, destefrenesi de afastamento e esquiva. O que pode-ria justific-los,uma vez que pregamos a solicitude para com a doena, e acompaixo pela deficincia? De onde vinha, ento, estaemoo sbita diante daquele corpo disforme?

    Destas questes nasceu o projeto de um livro, e desteprojeto, uma vasta pesquisa histrica sobre o espetculo dosmonstros no espao cultural ocidental': Em que momento aexibio da monstruosidade humana, anteriormente um dosdivertimentos preferidos nas feiras parisienses do AntigoRegime e nas feiras de diverses do sculo XIX, tornara-seproblemtica, e depois impossvel? De que maneira surgiueste constrangimento coletivo que eu testemunhara, e quemanifesta uma transformao fundamental das sensibilidadesem relao ao olhar dirigido deformidade humana, noOcidente? Tais questes, a meu ver, tm toda a pertinnciano contexto de um encontro que analisa a relao tica com ocorpo.

    No dia 7 de abril de 1883, os Servios de Direo da Po-lcia*de Paris receberam o seguinte requerimento:

    Venho por meio desta solicitar-vos a autorizao de exibir, em uma daspraas de vossa cidade, quer em uma barraca ou em um salo, um fenmenodos mais extraordinrios: duas crianas ligadas por um mesmo tronco. Eles tm

    cinco anos de idade, esto vivos, possuem duas cabeas, quatro braos, um s

    1. Le crpuscule des monstres. Savants, voyeurs e curieux, XVI-XXme

    sicle, Paris, Seuil ("L'univers historique").*. A Prfecture de Police de Paris o rgo que abriga os servios de

    direo da polcia municipal, jurdica e econmica. (N. da T.)

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    tronco e duas pemas. Os indivduos em questo nunca foram exibidos em Paris,mas j estiveram nas maiores cidades da Itlia e da ustria, da Sua e eminmeras cidades da Frana'.

    A carta assinada por Battista Tocci, que se apresentacomo pai destas duas "crianas-fenmeno". Tocci pai e suamonstruosa progenitura esperam um veredicto administrativo "rpido e favorvel".

    Uma pequena empresa familiar Tocci empregava maistrs pessoas excursionava pela Europa exibindo o corpomonstruoso de um de seus membros, e lucrando com isso.Entregues a uma existncia nmade, deslocavam-se de acor-do com a curiosidade pblica pelas deformidades corporais,cuja exposio tinha seus lugares prprios: freqentemente,barracas ou carroas de feiras; ocasionalmente, a sala dosfundos dos bares ou o palco do teatro; excepcionalmente, umasala de estar particular, para apresentaes privadas. Tambmencontravam, eventualmente, refgios de respeitabilidadeduvidosa, ou abrigos ainda mais precrios: em 1878, ao chegara Paris, um certo Alfred Claessen, empresrio de monstros daAmrica do Norte, quis exibir uma "menina-macaco daAlbnia", juntamente com os animais do doma-dor Bidel, queviviam em uma espcie de zoolgico no bulevar de Clichy. Foinuma mercearia abandonada de Mille End Road, escura evazia, que o Dr. Frederick Treves, cirurgio do Hospital deLondres, viu John Merrick, o homem-elefante', pela primeiravez, num cenrio empoeirado e repleto de entulhos. Nessamesma poca, Alphonse Daudet relata que no era raroencontrar expostos, nos campos abertos das feiras, "monstros,acidentes da natureza, todo tipo de excentricidades,curiosidades [...] encobertas apenas por dois grandes lenispendurados em uma corda, com o mealheiro sobre umacadeira" 4. Esta curiosidade errante encontrara, enfim, sua

    2. Arquivos da Prfecture de Police de Paris [APP]. Cdigo DA/127. Ar-quivos Tocci. Pea 1.

    3. Sir Frederick Treves, The Elephant-Man and Other Reminiscences,Londres, Cassell, 1923; consultar tambm Ashley Montague, The Elephant-man:A Study in Human Dignity, Nova Iorque, Ballantine Books, 1971, pp. 13-38.

    4. "La foire aux pains d'pices", Le Rveil, 12 de janeiro de 1880.

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    grafia e seu calendrio: os "fenmenos vivos", "curiosidades"ou "erros da natureza" eram assduos nas festas popularesque; anualmente distraam os burgos modorrentos do interiorou com mais freqncia, vinham apimentar a vida quotidianado pblico das grandes cidades.

    Aproximadamente um sculo nos separa da chegada, aParis, de Giovanni e Giacomo Tocci, que a natureza haviatornado inseparveis. No entanto, a simples evocao do es-petculo, do qual eram ento os atores involuntrios, parecechegar a ns de um passado muito mais remoto, de uma eraextinta da cultura popular, de um tempo arcaico e cruel dacuriosidade. O pblico abandonou as atraes s quais acor-riam as multides de outrora, nos "entra e sai"5da Cours deVincennes e da Foire du Trne. Nestas festas do olhar quecaracterizavam os ajuntamentos de diverses populares do

    sculo XIX, a curiosidade pelas monstruosidades humanasmovia-se rdea solta. Os olhos pousavam sem vergonhasobre as bizarrias anatmicas: "fenmenos vivos", deformi-dades humanas ou animais extraordinrios das barracas,morfologias exticas, espcimes em bocais ou patologias se-xuais dos museus de cera da anatomia; truques e iluses detica: "decapitados falantes", "mulheres-aranha" ou "mulhe-res lunares"; museus realistas, com suas ocorrncias sangrentasou seus episdios sobre a vida nas colnias penais. Nos confinsde uma antropologia ingnua, de uma feira de rgos e de ummuseu de horrores, o espetculo dos monstros era lucrativo.

    5. Nas festas populares do sculo XIX, denominava-se entre-sort (literal-mente "entra e sai", pois nela se entrava e dela se saa quase imediatamente), abarraca na qual os fenmenos, reais ou forjados, eram apresentados aos curiosos.

    A apelao corresponde ao que se chamava de .side-show na Amrica do Norte,no sculo XIX, designando as tendas anexas que acompanhavam o circo, assimcomo as barracas das feiras, dos carnavais ou dos parques de atraes. O termo

    freak -show era reservado exibio de curiosidades humanas. Entretanto, tantoem ingls quanto em francs, os termos freak, curiosit e phnomne abar-cavam exibies corporais bastante diversificadas: enfermos e deficientes fsicos,etnias longnquas, tatuados, engolidores de espadas, e, freqentemente, simplesfraudes, mais ou menos engenhosas, cf. R. Bogdan, Freak-Show, PresentingHuman Oddities for Amusenrent and Profit, Chicago, The University of Chi-cago Press, 1988, p. 3 e pp. 25-68.

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    Atualmente, difcil conceber a fora atrativa exercidapela teatralizao dos fenmenos nas feiras populares sobre acultura visual da segunda metade do sculo XIX. Em Pa-ris,os curiosos se empurravam, e as barracas se multiplicavamastronomicamente na Foire du Trne, de 1850 at a ltimadcada do sculo. As exibies teratolgicas, que nela semultiplicam rapidamente, transbordam os limites da feira,espalham-se pelos bulevares, povoam permanentemente osnovos locais de prazer e ameaam invadir a cidade6. Mesmoentusiasmo na Inglaterra: os londrinos lotam os trens e vopassar o dia contemplando as estranhas criaturas exibi-das nasfeiras de Croydon e Barnet'. Em Nova Iorque, o MuseuAmericano, fundado por Phineas Taylor Barnum, em 1841,em pleno centro de Manhattan, viria a ser a atrao maisfreqentada da, cidade e, provavelmente, uma das mais po-

    pulares do pas'. Nelas, os monstros constituem o ponto altodo espetculo: no imvel da Broadway, passava-se o domin-go em famlia, fazendo piquenique perante gigantes, anes,albinos e siameses, para a alegria das crianas e a edificaode todos. preciso insistir: tais distraes no eram nemduvidosas nem confidenciais, como a percepo anacrnicaatual poderia sugerir. O que Barnum inventou esta aclima-

    6. impossvel estabelecer o recenseamento das curiosidades humanas queforam exibidas em Paris, ao longo do sculo XIX, devido quantidade, precariedade e disperso que caracterizaram tais exibies. Contudo, pode-moster uma noo de alguns espetculos de fenmenos que impressionaramsuficientemente os contemporneos a ponto de permanecer na memria do s-culo: basta consultar as listas anuais de tais espetculos estabelecidas por Char-les Simond em Paris, 1800-1900, 3vols., Paris, Plon, 1900.

    7. Conferir: R. Malcolmson, Popular Recreation in English Society, 1700-1850, Cambridge, Cambridge University Press, 1973; P. Bailey, Leisure andClass in Victorian England, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1978; H. Cun-ningham, Leisure in the Industrial Revolution, Londres, Croom Helm, 1980; J.K. Walton & J. Walvin, (dir.), Leisure in Britain, 1780-1939, Manchester,

    Manchester University Press, 1983; P. Stallybrass & A. White, The Politics andPoetics of Trancgression, Ithaca, Cornell University Press, 1986, pp. 27-43.

    8. De 1841 a 1868, ano em que o museu foi destrudo por um incndio,estima-se em 41 milhes o nmero de seus visitantes. Conferir R. Bogdan, ibi-dem p. 32-35; N. Harris, Humbug, Chicago, The University of Chicago Press,1973; e P. T. Barnum, The Life of P.T. Barnum, Nova Iorque, Redfield, 1855;Struggles and Triumphs, Nova Iorque, Arnerican News Company, 1871.

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    tao de monstros num centro de diverses que organizavaconferncias, apresentava demonstraes cientficas, propu-nha espetculos de magia, de dana e peas de teatro nopassava de uma "Disneylndia" da teratologia, uma resposta dapoca a questes que nunca deixaram de surgir desde ento:como distrair os habitantes da cidade, como fazer frutificareste grande mercado do olhar, latente nas multides citadinasda era industrial? essencial frisar que o espetculo e ocomrcio de monstros, longe de ser uma atividade marginal,serviu de campo de experimentao para a indstria dodivertimento de massa na Amrica do sculo XIX.

    Com efeito, tanto na Europa quanto na Amrica do Nor-te, as feiras de diverses constituram uma primeira verso deum laboratrio de fantasmagorias, que o sculo XIX aper-feioar pouco a pouco ao constituir uma indstria da diver-

    so de massa. Nesse aspecto, o caso americano exemplar: em1853, a organizao da exposio universal de Nova Iorque confiada a Barnum, o fundador do maior museu popular deteratologia. Entre os diversos espetculos teatrais ou musicais,Barnum imediatamente quis incluir uma galeria demalformaes anatmicas. O gnio de Barnum especifi-camente americano: enquanto as atividades nas festas popu-lares francesas permanecem num estgio artesanal, apesar deformas de concentrao mais acentuadas na virada do sculo,Barnum um empresrio capitalista moderno, o primeiro deuma longa linhagem de industriais do espetculo. Antes dele, omonstro era pouco mais do que uma bizarria celibatria dandoum lucro marginal em uma pequena economia da curiosidade;depois dele, tornou-se um produto dispondo de um valoragregado considervel, comercializvel em um mercado demassas, satisfazendo uma demanda crescente e suscitandoincessantemente novos apetites do olhar'.

    Sob esse aspecto, Disney ser o herdeiro direto de Bar-

    num: mesmo sentido de organizao, mesmo talento publi

    9. Esta mudana foi considervel. Antes de sua incorporao aos museus,as curiosidades humanas flutuavam de modo precrio e desarraigado. Em seligando aos museus e, mais tarde, aos circos, os monstros e suas curiosidadesforam assimilados por uma indstria em pleno desenvolvimento, a indstria dodivertimento popular, cf. R. Bogdan, op.cit., p. 34.

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    citrio. Mas, um Barnum que saber, em tempo hbil, subs-tituir a mulher barbada por Branca de Neve, e retirar os seteanes do estrado duvidoso do freak-show, reciclando-os nouniverso assptico da representao cinematogrfica. Narvore genealgica dos personagens familiares que povoam omundo 'adorvel e protetor das fices infantis, no precisovoltar muito no tempo para descobrir os estranhos primosque viviam nas barracas do "entra e sai". Das barracas, feiras e"museus" de outrora aos parques de atraes de hoje, umametamorfose realizou-se, que podemos chamar depasteurizao das formas de divertimento popular, medi-daque se desenvolveu uma indstria de distraes de massa.Diante do apogeu, crepsculo e eventual desaparecimento dosmonstros das feiras, deparamos com um momento essencialdesta mutao visual da cultura popular.

    Com efeito, gradualmente, os olhares passaram a hesitarna estrada da festa, matizaram-se pelo constrangimento, e de-pois, desviaram-se. Esta curiosidade que, h tanto tempo, exercia-se com uma espcie de alegre inocncia, tornou-sesuspeita, e seus prazeres foram considerados mrbidos: acincia dos monstros, pacientemente elaborada pelo sculoXIX, vai reivindicar a posse de seus objetos, destituindo talcuriosidade de qual-quer legitimidade "cientfica" que elaporventura ainda atribusse a si mesma. A literatura teratolgicafloresce ao longo de todo o sculo 10: mdicos, naturalistas eantroplogos se debruam sobre a questo dos fenmenos:examinam-nos, apalpam-nos, medem-nos, descrevem-nos edeles se apropriam. Quanto s autoridades administrativas,sacudindo o p de uma longa indiferena, subitamente passama se preocupar com os perigos aos quais a exibio decuriosidades expe a ordem e a moral pblica. Queremenquadr-la, e em seguida, querem v-la desaparecer.Manifesta-se uma nova sensibilidade por essas deformidadesque vivem a misria de uma existncia precria sobre os palcosdos teatros das feiras, "mulheres-macaco" e "homens-elefante". Pouco a pouco, ser reconhecida a humanida

    10. Desde os trabalhos de Geoffroy Saint Hilaire pai e filho, entre 1820 e1840; sobre este assunto, conferir, entre outros, J-L Fisher, Monstres, histoiredu corps et de ses dfauts, Paris, Syros Altemative, 1991.

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    de e experimentado o sofrimento destes grotescos agrupamen-tos de membros que provocavam a estupefao e a repulsa,destas formas torturadas sobre as quais choviam chistes e im-proprios, destas feiras bestializadas que suscitavam medo e,s vezes, excitavam a crueldade. Esta ser uma das descober-tas cientficas, literrias e estticas do sculo XIX: os mons-tros tm uma alma, so humanos, terr ivelmente humanos.

    Formas inditas de interesse surgem ento, chegando aoponto da admirao arrebatada: o sculo XIX ter suas curio-sidades clebres; anes conhecero a glria; siameses conquis-taro a fortuna; gigantes encontraro o amor; monstros serovistos mesa com os reis. Na poca vitoriana, proliferam asencenaes romanescas da monstruosidade. Suas razes soantigas, subitamente renovadas por uma conciliao poderosa eambgua entre o voyeurismo e a compaixo. A prpria rai-nha Vitria, to pudica, encanta-se por Charles Stratton, o "General Tom Pouce" fabricado por Barnum. O monstro j erauma conhecida e inesgotvel fonte de fico literria, aolongo de todo o sculo XIX. Entretanto, sua notoriedade es-tende-se muito alm da desfrutada pelo corcunda que assom-brava as torres de Notre-Dame de Paris. Inventa-se umaabundante vida sentimental para o general miniatura. A im-prensa popular dela se apropria, tanto na Europa quanto naAmrica do Norte, concedendo-lhe um eco comparvel aquelereservado aos romances dos membros da coroa. Alexandra,Princesa de Gales, vai tomar um ch com John Merrick, ohomem-elefante, no Hospital de Londres, a instituio que oacolhera. Envia-lhe uma foto com dedicatria, que ser co-locada em destaque sobre a cabeceira deste homem desafor-tunado. Ele escreve para ela, demonstrando sua gratido. Temincio uma correspondncia. As classes mdias britnicas,comovidas s lgrimas, oferecem abundantes doaes. Emsuma, o amor pelo rgo bizarro e o apetite por traos disfor-mes difunde-se tanto na literatura erudita" quanto no interior

    11. A literatura erudita que a poca vitoriana consagrou s anomalias cor-porais, semelhana de seu objeto, gigantesca. Encontramos uma sumria eum tanto anedtica recapitulao no livro de Martin Howard: VictorianGrotesque, Londres, Jupiter Books, 1977; uma vasta compilao cientfica depo

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    da alta sociedade. Ocasionalmente, chegam a penetrar o uni-verso fechado dos lbuns de fotografia, na categoria de objetosdivertidos ou curiosos estranha vizinhana para os retratosde famlia. Cada poca tem seus fetiches: o final do sculo revelar os seus nos palcos obscuros das barracas do "entra e sai".

    O apogeu dos monstros anuncia, contudo, seu prpriodeclnio: a partir dos ltimos anos do sculo, um teatro mui-to antigo da monstruosidade corporal ver seusfreqentadores partindo um a um; os espectadores se tornarocada vez mais raros12. Depois, o comrcio dos fenmenosdiminuir rapidamente nas primeiras dcadas do sculo XX,periclitando depois da guerra, tanto na Europa quanto naAmrica do Norte. Nem por isso a exibio da deformidadedesaparecer: o espetculo dos monstros vem satisfazernecessidades psicolgicas demasiado profundas, e inscreve-

    se em uma cultura visual muito antiga para volatilizar-se tocompleta-mente. Mas, a curiosidade gosta de perambular. Osolhos buscaro sensaes novas, e o pblico desejar outrasdistraes: a indstria do divertimento que se instaura navirada do sculo urbana, tcnica e moderna. Seusdispositivos alteraro a antiga cultura da curiosidade que atento assegurara o sucesso dos espetculos populares: seusatrativos parecem subitamente artificiais, suas novidadesparecem gastas e seus truques, primitivos. O declnio dateatralizao dos monstros contemporneo da inveno docinematgrafo.

    Mas o prprio cinematgrafo constitui, por sua vez, oresultado de uma longa srie de inovaes tcnicas que reno-varam a produo de iluses ticas ao longo de todo o sculoXIX: sucesso do panorama e do diorama, inveno da foto-grafia, reproduo mecnica e proliferao de imagens, emer-gncia da publicidade, mas tambm as "fantasmagorias" das

    ca pode ser encontrada em G. Gould & W. Pyle, Anomalies and Curiosities ofMedicine, Nova Iorque, Bell, 1896.

    12. R. Bogdan situa mais tarde, em torno dos anos de 1940, o verdadeirodeclnio do comrcio de monstros na Amrica do Norte. Quanto Frana, osprimeiros sinais so perceptveis muito antes. Cf. R. Bogdan, op.cit., e tambm "Lecommerce des Monstres", Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales, 104,setembro de 1994, p. 34-36.

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    ruelas e das grandes lojas, vistas panpticas das exposiesuniversais, canalizao do olhar dentro dos museus... O sen-timento da vida citadina , dessa forma, acompanhado pelaimerso num universo visual onde os olhos dos transeuntesso solicitados e orientados, como nunca antes haviam sido,por dispositivos inditos que transformam profundamente asmaneiras de ver, deslocando a posio do sujeito que observa,multiplicando os ngulos da curiosidade, modificando pro-gressivamente os apetites visuais do pblico e preparando osolhares para um outro exerccio desta inesgotvel atrao pelogrotesco e pelo disforme. O monstro abandonar o palco einvadir as telas. Nunca deixou de ocup-la desde ento.

    A se encontra a pertinncia histrica deste fato aparen-temente insignificante, cujos traos foram conservados porarquivos histricos, ao qual podemos voltar neste ponto: uma

    autorizao de exibio, solicitada s autoridades de Paris em1883 por um cidado italiano que praticava o comrcioitinerante de uma aberrao gentica. A sorte reservada a estarequisio, ento rotineira, prenuncia a grande transformaodas sensibilidades em relao ao espetculo do corpo e de suasdeformidades.

    Com efeito, a Direo da Polcia opor-lhe- uma recusacategrica. "No concordo com a exibio pblica de taismonstruosidades. Isto compete exclusivamente Faculdade deMedicina", a negativa peremptria do funcionrio res-ponsvel. Nela reside todo o interesse do caso Tocci, indi-cando o momento em que a exposio de monstruosidadeshumanas deixa de ser banal para tornar-se chocante. Demons-tra que um limiar foi ultrapassado na tolerncia ao espetculode deformidades corporais; que a definio dos objetos, atorese meios de exerccio da curiosidade pelos monstrostransformou-se. preciso lembrar que data deste perodo acriao, pela psiquiatria, das categorias nosogrficas de vo-

    yeur e de "exibicionista", particularmente no trabalho deCharles Lasgue, mdico principal do manicmio adminis-trado pela Direo da Polcia. Mas, as condies da proibioultrapassam a recusa oposta a Tocci: anunciam o destino dosfenmenos das feiras no sculo XX, isto , o seu iminentedesaparecimento dos lugares de divertimento pblico, a

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    preocupao moral da qual eles se tornam objeto, seu confi-namento no espao mdico da investigao cientfica.

    De fato, a partir de 1880, inmeros indcios confirmamque o caso Tocci no um caso isolado. Em todo o mbitodas distraes populares europias surge uma nova sensibili-dade perante a misria anatmica e moral das curiosidadeshumanas. O caso de John Merrick igualmente exemplar: em1883, em Londres, a exibio do homem-elefante proibida.A crueldade e o horror do espetculo so insuportveis paraum mdico filantropo como Treves, na ocasio em que ele opresencia pela primeira vez. "O demonstrador, como se sedirigisse a um cachorro, interpelou-o brutalmente: 'De p!'. Acoisa se levantou lentamente, deixando cair o tecido quecobria sua cabea e suas costas. Surgiu ento o espcimehumano mais repulsivo que eu jamais contemplara"13. Ori-

    ginrio de um priplo por inmeras feiras do Norte da Euro-pa, o homem-elefante tem sua estadia proibida na maior partedos locais de divertimento popular. Desprovido de seu valormercantil, John Merrick ser internado no Hospital de Lon-dres graas solicitude de Treves, e nele terminar serena-mente sua pattica existncia, custeado pela compaixo pblica.Com efeito, o homem-elefante tem um destino exemplar: umexibidor de curiosidades e um mdico competem por um monstro, querendo satisfazer dois tipos de curiosidade e tirar doistipos de lucro. Apoiado pelo rigor das autoridades e pelo in-teresse caritativo da opinio pblica, o mdico leva a melhorsobre o saltimbanco, o hospital suplanta o "entra e sai"; ocorpo do monstro, arrancado do teatro do disforme, torna-selegitimado sujeito de observao mdica e objeto de amormoral. Um longa pgina da histria dos monstros humanosseria virada.

    Contudo, uma pergunta persiste: uma vez estabelecida agenealogia desta compaixo pelos monstros humanos, como

    compreender o insuportvel constrangimento do qual fui tes-temunha, na ocasio que descrevi? O exemplo de John Mer-rick eloqente: o monstro s pode usufruir dos cuidadosmdicos e da emoo caridosa da opinio pblica sob a con

    13. Sir F. Treves, The Elephant Man, op.cit., p. 36.

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    dio de desaparecer do olhar pblico, isto , contanto queseja coletivamente recalcado este antiqssimo prazer do olharque conduzia as multides do passado a empurrar as portasdo teatro popular da monstruosidade. E nisso consiste o pa-radoxo desta compaixo dirigida ao corpo monstruoso oudisforme, e, em termos gerais, da compaixo que presidiu elaborao da noo de "deficincia" ao longo do sculo: oamor por ela manifestado aumenta em proporo ao distan-

    ciamento do objeto. O monstro pode proliferar na distnciavirtual das imagens e discursos, mas sua proximidade carnalperturba. Compreendemos assim o constrangimento coletivodos passageiros daquele vago: com a sbita irrupo do mons-tro, no puderam escapar da desagradvel experincia do re-torno do recalcado.