Upload
pedro-melo
View
589
Download
31
Embed Size (px)
Citation preview
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS: UM ENSAIO SOBRE O MÉTODO
Robert W. Cox
Há algum tempo, comecei a ler os Cadernos do cárcere, de Gramsci. Nesses fragmentos, escritos numa prisão fascista entre 1929 e 1935, o ex-líder do Partido Comunista Italiano estava preocupado com o problema de entender as sociedades capitalistas das décadas de
1920 e 1930, e, principalmente, com o significado do fascismo e as possibilidades de construir uma forma alternativa de Estado e sociedade baseada na classe operária. O que ele tinha a dizer girava em torno do Estado, da relação da sociedade civil com o Estado e da relação da política, da ética e da ideologia com a produção. Não é de surpreender que Gramsci não lenha diretamente muito a dizer sobre
relações internacionais. Apesar disso, achei que seu pensamento ajudava a compreender o significado da organização internacional com a qual eu estava ocupado naquela época. Particularmente valioso foi
seu conceito de hegemonia, mas também foram valiosos vários con
ceitos correlatos que ele elaborou para si mesmo ou desenvolveu para
outros. Este ensaio mostra minha forma de entender o que Gramsci
queria dizer com hegemonia e esses conceitos afins, e sugere como penso que eles podem ser adaptados, preservando seu significado
essencial, para compreender os problemas da ordem mundial. Ele
não pretende ser um estudo crítico da teoria política de Gramsci, e
sim apenas uma derivação de algumas idéias dessa teoria política para uma revisão da teoria corrente das relações internacionais. 1
1 Este ensaio foi originalmente publicado em Millenium, v. 12, n. 2, p. 162-175, 1983.
f 2' I I
102 • ROBERT W. Cox
Gramsci e hegemonia
Os conceitos de Gramsci foram todos derivados da história -tanto de suas reflexões sobre os períodos da história que ele achava que ajudavam a lançar uma luz explicativa sobre o presente quanto de sua própria experiência pessoal de luta política e social. Entre elas há reflexões sobre o movimento dos conselhos operários do início da década de 1920, sua participação na Terceira Internacional e sua oposição ao fascismo. As idéias de Gramsci sempre estiveram relacionadas ao seu próprio contexto histórico. Mais ainda; ele estava sempre ajustando seus conceitos a circunstâncias históricas específicas. Não é possível usar os conceitos de maneira frutífera se eles forem abstraídos de suas aplicações, pois ao serem assim abstraídos, suas diversas utilizações parecem conter contradições ou ambigüidades.2 No pensamento de Gramsci, um conceito é vago e flexível, e só adquire precisão quando posto em contato com determinada situação que ele ajuda a explicar - contato que também desenvolve o significado do conceito. Nisso reside a força do historicismo de Gramsci, assim como sua capacidade explicativa. Mas o termo "historicismo" costuma ser mal-entendido e criticado por aqueles que procuram uma forma de conhecimento mais abstrata, sistemática, universal e a-histórica.3
Gramsci atrelou coerentemente seu pensamento ao objetivo prático da ação política. Em seus escritos da prisão, sempre se referia ao marxismo como "a filosofia da práxis".4 Poderíamos supor que, ao menos em parte, isso se deve ao fato de querer enfatizar o objetivo revolucionário prático da filosofia. Em parte também pode ter sido para mostrar sua intenção de contribuir para uma corrente de pensamento vigorosa, em processo de desenvolvimento, a qual recebeu seu impulso inicial de Marx, mas não está circunscrita para sempre à
2 Esse parece ser o problema de Anderson (1976-1977), que afirma ter encontrado incoerências nos conceitos de Gramsci.
3 Sobre essa questão, ver Thompson (1978), que contrasta uma posição historicista análoga à de Gramsci com o estruturalismo filosófico e abstrato de Althusser. Ver "Marxism is not Historicism", em Althusser e Balibar (1979).
• Afirma-se que, com isso, Gramsci quis evitar o confisco de suas notas pelo censor da prisão, quem, se isso é verdade, devia ser particularmente obtuso.
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + J 03
obra deste. Nada poderia estar mais longe de suas intenções do que um marxismo que represente uma exegese dos textos sagrados, cujo objetivo seria refinar um conjunto atemporal de categorias e conceitos.
Origens do conceito de hegemonia
Existem duas correntes principais que levam à idéia gramsciana de hegemonia. A primeira nasceu dos debates da Terceira Internacional sobre a estratégia da Revolução Bolchevique e da criação de um Estado socialista soviético; a segunda, dos textos de Maquiavel. Ao seguir a primeira corrente, alguns comentaristas procuraram contrastar o pensamento de Gramsci com o de Lenin, associando Gramsci à idéia de uma hegemonia do proletariado, e Lenin, à ditadura do proletariado. Outros comentaristas sublinharam sua concordância básica. 5 O importante é que Lenin se referia ao proletariado russo tanto como uma classe dominante quanto dirigente; o domínio implicando ditadura, e a direção implicando liderança com o consentimento das classes aliadas (principalmente o campesinato). Na verdade, Gramsci apropriou-se de uma idéia corrente nos círculos da Terceira Internacional: os operários exerceriam hegemonia sobre as classes aliadas, e ditadura sobre as classes inimigas. Mas essa idéia foi aplicada pela Terceira Internacional somente no que diz respeito à
classe operária e expressava o papel da classe operária na liderança de uma aliança de operários, camponeses e, talvez, alguns outros grupos potencialmente simpatizantes da transformação revolucionária.6
5 Buci-Glucksmann (1975) coloca Gramsci inequivocamente na tradição leninista. Tanto Portclli (1972) quanto Macciocchi (1974) contrastam Gramsci e Lenin. A meu ver, a obra de Buci-Glucksmann é muito mais bem articulada. Ver também Mouffe, 1979; Sassoon, 1982.
6 Essa noção se harmoniza bem com a avaliação que Gramsci fez da situação da Itália no início da década de 1920: a classe operária sozinha era frágil demais para assumir toda a carga da revolução e só poderia fundar um novo Estado por meio de uma aliança com o campesinato e alguns elementos da pequena burguesia. Na verdade, Gramsci considerava o movimento de conselhos operários uma escola de liderança desse tipo de coalizão e suas atividades antes de ser preso eram dirigidas à construção dessa coalizão.
104 • ROBERT W. Cox
A originalidade de Gramsci consiste no viés que deu à primeira corrente: começou a aplicá-la à burguesia, ao aparato ou mecanismos de hegemonia da classe dominante.7 Isso lhe permitiu distinguir os casos em que a burguesia havia alcançado uma posição hegemônica de liderança sobre as outras classes daqueles em que não havia alcançado. No Norte da Europa, nos países onde o capitalismo se estabeleceu primeiro, a hegemonia burguesa foi a mais completa. Essa hegemonia envolveu necessariamente concessões para subordinar classes em troca da aquiescência à liderança burguesa, concessões que poderiam levar, em última instância, a formas de democracia social que preservam o capitalismo ao mesmo tempo em que o tornam mais aceitável para os trabalhadores e a pequena burguesia. Como sua hegemonia estava firmemente entrincheirada na sociedade civil, a burguesia poucas vezes precisou, ela própria, administrar o Estado. Aristocratas proprietários de terras na Inglaterra, os junkers na Prússia ou um pretendente renegado ao cetro de Napoleão 1 na França, todos esses governantes serviam, desde que reconhecessem as estruturas hcgcmônicas da sociedade civil como os limites básicos de sua ação política.
Essa visão da hegemonia levou Gramsci a ampliar sua definição de Estado. Quando o aparato administrativo, executivo e coercitivo do governo estava de fato sujeito à hegemonia da classe dirigente de uma formação social inteira, não fazia sentido limitar a definição de Estado àqueles elementos do governo. Para fazer sentido, a noção de Estado também teria de incluir as bases da estrutura política da sociedade civil. Gramsci pensava nessas bases cm termos históricos concretos - a Igreja, o sistema educacional, a imprensa, todas as instituições que ajudavam a criar nas pessoas certos tipos de comportamento e expectativas coerentes com a ordem social hegemônica. Por exemplo, Gramsci dizia que as lojas maçônicas da Itália constituíam um vínculo entre os funcionários do governo que entraram na maquinaria estatal depois da unificação da Itália, e, por isso, deviam ser consideradas parte do Estado quando o objetivo fosse avaliar sua es-
7 Ver Buci-Glucksmann, 1975, p. 169-190.
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS • 105
trutura política mais ampla. Portanto, a hegemonia da classe dominante era uma ponte que unia as categorias convencionais de Estado e sociedade civil, categorias que preservavam certa utilidade analítica, mas que, na realidade, haviam deixado de corresponder a entidades separáveis.
Como dissemos acima, a segunda corrente que levou à idéia gramsciana de hegemonia percorreu um longo caminho desde Maquiavel, e ajuda a ampliar ainda mais o alcance potencial da aplicação do conceito. Gramsci refletiu sobre o que Maquiavel havia escrito, particularmente em O príncipe, em relação ao problema de fundar um novo Estado. No século XV, Maquiavel estava interessado em encontrar a liderança e a base social de apoio para uma Itália unificada. No século XX, Gramsci estava interessado em encontrar a liderança e a base de apoio para uma alternativa ao fascismo. Enquanto Maquiavel considerara o príncipe individual, Gramsci considerava o príncipe moderno: o partido revolucionário engajado num diálogo constante e produtivo com sua própria base de apoio. Gramsci retirou de Maquiavel a imagem do poder como um centauro, metade homem, metade animal, uma combinação necessária <le consentimento e coerção.8 Enquanto o aspecto consensual do poder está em primeiro plano, a hegemonia prevalece. A coerção está sempre latente, mas só é aplicada em casos marginais, anômalos. A hegemonia é suficiente para garantir o comportamento submisso da maioria das pessoas durante a maior parte do tempo. A conexão com Maquiavel libera o conceito de poder (e o de hegemonia como uma forma de poder) de um vínculo com determinadas classes sociais históricas e lhe permite uma esfera maior de aplicação às relações de domínio e subordinação, inclusive, como vamos sugerir abaixo, às relações de ordem mundial. Mas isso não separa as relações de poder de sua base social (isto é, no caso das relações de ordem mundial, transformandoas em relações entre Estados concebidas de forma estreita), dirigindo sua atenção, ao contrário, para o aprofundamento da consciência dessa base social.
• Gramsci, 1971, p. 169-190.
1 !
1
!
\
106 + ROBERT W. Cox
Guerra de movimento e guerra de posição
Pensando na primeira influência em seu conceito de hegemonia, Gramsci refletiu sobre a experiência da Revolução Bolchevique e procurou determinar que lições podiam ser tiradas dela para a tarefa da revolução na Europa Ocidental.9 Chegou à conclusão de que as circunstâncias da Europa Ocidental eram muito diferentes daquelas da Rússia. Para ilustrar as diferenças de circunstâncias e as conseqüentes diferenças nas estratégias necessárias, recorreu à analogia militar de guerras de movimento e guerras de posição. A diferença básica entre a Rússia e a Europa Ocidental estava nas forças relativas do Estado e da sociedade civil. Na Rússia, o aparato administrativo e coercitivo do Estado era formidável, mas vulnerável, enquanto asociedade civil era subdesenvolvida. Uma classe operária relativamente pequena, liderada por uma vanguarda disciplinada, conseguiu derrubar o Estado numa guerra de movimento e não encontrou nenhuma resistência efetiva do restante da sociedade civil. O partido de vanguarda podia se dedicar à fundação de um novo Estado, combinando a aplicação da coerção sobre os elementos rccalcitrantes com a construção do consentimento entre os outros. (Essa análise dizia respeito, em parte, ao período da Nova Política Económica, antes da coerção começar·a ser aplicada em escala maior contra a população rural.)
Por outro lado, a sociedade civil da Europa Ocidental, sob a hegemonia burguesa, estava muito mais plenamente desenvolvida e assumiu múltiplas formas. Uma guerra de movimento poderia muito bem, em condições de revolta excepcional, permitir que uma vanguarda revolucionária tomasse o controle do aparato de Estado; mas, devido à capacidade de recuperação da sociedade civil, uma façanha desse tipo estaria, a longo prazo, fadada ao fracasso. Gramsci descreveu o Estado na Europa Ocidental (nessa descrição, devemos entender o Estado em seu sentido limitado de aparato administrativo, governamental e coercitivo, e não pelo conceito ampliado de Estado mencionado acima) como "uma trincheira avançada por trás da qual há um poderoso sistema de fortalezas e casamatas".
9 O termo "Europa Ocidental" refere-se, aqui, à Inglaterra, França, Alemanha e Itália das décadas de 1920 e 1930.
·.-.·.
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + 107
Na Rússia, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia uma relação apropriada entre Estado e sociedade civil e, quando o Estado vacilava, a estrutura firme da sociedade civil revelava-se imediatamente. (Gramsci, 1971, p. 238)
Por isso é que Gramsci dizia que a guerra de movimento não poderia ser efetiva contra os Estados-sociedades hegemônicos da Europa Ocidental. A estratégia alternativa é a guerra de posição, que lentamente constrói os fundamentos dos alicerces sociais de um novo Estado. Na Europa Ocidental, a luta tinha de ser vencida no seio da sociedade civil, antes que um assalto ao Estado pudesse ter êxito. Um ataque prematuro ao Estado, por meio de uma guerra de movimento, só revelaria a fraqueza da oposição e levaria à reimposição do domínio burguês, à medida que as instituições da sociedade civil reafirmassem seu controle.
As implicações estratégicas desta análise são claras, mas cheias de dificuldades. Construir as bases de um Estado e de uma sociedade civil alternativos sob a liderança da classe operária significa criar instituições e recursos intelectuais alternativos dentro da sociedade existente e construir pontes entre os operários e as outras classes subordinadas. Significa construir ativamente uma contra-hegemonia no interior de uma hegemonia estabelecida, e, ao mesmo tempo, aumentar a resistência contra as pressões e as tentações de recair na busca de ganhos incrementais para grupos subalternos no seio das estruturas da hegemonia burguesa. Essa é a linha que separa a guerra de posição, como estratégia revolucionária de longo prazo, e a democracia social, como política para obter ganhos dentro da ordem estabelecida.
Revolução passiva
Contudo, nem todas as sociedades da Europa Ocidental eram hegemonias burguesas. Gramsci distinguia dois tipos de sociedade. Um tipo havia passado por uma revolução social completa e desen
volveu inteiramente suas conseqüências em novos modos de produção e relações sociais. Nesse sentido, a Inglaterra e a França foram os casos que chegaram mais longe do que a maioria dos outros países. O outro tipo eram as sociedades que, por assim dizer, tinham importa-
108 + ROBERT W. Cox
do, ou lhes haviam sido impostos, aspcctos de uma nova ordem criada
no estrangeiro, sem que a antiga ordem tivesse sido substituída. Esse segundo tipo entrou numa dialética de revolução-restauração que tendeu a ser bloqueada, pois nem as novas forças nem as antigas poderiam triunfar. Nessas sociedades, a nova burguesia industrial não chegou à hegemonia. O impasse resultante com as classes sociais tradicionalmente dominantes criou as condições do que Gramsci chamou de "revolução passiva": a introdução de mudanças que não envolveram nenhuma sublevação de forças populares. 10
De acordo com a análise gramsciana, um exemplo típico de revolução passiva é o cesarismo: um homem forte intervém para resolver o impasse entre forças sociais equivalentes e opostas. Gramsci admitia a existência tanto de formas progressistas quanto reacionárias de cesarismo: progressistas, quando o governo forte preside um processo mais ordenado de criação de um novo Estado; reacionárias, quando estabiliza o poder existente. Napoleão 1 foi um caso de cesarismo progressista, mas Napoleão III- o exemplo clássico de cesarismo reacionário - era mais representativo do tipo com maior probabilidade de surgir no decorrer de uma revolução passiva. Aqui a análise de Gramsci é praticamente idêntica à de Marx em O dezoito brumário
de Luís Bonaparte: a burguesia francesa, incapaz de governar diretamente com seus próprios partidos políticos, contentou-se cm desenvolver o capitalismo sob um regime político que tinha sua base social no campesinato, classe social desarticulada e desorganizada, cujo representante virtual Bonaparte podia alegar ser.
Na Itália do final do século XIX, a burguesia industrial do Norte, a classe que mais tinha a ganhar com a unificação do país, não estava em condições de dominar a península. A base para o novo Estado passou a ser uma aliança entre a burguesia industrial do Norte e os proprietários de terra do Sul - uma aliança que também oferecia benefícios à pequena burguesia dependente (principalmente do Sul)
mGramsci tomou o termo "revolução passiva" emprestado do historiador napolitano Vincenzo Cuocco (1770-1823), que esteve em atividade nos primeiros estágios do Risorgimento. Segundo a interpretação de Cuocco, os exércitos de Napoleão levaram a revolução passiva para a Itália.
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + ] 09
que constituía os quadros da nova burocracia estatal e dos novos partidos políticos e tornou-se intermediária entre os vários grupos da população e o Estado. A falta de qualquer participação popular prolongada e amplamente disseminada no movimento de unificação explica o caráter de "revolução passiva" que teve o seu resultado. Na esteira da Primeira Guerra Mundial, a ocupação de fábricas e terras por operários e camponeses mostrou a existência de uma força suficientemente considerável para ameaçar o Estado existente, mas não para desalojá-lo. Aconteceu então o que Gramsci chamou de "deslocamento da base do Estado" 11 rumo à pequena burguesia, a única classe presente em todo o país, e que se tornou a âncora do poder fascista. O fascismo deu continuidade à revolução passiva, defendendo a posição das antigas classes proprietárias, mas não conseguiu o apoio de grupos subalternos como os operários ou os camponeses.
Além do cesarismo, a segunda característica mais importante da revolução passiva da Itália é o que Gramsci chamou de transformismo, exemplificado na política italiana por Giovanni Giolitti, que procurou fazer uma coalizão de interesses mais ampla possível e que dominou a cena política nos anos que precederam o fascismo. Por exemplo, ele pretendia formar uma frente única entre os operários das fábricas do Norte e os industriais por meio de uma política protecionista. O transformismo trabalhava para cooptar líderes potenciais de grupos sociais subalternos. Por extensão, o transformismo pode servir de estratégia de assimilação e domesticação de idéias potencialmente perigosas, ajustando-as às políticas da coalizão dominante e pode, dessa forma, obstruir a formação de uma oposição organizada, com base na classe, ao poder social e político estabelecido. O fascismo deu continuidade ao transformismo. Gramsci interpreta o corporativismo do Estado fascista como uma tentativa malograda de introduzir algumas das práticas industriais mais avançadas do capitalismo norte-americano sob a égide da antiga administração italiana.
O conceito de revolução passiva é uma contrapartida do conceito de hegemonia por descrever a condição de urna sociedade não-
11 Buci-Glucksmann, 1975, p. 121.
11 O • ROBERT W. Cox
hegemônica - uma sociedade na qual nenhuma classe dominante conseguiu estabelecer a hegemonia no sentido gramsciano do termo. Hoje, essa noção de revolução passiva, combinada a seus componentes - o cesarismo e o transformismo - é particularmente pertinente aos países do Terceiro Mundo em processo de industrialização.
Bloco histórico
Gramsci atribuía a origem de sua noção de blocco storico a Georges Sorel, embora Sorel nunca tenha usado o termo, ou qualquer outro, exatamente com o sentido que Gramsci lhe atribuiu. 12
Mas Sorel de fato interpretou a ação revolucionária em termos de mitos sociais por meio dos quais as pessoas engajadas na ação percebiam um conflito de totalidades - em que viam uma nova ordem desafiando uma ordem estabelecida. No decorrer de um evento catastrófico, a ordem antiga seria derrubada como um todo, e a nova estaria livre para se desenvolver. 13 Embora Gramsci não compartilhasse o subjetivismo dessa visão, compartilhava a visão de que Estado e sociedade'juntos constituíam uma estrutura sólida, e que a revolução implicava o desenvolvimento, dentro dela, de outra estrutura forte o suficiente para substituir a primeira. Fazendo eco a Marx, ele achava que isso só aconteceria quando a primeira tivesse esgotado todo o seu potencial. Quer dominante, quer emergente, uma estrutura desse tipo é o que Gramsci chamava de bloco histórico.
Para Sorel, o mito social, uma forma muito potente de subjetividade coletiva, obstruiria tendências reformistas e poderia atrair operários, afastando-os do sindicalismo revolucionário e levando-os ao sindicalismo "de resultados" ou a partidos políticos reformistas. O mito era uma arma na luta, bem como um instrumento de análise. Para Gramsci, o bloco histórico também tinha uma orientação revolucionária por sua pressão sobre a unidade e a coerência de ordens
12 Gramsci, Quaderni, 1975, p. 2 e 632. 13 Ver a discussão de Sorcl sobre mito e a "batalha napoleônica" na carta a
Daniel Halévy (Sorel, 1961).
i ~'
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + 111
sociopolíticas. Era uma defesa intelectual contra a cooptação pelo transformismo.
O bloco histórico é um conceito dialético no sentido de que seus elementos - que interagem entre si - criam uma unidade maior. Às vezes, Gramsci falava desses elementos que interagem entre si como o subjetivo e o objetivo e, outras vezes, como superestrutura e infra-estrutura.
Estruturas e superestruturas de um "bloco histórico". Isso significa que o conjunto complexo, contraditório e discordante das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção. (Gramsci, 1971, p. 366)
A justaposição e as relações recíprocas das esferas política, ética e ideológica de atividade com a esfera econômica evitam o reducionismo. Isso impede que tudo seja reduzido tanto à economia (economicismo) quanto às idéias (idealismo). No materialismo histórico de Gramsci (que ele tinha o cuidado de distinguir do que chamava de "economicismo histórico'', ou uma interpretação estreitamente econômica da história), as idéias e as condições materiais andam sempre de mãos dadas, influenciando-se mutuamente, e não podem ser reduzidas umas às outras. As idéias têm de ser compreendidas em relação às circunstâncias materiais, as quais incluem tanto as relações sociais quanto os meios fisicos de produção. Superestruturas de ideologia e de organização política moldam o desenvolvimento de ambos os aspectos da produção e são por eles moldadas.
Um bloco histórico não pode existir sem uma classe social hegcmônica. Em um país ou cm uma formação social cm que a classe hegemônica é a classe dominante, o Estado (no conceito ampliado de Gramsci) mantém a coesão e a identidade no interior do bloco por meio da propagação de uma cultura comum. Um novo bloco é formado quando uma classe subordinada (como os operários, por exemplo) estabelece sua hegemonia sobre outros grupos subordinados (por exemplo, pequenos proprietários de terras, marginais). Esse processo requer um diálogo intensivo entre líderes e seguidores dentro da futura classe hegemônica. Gramsci pode ter contribuído para a idéia leninista de um partido de vanguarda que assume a responsabi-
112 • ROBERT W. Cox
lidade de liderar uma classe operária imatura, mas só como um as
pecto de uma guerra de movimento. Como, para Gramsci, a estratégia
de uma guerra de posição era necessária nos países ocidentais, o papel
do partido devia ser o de liderar, intensificar e melhorar o diálogo no
seio da classe operária e entre a classe operária e outras classes subor
dinadas que poderiam chegar a fazer uma aliança com ela. Nesse sen
tido, a "campanha de massa" como técnica de mobilização desenvol
vida pelo Partido Comunista Chinês é coerente com o pensamento de
Gramsci.
Os intelectuais desempenham papel-chave na construção de
um bloco histórico. Os intelectuais não são um estrato distinto e rela
tivamente fora das classes sociais. Gramsci os via como organicamen
te conectados a uma classe social. Realizam a função de criar e susten
tar as imagens mentais, tecnologias e organizações que mantêm coe
sos os membros de uma classe e de um bloco histórico ao redor de uma identidade comum. Os intelectuais burgueses fizeram isso para
a totalidade de uma sociedade em que a burguesia era hegemônica.
Os intelectuais orgânicos da classe operária desempenhariam um
papel semelhante na criação de um novo bloco histórico, sob a hege
monia da classe operária, dentro dessa sociedade. Para isso, teriam de
desenvolver claramente uma cultura, uma organização e uma tecnologia distintas, e fazer isso em interação constante com os membros
do bloco emergente. Para Gramsci, todos têm o seu lado intelectual, embora só alguns realizem a função social de um intelectual em regi
me de tempo integral. Nessa tarefa, o partido era, segundo sua concep
ção, um "intelectual coletivo". No movimento rumo à hegemonia e à criação de um bloco
histórico, Gramsci distinguia três níveis de consciência: o econômi
co-corporativo, no qual determinado grupo tem conhecimento de
seus interesses específicos; a solidariedade ou consciência de classe,
que se estende a toda uma classe social, mas continua num nível pu
ramente econômico; e o hegemônico, que harmoniza os interesses da
classe dirigente com os das classes subordinadas e incorpora esses
outros interesses numa ideologia expressa em termos universais
(Gramsci, 1971, p. 180-195). O movimento rumo à hegemonia, diz
1
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + J J 3
Gramsci, é uma "passagem da estrutura para a esfera das superestruturas complexas"; com isso ele queria dizer passar dos interesses es
pecíficos de um grupo ou classe para a construção de instituições e a elaboração de ideologias. Se essas instituições e ideologias refletem uma hegemonia, terão uma forma universal, isto é, parecerão ser de uma determinada classe e darão alguma satisfação aos grupos subordinados, mas sem solapar a liderança ou os interesses vitais da classe hegemônica.
Hegemonia e relações internacionais
Agora podemos fazer a transição do que Gramsci disse a respeito de hegemonia e conceitos afins para as implicações desses conceitos nas relações internacionais. Mas, antes, seria bom vermos quão pouco o próprio Gramsci falou a respeito de relações internacionais. Vamos começar com o seguinte trecho:
As relações internacionais precedem ou derivam (logicamente) de relações sociais fundamentais? Não há dúvida de que derivam. Qualquer inovação orgânica da estrutura social, por meio de suas expressões técnico-militares, também modifica organicamente relações absolutas e relativas no campo internacional. (Gramsci, 1971, p. 176)
Com "orgânico" Gramsci estava se referindo àquilo que é estrutural, de longo prazo ou relativamente permanente, cm oposição ao curto prazo ou "conjuntural". Estava dizendo que as mudanças básicas nas relações de poder internacional ou de ordem mundial, vistas como mudanças no equilíbrio militar-estratégico e geopolítico, podem remontar a mudanças fundamentais nas relações sociais.
Gramsci não ignorava de forma alguma o Estado, nem diminuía sua importância. Para ele, o Estado continuava sendo a entidade básica das relações internacionais e o lugar onde os conflitos sociais
acontecem - portanto, também é o lugar onde as hegemonias das classes sociais podem ser construídas. Nessas hegemonias das classes sociais, as características particulares das nações se combinam em formas originais. A classe operária, que pode ser considerada interna-
e " t: éi
114 + ROBERT W. Cox
cional num sentido abstrato, nacionaliza-se no processo de construir
sua hegemonia. O surgimento de novos blocos liderados pelos operá
rios no plano nacional precederia, de acordo com essa linha de racio
cínio, toda e qualquer reestruturação básica das relações internacio
nais. Mas o Estado, que continua sendo o foco principal da luta social
e a entidade básica das relações internacionais, é o Estado amplificado
que inclui sua própria base social. Essa visão deixa de lado a concep
ção estreita ou superficial de Estado que o reduz, por exemplo, à buro
cracia da política externa ou às suas capacidades militares.
Graças à sua perspectiva italiana, Gramsci tinha uma percep
ção aguda do que hoje chamaríamos de dependência. Ele sabia que os
acontecimentos ocorridos na Itália haviam sofrido grande influência
de forças externas. No nível exclusivo da política externa, as grandes
potências têm uma liberdade relativa de determinar suas políticas ex
ternas em resposta a interesses nacionais; as potências menores têm
menos autonomia (Gramsci, 1971, p. 264). A vida econômica das na
ções subordinadas é invadida pela vida econômica de nações podero
sas, e a ela se entrelaça, processo que se complica ainda mais pela
existência de regiões estruturalmente diferentes no interior dos paí
ses, regiões essas que têm tipos distintos de relações com as forças ex
ternas (ibid., p. 182).
Num nível ainda mais profundo, os Estados que têm poder são
exatamente aqueles que passaram por uma profunda revolução social
e econômica e elaboraram de forma mais plena as conseqüências
dessa revolução na forma do Estado e das relações sociais. A Revolu
ção Francesa foi o caso sobre o qual Gramsci refletiu, mas podemos
pensar no desenvolvimento do poder nos Estados Unidos e na União
Soviética nos mesmos termos. Todos esses foram desenvolvimentos
com base na nação que transbordaram para além das fronteiras na
cionais, tornando-se fenômenos de expansão internacional. Outros
países receberam o impacto desses processos de forma mais passiva,
um exemplo do que Gramsci descreveu no plano nacional como re
volução passiva. Isso acontece quando o ímpeto para mudar não sur
ge de "um vasto desenvolvimento econômico local[ ... ] sendo, ao con-
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + 115
trário, reflexo de processos internacionais que transmitem suas correntes ideológicas à periferia" (ibid., p. 116).
Nessas circunstâncias, o grupo portador de novas idéias não é
um grupo social autóctone ativamente engajado em construir uma
nova base econômica com uma nova estrutura de relações sociais. É
um estrato intelectual que aproveita idéias originadas de uma revolução econômica e social ocorrida anteriormente no estrangeiro. Por
isso, o pensamento desse grupo assume uma forma idealista, sem raí
zes num processo econômico de seu país, e sua concepção do Estado
assume a forma de "um racional absoluto" (ibid., p. 117). Gramsci
criticou o pensamento de Benedetto Croce, a figura dominante does
tablishment intelectual italiano de sua época, por apresentar esse tipo
de distorção.
Hegemonia e ordem mundial
O conceito gramsciano de hegemonia pode ser aplicado ao pla
no internacional ou mundial? Antes de tentar sugerir como isso poderia ser feito, seria bom excluir certos usos do termo, comuns nos
estudos de relações internacionais. "Hegemonia" é freqüentemente usada para indicar o domínio de um país sobre outros, vinculando assim o uso a uma relação exclusivamente entre Estados. As vezes, o termo hegemonia é empregado como um eufemismo de imperialis
mo. Quando os líderes políticos chineses acusam a União Soviética de "hegemonismo", parecem ter em mente uma combinação qual
quer desses dois conceitos. Esses significados diferem tanto do senti
do gramsciano do termo que, neste ensaio, é melhor, por uma questão de clareza, usar o termo "domínio" em seu lugar.
Ao aplicar o conceito de hegemonia à ordem mundial, é im
portante determinar quando começa e quando termina um período
de hegemonia. Um período em que uma hegemonia mundial já foi
estabelecida pode ser chamado de hegemônico, e de não-hegemônico,
outro período em que prevaleça um domínio de tipo não-hegemôni
co. Para exemplificar, vamos considerar os últimos cento e cinqüenta
116 • ROBERT W. Cox
anos como uma fase que poderia ser dividida em quatro períodos dis
tintos, aproximadamente, 1845-1875, 1875-1945, 1945-1965 e de 1965
até o presente. 14
O primeiro período (1845-1875) foi hegemônico: havia uma economia mundial com a Inglaterra no centro. Doutrinas econômi
cas coerentes com a supremacia britânica, mas universais em sua for
ma - vantagem comparativa, livre-comércio e o padrão-ouro-, dis
seminaram-se aos poucos da Grã-Bretanha. O poder de coerção garantia essa ordem. A Grã-Bretanha determinava o equilíbrio de poder
na Europa, evitando assim qualquer desafio à sua hegemonia por forças baseadas em outro território. A Grã-Bretanha reinava soberana no
mar e tinha capacidade de obrigar os países periféricos a obedecerem
às regras do mercado.
14 As datas são tentativas e teriam de ser refinadas por uma pesquisa sobre as características estruturais próprias de cada periodo, bem como sobre os fatores destinados a constituir a linha divisória entre um período e outro. Essas datas são apresentadas aqui como meras anotações para uma revisão dos estudos históricos acadêmicos com a finalidade de levantar algumas questões sobre hegemonia e as estruturas e os mecanismos que a acompanham. O imperialismo, que assumiu formas diferentes nesses períodos, é uma questão intimamente relacionada. No primeiro, o da pax britannica, embora alguns territórios fossem administrados diretamente, o controle das colônias parece ter sido mais incidental do que necessário à expansão económica. A Argentina, país formalmente independente, teve essencialmente a mesma relação com a economia inglesa que o Canadá, uma ex-colónia. Isso, como observou George Lichtheim, pode ser chamado de fase do "imperialismo liberal". No segundo período, o chamado "novo imperialismo" deu mais ênfase ao controle político direto. Viu também o crescimento das exportações de capital e do capital financeiro identificadas por Lenin como a própria essência do imperialismo. No terceiro período, que poderia ser chamado de neoliberal ou de imperialismo liberal-monopolista, a internacionalização da produção surgiu como forma predominante, apoiada também por novas formas de capital financeiro (bancos e consórcios multinacionais). Parece não fazer muito sentido tentar definir uma essência imutável do imperialismo; talvez seja mais proveitoso descrever características estruturais do imperialismo que correspondem a ordens mundiais sucessivas, hegemônicas e não-hegemônicas. Para uma discussão mais detalhada dessa questão relacionada à pax britannica e à pax americana, ver Cox, 1983.
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + 117
No segundo período (1875-1945), todas essas características foram invertidas. Outros países desafiaram a supremacia britânica. O equilíbrio de poder na Europa desestabilizou-se, levando a duas guerras mundiais. O livre-comércio foi suplantado pelo protecionismo, o padrão-ouro acabou sendo abandonado, e a economia mundial fragmentou-se em blocos econômicos. Foi um período não-hegemônico.
No terceiro período, na esteira da Segunda Guerra Mundial (1945-1965), os Estados Unidos fundaram uma nova ordem mundial hegemônica, semelhante, em sua estrutura básica, àquela dominada pela Grã-Bretanha em meados do século XIX, mas com instituições e doutrinas ajustadas a uma economia mundial mais complexa e asociedades nacionais mais sensíveis às repercussões políticas das crises econômicas.
Em algum momento entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970, tornou-se evidente que essa ordem mundial baseada nos Estados Unidos já não estava mais funcionando bem. Nos momentos de incerteza que se seguiram, três possibilidades de transformação estrutural da ordem mundial manifestaram-se: a reconstrução da hegemonia com a ampliação de uma gerência política de acordo com as linhas propostas pela Comissão Trilateral; o aumento da fragmentação da economia mundial, que giraria em torno de esferas econômicas centradas em grandes potências; e a possível afirmação de uma contra-hegemonia baseada no Terceiro Mundo, precedida pela exigência de uma Nova Ordem Econômica Internacional (Noci).
Com base nessas observações preliminares, parece que, historicamente, para se tornar hegemônico, um Estado teria de fundar e proteger uma ordem mundial que fosse universal em termos de concepção, isto é, uma ordem cm que um Estado não explore outros Estados diretamente, mas na qual a maioria desses (ou pelo menos aqueles ao alcance da hegemonia) possa considerá-la compatível com seus interesses. Essa ordem dificilmente poderia ser concebida apenas em termos interestados, pois isso provavelmente traria para primeiro plano os interesses opostos dos Estados. O mais provável seria que enfatizasse as oportunidades para as forças da sociedade civil operarem em escala mundial (ou na escala da esfera no seio da qual de-
··------- .. ---· -
118 + ROBERT W. Cox
terminada hegemonia prevalece). O conceito hegemónico de ordem mundial não se baseia apenas na regulação do conflito interestados, mas também numa sociedade civil concebida globalmente, isto é, num modo de produção de extensão global que gera vínculos entre as classes sociais dos países nela incluídos.
Historicamente, hegemonias desse tipo foram fundadas por Estados poderosos que passaram por uma revolução social e económica completa. A revolução não só modifica as estruturas económicas e políticas internas do Estado em questão, como também libera energias que se expandem além das fronteiras do Estado. Portanto, uma hegemonia mundial é, em seus primórdios, uma expansão para o exterior da hegemonia interna (nacional) estabelecida por uma classe social dominante. As instituições económicas e sociais, a cultura e a tecnologia associadas a essa hegemonia nacional tornam-se modelos a serem imitados no exterior. Essa hegemonia expansiva é imposta aos países mais periféricos como uma revolução passiva. Esses países não passaram pela mesma revolução social completa, nem têm suas economias desenvolvidas da mesma forma, mas procuram incorporar elementos do modelo hegemónico sem que as antigas estruturas de poder sejam afetadas. Embora os países periféricos possam adotar alguns aspectos económicos e culturais do núcleo hegemónico, têm menos condições de adotar seus modelos políticos. Assim como o fascismo se tornou a forma de revolução passiva na Itália do período entre guerras, várias formas de regime militar-burocrático supervisionam revoluções passivas nas periferias atuais. No modelo hegemónico mundial, a hegemonia é mais intensa e coerente no centro e tem muito mais contradições na periferia.
Portanto, a hegemonia no plano internacional não é apenas uma ordem entre Estados. É uma ordem no interior de uma economia mundial com um modo de produção dominante que penetra todos os países e se vincula a outros modos de produção subordinados. É também um complexo de relações sociais internacionais que une as classes sociais de diversos países. A hegemonia mundial pode ser definida como uma estrutura social, uma estrutura económica e uma estrutura política, e não pode ser apenas uma dessas estruturas: tem de ser todas as três ao mesmo tempo. Além disso, a hegemonia
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + J ]9
mundial se expressa cm normas, instituições e mecanismos universais que estabelecem regras gerais de comportamento para os Estados e para as forças da sociedade civil que atuam além das fronteiras nacionais - regras que apóiam o modo de produção dominante.
Os mecanismos da hegemonia: organizações internacionais
Um dos mecanismos pelos quais as normas universais de uma hegemonia mundial se expressam são as organizações internacionais. Na verdade, as organizações internacionais funcionam do mesmo modo que o processo por meio do qual as instituições da hegemonia e sua ideologia são desenvolvidas. Entre as características da organização internacional que expressam seu papel hegemônico, temos as seguintes: 1) corporifica as regras que facilitam a expansão das ordens mundiais hegemônicas; 2) é, ela própria, produto da ordem mundial hegemônica; 3) legitima ideologicamente as normas da ordem mundial; 4) coopta as elites dos países periféricos; e 5) absorve idéias contra-hegemónicas.
As instituições internacionais corporificam regras que facilitam a expansão das forças económicas e sociais dominantes, mas permitem simultaneamente aos interesses subordinados fazerem ajustes com um mínimo de desgaste. As regras que controlam o mundo monetário e as relações comerciais são particularmente importantes, e basicamente organizadas para promover a expansão cconômica. Ao mesmo tempo, admitem exceções e minimizações para resolver situações problemáticas, e podem ser revistas caso as circunstâncias se modifiquem. As instituições de Brctton Woods ofereceram mais salvaguardas aos interesses sociais nacionais, como o do desemprego, do que o padrão-ouro, com a condição de que as políticas nacionais fossem coerentes com os objetivos de uma economia mundial liberal. O sistema atual de taxas de câmbio flutuantes também dá espaço para as ações nacionais, ao mesmo tempo em que mantém o princípio de um compromisso prioritário para harmonizar as políticas nacionais com os interesses de uma economia mundial liberal.
Em geral, as instituições e regras internacionais se originam do Estado que estabelece a hegemonia. No mínimo, têm de ter o apoio
120 • Roumrr W. Cox
desse Estado. O Estado dominante encarrega-se de garantir a aquiescência de outros Estados de acordo com uma hierarquia de poderes no interior da estrutura de hegemonia entre os Estados. Alguns países de segundo escalão são previamente consultados para que seu apoio seja assegurado. O consentimento de ao menos alguns dos países mais periféricos é solicitado. A participação formal pode pesar cm favor das potências dominantes, como no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, ou pode basear-se em um voto por Estado, como na maioria das principais instituições internacionais. Exist{ uma estrutura informal de influência que reflete os diferentes níveü do verdadeiro poder político e econômico por trás dos procedimentrn formais de decisão.
As instituições internacionais também desempenham um pa pel ideológico. Elas ajudam a definir diretrizes políticas para os Esta dos e a legitimar certas instituições e práticas no plano nacional, refie tindo orientações favoráveis às forças sociais e econômicas dominan tes. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômio (OCDE), ao recomendar o monetarismo, endossou um consens' dominante no pensamento político dos países centrais e fortalece aqueles determinados a combater a inflação dessa maneira, em detri mento de outros que estavam mais preocupados com o desempreg< Ao defender o tripartismo, a Organização Internacional do Trabalh (OIT) legitima as relações sociais surgidas nos países centrais com modelo ideal a ser imitado.
O talento da elite dos países periféricos é cooptado para as in: tituições internacionais no estilo do transformismo. Indivíduos e países periféricos, embora entrem em instituições internaciona com a idéia de trabalhar, de seu interior, para modificar o sistema, si condenados a trabalhar dentro das estruturas da revolução passiv No melhor dos casos, vão ajudar a transferir elementos de "modern zação" para as periferias, mas apenas aqueles coerentes com os i1 teresses dos poderes locais estabelecidos. A hegemonia é como u travesseiro: absorve os golpes e, mais cedo ou mais tarde, o supos assaltante vai achar confortável descansar sobre ele. Só quando ar presentação nas instituições internacionais está firmemente enraiz da num desafio social e político articulado à hegemonia- de um bl
o o u
l
).
o ,O
s-
ie is io ·a.
d-n
m
to
·e:a
o-
GitAMSCI, llE<;EMONIA E ltELA~:OES INTERNACIONAIS + 121
co histórico nascente e contra-hegemônico -, a participação poderá representar uma ameaça real. A cooptação de figuras de proa das peri
ferias torna isso menos provável.
O transformismo também absorve idéias potencialmente contra-hegemônicas e faz elas se tornarem coerentes com a doutrina he
gemônica. A noção de auto-suficiência, por exemplo, começou como
contestação à economia mundial, defendendo um desenvolvimento
independente endogenamente determinado. O termo agora foi transformado, significando apoio dos órgãos da economia mundial aos
programas previdenciários do tipo faça-você-mesmo dos países peri
féricos. Esses programas visam capacitar as populações rurais a serem auto-suficientes, impedir o êxodo rural para as cidades e, desse modo,
obter maior grau de estabilidade social e política entre aquelas popu
lações que a economia mundial não é capaz de integrar. O significado transformado de auto-suficiência torna-se complementar e apóia os objetivos hegemônicos da economia mundial e lhes dá apoio.
Portanto, uma tática para introduzir mudanças na estrutura
da ordem mundial pode ser descartada como total ilusão. Há pouca probabilidade de uma guerra de movimento no nível internacional, por meio da qual os radicais se apropriariam do controle da superestrutura das instituições internacionais. Apesar de Daniel Patrick Moynihan, os radicais do Terceiro Mundo não controlam instituições
internacionais. E mesmo que controlassem, não conseguiriam nada com isso. Essas superestruturas não estão adequadamente vinculadas a nenhuma base política popular. Estão vinculadas ;)s classes nacio
nais hegcmônicas dos países centrais e, com a intermediação dessas classes, têm uma base mais ampla nesses países. Nas periferias, estão associadas apenas à revolução passiva.
As perspectivas da contra-hegemonia
As ordens mundiais - para retomar a afirmação de Gramsci citada anteriormente neste ensaio - baseiam-se em relações sociais.
Portanto, uma mudança estrutural significativa da ordem mundial estaria, provavelmente, ligada a uma mudança fundamental nas rela
ções sociais e nas ordens políticas nacionais que correspondem às es-
1 1 1 !
1
1 t
122 + ROBERT W. Cox
truturas nacionais de relações sociais. No pensamento gramsciano,
isso poderia acontecer com o surgimento de um novo bloco histórico.
Precisamos retirar das instituições internacionais o problema
da transformação da ordem mundial, colocando-o nas sociedades na
cionais. A análise que Gramsci fez da Itália é mais válida ainda quan
do aplicada à ordem mundial: só uma guerra de posição tem condi
ções, a longo prazo, de realizar mudanças estruturais, e uma guerra
de posição implica a construção de uma base sociopolítica para a mu
dança, com a criação de novos blocos históricos. O contexto nacional
continua sendo o único lugar no qual um bloco histórico pode ser
criado, embora a economia mundial e as condições políticas globais
influenciem substancialmente as perspectivas de tal empreitada.
A prolongada crise da economia mundial (cujo início remon
ta ao final da década de 1960 e inícios da década de 1970) foi propícia
para alguns processos que poderiam levar a um desafio contra-hege
mônico. Nos países centrais, as políticas que se traduziram em cortes
na transferência de recursos para grupos sociais que sofrem privações
e que geraram muito desemprego abriram as perspectivas de uma
grande aliança entre os desfavorecidos e contra os setores do capital e
do trabalho que se apoiavam na produção internacional e na ordem
mundial liberal-monopolista. É muito provável que a base política
dessa aliança seja pós-keynesiana e neomercantilista. Nos países pe
riféricos, alguns Estados são vulneráveis à ação revolucionária, como
sugerem os eventos no Irã e na América Central. No entanto, o preparo político da população, com a profundidade necessária, pode não
ser suficiente para acompanhar o ritmo da oportunidade revolucioná
ria, o que diminui a perspectiva de um novo bloco histórico. É necessá
ria uma organização política eficaz (o príncipe moderno de Gramsci)
para reunir as novas classes operárias criadas pela produção interna
cional e para construir uma ponte que leve aos camponeses e aos
marginalizados urbanos. Sem isso, só é possível imaginar um proces
so no qual as elites políticas locais, mesmo algumas que são produto
de sublevações revolucionárias abortadas, protegeriam seu poder
dentro de uma ordem mundial liberal-monopolista. Uma hegemonia liberal monopolista reconstruída teria muita força para praticar o
transformismo, ajustando-se a diversos tipos de instituições e práticas
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS + 123
nacionais, entre os quais a nacionalização de indústrias. Na periferia,
a retórica do nacionalismo e do socialismo poderia então ser aliada à
restauração da revolução passiva sob novo disfarce.
Em síntese, a tarefa de mudar a ordem mundial começa com o
longo e trabalhoso esforço de construir novos blocos históricos dentro das fronteiras nacionais.