CPI Da Espionagem

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    CPI DA ESPIONAGEM

    RELATRIO FINAL

    Comisso Parlamentar de Inqurito destinada a investigar adenncia de existncia de um sistema de espionagem, estruturadopelo governo dos Estados Unidos, com o objetivo de monitorar

    emails, ligaes telefnicas, dados digitais, alm de outras formasde captar informaes privilegiadas ou protegidas pela

    Constituio Federal

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    Parte ICPI DA ESPIONAGEM ...................................................... 5I. 1. Apresentao ....................................................................... 5I. 2. Papel fiscalizador do Congresso Nacional ........................... 6I. 3. Natureza e objetivos da comisso parlamentar de inqurito10I. 4. Histrico dos fatos ............................................................. 12I. 5. Notcias que deram ensejo instaurao da CPI ................ 13I. 6. Brasil como alvo da espionagem ....................................... 16I. 7. Apresentao do requerimento para instaurao da CPI .... 18I. 8. Instalao da CPI ............................................................... 18

    I. 9. Composio ....................................................................... 19I. 10. Atividades realizadas ....................................................... 21Parte IIESPIONAGEM E DIREITO INTERNACIONAL ............ 22

    II. 1. Consideraes iniciais ...................................................... 22II. 2. Direito internacional pblico ........................................ 2928II. 3. Direito comunitrio .......................................................... 44II. 4. Concluses ................................................................... 5150

    Parte IIIATIVIDADE DE INTELIGNCIA ................................. 54III. 1. Segunda profisso mais antiga do mundo ....................... 54III. 2. Panorama das comunidades de inteligncia pelo mundo . 57III. 3. Inteligncia tecnolgica (techint) .................................... 60III. 4. Estabelecimento de agncias de inteligncia de sinais..... 65III. 5. Organizao da atividade de inteligncia no Brasil ......... 75III. 6. Crise da inteligncia ....................................................... 86III. 7. Aprimoramento da inteligncia no Brasil ........................ 91III. 8. Papel do parlamento no fortalecimento do controle daatividade de inteligncia ........................................................... 93III. 9. Alterao na legislao infraconstitucional de inteligncia................................................................................................. 95

    Parte IVSEGURANA DAS COMUNICAES ....................... 97IV. 1. Introduo ...................................................................... 97IV. 2. Ameaas, provocaes, guerras e espionagem cibernticas............................................................................................... 101

    IV. 3. Como proteger as redes ................................................ 110IV. 4. Marco Civil da Internet ................................................. 115

    Parte V PROVIDNCIAS ADOTADAS PELO GOVERNOBRASILEIRO ................................................................................ 118

    V.1. Inqurito instaurado pela Polcia Federal ........................ 118V.2. Expectativa de desfecho do inqurito da Polcia Federal . 131

    Parte VICONCLUSES E RECOMENDAES ...................... 133

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    Resumo das audincias pblicas realizadas ............................ 1723 Reunio, realizada no dia 17/09/2013 (ANP) .............. 172

    4 Reunio, realizada no dia 18/09/2013 (Petrobrs) ....... 183

    6 Reunio, realizada no dia 2/10/2013 (IPEA, Exrcito

    Brasileiro e UnB) ............................................................ 197

    7 Reunio, realizada no dia 9/10/2013 (Glenn Greenwald, e

    David Miranda) .............................................................. 208

    8 Reunio, realizada no dia 15/10/2013 (Polcia Federal e

    Anatel) ............................................................................ 220

    9 Reunio, realizada no dia 22/10/2013 (segurana

    ciberntica) ..................................................................... 243

    11 Reunio, realizada no dia 5/11/2013 (telefonia mvel:

    TIM, Claro, Vivo e Oi) ................................................... 261

    12 Reunio, realizada no dia 12/11/2013 (Serpro e

    Prodasen) ........................................................................ 282

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    Parte ICPI DA ESPIONAGEM

    I. 1. Apresentao

    O Poder Legislativo exerce funes legislativas, fiscalizadoras,

    administrativas e jurisdicionais. H preponderncia, porm, pelas

    atividades legiferante e de fiscalizao. Essa circunstncia explicvel

    vista da clssica diviso dos poderes estatais.

    Uma comisso parlamentar de inqurito insere-se no mbito da

    atribuio fiscalizadora. Nesse campo, o Poder Legislativo tem importante

    papel tanto de investigao quanto de controle dos atos do poder pblico.

    Para isso, importa recordar que so pelo menos quatro os meios

    constitucionais de que dispe o Parlamento para exercer as atribuies de

    fiscalizao: interpelao parlamentar; pedido de informaes; inspees e

    auditorias realizadas por meio do Tribunal de Contas da Unio (TCU); e o

    inqurito parlamentar.1

    O inqurito legislativo tem em vista assunto especfico, como

    exige o texto constitucional: apurao de fato determinado [art. 58, 3,

    da Constituio Federal (CF)]. Para alm disso, os temas a sereminvestigados devem estar, de tal ou qual modo, inseridos no mbito de

    atribuies do poder pblico domstico.

    1SANTI, Marcos Evandro Cardoso. Criao de comisses parlamentares de inqurito:tenso entre o direito constitucional de minorias e os interesses polticos da maioria.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2007. p. 29

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    Nesse sentido, a competncia fiscalizadora do Congresso

    Nacional extensa e abrangente, alcanando todos os limites da sua

    competncia legislativa. Vale dizer: o Congresso Nacional tem poder de

    fiscalizar todos os assuntos e temas a respeito dos quais est capacitado,

    pela Constituio, para legislar.

    As comisses parlamentares de inqurito (CPIs) constituem,

    assim, um dos mais importantes instrumentos de que o Congresso Nacional

    dispe para exercer sua competncia constitucional. No por acaso,

    perceptvel que o funcionamento de uma CPI (ao lado do manejo do

    instituto da medida provisria e do controle de constitucionalidade das leis)

    traduz uma das pedras de toque do modelo brasileiro de repartio

    funcional dos Poderes entre o Executivo, o Legislativo e o Judicirio.

    A presente comisso parlamentar de inqurito, que versa sobre

    esquema de espionagem empreendido por rgos de governo estrangeiro,expressa movimento poltico na histria recente do Brasil, e resulta de

    entendimento entre lideranas polticas do Senado no sentido de investigar

    com iseno fatos que, inequivocamente, atingiram a soberania do Brasil.

    I. 2. Papel fiscalizador do Congresso Nacional

    Antes de passarmos anlise dos fatos investigados ao longodos ltimos meses, convm apreciar, para mais exata compreenso do

    leitor, a natureza do meio utilizado para a realizao das investigaes, bem

    como de sua importncia.

    O Congresso, como instituio, no pode se separar de sua

    vocao histrica para se configurar em espcie de caixa de ressonncia da

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    sociedade na qual est inserido. Os fundadores das formas modernas do

    Estado, ao divisarem a separao de poderes, tiveram conscincia das

    caractersticas de cada um desses poderes. Notadamente ao Poder

    Legislativo, alm da capacidade de produo de leis, foi reconhecida sua

    importncia para a fiscalizao dos atos dos governantes, bem como para a

    preservao dos direitos das minorias.

    Na origem do parlamento moderno, j se reconhece a

    preocupao com o abuso do direito dos monarcas, de um lado, e, de outro,

    com o risco apresentado pela tirania da maioria. Os excessos apresentados

    durante o perodo que antecedeu a revoluo gloriosa foram essenciais para

    a configurao do moderno sistema parlamentar.

    Tambm, a radicalizao dos mpetos revolucionrios

    ocorridos na Frana nos anos que se seguiram a 1789, que culminaram na

    supresso fsica de toda uma gerao de homens pblicos e na ascenso deuma nova autocracia, serviu para iluminar as geraes futuras dos perigos

    da excessiva valorizao do Executivo em detrimento das minorias

    representadas no parlamento.

    O imenso custo, em vidas humanas, recursos e energia que a

    histria da democracia vem apresentando no deve servir de argumento

    para aqueles que, em todos os momentos, buscam substituir a democracia

    por outro regime. Esses buscam destruir o regime democrtico, atacando

    suas instituies, por meio de argumentos que, sob a capa da moralidade,

    no escondem a nostalgia do cesarismo, o desejo de substituir a vontade

    popular pela vontade de um indivduo ou grupo de indivduos.

    Essa forma de proceder no deixa de conhecer seu sucesso,

    para eventuais despreparados ou ansiosos, a lentido do processo

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    democrtico pode ser facilmente confundida com vacilao; o entrechoque

    de opinies pode se assemelhar a indeciso; o reconhecimento da

    existncia de nuances, com fraqueza das convices.

    Na sociedade democrtica, a existncia e o fortalecimento das

    instituies depende, muitas vezes, do exerccio das possibilidades

    oferecidas pelos acontecimentos histricos, por mais negativos que possam

    parecer. Esse o trao principal e qualidade mais destacada da democracia,

    seu permanente aperfeioamento.

    A atividade parlamentar caracterizada pela

    representatividade (em princpio, todos os extratos da sociedade se refletem

    no parlamento), pela colegialidade (existncia de um rgo coletivo que,

    contm, em si, setores de situao e oposio) e pela continuidade

    (permanncia dos rgos legislativos ao longo do tempo). Tais

    caractersticas tornam o Congresso organismo adequado para a operao deuma das mltiplas instncias de fiscalizao que, em uma democracia,

    ajudam a compor o sistema de freios e contrapesos destinado a evitar a

    tirania e o desvirtuamento das instituies.

    Notavelmente, ao longo do sculo XX, a funo de controle

    por meio do Parlamento adquiriu cada vez maior relevo, assumindo, em

    alguns momentos, primazia em relao produo normativa.

    A demanda social por ordenamento jurdico estvel, somada proliferao de fontes do direitodecorrente da criao de novas instncias

    tcnicas dotadas de relativa capacidade de produzir normas, tais como as

    agncias reguladoras produziram uma reduo relativa da capacidade

    legiferante dos Parlamentos em todo o mundo. Efetivamente, da totalidade

    das normas em vigncia nas sociedades modernas, apenas uma frao

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    seguiu os trmites parlamentares tradicionais.

    Mesmo que mantenham o monoplio da produo de normas

    hierarquicamente superiores, os parlamentos de todo o mundo no so

    responsveis pela maioria das normas que afetam a sociedade.

    Principalmente em matrias tidas como de natureza tcnica, o grosso da

    produo normativa est concentrada em rgos do Executivo, sendo

    apenas indiretamente derivados de atos parlamentares.

    Em decorrncia, a fiscalizao dos atos administrativos

    assume importncia fundamental para a manuteno da ordem jurdica e

    das liberdades pblicas. Em universo normativo em constante expanso, os

    atos do Executivo devem ser cuidadosamente analisados, sob pena de

    florescerem abuso e arbtrio.

    A atividade de controle parlamentar no , propriamente, umainovao dos dias de hoje. Montesquieu j admitia que aos parlamentos

    caberia fiscalizar o cumprimento das normas por eles criadas. A execuo

    oramentria, por exemplo, sempre foi tema cuja fiscalizao parlamentar

    era admitida.

    Houve, no entanto, alterao substancial quanto natureza do

    poder de investigao dos parlamentos, a passagem de um poder implcito

    de investigao, baseado na capacidade do Legislativo de buscar a

    implementao dos atos dele provenientes para uma faculdadeexplicitamente reconhecida de perquirio acerca de atos cuja competncia

    originria no seria, em princpio, do Congresso, tais como os atos de

    administrao, quer do Executivo, quer do Judicirio.

    As alteraes no padro tradicional de diviso dos poderes,

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    com maior ingerncia do Executivo, tornam imperativa, portanto, maior

    participao do Legislativo no controle dos atos dos governantes e de seus

    rgos auxiliares. Representantes do conjunto da sociedade e guardies das

    aspiraes ltimas dos povos, os parlamentos devem se adaptar a essa nova

    realidade e desenvolver mtodos para desempenhar essa funo.

    I. 3. Natureza e objetivos da comisso parlamentar de

    inqurito

    preciso deixar claro, de incio, aquilo que a sociedade

    brasileira pode esperar de uma comisso parlamentar de inqurito. Isso

    porque, como ocorre com qualquer instituio do Estado, no regime

    democrtico, os poderes das CPI no so ilimitados.

    Percebe-se inclinao dos formadores de opinio por medir o

    xito de uma CPI pela quantidade de autoridades, agentes polticos e

    cidados que, em funo dela, venham a ser punidos. Isso, no obstante,

    parece-nos equivocado. Portanto, para evitar especulaes, os objetivos de

    uma CPI devem ser definidos de maneira precisa, at para que no se

    estimulem iluses, e no se pretenda alcanar objetivos que no lhe dizem

    respeito.

    Em tese, pode-se esperar de uma CPI:

    a) que contribua para a transparncia da administrao pblica,

    na medida em que revela, para a populao, fatos e circunstncias que, de

    outra forma, no seriam do conhecimento pblico;

    b) que, na qualidade de rgo do Poder Legislativo, possibilite

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    o exame crtico da legislao aplicvel ao caso sob investigao, para, a

    partir desse exame, eventualmente sugerir medidas saneadoras e

    proposies visando ao seu aprimoramento.

    c) que proponha respectiva Casa do Congresso Nacional,

    sempre que cabvel, a abertura de processo contra parlamentar quando seu

    nome estiver vinculado a fatos ou atos que possam implicar prejuzo

    imagem do parlamento e sempre que se possa identificar possvel quebra

    do decoro parlamentar;

    d) que, ao fim, aponte ao Ministrio Pblico, caso identifique,

    fatos que possam caracterizar delitos ou prejuzo administrao pblica,

    para que aquele rgo promova a responsabilidade civil e penal

    correspondente.

    A CPI da Espionagem, pela sua natureza singular, ter comoprincipal objetivo identificar falhas nos sistemas de inteligncia e

    contrainteligncia e de proteo de dados que trafegam pela internet, e

    eventualmente fazer proposies para o seu aprimoramento.

    Como se ver no decorrer da leitura deste relatrio, no foi

    possvel confirmar a materialidade de crime, de modo que as investigaes,

    sob essa tica, restaram inconclusas. No obstante, a CPI foi de

    fundamental importncia para fazer uma primeira avaliao dos sistemas

    brasileiros de inteligncia e de segurana das comunicaes. A partir dodiagnstico feito, os atores envolvidos podero oferecer sugestes para o

    aprimoramento desses sistemas.

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    I. 4. Histrico dos fatos

    A srie de denncias que motivou a criao desta CPI

    comeou em maio de 2013, quando foram publicados os primeiros

    documentos secretos vazados pelo especialista em computao Edward

    Snowden, que trabalhou para empresas ligadas Agncia de Segurana

    Nacional dos Estados Unidos, [National Security Agency (NSA)] e

    Central de Inteligncia Americana [Central Intelligence Agency(CIA)].

    Snowden teve acesso s informaes divulgadas quando

    prestava servios terceirizados para a Agncia de Segurana Nacional no

    Hava. Ao procurar a imprensa e entregar parte dos dados que possua,

    Snowden deixou o estado do Hava e foi, de incio, para Hong Kong, em 20

    de maio, antes de as primeiras reportagens virem a pblico. Em junho, os

    Estados Unidos da America (EUA) pressionaram as autoridades chinesas

    responsveis para responder ao pedido de extradio do referido senhor,

    que foi formulado com base em tratado para esse fim em vigor desde 1998.

    Em 23 de junho, Snowden deixou Hong Kong e partiu rumo a

    Moscou, na Rssia. A viagem foi feita com apoio do WikiLeaks, de Julian

    Assange, que enviou militante para ajudar o ex-tcnico da CIA. O

    americano ficou na rea de trnsito do aeroporto de Sheremetyevo por

    quarenta dias, em verdadeiro "limbo" jurdico, j que no tinha documentos

    para entrar em territrio russoseu passaporte havia sido cancelado pelos

    Estados Unidos da Amrica.

    Snowden enviou pedido de asilo para 21 pases, entre eles

    Brasil, Cuba, Venezuela, Bolvia, Nicargua, China, Rssia, Alemanha e

    Frana, segundo o WikiLeaks. Trs desses pases se dispuseram a abrig-lo

    Venezuela, Bolvia e Nicargua.

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    No dia 16 de julho, Snowden pediu oficialmente asilo

    temporrio Rssia. Em 1 de agosto, ele recebeu os documentos

    necessrios e deixou a rea de trnsito do aeroporto rumo a "local seguro"

    em territrio russo.

    Contrariada, a Casa Branca desmarcou encontro de cpula

    entre os presidentes Obama e Putin previsto para setembro.

    I. 5. Notcias que deram ensejo instaurao da CPI

    Documentos repassados por Snowden ao advogado e colunista

    Glenn Greenwald, do jornal britnico The Guardian, revelaram que os

    EUA vinham h tempos espionando seus prprios cidados e que o

    esquema de vigilncia ciberntica tambm se estendia Europa e China.

    Em julho do ano passado, novos documentos apontaram o

    Brasil como um dos alvos preferenciais do servio de inteligncia norte-

    americano. Braslia teria inclusive sediado, pelo menos at 2002, uma das

    16 bases de espionagem da NSA ao redor do mundo. A embaixada do

    Brasil em Washington e a misso do Brasil na Organizao das Naes

    Unidas (ONU) estariam entre os espionados.

    Novas denncias, tambm em julho de 2013, indicaram que o

    esquema de vigilncia dos EUA havia se espalhado pela Amrica Latina.

    Logo em seguida, revelaes sobre o alcance dos programas Prism e

    XKeyscore, usados para a espionagem, jogaram por terra a justificativa

    oficial de que a vigilncia seria restrita aos chamados metadados, colhidos

    apenas nos pontos de troca do trfego de informao, ou seja, nas conexes

    de redes de dados nacionais com as denominadas supervias da internet. O

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    servio secreto norte-americano teria, na verdade, amplo acesso aos

    contedos das comunicaes telefnicas e digitais, dentro e fora do

    territrio americano.

    Novas revelaes, cada vez mais graves, foram feitas aos

    poucos. Os Estados Unidos teriam espionado ao menos oito pasesentre

    eles o Brasilpara aprovar sanes contra o Ir, no Conselho de Segurana

    da ONU, em 2010. Tambm teriam espionado os planos de participantes da

    5 Cpula das Amricas, em 2009, e pago 100 milhes de libras ao centro

    de escutas britnico [Government Communications Headquarters(GCHQ)]

    nos ltimos trs anos, para trabalho conjunto de espionagem digital.

    Parceria semelhante teria sido firmada com a agncia de inteligncia alem

    [Bundesnachrichtendienst(BND)].

    Trs semanas aps a divulgao dos primeiros dados, a revistaalem Der Spiegelpublicou reportagem afirmando que a Unio Europeia

    era um dos "objetivos" da Agncia Nacional de Segurana (NSA). A

    publicao sustentou as acusaes com documentos confidenciais a que

    teve acesso graas s revelaes do ex-funcionrio americano.

    Em um dos documentos, de setembro de 2010 e considerado

    "estritamente confidencial", a NSA descreve como espionou a

    representao diplomtica da UE em Washington, usando microfones

    instalados no edifcio e entrando na rede de informtica, o que permitia aleitura de e-mails e de documentos internos.

    A Agncia chegou a ampliar suas operaes at Bruxelas. "H

    mais de cinco anos", afirma aDer Spiegel, os especialistas em segurana da

    UE descobriram um sistema de escuta na rede telefnica e de internet do

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    edifcio Justus-Lipsius, sede principal do Conselho da UE, que alcanava

    at o quartel-general da Organizao do Tratado do Atlntico Norte

    (OTAN), na regio da capital belga.

    Ao longo do ms de outubro, novas revelaes sobre

    espionagens feitas pelos EUA (e tambm pelo Reino Unido) contra chefes

    de Estado europeus vieram tona. Alemanha, Itlia, e Frana tiveram seus

    presidentes e chanceleres espionados, segundo documentos revelados pelas

    imprensas locais. Os pases pediram satisfaes aos EUA e convocaram os

    embaixadores americanos em seus territrios para maiores esclarecimentos.

    Lderes da Unio Europeia divulgaram comunicado no dia 25

    de outubro de 2013 dizendo que a desconfiana sobre o esquema de

    espionagem dos Estados Unidos poderia prejudicar os esforos mundiais no

    combate ao terrorismo. A declarao foi dada aps o jornal The Guardian

    revelar que 35 lderes mundiais tiveram conversas telefnicas monitoradas,inclusive a chanceler alem, Angela Merkel, e o presidente francs,

    Franois Hollande.

    No dia 28 de outubro de 2013, o jornal espanhol El Mundo

    revelou que mais de 60 milhes de ligaes na Espanha foram monitoradas

    em um perodo de trinta dias. O governo espanhol convocou o embaixador

    dos EUA no pas para dar explicaes.

    No dia 30, uma publicao italiana revelou que o Vaticano e oPapa Francisco tambm teriam sido monitorados, inclusive durante o

    conclave que elegeu o Papa. Os EUA negaram as acusaes.

    At a China passou a cobrar explicaes do governo

    estadunidense, aps a imprensa australiana revelar que os EUA usavam

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    suas representaes diplomticas em territrio chins para coletar dados

    sobre o pas. A Indonsia tambm teria sido espionada por meio de

    embaixadas australianas.

    I. 6. Brasil como alvo da espionagem

    Reportagens do jornal O Globo publicadas a partir de 6 de

    julho de 2013, com dados coletados por Snowden, mostraram que milhes

    de e-mails e ligaes de brasileiros e estrangeiros em trnsito no pas foram

    monitorados. Ainda segundo os documentos, uma estao de espionagem

    da NSA funcionou em Braslia pelo menos at 2002. Os dados apontam

    ainda que a embaixada do Brasil em Washington e a representao do pas

    junto ONU, em Nova York, tambm podem ter sido monitoradas.

    A revista poca tambm publicou reportagem sobre

    documento secreto que revela como os Estados Unidos espionaram ao

    menos oito pasesentre eles o Brasilpara aprovar sanes contra o Ir.

    Reportagem do programa Fantstico, da TV Globo, veiculada

    no dia 1 de setembro de 2013, mostrou que o esquema de espionagem

    norte-americano no teria poupado nem mesmo a presidente Dilma

    Rousseff. Ligaes telefnicas e mensagens eletrnicas entre a presidente e

    seus assessores diretos teriam sido monitoradas. Conversas entre essesassessores e entre eles e terceiros tambm teriam estado na mira do servio

    secreto dos Estados Unidos.

    Notcias veiculadas nas semanas subsequentes demonstram

    que Petrobras e Ministrio das Minas e Energia tambm foram alvo de

    espionagem.

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    Segundo revelou o programaFantstico, a NSA, em um plano

    de treinamento de agentes, fez uma apresentao que recebeu a

    classificao "ultrassecreta" e que foi elaborada em maio de 2012, para

    instruir procedimentos de espionagem de redes privadas de computador

    redes internas de empresas, governos e instituies financeiras e que

    existem, justamente, para proteger informaes. O nome da Petrobras, a

    maior empresa do Brasil, aparece logo no incio do documento mostrado

    peloFantstico, com o ttulo Muitos alvos usam redes privadas.

    No caso do Ministrio das Minas e Energia, a espionagem teria

    sido feita pela Agncia Canadense de Segurana em Comunicao

    [Communications Security Establishment Canada(CSEC)], De acordo com

    apresentao obtida com exclusividade pelo programa Fantstico, o

    Ministrio teria sido alvo de espionagem, cujo objetivo seria a rede de

    comunicaes da pastatelefonemas, e-mails e uso da internet.

    Segundo a matria, a apresentao canadense foi exibida em

    junho de 2012 em conferncia que reuniu analistas ligados a agncias de

    espionagem de cinco pases, do grupo conhecido como Five Eyes(Cinco

    Olhos, em portugus): Estados Unidos, Inglaterra, Canad, Austrlia e

    Nova Zelndia.

    No h indicao de que o contedo das comunicaes tenha

    sido acessado. Aparentemente, foram captados os metadados, que indicam

    quem falou com quem, quando, onde e como. A mesma apresentao, no

    entanto, sugere ao fim que seja realizada tambm uma espionagem

    conhecida como man on the side (homem ao lado), em que toda

    informao pode ser copiada nos momentos em que entra e sai da rede (no

    em trnsito).

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    I. 7. Apresentao do requerimento para instaurao da CPI

    Aps a revelao de que o Brasil um dos principais alvos da

    rede de espionagem global montada pelo servio de inteligncia norte-

    americano e de que milhes de brasileiros e estrangeiros residentes ou em

    trnsito no Pas, alm de instituies e empresas sediadas no Brasil tiveram

    sua privacidade digital violada, fez-se imprescindvel investigar no apenas

    o alcance das denncias, mas tambm as fragilidades do sistema detelecomunicaes brasileiro e do nosso sistema de inteligncia e defesa

    ciberntica.

    Diante desse quadro, foi apresentado e aprovado o

    Requerimento n 811, de julho de 2013-SF, de autoria da Senadora Vanessa

    Grazziotin (PCdoB/AM) e outros Senadores, para criao da presente

    comisso parlamentar de inqurito (CPI), para, no prazo de cento e oitenta

    dias, investigar a denncia de existncia de um sistema de espionagem,

    estruturado pelo governo dos Estados Unidos, com o objetivo de monitorar

    e-mails, ligaes telefnicas, dados digitais, alm de outras formas de

    captar informaes privilegiadas ou protegidas pela Constituio Federal.

    I. 8. Instalao da CPI

    Em 3 de setembro de 2013, foi realizada a 1 reunio

    (instalao) da Comisso, oportunidade em que foram eleitos Presidente,

    Senadora Vanessa Grazziotin, e Vice-Presidente, Senador Pedro Taques, e

    designado o Relator, Senador Ricardo Ferrao.

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    I. 9. Composio

    A Comisso Parlamentar de Inqurito foi composta por onze

    titulares e sete suplentes, devidamente indicados pelas respectivas

    lideranas partidrias. O quadro abaixo indica a atual composio da CPI,

    sendo, logo a seguir, detalhadas as mudanas ocorridas durante o perodo

    de sua existncia.

    Cargo Senador

    Presidente Vanessa Grazziotin

    Vice-Presidente Pedro Taques

    Relator Ricardo Ferrao

    Membros Titulares Roberto Requio (PMDB-PR)

    Ricardo Ferrao (PMDB-ES)

    Benedito de Lira (PP-AL)

    Srgio Peteco (PSD-AC)

    Vanessa Grazziotin (PC do B-

    AM)

    Walter Pinheiro (PT-BA)

    Anibal Diniz (PT-AC)

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    Pedro Taques (PDT - MT)

    Eduardo Amorim (PSC-SE)

    Membros Suplentes Euncio Oliveira (PMDB-CE)

    Eduardo Suplicy (PT - SP)

    Ldice da Mata (PSB - BA)

    Antonio Carlos Rodrigues (PR

    - SP)

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    I. 10. Atividades realizadas

    A CPI da Espionagem apreciou e aprovou 72 dos 74

    requerimentos apresentados pelos seus membros. Entre os aprovados esto

    requerimentos de convite ou convocao e requerimentos de pedido de

    informaes. Os requerimentos de informaes dirigidos a rgosgovernamentais e tambm a rgos no governamentais foram atendidos,

    sendo que quase todos os documentos foram digitalizados pela Secretaria

    da CPI e disponibilizados para o conjunto das assessorias dos membros da

    CPI.

    De um total de doze reunies ocorridas na CPI, oito foram

    destinadas realizao de audincias pblicas para colher o depoimento de

    especialistas, de servidores pblicos e de jornalistas. Outras quatro reunies

    foram administrativas.

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    Parte IIESPIONAGEM E DIREITO INTERNACIONAL

    II. 1. Consideraes iniciais

    Verifica-se, nos dias de hoje, crescente internacionalizao

    dos interesses nacionais. A superlativa interdependncia entre os povos ,

    nos tempos de agora, um fato. Ignorar o que se passa no planeta , portanto,

    opo arriscada. A matria , por certo, um dos desdobramentos da

    crescente interdependncia dos pases em poca de avano tecnolgico sem

    precedentes na histria da humanidade, bem como em momento de incrvel

    velocidade nas trocas de comunicaes em escala global. A essas

    circunstncias alguns autores apuseram a etiqueta globalizao. Cuida-se,

    com efeito, de nova dimenso no relacionamento interestatal.

    Nessa ordem de ideias, apropriado partir de estudo

    contextualizado da palavra globalizao para compreenso mais exata

    dos fatos que motivaram esta CPI. Isso se d tendo em vista que o termo

    adquiriu ares de unanimidade, no necessariamente quanto ao seu exato

    contedo, mas no tocante sua utilizao para explicar fenmenos que

    transcendem o espao territorial de um Estado. Esses episdios tm

    impacto direto nas transformaes medida que aceleram a velocidade dasmudanas verificadas no direito internacional das ltimas dcadas.

    A ideia de globalizao permeia a vida contempornea em

    todos os domnios vista, sobretudo, de sua natureza plurvoca. Como

    destacado em relatrio do Banco Mundial, a Globalizao (...) um

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    processo que afeta muitos aspectos das nossas vidas. Os ataques terroristas

    aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 foram um aspecto da

    globalizao. O rpido crescimento e a reduo da pobreza na China, na

    ndia e em outros pases que eram pobres 20 anos atrs outro. O

    desenvolvimento da Internet, a comunicao e o transporte mais fceis em

    todo o mundo so um terceiro aspecto. A disseminao da AIDS parte da

    globalizao, da mesma forma que o acelerado desenvolvimento detecnologias que aumentam a expectativa de vida das pessoas2.

    O rol indicado pelo Banco, embora passvel de crticas,

    exemplifica a dimenso do fenmeno, que atinge de maneira contundente

    formas de atuao dos Estados nacionais no campo da espionagem.

    De incio, o termo buscava caracterizar nova fase da economia

    mundial. Com o tempo, invadiu outros domnios poltico, social,ambiental, cultural. Cuida-se do vocbulo da moda. Parece, pois, acertada a

    observao de Bauman no sentido de que todas as palavras da moda

    tendem a um mesmo destino: quanto mais experincias pretendem explicar,

    mais opacas se tornam3. Reside, provavelmente, nessa opacidade o carter

    perene que o vocbulo adquiriu em vrios contextos.

    Uma primeira definio do fenmeno indica que ele

    compreende o conjunto de trocas econmicas entre diferentes partes doglobo. O espao mundial torna-se, assim, o lugar das transaes entre os

    diferentes povos. Desse modo, parece certo dizer que o processo verificado

    2GLOBALIZAO, crescimento e pobreza: a viso do Banco Mundial sobre os efeitosda globalizao. So Paulo: Futura, 2003. p. 93BAUMAN, Zygmunt. Globalizao: as consequncias humanas. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1999. p. 7.

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    na atualidade sucede outras globalizaes: as grandes descobertas ibricas,

    a colonizao europeia, a revoluo industrial britnica. O assunto est,

    portanto, ligado ao estado das tcnicas e ao seu impacto sobre a

    acessibilidade ao espao fsico. A revoluo nos meios de comunicao e a

    velocidade no fluxo de informaes incorporaram ao termo novas

    perspectivas4. Vale acrescentar, ainda, que as percepes vinculadas aos

    limites fsicos da Terra so alteradas.

    J se definiu o fenmeno na linha da ampliao do

    relacionamento social em dimenso planetria de modo que eventos

    ocorridos a muitos quilmetros de distncia tm impacto sobre

    acontecimentos locais e vice-versa. Verifica-se, assim, a morte da

    localizao geogrfica.

    Pode-se considerar, em sntese, que isso acontece no planoeconmico, graas, sobretudo, aos seguintes fatores: 1) terceira revoluo

    tecnolgica (vinculada a busca, processamento, difuso e transmisso de

    informaes; inteligncia artificial; engenharia gentica); 2) formao de

    reas de livre comrcio (Unio Europia, Mercado Comum do Sul, rea de

    Livre Comrcio da Amrica do Norte); e 3) interligao e interdependncia

    dos mercados fsicos e financeiros em escala planetria.

    4GIDDENS, por exemplo, recorda que Nos Estados Unidos, o rdio levou quarentaanos para atingir os cinquenta milhes de ouvintes. O mesmo nmero de pessoas usavao computador pessoal, apenas quinze anos depois de a mquina ter sido inventada. Sforam precisos uns meros quatro anos, para haver cinqenta milhes de americanos queusam a Internet com regularidade (GIDDENS, Anthony. O mundo na era daglobalizao. Lisboa: Presena, 2000. p. 23).

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    Importante destacar que, na esfera poltica, a derrocada do

    nico grande sistema que concorria com o capitalismo liberal em mbito

    mundial contribuiu, por igual, para a acelerao do processo. O

    desaparecimento da bipolaridade levou Fukuyama a propor o fim da

    histria, com a consagrao do modelo neoliberal5. Para ele no haveria

    mais alternativas ao capitalismo e democracia liberal.

    Lafer, por sua vez, ao comentar os acontecimentos do romper

    dos anos 1990, pondera que a vida internacional deixou de ter como

    elemento estruturador as polaridades definidas das relaes Leste/Oeste;

    Norte/Sul. Passou a caracterizar-se por polaridades indefinidas, sujeitas s

    foras profundas de duas lgicas que operam numa dialtica contraditria

    de mtua complementaridade: a lgica da globalizao (das finanas, da

    economia, da informao, dos valores etc.) e a lgica da fragmentao (das

    identidades, da secesso dos Estados, dos fundamentalismos, da excluso

    social etc.)6. As foras profundas produzem globalizao desigual,

    permeada de promessas no cumpridas de vantagens iguais para todos7.

    Nessa ordem de ideias, Ricupero convida nossa ateno para

    alguns mitos que se criaram em torno do conceito8. O primeiro deles aponta

    para o sonho de modelo nico: democracia representativa e economia de

    5FUKUYAMA, Francis. The end of history and the last man . New York: Avon Books,1998.6LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil e a poltica externa brasileira:

    passado, presente e futuro. So Paulo: Perspectiva, 2001, p. 109.7STIGLITZ, Joseph. A globalizao e seus malefcios: a promessa no cumprida de

    benefcios globais. So Paulo: Futura, 2002. Ver, ainda, SANTOS, Milton. Por umaoutra globalizao: do pensamento nico conscincia universal. 5. ed. So Paulo:Record, 2004.8 RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalizao. So Paulo: Servio

    Nacional de Aprendizagem Comercial, 2001. pp. 27-88.

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    mercado. Outra quimera indicada pelo embaixador relaciona-se ideia da

    agonia do conceito de soberania do Estado. Em relao a esse, ele oferece

    exemplo que deixa, no mnimo, grande interrogao. O professor

    argumenta que

    (....) se fosse verdade que a globalizao inelutavelmenteacarreta o encolhimento das soberanias e a superao do Estado-

    nao, em nenhum lugar essas tendncias deveriam ser toevidentes como nos EUA, inventor e centro da globalizao e

    Estado mais globalizado do planeta. Ora, o inverso que ocorre.

    Nunca a soberania americana disps de tantos instrumentos de

    poder e nunca os utilizou com tamanha desenvoltura, para

    afirmar-se como faz hoje9.

    Essa perspectiva parece confirmada pelos novos mtodos

    utilizados pelo governo estadunidense para espionar no s pessoas fsicas

    e jurdicas, mas tambm governos estrangeiros.

    Do exposto, parece razovel supor que a globalizao tem, por

    igual, desdobramento no plano jurdico. Esse desdobramento ocorre tanto

    na esfera interna quanto na externa. Em sua dimenso exterior, a

    globalizao jurdica representa o brao de segurana necessrio

    consolidao do que at aqui se alcanou, sobretudo, no plano econmico:

    transnacionalizao dos mercados de insumos, produo, capitais, finanas

    e consumo. Cuida-se, portanto, de apreciar o impacto da globalizao no

    direito internacional. Esse estudo importante para o exato enquadramentotanto da espionagem quanto de suas exatas consequncias. Em derradeira

    anlise, como controlar, pela via do direito, o abuso no desrespeito tanto

    9RICUPERO, op. cit., p. 46.

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    dignidade da pessoa humana quanto da privacidade que a espionagem

    oficial desmedida encerra.

    Trata-se, pois, de evitar anlise pela tica tanto da imposio

    por extenso universal de um sistema legal quanto da criao de

    sistemas regulatrios no-estatais10. Nesse passo, relevante destacar a

    observao de Brigitte Stern no sentido de que a nica maneira deregulamentar a economia global e o mundo globalizado desenvolver a

    eficincia da lei internacional, tanto no seu contedo quanto na sua

    estrutura legal. Em outras palavras, no h salvao fora da criao de um

    verdadeiro sistema internacional legislativo de regulamentao

    universal11. Essa perspectiva tanto mais verdadeira quanto mais se tem

    em ateno os efeitos da tecnologia na vida das pessoas.

    Com isso, e em consonncia como pensamento de Matias, razovel sustentar que a globalizao do direito

    pode ser desdobrada em dois aspectos principais: aumento nonmero de regras internacionais e proliferao das organizaes

    internacionais. Ambos os aspectos possuem carter jurdico e

    poltico e contribuem para a construo da sociedade global. O

    primeiro, de carter mais geral, abordado como globalizao

    jurdica. O segundo pode ser visto sob dois ngulos principais: a

    cooperao internacional e a integrao regional.12

    10 Para maiores aprofundamentos, ver STERN, Brigitte. How to regulateglobalization?. In: BYERS, Michael (Ed.) The role of law in international politics:essays in international relations and international law. Oxford: Oxford University Press,2001. pp. 246-268.11STERN, Brigitte. O contencioso dos investimentos internacionais. Barueri: Manole,2003. p. 8.12MATIAS, Eduardo. Humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano sociedadeglobal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. 197.

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    Parece, de incio, que esse modo de agir poderia dar o tom do

    tratamento a ser ministrado para os abusos cometidos por agncias do

    governo dos Estados Unidos da Amrica (EUA) no tocante invaso

    indiscriminada de correspondncias eletrnicas e de comunicaes de

    inmeras pessoas em plano global. Os desafios, no entanto, so imensos.

    conhecida a virtual ausncia de normas a vincular os Estados nesse

    domnio. E mais, no campo do direito das gentes, seguimos em terrenofortemente marcado pelo voluntarismo estatal. Isso tanto mais verdadeiro

    quanto mais se considera determinados modos de proceder na arena

    internacional de potncias como os EUA.

    Dessa forma, a implementao de marco legislativo no mbito

    do direito internacional de modo a regulamentar os espaos de atuao

    excepcional dos Estados na intromisso no direito privacidade em um

    mundo globalizado, bem como os mecanismos multilaterais de controledessa eventual intromisso, ainda est por ser feito.

    Tendo em conta o que foi dito, esse captulo do relatrio

    objetiva dar notcia do papel, ainda que rarefeito, do direito internacional

    pblico no atual combate a sistemas de espionagem como o implementado

    pela Agncia de Segurana Nacional dos EUA. Essa parcela do relatrio

    trar, ainda, notcia sumria dos trabalhos da comisso instalada no mbito

    do Parlamento Europeu para cuidar do assunto.

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    II. 2. Direito internacional pblico

    No campo do direito internacional pblico, o aspecto mais

    diretamente vinculado com os fatos investigados pela CIP da Espionagem

    relaciona-se com a dimenso de proteo aos direitos humanos. E, nesse

    domnio, com a necessidade de se respeitar a vida privada das pessoas.

    O direito privacidade sobressai como mecanismo de proteocontra a arbitrariedade praticada por agncias de governo estadunidenses

    no vasculhar indiscriminada e indistintamente a vida de sditos de

    diferentes pases, bem como seus respectivos governos. Os episdios que

    levaram instalao desta CPI representaram, a juzo de muitos, verdadeira

    ofensa a esse direito, consagrado em vrios instrumentos internacionais.

    Dessa forma, a interceptao irrestrita de comunicaes, bem

    como a gravao injustificada de dados pelos servios de inteligncia dosEUA denota implacvel violao privacidade do ser humano. Essa forma

    de agir significa sobretudo em democracias consolidadas como as

    envolvidas no episdioofensa gravssima a esse direito.

    Nessa ordem de ideias, convm recordar o que estabelecem

    alguns instrumentos internacionais em relao ao assunto. De incio, a

    Declarao Universal dos Direitos Humanos [DUDH (1948)], que assim

    dispe:

    Artigo XII. Ningum ser sujeito a interferncia arbitrria na sua

    privacidade, na sua famlia, no seu lar ou na sua correspondncia,

    nem a ataques sua honra e reputao. Toda pessoa tem direito

    proteo da lei contra tais interferncias ou ataques.

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    , por igual, oportuno consignar o estipulado em relao ao

    tema no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos [PIDCP

    (1966)]13:

    Artigo 17.

    1. Ningum poder ser objeto de ingerncias arbitrrias ou ilegais

    em sua vida privada, em sua famlia, em seu domiclio ou em sua

    correspondncia, nem de ofensas ilegais s suas honra e

    reputao.

    2. Toda pessoa ter direito proteo da lei contra essas

    ingerncias ou ofensas.

    No ponto, a Conveno Americana de Direitos Humanos

    [CADH, Pacto de San Jos da Costa Rica (1969)]14estipula:

    Artigo 11. Proteo da Honra e da Dignidade

    1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao

    reconhecimento de sua dignidade.

    2. Ningum pode ser objeto de ingerncias arbitrrias ou abusivas

    em sua vida privada, na de sua famlia, em seu domiclio ou em

    sua correspondncia, nem de ofensas ilegais sua honra e

    reputao.

    3. Toda pessoa tem direito proteo da lei contra tais

    ingerncias ou tais ofensas.

    A Conveno Europeia dos Direitos Humanos [CEDH (1950)]

    prescreve, por igual, que:

    Artigo 8. Direito ao respeito pela vida privada e familiar.

    1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e

    familiar, do seu domiclio e da sua correspondncia.

    13Incorporado ao ordenamento jurdico brasileiro por meio do Decreto n 592, de 1992.14Incorporado ao ordenamento jurdico brasileiro por meio do Decreto n 678, de 1992

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    2. No pode haver ingerncia da autoridade pblica no exerccio

    deste direito seno quando esta ingerncia estiver prevista na lei e

    constituir uma providncia que, numa sociedade democrtica, seja

    necessria para a segurana nacional, para a segurana pblica,

    para o bem-estar econmico do pas, a defesa da ordem e a

    preveno de infraes penais, a proteo da sade ou da moral,

    ou a proteo dos direitos e das liberdades de terceiros.

    A Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia

    (2010)15contempla, sobre a matria, o seguinte dispositivo:

    Artigo 7. Todas as pessoas tm direito ao respeito pela sua vida

    privada e familiar, pelo seu domiclio e pelas suas comunicaes.

    Dos textos transcritos, apropriado destacar que: a) inexiste,

    para fins do direito que se almeja proteger, distino de substncia entre

    privacidade (DUDH) e vida privada (CEDH); cuida-se, em derradeira

    anlise, to s da tentativa de assegurar a concordncia entre os textos

    ingls e francs; b)o Artigo 17 do PIDCP, cpia do Artigo XII da DUDH,

    , no entanto, mais enftico na proibio. Com efeito, ele visa a proibir

    interferncia arbitrria ou ilegal, ou seja, nenhuma interferncia pode

    ocorrer, exceto nos casos previstos em lei; c)a CEDH, por seu turno, prev

    (Art. 8, 2) limitaes que podem ser fixadas ao direito proclamado (Art.

    8, 1).

    Com exceo do bem estar econmico do pas, as demais

    limitaes previstas na CEDH so compreensveis. Contudo, mesmo em

    relao a esses limites necessrio juzo de ponderao, de razoabilidade e

    de clara percepo no sentido de que, na dvida sobre se determinada

    15O texto retoma, com adaptaes, a Carta proclamada em 7 de dezembro de 2000, e asubstitui a partir da entrada em vigor do Tratado de Lisboa.

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    forma de ao do Estado afronta essa proteo, deve-se garantir o direito

    privacidade da potencial vtima.

    To exato quanto o que foi acima dito a circunstncia de que

    as normas de direito internacional que, de tal ou qual forma, cuidam da

    matria no definem o que se entende por privacidade ou vida privada.

    O conceito, de resto, ambguo tambm no plano jurdico interno dos

    Estados. Cuida-se provavelmente do direito mais difcil de definir no amplo

    catlogo internacional de direitos humanos. As definies variam

    enormemente vista do contexto e do ambiente que se tem em

    considerao. A depender do interessado/intrprete, ele pode adquirir

    distintas acepes. Assim, por exemplo, contemplar proteo:

    1. Da inviolabilidade fsica e mental do indivduo e da

    liberdade intelectual e moral da pessoa;

    2.

    Contra ataques honra ou reputao do indivduo e

    ofensas similares;

    3.

    Do nome, identidade ou imagem do indivduo contra

    uso no autorizado;

    4. Contra a divulgao de informao abrangida pelo dever

    de segredo profissional; e

    5.

    Contra ser espionado, vigiado ou molestado16.

    16 Para maiores desdobramentos, v., entre outros, LOUCAIDES, L. Personality andprivacy under the European Convention on Human Rights. British Year Book ofInternational Law, vol. 61, pp. 175-197, 1990.

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    Entendimento mediano registra que a vida privada seria o

    direito de viver, de acordo com sua vontade, protegido da publicidade.

    Ocorre, todavia, que as pessoas vivem em sociedade. Com isso, a proteo

    privacidade pode sofrer temperamentos. De toda forma, as autoridades

    pblicas competentes somente podem exigir informao relacionada vida

    privada de uma pessoa na hiptese de essa informao ser essencial para os

    interesses da sociedade em questo. E aqui vale uma advertncia: mesmoem relao s ingerncias permitidas no direito das gentes, a legislao

    estatal relevante deve especificar, de maneira detalhada, as circunstncias

    precisas em que essas intromisses so permitidas.

    Dessa forma, a coleta e o armazenamento de informaes

    pessoais em computadores, banco de dados e outros dispositivos, seja por

    autoridades pblicas ou pessoas fsicas ou jurdicas, devem ser regulados

    por lei. Para alm disso, medidas eficazes devem ser tomadas pelo Estadopara assegurar que informaes a respeito da vida privada de uma pessoa

    no estejam ao alcance de outras pessoas no autorizadas por lei para

    receber, processar ou usar tais informaes. , pois, obrigao dos Estados

    a adoo de medidas legislativas e outras necessrias para dar efeito

    proibio de interferncias e ataques. Em sntese, a plena fruio do direito

    privacidade demanda ao e vigilncia constante do Estado.

    Os tratados transcritos representam avano no plano

    internacional da proteo do direito privacidade, mas vinculam, to s, os

    Estados que formalmente se comprometeram por meio da

    ratificao/adeso. Essa circunstncia no vale para a DUDH, certo; no

    menos certo, entretanto, que esse instrumento no autoaplicvel. A

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    Declarao, em sntese, no dispe de mecanismos asseguradores do

    cumprimento de suas disposies.

    J o PIDCP possui meios de implementao e monitoramento,

    que envolve a sistemtica de relatrios encaminhados pelos Estados-partes,

    bem como o mecanismo opcional de comunicaes interestatais. A esse

    sistema, o Protocolo Facultativo ao Pacto adiciona a possibilidade de

    peties individuais a serem apreciadas pelo Comit de Direitos Humanos.

    O direito de petio individual mencionado colabora com a

    institucionalizao da capacidade processual internacional dos indivduos e

    constitui forma de proteo. H, assim, algum modo de international

    accountability.

    Ocorre, entretanto, que os Estados Unidos da Amrica no

    esto vinculados a esses meios de proteo. Eis a um grande paradoxo: oEstado que pretende ser o guardio dos direitos e garantias fundamentais

    no endossa os documentos internacionais relacionados com a matria. Em

    relao aos seus nacionais, o governo americano adota um procedimento; j

    no tocante aos estrangeiro, a conduta outra. Faa oque eu digo, mas no

    faa o que eu fao. Tratando-se de pas com slida tradio democrtica,

    esse exemplo , a vrios ttulos, lamentvel.

    No mbito da ONU, convm recordar, desde logo, que otratado constitutivo da Organizao estabelece entre seus propsitos

    promover e estimular o respeito aos direitos humanos e s liberdades

    fundamentais para todos (Art. 1, 3, da Carta da ONU). Com o tempo,

    essa finalidade foi alargadatanto no que tange aos instrumentos quanto

    no tocante s instituies e adquiriu maior consistncia. Nos dias de

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    hoje, o Alto Comissrio das Naes Unidas para os Direitos Humanos

    trabalha para oferecer conhecimento e apoio aos diferentes mecanismos de

    monitoramento dos direitos humanos no sistema onusiano. Ele , de algum

    modo, o corao do sistema.

    Dentro do esprito de ampliar o debate em torno das graves

    violaes perpetradas pelo governo dos Estados Unidos e de modo a lev-

    lo para o campo do multilateralismo, o governo brasileiro estimou

    adequado acionar os canais disponveis nas Naes Unidas. Nesse sentido,

    o Brasil, em conjunto com a Alemanha, ofereceu proposta de resoluo

    Terceira Comisso da Assembleia-Geral (AG) da Organizao. Ambos os

    pases apresentaram, no dia 1 de novembro de 2013, projeto de resoluo

    sobre o direito privacidade na era digital17. O assunto foi endereado,

    como referido, Terceira Comisso da AG, responsvel por temas

    relacionados com aspectos sociais, humanitrios e culturais18.

    A proposta bilateral em comento tem sua gnese vinculada,

    como j destacado no mbito deste relatrio, s revelaes feitas pelo Sr.

    Edward Snowden. Em conformidade com o que foi divulgado, os servios

    de espionagem dos EUA devassaram a privacidade de sditos (pessoas

    fsicas e jurdicas) de diversos pases, com destaque para as comunicaes

    17V. ntegra da proposta tanto na verso autntica (em ingls) quanto na oficial (emportugus) em: http: //www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/brasil-e-alemanha-apresentam-a-assembleia-geral-da-onu-projeto-de-resolucao-sobre-o-direito-a-privacidade-na-era-digital.Acesso em: 4 de nov. de 2013.18 A Assembleia-Geral desempenha suas funes por meio do trabalho de seisComisses principais, nas quais todos os membros tm direito a representao. So elas:Primeira Comisso (poltica e segurana); Segunda Comisso (econmica e financeira);Terceira Comisso (social, humanitria e cultural); Quarta Comisso (tutela); QuintaComisso (administrativa e oramentria); e Sexta Comisso (jurdica).

    http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/brasil-e-alemanha-apresentam-a-assembleia-geral-da-onu-projeto-de-resolucao-sobre-o-direito-a-privacidade-na-era-digitalhttp://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/brasil-e-alemanha-apresentam-a-assembleia-geral-da-onu-projeto-de-resolucao-sobre-o-direito-a-privacidade-na-era-digitalhttp://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/brasil-e-alemanha-apresentam-a-assembleia-geral-da-onu-projeto-de-resolucao-sobre-o-direito-a-privacidade-na-era-digitalhttp://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/brasil-e-alemanha-apresentam-a-assembleia-geral-da-onu-projeto-de-resolucao-sobre-o-direito-a-privacidade-na-era-digitalhttp://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/brasil-e-alemanha-apresentam-a-assembleia-geral-da-onu-projeto-de-resolucao-sobre-o-direito-a-privacidade-na-era-digitalhttp://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/brasil-e-alemanha-apresentam-a-assembleia-geral-da-onu-projeto-de-resolucao-sobre-o-direito-a-privacidade-na-era-digital
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    telefnicas e eletrnicas de distintos chefes de Estado. O tema motivou

    oportuno discurso da Presidente Dilma Rousseff na abertura do Debate

    Geral da 68 Assembleia-Geral da ONU, em 24 de setembro de 201319. O

    governo brasileiro dava, assim, incio ao lanamento de ao, no mbito

    das Naes Unidas, com vistas a coibir ou diminuir semelhante conduta.

    Desde ento, a matria tem avanado com certa dificuldade.

    Diferentes pases, destacadamente europeus, hesitam em assumir atuao

    mais bem definida no plano diplomtico. O cenrio comea a se alterar

    com revelaes de que os Estados Unidos tambm espionaram alemes,

    franceses, espanhis e, at mesmo, o Papa. Nesse sentido, a Chanceler

    Federal alem, Angela Merkel, ficou particularmente agastada com a

    apresentao de indcios veementes de que seu aparelho celular havia sido

    grampeado por agentes norte-americanos.

    Em face disso, o Brasil conseguiu, como referido, apoio da

    Alemanha na tentativa de avanar na ONU proposta de resoluo, a ser

    encaminhada considerao da Assembleia-Geral (AG), com o objetivo de

    ampliar o direito privacidade previsto no Pacto Internacional de Direitos

    Civis e Polticos. A proposta foi aprovada no dia 26 de novembro de 2013

    na referida Comisso, tendo sido encaminhada apreciao da AG no final

    do ano. Nessa ordem de ideias, o projeto em comento o primeiro passo no

    sentido de conter, ainda que minimamente, a intruso de determinados

    19V. ntegra do discurso em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/presidente-da-republica-federativa-do-

    brasil/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-na-abertura-do-debate-geral-da-68a-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-nova-york-eua-24-09-2013. Acesso em: 5de nov. de 2013.

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    rgos de governo de diferentes pases nas comunicaes, sobretudo

    online, de estrangeiros.

    A proposta representa o preldio do projeto de resoluo a ser

    encaminhada considerao da AG das Naes Unidas. Assim, convm ter

    notcia, ainda que breve, dos efeitos de uma resoluo aprovada pelo rgo

    plenrio mximo da Organizao.

    As resolues da Assembleia-Geral das Naes Unidas no

    tm, em princpio, o condo de produzir norma vinculante de direito

    internacional20. Elas, de resto, obedecem dinmica prpria no campo

    internacional. Sua gnese se d no contexto de uma organizao

    internacional e o ato final de aprovao no prev, em regra, audincia

    preliminar dos respectivos parlamentos dos Estados membros da

    organizao.

    Dessas caractersticasausncia de fora vinculante e gnese

    organizacional , a primeira tem, aos olhos de muitos, sofrido

    abrandamentos. Assim, as resolues aprovadas com maioria qualificada,

    as que interpretam dispositivos do tratado constitutivo da ONU e as

    vocacionadas a codificar normas consuetudinrias na esfera internacional

    tm adquirido, para alguns, estatura de norma vinculante. H, por igual,

    percepo de que, em determinados casos, as resolues da Assembleiaconstituem evidncia de direito consuetudinrio internacional.

    20 Registramos que o termo resoluo no se encontra no Tratado Constitutivo daOrganizao das Naes Unidas (ONU). A Carta da ONU faz meno palavrarecomendao (arts. 10, 11, 12, 13 e 14). Os usos e costumes, no entanto, fizeramcom que as recomendaes oriundas da Assembleia-Geral fossem comumente referidascomo resolues.

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    Essa constatao, no entanto, no cria, por si s, nova regra de

    direito consuetudinrio. Representa, contudo, importante ponto de partida

    para o estabelecimento de norma costumeira. Nesse sentido, digna de

    nota manifestao da Corte Internacional de Justia (CIJ) sobre a matria

    externada em opinio consultiva de meados dos anos 90.

    Da deciso do principal rgo judicirio das Naes Unidas,

    recolhemos a seguinte passagem [nfase acrescida (traduo livre)]:

    A Corte observa que as resolues da Assembleia-Geral mesmoque no sejam vinculantes, podem eventualmente ter valor

    normativo. Elas podem, em determinadas circunstncias,

    proporcionar importante evidncia para o estabelecimento da

    existncia de norma ou do surgimento de opinio juris. Para fixar

    quando isso ocorre, necessrio apreciar seu contedo, bem

    assim as condies de sua adoo21.

    Esse o quadro, passamos a tecer consideraes sobre ocontedo da proposta germano-brasileira. De incio, oportuno registrar,

    uma vez mais, que o assunto foi encaminhado Terceira Comisso vista

    da circunstncia de que para l so endereados os temas que tenham

    desdobramento social, humanitrio e cultural. Parte importante do trabalho

    dessa Comisso est direcionada ao exame de questes pertinentes aos

    direitos humanos.

    21Texto original: The Court notes that General Assembly resolutions, even if they arenot binding, may sometimes have normative value. They can, in certain circumstances,

    provide evidence important for establishing the existence of a rule or of emergence ofan opinio juris. To establish whether this is true of a given General Assemblyresolution, it is necessary to look at its content and the conditions of its adoption.UNITED NATIONS. International Court of Justice. Legality of the Theater or Use of

    Nuclear Weapons (Opinio Consultiva), ICJ Reports, 8 de julho de 1996, 70, pp. 254-255. Disponvel em: . Acesso em: 4nov. 2013.

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    Dessa maneira, a Comisso acompanha os desenvolvimentos

    produzidos na esfera dos direitos humanos no mbito onusiano. Na

    67 Sesso da AG, por exemplo, a Terceira Comisso apreciou 59 minutas

    de resolues sobre essa temtica, das quais mais da metade foi submetida

    ao rgo colegiado mximo da Organizao22.

    Nessa ordem de ideias, ambos os pases estimaram por bem

    apresentar o projeto de resoluo em anlise. O texto produzido foi o

    primeiro esboo. Ele recebeu sugestes e resultou aprovado no mbito da

    Terceira Comisso. Com efeito, no dia 26 de novembro de 2013 essa

    Comisso aprovou, como mencionado, o texto. A redao final sofreu, no

    entanto, alguma alterao. De forma a angariar o apoio dos EUA, da Gr-

    Bretanha, da Austrlia, do Canad e da Nova Zelndia, o projeto foi

    amenizado em seu tom inicial. A principal modificao foi no sentido de

    afastar eventual relao direta entre espionagem e direitos humanos.

    A proposta d o tom do que se deseja: ampliar e reafirmar na

    era digital o direito privacidade, contemplado em distintos instrumentos

    internacionais23. O documento segue o linguajar diplomtico de estilo. Ele

    comea em forma de considerandos. Dentre estes, vale destacar os

    seguintes:

    PP4. Observando que o ritmo acelerado do desenvolvimentotecnolgico permite aos indivduos em todas as regies utilizarem

    novas tecnologias de informao e comunicao e, ao mesmo

    22Dados extrados do endereo eletrnico da Comisso (http://www.un.org/en/ga/third/.Acesso em: 5 de nov. de 2013).23 V., por exemplo, Art. 12 da Declarao Universal dos Direitos Humanos; Art. 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e

    Polticos; e Art. 7 da Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia (UE).

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    tempo, aumenta a capacidade de governos, empresas e indivduos

    de vigiar, interceptar e coletar dados, o que pode violar os direitos

    humanos, em particular o direito privacidade, tal como

    consagrado no artigo 12 da Declarao Universal dos Direitos

    Humanos e no artigo 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e

    Polticos e constitui, portanto, tema de preocupao crescente

    (...)

    PP8. Enfatizando que a vigilncia ilegal das comunicaes, sua

    interceptao, bem como a coleta ilegal de dados pessoais

    constituem atos altamente intrusivos que violam o direito privacidade e liberdade de expresso e que podem ameaar os

    fundamentos de uma sociedade democrtica.

    PP10. Profundamente preocupada com violaes e abusos dosdireitos humanos que podem resultar de qualquer vigilncia,inclusive extraterritorial, das comunicaes, sua interceptao, bemcomo coleta de dados pessoais, em particular da vigilncia,interceptao e coleta de dados em massa.

    Na sequncia, o projeto prescreve que os mesmos direitos que

    as pessoas possuem fora da rede (offline) devem ser protegidos em rede

    (online). O texto termina conclamando os Estados a respeitar os direitos

    humanos, de modo especial, o direito privacidade; a adotarem medidas

    com vistas a cessar eventuais violaes; a revisarem suas prticas,

    procedimentos e legislao no que tange ao tema; e a estabelecerem

    mecanismos nacionais independentes de superviso de modo a assegurar

    transparncia e responsabilizao por possveis transgresses. O projeto

    solicita, por fim, Alta Comissria das Naes Unidas para os Direitos

    Humanos, Senhora Navanathen (Navi) Pillay, que apresente AG relatrio

    preliminar sobre a proteo do direito privacidade no contexto da

    vigilncia nacional e extraterritorial das comunicaes, sua interceptao e

    coleta de dados pessoais em massa.

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    O teor do documento aprovado na Terceira Comisso e na AG

    no oferece elementos caracterizadores da opinio juris. Sendo assim, ele

    no tem, mesmo que em estado latente, o jeito de costume. Ou seja, o

    projeto como redigido no tem efeito jurdico gerador de obrigaes

    internacionais. Em resumo, trata-se, ao menos no primeiro momento, de

    instrumento mais poltico do que jurdico. E mesmo sob essa tica, ambos

    os governos no pretendem apontar os EUA como grandes viles. Elesbuscam, de um lado, dar recado poltico de suas insatisfaes; de outro,

    caminhar no sentido de se ampliar a proteo para as comunicaes online

    do direito privacidade. Essa extenso, ao sentir de muitos, necessria,

    visto que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos foi adotado

    pela XXI Sesso da Assembleia-Geral das Naes Unidas, em 16 de

    dezembro de 1966. Naquela altura, os meios de comunicao e de troca de

    informaes eram muito mais rudimentares.

    Historicamente, as resolues da Assembleia-Geral

    representam mais a necessidade de manter o tema objeto do instrumento na

    agenda internacional e na direo de algo vinculante no futuro do que fonte

    cogente do direito internacional. Os exemplos podem ser contados

    exausto. Ocorre, no entanto, que, passados quase 69 anos do nascimento

    das Naes Unidas, tanto a doutrina quanto a jurisprudncia internacionais

    comeam a indicar que determinados documentos tm, pelo menos, o

    requisito da opinio jurisque todo costume encerra.

    Isso no , ao que parece, o que se apresenta no caso presente.

    Cuida-se de iniciativa que poder, de modo eventual, tornar-se o embrio

    de algo mais consistente no sentido de se proteger o direito privacidade

    na era digital. Essa perspectiva, havendo vontade poltica no campo

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    internacional, j dispe de instrumentos para sua implementao. Outro

    aspecto a considerar o fato de que possvel resoluo no sentido do que se

    deseja carrega forte contedo moral.

    De todo o exposto, v-se que, no campo do direito

    internacional, as perspectivas de ao contra os Estados Unidos da Amrica

    pelos fatos objeto desta CPI so praticamente inexistentes. De toda

    maneira, esse ramo da cincia jurdica pode dar o tom de tratamento mais

    abrangente do assunto, tendo em conta o que descrito no romper desse

    captulo, ou seja, o inexorvel processo de globalizao em que o mundo

    est inserido.

    Assim, tambm em relao ao trato dessa matria, o Estado

    individualmente considerado tornou-se pequeno demais para enfrentar a

    questo de maneira isolada. H necessidade de atuao conjunta, de modo aerigir alguma forma de governana global no tocante matria.

    Em resumo, os mecanismos atualmente existentes para tanto

    so pequenos, para no dizer inexistentes, mas as possibilidades so

    grandes. De todo modo, parece cada vez mais necessrio o estabelecimento

    de marco multilateral para a governana internacional do setor de

    comunicaes, sobretudo da internet, de forma a assegurar a efetiva

    proteo de dados, bem assim a privacidade das pessoas e das empresas,para no mencionar as informaes dos governos.

    A necessidade de manter sob controle os excessos do Estado

    na vigilncia secreta manifesta. O tema, no entanto, demandar muito

    consumo de energia nos anos que esto por vir. De toda maneira,

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    fundamental manter os olhos no alvo certo, que no , de modo necessrio,

    a questo da espionagem mtua entre os Estados, mas a profunda eroso do

    direito privacidade.

    Outro aspecto relacionado ao direito das gentes o que se

    vincula Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas de 1961. Esse

    instrumento convencional codificou normas consuetudinrias que tm atrs

    de si longa histria. O documento invoca em seus considerandos os

    propsitos e princpios da Carta das Naes Unidas relativos igualdade

    soberana dos Estados, manuteno da paz e da segurana internacional e

    ao desenvolvimento das relaes de amizade entre as naes. Vrios

    dispositivos esto, dessa ou daquela maneira, vinculados ao tema objeto de

    nossas preocupaes (p. ex.: arts. 24, 27 e 40).

    O artigo 41 da Conveno, entretanto, merece destaque. Emseu inciso terceiro, ele prescreve que os locais da Misso no devem ser

    utilizados de maneira incompatvel com as funes da Misso. Entre essas

    funes est a de inteirar-se por todos os meios lcitos das condies

    existentes e da evoluo dos acontecimentos no Estado acreditado e

    informar a respeito o Governo do Estado acreditante [art. 3, d (nfase

    acrescida)].

    As notcias divulgadas demonstram, em larga medida, queprincpios caros aos membros da ONU, transcritos em seu tratado

    constitutivo, foram afrontados. Elas revelam, ainda, que os EUA, tambm

    mediante sua Misso em Braslia, utilizaram-se de meios ilcitos para se

    inteirar de acontecimentos em nosso pas envolvendo no s amplo

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    leque de nacionais (pessoas fsicas e jurdicas), mas tambm escales mais

    elevados da administrao federal.

    O contexto antes descrito de afronta Conveno de Viena

    tanto mais grave quanto mais temos em ateno a circunstncia de que

    ambos os pases possuem Acordo de Assistncia Judiciria em Matria

    Penal

    24

    . Esse tratado visa justamente facilitar a execuo das tarefas dasautoridades responsveis pelo cumprimento da lei de ambos os pases, na

    investigao, inqurito, ao penal e preveno do crime por meio de

    cooperao e assistncia judiciria mtua em matria penal. O governo

    estadunidense poderia ter utilizado essa via em sua luta no combate ao

    terrorismo, por exemplo. De outra maneira, pode-se destacar a existncia

    de mecanismo idneo para se alcanar o fim almejado em estrita

    observncia aos direitos e garantias fundamentais. O regime democrtico

    impe sacrifcios. O absoluto respeito ordem jurdica , por vezes, um

    deles.

    II. 3. Direito comunitrio

    O chamado direito comunitrio representa desdobramento do

    direito da integrao, que se desenvolveu a partir da consolidao de blocos

    econmicos regionais. Esses blocos tm como objeto a integrao entre

    pases para a proteo e a consolidao de objetivos comuns. Diferenas

    institucionais, relacionadas com realidades histricas, econmicas e

    24 Incorporado ao ordenamento jurdico brasileiro por meio do Decreto n 3.810, de2001.

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    polticas, caracterizam os diferentes modelos de integrao econmica.

    Nesse sentido, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Unio Europeia

    (UE) so bons exemplos dessas distintas formas de integrao.

    O Mercosul representa forma de integrao em fase de

    desenvolvimento. Ele tem como principal instituto a intergovernabilidade.

    No h, portanto, delegao de soberania dos Estados. H, assim,

    necessidade de que as normas provenientes do processo de integrao

    sejam aceitas por todos os membros do bloco. Em que pese o avano

    verificado desde sua criao, esse Mercado ainda se mostra imaturo em

    relao aos seus objetivos. Cuida-se de modelo integracionista que tem por

    base o direito internacional pblico. Nesse sentido, pode-se dizer que o

    Mercosul uma organizao internacional de corte clssico.

    J a UE simboliza integrao mais consistente. Ela logrouadotar, por exemplo, um mercado comum e uma moeda nica. Seus

    fundamentos se encontram no direito comunitrio, que tem por base a

    subsidiariedade, a aplicabilidade imediata das normas provenientes do

    bloco e a supranacionalidade.

    Outro aspecto a levar em conta o que diz com a

    institucionalizao do bloco. No caso europeu, ela muito mais slida.

    Assim, por exemplo, a existncia de ordenamento judicirio, que tem porvrtice o Tribunal de Justia da UE. Esse rgo atuou e atua de modo

    decisivo por meio de decises que corroboram a autonomia desse direito.

    Ele, em ltima anlise, proporciona uniformidade na interpretao

    jurisprudencial e na aplicao das normas comunitrias.

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    Tendo em conta a maior solidez no mbito do direito da

    integrao do direito comunitrio, bem assim as iniciativas da UE no

    tocante tanto proteo dos direitos humanos, sobretudo de seus cidados,

    quanto ao combate da espionagem indiscriminada mediante novas

    tecnologias, esta parte do relatrio levar em conta os trabalhos que nesse

    domnio vm sendo produzidos na Europa integrada, de modo destacado no

    mbito do Parlamento Europeu (PE). Essa anlise revela-se importante nosentido de verificar outras prticas, bem como de constatar que a

    indignao do parlamento brasileiro com a espionagem realizada pela NSA

    no ato isolado.

    Na amplo espectro de instituies da UE, merece destaque

    para as finalidades desta parte do relatrio os trabalhos no PE. Trata-se,

    como o nome indica, da instituio parlamentar da UE. Nesse Parlamento,

    que tem sede em Estrasburgo, esto representadas as grandes tendnciaspolticas encontrveis nos pases membros. Ele tem trs competncias

    principais:

    1) adoo de atos legislativos europeus, que tem sua forma mais

    usual no processo de co-deciso entre esse rgo e o Conselhoda UE, detentor do monoplio legislativo em alguns domnios

    (agricultura, poltica econmica e de imigrao, por exemplo).

    Ainda nesse campo, a adeso de novos pases UE demanda a

    aprovao do Parlamento;

    2) controle democrtico das demais instituies europeias. Assim,por exemplo, a aprovao dos membros da Comisso indicados

    pelos Estados membros e a possibilidade de estabelecimento de

    uma moo de censura, que implica a demisso de toda aComisso; a anlise peridica de relatrios enviados pela

    Comisso, de peties apresentados por cidados e instituio de

    comisses de inqurito; e

    3) aprovao e controle da execuo do oramento anual da UE,

    decidido em conjunto como Conselho. O Parlamento exerce,

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    ainda, controle sobre a gesto de crditos e avalia os efeitos dos

    financiamentos realizados com base no oramento.

    , portanto, na competncia que trata do controle democrtico

    que reside o papel do PE para tambm avaliar os episdios trazidos a

    pblico e fartamente noticiados pelo The Guardian. O PE tem experincia

    acumulada no tocante criao de comisses de inqurito (committee of

    inquiry). Para o assunto que nos interessa, suficiente recordar a comisso

    sobre a existncia de sistema global para a interceptao de comunicaes

    privadas e comerciais (ECHELON interception system). Essa comisso

    apresentou seu relatrio final em julho de 200125. De tal ou qual maneira,

    ela cuidou de aspectos assemelhados aos que constituem objeto da nossa

    CPI.

    Passados doze anos, o PE viu-se, uma vez mais, diante da

    perspectiva de investigar novos fatos reveladores de ampla e

    indiscriminada espionagem levadas a efeito por governo de pas

    considerado, a vrios ttulos, aliado e amigo dos pases membros da UE.

    Dessa maneira, foi instituda, no mbito da Comisso de Liberdades Civis,

    Justia e Assuntos Internos [Civil Liberties, Justice and Home Affairs

    (LIBE)] do Parlamento, a Comisso de Inqurito sobre Espionagem

    Eletrnica em Massa de Cidados da Unio Europeia (LIBE Committee

    Inquiry on Electronic Mass Surveillance of EU Citizens). Por meio deresoluo de 4 de julho de 2013, o PE estabeleceu o mandato da Comisso

    25 Relatrio final disponvel em: http://www2.europarl.eu.int/omk/OM-Europarl?PROG=REPORT&L=EN&PUBREF=-//EP//TEXT+REPORT+A5-2001-0264+0+NOT+SGML+V0//EN. Acesso em: 25 de nov. de 2013.

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    e seu programa de trabalho26. A experincia pretrita (Sistema ECHELON)

    e o resultado das inmeras audincias realizadas no mbito da Comisso

    daro suporte para o relatrio final, votado no primeiro semestre de 2014.

    Os desafios da Comisso de Inqurito da LIBE so, tambm,

    imensos. Eles dizem respeito, por exemplo, exata separao entre

    competncias domsticas e comunitrias na proteo os respectivos

    sistemas de dados. Para alm disso, importante registrar que os trabalhos

    dessa comisso esto includos em marco legal distinto daquele em que se

    insere o Senado Federal. De qualquer forma, as atribuies e competncias

    de um parlamento domstico so distintas daquelas outorgadas a um

    parlamento comunitrio.

    Para alm dessa circunstncia, convm sublinhar que os

    europarlamentares tm suas origens em pases com sistema de governoparlamentarista. Esse fato repercute, de algum modo, na anlise da

    situao, sobretudo no tocante s eventuais medidas a serem adotadas em

    relao ao objeto da investigao. que no sistema presidencialista, ao

    qual estamos inseridos, a conduo das relaes exteriores competncia

    privativa do Presidente da Repblica (art. 84, VII, da Constituio Federal).

    virtualmente inexistente nesse contexto ao ativa por parte do

    Congresso Nacional. Nesse domnio, o parlamento pode, to s, exercer

    sua funo fiscalizadora [p.ex.: realizao de audincia pblica,

    convocao de Ministro de Estado, (des)aprovao do oramento,

    (des)aprovao da escolha de chefes de misso diplomtica de carter

    26 Encontrvel em:http://www.europarl.europa.eu/document/activities/cont/201309/20130904ATT70774/20130904ATT70774EN.pdf. Acesso em: 25 de nov. de 2013.

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    permanente, (des)autorizao de operaes externas de natureza financeira

    de interesse da Unio].

    O quadro antes descrito ficou evidenciado quando da

    videoconferncia realizada entre o PE e membros desta CPI no dia 18 de

    dezembro de 2013. O encontro, para alm do seu pioneirismo, representou

    importante aproximao do Senado com a instituio parlamentar da Unio

    Europeia. A percepo que restou a de que, definidos os exatos limites

    das respectivas competncias (domstica e comunitria), o PE pode ter

    atuao um pouco mais destacada em relao ao assunto, sem que ela, no

    entanto, seja exuberante.

    Nesse sentido, o relatrio final da Comisso da LIBE, a que

    esta Comisso teve acesso em 21 de fevereiro de 2014, faz invocao de

    inmeras decises nas esferas internacionais, comunitrias, domsticas eestrangeiras relacionadas, de alguma maneira, ao assunto da espionagem

    em massa. Reconhece que muitos dos problemas de agora so similares

    queles apontados no relatrio do Sistema ECHELON. Indica que a

    ausncia de marco legislativo consistente para acompanhar as

    recomendaes da Comisso de Inqurito ECHELON representa

    importante lio para a situao presente. Nesse sentido, o relator da

    Comisso, Senhor Claude Moraes, sugere a implementao de 8 aes no

    marco do que denomina Habeas Corpus Digital Europeu protegendo

    direitos fundamentais na era digital (A European Digital Habeas Corpus

    protecting fundamental rights in a digital age). Prope, ao final, minuta de

    resoluo para apreciao plenria do respectivo parlamento.

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    O Relatrio LIBE oferece, ainda, em sua justificao

    (explanatory statement) observao relevante a vrios ttulos. Cuida-se do

    fato de que as reaes aos graves fatos divulgados terem tido pouco

    repercusso nos parlamentos dos Estados membros da UE. Com exceo da

    Alemanha, o tema no mereceu consideraes mais severas nem mesmo

    nos pases cuja imprensa foi mais contundente: Reino Unido (The

    Guardian) e France (Le Monde). Nesse sentido, o relatrio registra acontribuio de rgos dos parlamentos belga, neerlands, dinamarqus e

    noruegus. Os parlamentos britnico e francs declinaram participao. O

    fato , de alguma forma, eloquente das percepes em relao matria e

    chama a ateno para a relevncia desta Comisso, que apesar de alguma

    resistncia no deixou o tema passar em branco por decurso de prazo.

    Assim, as concluses a que chegaremos neste relatrio esto

    mais relacionadas com nosso marco jurdico. Em derradeira anlise, asavaliaes aqui feitas dizem mais respeito s imperfeies dos nossos

    servios de inteligncia e contrainteligncia; s debilidades dos nossos

    sistemas de comunicao e, como tal, merecem resposta e tratamento no

    mbito interno, ao menos no primeiro momento. nele que o Parlamento

    brasileiro pode exercer suas atribuies de fiscalizao de modo mais

    consistente. De toda maneira, fundamental perceber com ateno o

    exerccio do PE por intermdio da Comisso de Inqurito da LIBE de

    forma a oferecer perspectiva comparada nas medidas que ho de ser

    aplicadas nos anos que esto por vir.

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    II. 4. Concluses

    O direito das gentes atual trata de temas os mais variados. Isso

    se d considerando, entre outras coisas, a globalizao, a proliferao de

    normas, o aumento no nmero de atores com poder negocial, o fim do

    mundo bipolar e a emergncia da democracia em seus domnios, ainda que

    relativamente mitigada. Ele, em sntese, penetra reas que se relacionam ao

    econmico, social, cultural, tcnico. Esse aumento nas faixas de atuao ,

    de tal ou qual modo, consequncia da crescente necessidade de os atores

    internacionais enfrentarem novas questes no seu relacionamento mtuo

    sem as amarras de muitos dos acontecimentos referidos.

    Os problemas, novos ou sob novas roupagens, transcendem a

    noo de territrio estatal. Assim, por exemplo, direitos humanos, meio

    ambiente, sade, comunicaes, crime organizado, terrorismo, domnio

    pblico (regies polares, mar, bacias hidrogrficas, espao extra-

    atmosfrico e sideral), patrimnio comum da humanidade, comrcio,

    finanas e propriedade intelectual.

    Recentes ou antigos, os atuais desafios perpassam diferentes

    domnios, que faz com que o direito internacional continue em constante

    evoluo. Para compreender esse processo parece mais apropriado ter os

    ps no cho. Nesse sentido, as observaes de Alan Pellet so pertinentes.

    Segundo o terico francs, o direito reflete o estado das relaes de fora.

    Esta concluso pode parecer pessimista. Mas o direito no um trabalho

    dos poetas; e me parece o contrrio, como a dura escola do realismo. Ele

    fotografa a sociedade tal como ela , compreendo que esta imagem pode

    serdeveria ser, sem dvidaum encorajamento para tentar modificar

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    as relaes de fora que a atravessam. Mas no esqueamos, o direito, e

    nele compreendido o Direito Internacional, pode e deve se adaptar s

    mudanas sociais, porm ele mais a consequncia destas mudanas do

    que sua causa (nfase acrescida).27

    Entre arroubos otimistas e notas pessimistas, parece-nos que a

    linha mediana deve prevalecer na compreenso das fases dedesenvolvimento do direito internacional, mas, sobretudo, na projeo de

    seus desdobramentos futuros. Tendo em conta essa maneira de perceber, o

    tema objeto de considerao desta CPI apresenta desdobramento no campo

    do direito das gentes. Ele, no entanto, tem suas limitaes, na linha do que

    proposto pelo Prof. Pellet.

    A leitura do assunto pela tica do direito internacional pode

    vir a ter alargamentos futuros, que, no entanto, dependem mais da ao doPoder Executivo. Assim o pelo mandamento constitucional que entrega

    ao Presidente da Repblica a conduo da vida externa da Nao. Ao

    parlamento compete chancelar, ou no, as negociaes presidenciais e

    controlar essa ao por meio, por exemplo, de convocao do Ministro de

    Estado das Relaes Exteriores. Outra possibilidade se coloca no momento

    de aprovao do oramento.

    Nesse sentido, importante estimular toda iniciativa nosentido de levar o assunto para foros multilaterais. Para tanto, as

    organizaes internacionais [p. ex. ONU, Organizao para a Cooperao e

    27 PELLET, Alain. As novas tendncias do direito internacional: aspectosmacrojurdicos. In: BRANT, Leonardo (Coord.). O Brasil e os novos desafios dodireito internacional. Rio de Janeiro: Forenses, 2004, pp. 3-25, p. 25.

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    o Desenvolvimento Econmico (OCDE), Unio Internacional de

    Telecomunicaes (UIT)] representam espao mais adequado para a

    ampliao dos debates em torno dos temas abordados nesta CPI. certo

    tambm que as organizaes tm suas vicissitudes; no menos certo que,

    apesar dos seus enormes desafios, os debates realizados em seus domnios

    tm o condo de deixar o assunto em evidncia. Isso, por si, representa algo

    bastante relevante. Na linha da proposio do escritor Saramago: nodevemos ter pressa, mas no podemos perder tempo.

    Outra possibilidade caminhar no sentido da positivao, por

    meio de tratados, de aspectos do assunto, em relao aos quais a

    comunidade internacional possui mais consistncia e consenso em seus

    desgnios. A via convencional pode consolidar, por exemplo, a iniciativa

    braslico-germnica apresentada considerao da ONU. Ela pode, ainda,

    partir para a elaborao de arcabouo jurdico internacional de forma a daros contornos mnimos dos assuntos aqui analisados. Partir para uma

    governana global e mais democrtica da Internet, por exemplo. Esse

    caminho mais longo, mas tambm aquele em que se podem vislumbrar

    maiores possibilidades de xito futuro no sentido de se combater episdios

    como os denunciados pelo Sr. Edward Snowden.

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    Parte IIIATIVIDADE DE INTELIGNCIA

    III. 1. Segunda profisso mais antiga do mundo

    Costuma-se dizer que a atividade de inteligncia to antigaquanto a existncia humana. Desde que comea a viver em comunidade e a

    se relacionar com outros povos, o homem precisa de informaes para

    decidir. Nesse sentido, a inteligncia tem ocupado papel de destaque entre

    lderes que precisem acessar conhecimentos protegidos e, ao mesmo tempo,

    proteger-se contra investidas de adversrios.

    Muitas so as definies de inteligncia, que variam conforme

    a percepo histrica, poltico-institucional ou jurdica daqueles que asconcebam. Nesse sentido, para os fins deste Relatrio, convm destacar a

    chamada percepo trina da inteligncia, primeiramente formulada por

    Sherman