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VIRGILIO PEDRO RIGONATTI CRAVO VERMELHO

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VIRGILIO PEDRO RIGONATTI

CRAVO VERMELHO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rigonatti, Virgilio Pedro

Cravo vermelho / Virgilio Pedro Rigonatti. – São Paulo : Ler e Prazer, 2017.

ISBN: 978-85-94183-00-2

1. Romance brasileiro I. Título

17-07362 CDD-869.3

Índices para catálogo sistemático:

1. Romance : Literatura brasileira 869.3

Projeto Gráfico e Diagramação

Vanessa Lima

Editoração de capa

Vanessa Lima sobre concepção

de Rosenda Botti Regalado

Imagem de Capa

Rosenda Botti Regalado

Impressão

Rettec Gráfica

Copyright © 2017 by Virgilio Pedro Rigonatti

Todos os direitos reservados.

Editora lereprazer

Rua Benjamim Constant, 80 – sl/61

CEP 01005-000

São Paulo/SP

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Confraria dos filhos dos diabos velhos ...............................7Ginásio ......................................................................................10Descobrindo o mundo .............................................................18Entendendo o mundo ..............................................................26Percebendo as conexões .........................................................35Perigo comunista.....................................................................42Menino de olhar triste ..........................................................48Decifrando um enigma ............................................................53Revelações libertadoras .......................................................60O mundo vai acabar .................................................................67Mocinha ....................................................................................79Iluminismo ................................................................................83I can't stop lovIng you ...............................................................91Eu tenho um sonho ...................................................................95Ich bIn eIn berlIner .....................................................................98Fim de um sonho ...................................................................... 101Formatura ginasial .............................................................. 104Golpe militar, contragolpe ou revolução ........................ 116Amar ou temer ........................................................................ 127O endurecimento do regime ................................................. 132

SUMÁRIO

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Aprendendo a contestar ...................................................... 137Indignação .............................................................................. 149Grupo unido ........................................................................... 158O amor revela-se ................................................................... 162Os primeiros passos ............................................................... 167As primeiras tensões ............................................................. 173Rua Maria Antonia ............................................................... 181O racha ................................................................................... 1851968 .......................................................................................... 189Felipe ...................................................................................... 198Ibiúna ......................................................................................203Padre Jerônimo ......................................................................206Às favas os escrúpulos .......................................................... 210O romantismo da luta armada ............................................. 216O enfrentamento ..................................................................225Angústia .................................................................................230Decisão extrema ....................................................................236Perigo dos dois lados ...........................................................246O ataque da repressão .......................................................... 252Tortura ...................................................................................258Cravo vermelho.....................................................................265Fuga .........................................................................................269Espírito Santo ....................................................................... 274Aparecida, novembro de 2015 ................................................278... ..............................................................................................289

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CONFRARIA DOS FILHOS DO DIABO VELHO

A perspectiva do tempo é um fenômeno que mexe com as nossas emoções, com os nossos sentidos, com os nossos sentimentos. Vendo as fotos do tempo de escola, do ginásio, observando minha

carinha e as de meus colegas de então, ingênuas, inocen-tes, alegres, esperançosas, experimento uma sensação estranha, um aperto no peito, ao lembrar o que imaginá-vamos para os nossos futuros e o que esse futuro trouxe para as nossas existências.

Mais de cinquenta anos se passaram. Depois dos acontecimentos tumultuosos e trágicos por que passei, procurei esquecer e apagar da memória esse período de minha vida. Não por ele em si. Afinal, foram anos felizes, de uma felicidade sem preocupações, de uma pureza extrema, mas pelo que vivi e sofri poucos anos

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depois. Foi por essa época que eu e todos os colegas de escola começamos a entender o mundo, a perceber os conflitos, a tomar ciência dos dramas da humanidade, a aprender a história do ser humano, a estudar os cami-nhos alternativos a serem trilhados e a seguir por um deles, vivendo, lutando, engajando-se ou se deixando levar, por inércia e passivamente, pelos acontecimentos e pelas decisões que os poderosos do momento impu-nham à sociedade.

O tempo caleja os nossos sentimentos. A dor, ainda sentida, não tem mais a intensidade sofrida no calor dos eventos. Os anos passados se encarregaram de amenizá-la. Mas, persistente, embora amena, se junta à angústia da constatação de que muito pelo qual se batalhou não correspondeu às ilusões que a generosi-dade da juventude acreditava valer a pena lutar, a até dar a vida para conquistá-las se isso fosse necessário. Quantos não sofreram e, pior, morreram em busca de ideais que nos vendiam como solução para a igualda-de de todos, a panaceia para os males que afligiam o

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homem, um paraíso na terra onde cada um teria o ne-cessário para viver e todos contribuiriam harmonio-samente para o bem comum, um Éden onde ninguém seria superior nem inferior, onde as conquistas seriam compartilhadas.

Em teoria, colocados de modo convincente, eram empolgantes esses objetivos. Para muitos, um ideal que seduzia nossas cabecinhas puras. Em nossas par-cas experiências não tínhamos ideia do que realmente acontecia nesses pretensos paraísos. Oh! doce mira-gem, bela quimera, róseos sonhos...

Minha volta a São Paulo, capítulo novo em minha existência, é uma boa oportunidade para espantar os fantasmas do passado. O que vivemos, apesar dos so-frimentos trágicos, não pode nem deve ser esquecido: seria negar as convicções que em determinado momen-to se formaram em nosso cérebro. Mesmo que o tempo tenha demonstrado e escancarado as falsas premissas que as influenciaram e nos induziram ao erro, é a nossa história, a nossa trajetória aqui na Terra.

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Reneguei por muito tempo esse período de minha existência, mas a maturidade e as circunstâncias modi-ficaram meu modo de ver.

No meu momento atual, encontrar esse grupo de ex-colegas, indicado pelo padre Jerônimo, vem ao en-contro do processo de espanar minha cabeça e repensar a vida, refletir sobre o que passei e entender os passos que levaram ao meu envolvimento com Valério e com a luta contra a ditadura.

“Confraria dos Filhos do Diabo Velho”. Lendo assim, parece uma sociedade fechada em que impera a magia negra, a feitiçaria, a bruxaria ou toda sorte de pacto com o demônio. Mas não, simplesmente é um grupo no Facebook de ex-estudantes do Instituto de Educação Anhanguera, colégio do bairro da Lapa, em São Paulo, cujo nome homenageia o célebre bandeiran-te descobridor de ouro nas terras de Goiás. Bartolomeu Bueno da Silva, intrépido aventureiro – importante como desbravador, mas um assassino e exterminador de índios – ao descobrir uma tribo de indígenas que

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usavam muitos ornamentos de ouro, exigiu que entre-gassem todo o valioso metal e revelassem o local de onde extraíam a riqueza. Como os índios relutavam, Bartolomeu usou de um truque: encheu uma pequena vasilha com cachaça e colocou fogo, ameaçando fazer o mesmo com o rio que banhava a aldeia. Por fazer fogo com “água”, os índios o chamaram de Anhanguera, que em tupi-guarani significa “Diabo Velho”.

Ao ser aceita na Confraria, tive oportunidade de acessar fotos dos meus colegas e professores desde o primeiro ano ginasial, que me trouxeram recordações de um tempo maravilhoso de minha existência e de mi-nha formação sentimental, intelectual e política.

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GINÁSIO

No meu tempo, o ensino básico estava dividido em primário e ginásio, que correspondiam ao que são hoje, respectivamente, fundamental I e fun-damental II.

Cursei o primário no Grupo Escolar Guilherme Kuhl-mann, escola situada na Lapa de Baixo, onde eu morava. Ali, eu e meus colegas nos alfabetizamos, aprendendo a ler meio à força, repetindo e decorando as lições da car-tilha “Caminho Suave”, que de suave só tinha o nome: a pata nada, pata pa, nada na... e assim por diante. Sila-bicamente, íamos juntando as letras, memorizando seus sons, seus formatos, e, com imenso esforço, íamos des-cobrindo as delícias do saber ler. Em cadernos brochuras íamos desenhando as letras que víamos na cartilha ou na lousa até botar na cabeça o significado daquelas sílabas que elas, as letras, unidas formavam. Em cadernos de

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caligrafia íamos praticando o ato de escrever caprichado, nem sempre com sucesso.

Aprendemos, também, a somar e a subtrair, operações fáceis de assimilar. Começou a complicar quando entra-mos na multiplicação, e foi um Deus nos acuda quando nos foi apresentada a divisão. Que sufoco! Muitos saíram do primário sem saber fazer direito a operação.

Emocionante foram as primeiras noções do funcio-namento do corpo humano; a descoberta da existência de outros países espalhados pela Terra; o porquê do Sol, da Lua; o que eram as estrelas; como as plantas cresciam e se alimentavam; a importância da água...

O primário tinha cinco anos, mas caiu para quatro, para minha sorte, quando cursava o quarto ano. Mas, pa-ra entrar no ginásio, tive que fazer um curso de admissão, misto de substituição do quinto ano, que suprimiram, e um preparatório para o exame que teria de realizar para ingressar nas melhores escolas do novo período.

O ensino público de então era de muito melhor nível do que o ensino privado, principalmente em algumas escolas,

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disputadíssimas, havendo uma demanda deveras maior do que as vagas disponíveis. Para o ingresso havia um vesti-bular para classificar os alunos mais aptos e preparados.

O Anhanguera era um dos colégios de melhor nível da cidade de São Paulo. Seu concorrido exame de admissão lotava as salas de aulas. Os alunos eram provenientes das diversas camadas sociais, desde os mais simples, como eu, até os filhos da burguesia incrustada na City Lapa, área nobre do bairro, com residências de alto padrão. Independente do seu nível social, todos estavam em condições de igualdade visto que a qualidade da escola primária pública era notável, onde os mais abastados co-locavam seus filhos em igualdade de condições com os provenientes das camadas menos favorecidas.

O exame era composto de duas etapas. A primeira, uma prova geral de diversas matérias, peneirava os mais preparados, que, depois, em número bem mais reduzido, partiam para os exames mais específicos, a fim de classificar os melhores, limitados pelo número de vagas disponíveis.

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Depois de cumprida a primeira etapa do exame admissional, na semana seguinte todos os alunos se apresentaram no pátio interno do ginásio. O diretor foi chamando, por ordem alfabética, os classificados para a segunda-etapa. Era enorme a minha ansiedade e ex-pectativa. Como meu nome, Pedrina, estava mais para o fim, tive de esperar um bom tempo, com o coração apertado, até chegar à letra P. Ao ouvir meu nome, mi-nha emoção foi tal que, tremendo, meio atônita, deixei cair minha sombrinha, cujo barulho provocado atraiu a atenção do diretor e dos demais alunos, deixando-me corada de vergonha.

Alguns dias depois do exame, fui ao colégio saber o resultado final. Ao chegar, as listas com os aprovados já estavam afixadas na parede da entrada do prédio. Jubi-losa, localizei meu nome entre os aprovados.

Destarte, entrei, em 1960, na Escola Normal e Gi-násio Estadual Anhanguera, que havia sido inaugurada em 6 de novembro de 1947. Dois anos depois, foi reba-tizada de Instituto de Educação Anhanguera.

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Estreei meu uniforme no primeiro dia de aula: blusa branca, saia azul até a altura dos joelhos, meias três quar-tos brancas, que chegavam até quase os joelhos, e sapato preto. Observei, no caminho, algumas alunas mais velhas com as saias quase na altura do meio das coxas e que, ao entrar na escola, ajustavam o comprimento até a altura dos joelhos. Estranhei, mas foi meu primeiro contato com a rebeldia da juventude inconformada com a imposição de modos conservadores, principiando, com o ato, a lutar por mudanças de comportamento, repercutindo os primeiros ares do vento liberal que marcaram a década de 1960. Os meninos – não consegui conter o riso – apresentavam-se vestidos com uma espécie de farda: camisa branca, gravata, calça e paletó de brim caqui, sapato preto e meias brancas. Com o calor que fazia, causava enorme desconforto e mais pareciam carteiros do que estudantes.

Lembro-me bem a enorme emoção que senti ao transpor o portão de entrada e penetrar naquele prédio imponente, majestoso, enorme para minha perspectiva de menina de onze anos, quase doze, e juntar-me àquela

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multidão de alunos, a maior parte crianças, com vários já entrando na fase de adolescência, todos vestidos ri-gorosamente iguais.

O prédio, na rua Antonio Raposo, inaugurado em 1912, fora edificado seguindo uma arquitetura europeia bem ao gosto da época, projeto do arquiteto italiano João Bianchi. São Paulo, até o último quarto do século XIX, não tinha grande importância. Santos e Campinas eram cidades muito mais relevantes, pois abrigavam em seu seio os ricos comerciantes de café – no caso da pri-meira – e os riquíssimos e poderosos barões do café, no caso da segunda. Nelas, grassou uma epidemia de febre amarela e as elites, a fim de proteger suas famí-lias, mudaram-se para São Paulo, que, por sorte, ficou imune ao ataque da doença. Uma vez na cidade, ergue-ram palacetes, prédios para comércio e edificações para atender a demanda de entretenimento, como foi o caso do Teatro Municipal, inaugurado em 1908. Como essa elite endinheirada passava as férias na Europa, para on-de, também, mandavam seus filhos estudarem, optaram

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pela arquitetura do Velho Continente, procurando dar a São Paulo uma cara civilizada, imponente, um ar, em suma, de Europa tupiniquim. Com o crescimento da cidade, levas de imigrantes europeus, principalmente italianos, chegaram para suprir a demanda por mão de obra, serviços e produção de bens. Aos barões do café e aos ricos comerciantes exportadores do ouro negro, vieram se juntar os comendadores e capitães de indús-tria que impulsionaram a expansão da pequena cidade. Em poucos anos, São Paulo tornou-se a principal me-trópole do país. Dos anos 1930 em diante, influenciados pela nova força imperialista predominante, a cidade co-meçou a mudar de roupa, adotando o figurino de Nova York, fazendo com que a elite dominante se orgulhasse do novo status da capital paulista: São Paulo era a cidade mais nova-iorquina da América do Sul.

Entrei no colégio pelo portão central do muro gra-deado que isolava a edificação da rua. Um pequeno pátio separava o muro do prédio principal do Anhanguera, em formato de U, que alcancei subindo uma imponente esca-

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daria. Ela dava para um terraço amplo com suas colunas, tendo na parte central uma bonita portaria. Na parte de baixo da edificação, situavam-se as salas de aula e as de administração. Uma vistosa escada de três lances rente às paredes e em forma de U levava ao andar de cima, ocu-pado por várias salas de aula, tendo, na parede central, um lindo vitral de grande proporção encimado por três menores, que coloriam os raios solares que penetravam no interior do prédio.

Atravessando o pequeno saguão central, que dividia as duas alas do prédio, e passando por baixo da escada, atingi o pátio interno, dividido por uma passarela cober-ta que me levou a um amplo átrio coberto. À esquerda e à direita, o átrio era ladeado por prédios de dois anda-res, independentes do edifício principal, contendo qua-tro salas de aula cada um. Em ambos os lados da passa-rela, o espaço era ocupado por quadras cimentadas que serviam às aulas de educação física – do lado esquerdo a masculina e do direito a feminina – onde, também, se armavam redes para jogos de voleibol. Alcançando o

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átrio, observei à direita a cantina e o banheiro feminino e, à esquerda, uma pequena sala pertencente ao grêmio estudantil e o banheiro masculino. Um pequeno espaço atrás da cantina e do banheiro feminino formava uma modesta quadra de basquete. Em uma ampla área, ao longo do lado direito do imóvel, encontrei duas qua-dras poliesportivas. No fundo do colégio, erguia-se um prédio de dois andares ocupado por salas de aula, laboratórios e auditório. Um pequeno imóvel, do lado esquerdo do prédio principal, abrigava o ambulatório.

Naquela manhã da minha primeira aula, ao chegar ao colégio, já encontrei na parede da entrada do prédio, afixada, a relação dos alunos por classe. Bastava locali-zar o nome e verificar o número da sala correspondente.

No primário, a entrada para a sala de aula era organi-zada com a formação de filas duplas, por classe, no pátio. Quando a servente aparecia na porta e tocava estridente e continuamente um sino que trazia na mão, todos deviam parar e permanecer quietos no local onde estivessem. Ao constatar que todos estavam imóveis, ela tocava uma vez,

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chamando os alunos do primeiro ano que, rápida e silen-ciosamente, dirigiam-se para o local habitual, juntando-se aos colegas da mesma classe, organizando filas duplas por ordem de altura, com os menores na frente. Ao tocar duas vezes, convocava os alunos do segundo ano a se dirigirem aos seus lugares de formação e, assim, três e depois quatro vezes, respectivamente, para os alunos do terceiro e do quarto ano. Agora, ali, no pátio do Anhanguera, fiquei esperando pelo mesmo procedimento, mas, ao ouvir um sinal vindo das caixas de som, notei a movimentação de todos na direção das salas de aula. Percebi, então, que não haveria organização de filas por classe no pátio, pois todos se dirigiam, meio caoticamente, às salas de aulas.

Minha sala de aula ficava no prédio ao lado da cantina. Subi quatro degraus, atravessei a porta, virei à esquerda e entrei na minha sala de aula com o coração disparado, um frio na barriga e as pernas meio bambas. Não acreditava! Eu estava no ginásio. Não conhecia ninguém, nenhuma amiga ou amigo, no meio daqueles quarenta e poucos alunos. Escolhi um lugar para sentar. Tirei o estojo de

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madeira com tampa corrediça da mala, peguei a caneta Parker, o lápis Fritz Johansen número 2, a borracha Mer-cur, o apontador, todos novinhos em folha, e os ajeitei em uma canaleta, adrede preparada para isso, localizada na parte superior do tampo da carteira. Coloquei sobre a carteira o caderno brochura Avante de 50 folhas e ar-rumei, no escaninho sob o tampo, os demais cadernos e alguns livros, inclusive uma pasta de capa dura, tipo fichário, dentro da qual trazia o material, preso com um forte elástico. Quietinha, com muita vergonha, tímida e assustada, aguardei a entrada do professor.

Estava curiosa e ansiosa com a novidade de ter diversos professores, um para cada matéria, uma vez que no primário tinha apenas um em cada ano letivo. O primeiro procedimento que aprendi, já na sala de aula, é que tínhamos de ficar em pé para receber o pro-fessor assim que ele adentrasse a sala.

Durante a semana fui conhecendo todos: Dona Silvia, de Francês, que entrou dizendo “bon-jour, asse-yez-vous”, fazendo um gesto com a mão indicando que

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deveríamos sentar. De imediato, anunciou: “Eu vou falar sempre em francês, para vocês acostumarem o ouvido. Estas serão minhas únicas e últimas palavras em portu-guês”. Tremi de medo.

Senhor Ernani ensinava Latim. Muito simpático e bonitão – depois fiquei sabendo que muitas alunas, já crescidinhas, suspiravam por ele –, e muito rigoroso, reprovava alunos por décimos da nota final, porém ensinava de maneira bastante didática.

Senhor Juvenal, de Ciências, era médico e suas aulas eram por temas, sobre os quais dissertava longamente. Nas provas, escolhia um dos assuntos para desenvolvermos.

Dona Judite, amável professora de História, ensi-nava de modo agradável e gostava de mencionar suas viagens, reforçando o tema.

Dona Irene, linda professora de Português, muito educada e fina, explicava com paciência e competência os segredos da nossa língua.

“Professor Teacher”, assim chamávamos o senhor Israel, excelente professor de Inglês, que diziam ser

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comunista, apesar de que, nessa altura, eu não sabia o que era ser isso.

Matemática era com o professor Custódio. Sisudo, meticuloso, explicava com grande serenidade os segre-dos dos números e, quando questionado, olhava para o aluno, pensava e alisava o vasto bigode, enquanto decidia o que responder.

Estudamos Canto com Dona Juanita, uma senho-ra idosa com quem aprendemos a solfejar e a cantar afinadinho.

Professor Osni, o assustador mestre de Desenho, era competente e temido. Tremíamos quando ele percorria carteira por carteira para verificar se todos estavam com os materiais necessários para a aula, que deveríamos ex-por sobre a carteira. Ele não titubeava em por para fora da sala quem esquecesse uma simples borracha.

O que todos adoravam era o divertido e folgado professor Píccolo, de Trabalhos Manuais. Ele gostava de matar aulas, mas ensinava muito bem como traba-lhar os diversos materiais.

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Como minha classe era mista, a aula de educação física era dividida: as meninas com a professora Judite e os meninos com o professor Newton. Aprendemos com eles a jogar vôlei, basquete e handebol, além dos exercícios olímpicos. Aprendemos, também, a marchar, o que, algumas vezes, provocava muitas risadas. O pro-fessor Newton era muito enérgico e exigente, mas bem humorado. No treinamento da marcha, o início tinha que obedecer ao comando: “Escola... em frente... marche.” Era preciso aguardar a ordem completa, até o “marche”. Vez por outra, um aluno mais distraído começava a mar-char ao ouvir o comando “em frente” sem aguardar o complemento “marche”. O professor Newton deixava o aluno desatento seguir em marcha, com os outros alu-nos parados e na expectativa do que iria acontecer. O pobre coitado, vermelho, sem saber o que fazer, seguia em frente dando de cara com a parede, e, ali, permanecia marchando, enquanto morríamos de rir, até o professor finalmente gritar com o garoto: “Oh, mocorongo, por acaso falei ‘marche’?”. De outra feita, no trajeto de ou-

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tro afoito marchador encontrava-se uma escada. O pro-fessor Newton deixou, sob risos gerais, o garoto subir a escada até gritar: “Oh, energúmeno, não dei a ordem de ‘marche’”. Não se tinha, ainda, o politicamente correto nem se conhecia o termo bullying.

Todos foram muito importantes em minha forma-ção. Eram eficientes, capacitados e assumiam a postura responsável de educadores. Porém, um deles marcou de forma diferente minha personalidade e abriu minha visão para o mundo, para a política e para o social: foi minha professora de Geografia, dona Cecília.

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MENINO DE OLHAR TRISTE

No começo de 1962, comecei o terceiro ano do ginásio.

O reinício das aulas era sempre uma alegria incontida pelos reencontros com os colegas, co-

mentários sobre as férias, eventuais viagens, curiosida-des sobre os novos professores, conhecer a classe e ao lado de quem se sentaria.

Já em minha carteira, notei um rapazinho loiro entrando na sala. Timidamente, procurava algum conhecido e uma carteira vazia. Não o conhecia, nem me lembrava de tê-lo visto no colégio. A classe, mista, tinha 15 homens e 27 mu-lheres. Os meninos escolheram o lado esquerdo de quem entra, dividindo-se em duas fileiras. A única carteira vazia do setor masculino ficava bem ao meu lado. Cabisbaixo, aproximou-se sem cumprimentar ninguém e acomodou-se.

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Notei suas feições bonitas, reparando que ele era mais alto e tinha mais idade que os outros rapazes.

Disfarçadamente, observei-o se instalar em sua car-teira. A sua mala de material escolar era de uma quali-dade bem simples. Seus cadernos e estojo, visivelmente, eram dos tipos mais baratos. Seu uniforme, bem pas-sadinho, transparecia ser usado há tempo e um pouco curto para o seu porte. Calculei que seria o mesmo do ano anterior. Os sapatos bem simples, com a aparência de bastante surrados.

Com pena do embaraço dele, ninguém lhe dava a mí-nima atenção, arrisquei um cumprimento:

– Bom dia, meu nome é Pedrina. E o seu?– Valério – respondeu-me secamente sem olhar para

o meu lado.– Não me lembro de ter visto você no ano passado.– Eu faltei muito. Fiquei doente e acabei repetindo o

ano – falou-me, agora olhando para mim.Notei seus lindos olhos verdes que denotavam um

olhar triste que me provocaram uma reação de fascínio

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e, ao mesmo tempo, de compaixão.Valério, muito retraído, não tinha nem fazia amizade

com seus colegas. Entrava e saia da sala praticamente sem cumprimentar ninguém. Sua participação nas aulas era de apenas ouvir, copiar e ler o que era mandado, sem fazer perguntas, mesmo quando não entendia as maté-rias. No intervalo, fingia estar organizando o material, esperava todo mundo sair e, somente então, pegava seu lanche e ia comer escondido. Mesmo nos jogos durante as aulas de educação física, notava, de longe, que sim-plesmente participava, não interagindo com os colegas, em uma atitude fria, distante.

Às vezes, tentava entabular uma conversa com ele, mas suas respostas monossilábicas, sem vontade, deses-timulavam minha iniciativa.

Um episódio, acontecido em nossa sala, serviu como um quebra gelo em nosso relacionamento.

Estávamos tendo aula normalmente quando uma de nossas colegas soltou um grito pavoroso:

– Ai meu Deus! Um rato!

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O grito e a atitude dela, subindo na carteira, contagia-ram todas nós, as meninas. Mesmo as que não tinham vis-to o camundongo, a grande maioria, imitaram seu gesto, subindo, gritando, boa parte histericamente, nas carteiras.

Os meninos, rindo de nossas reações, perguntavam pelo paradeiro do bichinho, que nessa altura, assustado pelos gritos e a agitação geral, procurava, de um lado ao outro, descobrir a saída daquele perigoso local.

Eu, como todas as meninas, subi na carteira gritando de medo e, logo, ouvi, a voz de Valério:

– Calma, Pedrina! Eu estou aqui, não deixo o rato se aproximar de você.

Olhei para ele e observei sua expressão séria e seus olhos verdes, protetores, transmitindo-me segurança.

– Não precisa ter medo. Ele não vai te atacar.Parei, na hora, de gritar. Acalmei-me com sua atitude

firme e segura. Não desci da carteira, mas fiquei obser-vando Valério olhando para todos os lados na tentativa de encontrar o rato e não o deixar aproximar-se de mim.

A professora, com tanto medo quanto nós, tentava

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pôr ordem na classe, sem conseguir o intento. A grita-ria era geral: das meninas apavoradas e dos meninos em busca do perigoso assaltante. Ao barulho interno, veio se somar os gritos dos alunos das demais classes perguntan-do o que estava ocorrendo. O caos estava instalado.

Esbaforido, o vice-diretor entrou na classe pergun-tando o que se passava, enquanto olhava a cena inusita-da de todas as meninas sobre as carteiras e os meninos correndo de um lado para o outro.

Posto a par pela professora do ataque do camundon-go, Professor Margarido, esse era seu nome, organizou a saída das alunas, pedindo para os rapazes permanece-rem para caçarem o invasor.

Valério deu-me a mão para eu descer da carteira e acompanhou-me até a porta. Sem dizer palavras, agradeci sua atitude olhando profundamente em seus lindos olhos verdes, que brilhavam contentes pela ação cavalheiresca.

Já fora da classe, nós meninas só ouvíamos os gritos do vice-diretor e dos garotos indicando a posição do bichinho,

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misturados com o barulho do arrastar das carteiras. As au-las foram interrompidas em todas as classes e os alunos, aglomerando-se no pátio e nas janelas das salas, depois de informados do que ocorria, formaram duas torcidas: uma parte torcia para que se pegasse o invasor e outra gritava estimulando o ratinho a escapar.

Finalmente, pegaram o animal. Correndo para um lado, procurando escapar, o camundongo era persegui-do por seus caçadores. Acuado, escapava para o outro lado, trazendo todos atrás de si. Até que, em uma dessas indas e vindas, o diretor, meio sem querer, deu um bico no pobre coitado que caiu debaixo do sapato de um co-lega que corria em direção contrária.

Serenados os ânimos, voltamos todos para as salas de aulas.

Quando entrei na classe, Valério aproximou-se, so-lícito, de mim, perguntando se eu estava mais calma. Agradeci sorrindo, meio constrangida.

Tivemos normalmente a aula seguinte. Porém, no seu término, coincidindo com o intervalo, deparamos

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com uma procissão que saia da sala ao lado. Durante a aula, que por coincidência era de Trabalhos Manuais do professor Píccolo, que gostava de brincadeiras, foram construídos um andor e um caixão para providenciar o enterro do rato.

Na saída de nossa classe, os organizadores do funeral identificaram um de nossos colegas como responsável pela morte do camundongo, junto com o vice-diretor. Escoltado por uma “guarda”, Tito, acusado de assassí-nio, foi levado na procissão para ser “julgado” após o funeral. Junto ao caixão, transportado solenemente no andor apoiado sobre os ombros de másculos carregado-res, seguia Chico, um dos colegas da classe vizinha, que fazia o papel da mãe do infeliz ratinho.

O colégio todo acompanhou as cerimônias fúnebres. O caixão foi enterrado em uma tumba improvisada no pátio lateral do colégio, seguido do julgamento do assassino.

Ninguém arredou pé do evento. Apesar de a campa-inha chamar todos para a aula seguinte, nenhum aluno voltou para a sua sala.

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Valério permaneceu o tempo todo ao meu lado. Foi então que vi, pela primeira vez, um lindo sorriso estam-pando seu rosto, em uma alegria incontida, contrapondo ao seu habitual olhar triste. Mostrou-se loquaz, fazendo inúmeras observações sobre a brincadeira improvisada da turma vizinha.

Já na saída do colégio, ao nos despedir, agradeci muito a sua atenção para comigo e ele, simplesmente, olhou-me profundamente nos olhos, sorriu-me meiga-mente e falou:

– Até amanhã.Uma sensação estranha tomou conta de mim, um

friozinho percorreu minha coluna, o coração acelerou, um leve rubor subiu-me às faces. Fiquei muda observan-do Valério se virar e ir embora, sem olhar para trás. Tive vontade de pedir para ele ficar mais um instante, mas a voz não me saiu. Meus olhos foram em seu encalço até ele dobrar a esquina e desaparecer de minha visão.

Ansiei a tarde e a noite toda por um novo dia. Não via a hora de vê-lo novamente.

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Na manhã seguinte, Valério entrou em classe junto com o professor. Sentou-se em sua carteira, disse-me bom dia, olhou-me rapidamente com seu olhar triste e, silente, permaneceu em seu mundo distante.

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DECIFRANDO UM ENIGMA

A atitude de Valério foi uma grande surpresa e decepção. Após um momento de descontração e aproximação, até de cuidados por mim, ele se fechou em copas, reassumindo sua atitude de es-

finge e casmurra.Pela minha própria inexperiência no trato com pes-

soas, pelo comportamento diferente dele, ficava sem saber ao certo como agir. Minha relação com os demais colegas era de descontração. Naturalmente tinha al-gumas amigas mais próximas com as quais passava o recreio e saia do colégio. Com as demais meninas e os rapazes, o relacionamento era de cumprimentos e tro-cas de uma observação ou outra.

A maior parte da turma participava ativamente das aulas, sendo que alguns raramente faziam algum tipo de pergunta ou comentário. Valério permanecia quase

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o tempo todo ensimesmado, só falando quando provo-cado, mesmo assim monossilabicamente.

Mesmo por ocasião das provas, ele não se aventurava em algum tipo de comunicação para tirar alguma dúvi-da ou para pedir ajuda. De rabo de olho, eu constatava que ele estava empacado em alguma questão. Chama-va sua atenção para perguntar se ele não sabia alguma questão, e notava que ele ficava aliviado por eu ajudar. Discretamente mostrava minha prova para ele copiar. Muito timidamente, ele me agradecia após a aula.

O professor de História, certo dia, pediu para nos di-vidirmos em grupos para elaborarmos um trabalho sobre o Iluminismo. Eu e mais duas amigas imediatamente nos compusemos. Notei que ninguém convidou Valério, que, por sua vez, não procurou alguém para propor participa-ção. Condoída, tomei a iniciativa de convidá-lo para fa-zer parte do nosso grupo. Percebi nele um alívio e certo contentamento pelo convite. Naturalmente, fui motivo de chacota das minhas amigas, ironizando um suposto interesse meu por ele. Vermelha, procurei argumentar

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que senti pena por ninguém se interessar por ele, ao que elas me responderam, com razão, que ele não procurava se enturmar.

Eu comecei a desvendar o mistério do comporta-mento de Valério ao notar mais argutamente o uni-forme e os materiais escolares dele. Já tinha percebido na primeira aula e com o tempo foi ficando mais claro. Como quando o professor de Trabalhos Manuais pe-diu para pegarmos o macramê que ele havia solicitado para trazermos, pois ia nos ensinar a entrelaçar, fazer os nós e elaborar uma sacola. Valério não tinha o mate-rial. Perguntei se ele não havia trazido, respondeu-me que tinha esquecido. Como tinha dois rolos, propus que ele ficasse com um, na aula seguinte ele me resti-tuiria. Muito constrangido, acabou aceitando depois de alguma insistência de minha parte. Na aula seguinte, além de não me trazer, reparei que também não tinha o novo material que o professor havia pedido. Acabei emprestando novamente. Terminada a aula, com todos saindo para o recreio, enquanto guardava meu material

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e me preparava para sair também, observei que Valério permanecia sentado, com a cabeça baixa, sem se mover.

– Valério, você está bem?– Tô, respondeu-me secamente, sem mudar de po-

sição.– Posso te ajudar em alguma coisa? Perguntei per-

cebendo que algo estava errado com ele.– Não...– Valério, acho que tem alguma coisa que está te in-

comodando. Não quer me contar?– Não... nada...– Nada?– Bem, é que eu saí atrasado de casa, não tomei café

e deixei cair meu lanche quando estava chegando...– Deixou cair?– É. Me deram um encontrão e eu deixei cair meu

material e o meu lanche se esparramou na calçada.– Aí, que pena, Valério. De que era o lanche?– Era... era de tomate.– De tomate?

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Observei que ele ficou vermelho como... tomate.– Era o que minha mãe tinha pra eu trazer.Dei-me conta que cometi uma bobagem ao per-

guntar do que era. Ele ficou mais constrangido. Tentei consertar.

– Puxa vida! Não havia pensado nisso. Vou pedir pra minha mãe fazer um amanhã, deve ser gostoso.

– Gostoso nada. Era a única coisa que minha mãe tinha pra eu trazer, ainda mais em um pão amanhecido.

– Verdade, Valério?– É. Agora você vai falar pra todo mundo.– Valério! Eu não sou fofoqueira e quero ser tua

amiga. Isso vai ficar entre nós. Te juro que não vou falar com ninguém sobre isso. Vamos descer e você compra um lanche na cantina.

– Não tenho dinheiro. Nem pra condução. Vim a pé e vou voltar a pé. Não vai comentar isso também.

– Não, Valério, não vou comentar com ninguém. Sinto muito. Vamos fazer o seguinte: vamos dividir o meu lanche. Aliás, minha mãe sempre manda mais do

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que eu aguento comer.– Não, não quero. Obrigado.– Valério, puxa vida! Eu quero ser tua amiga. Por

favor, eu me sentiria melhor se você aceitasse.Extremamente constrangido, mas com muita fome,

acabou aceitando e comeu avidamente sua parte.Dizendo que precisava ir ao banheiro, Valério dei-

xou-me e aproveitei para conversar com minhas amigas no pátio.

Durante as duas aulas restantes, não nos falamos. Somente na saída ele se dirigiu a mim, dando-me um até amanhã e, discretamente, falando um obrigado.

O Anhanguera tinha alunos de todas as classes so-ciais, desde os mais abastados, filhos de empresários moradores da chic City Lapa, até os filhos de trabalha-dores de poucas posses da periferia, passando por um grupo significativo de classe média, moradores da Lapa de Cima, Vila Romana, Sumarezinho e adjacências. Eu ficava em um meio termo entre os de pouca posse e os de classe média, morando na Lapa de Baixo.

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Não havia, absolutamente, nenhuma discriminação entre os colegas, no recinto do colégio, em razão da classe social. As vagas eram preenchidas por mérito. Mesmo os alunos de baixa renda contavam com esco-las públicas de bom nível o que permitia a disputa, em igualdade de condições, por uma vaga nos melhores colégios. Muitos colegas do primário não continuaram seus estudos no ginásio ou por absoluta falta de recur-sos ou porque precisavam trabalhar em tempo integral para ajudar a família ou porque os pais consideravam desnecessário, sendo o bastante seus filhos serem alfa-betizados e conseguirem um emprego.

Por conseguinte, conviviam no recinto do colégio, de uma maneira respeitosa ou mesmo despreocupada, alu-nos de diversas classes sociais. Notavam-se as diferenças pela qualidade dos materiais escolares e das pastas para transportá-los. Nas vestimentas, como eram uniformes, as sutis diferenças era o estado de conservação e de tem-po de uso das roupas. As nuances eram percebidas nos últimos sábados de cada mês. Nestes dias, a direção libe-

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rava o uso do uniforme. Era um festival colorido e mul-tiforme de trajes, com modelos de última moda e cores. Em contraste com a mesmice do uniforme, a monotonia das cores, a explosão das multicoloridas vestimentas pro-porcionava um dia alegre, descontraído, estampada nas feições e comportamento alegre de todos.

Ou quase todos. Nesse dia, ficava patente, à mostra, o poder aquisitivo de cada um. Enquanto os mais abas-tados exibiam roupas de alta qualidade, das melhores confecções ou de exímias costureiras e alfaiates, calça-dos de materiais nobres, os menos bafejados pela sorte, trajavam roupas simples, de baixa qualidade, e sapatos modestos e surrados. Eu não ficava muito fora, tinha sensibilidade para escolher tecidos não muito caros, mas bons e bonitos, para minha mãe, exímia costureira, cortar e costurar. Meu pai trazia regularmente sapati-nhos novos da loja onde trabalhava.

Ninguém comentava ou fofocava abertamente as diferenças. A grande maioria nem se preocupava com isso ou reparava nesses detalhes. Atenta, percebia, em

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alguns, certo constrangimento por portar roupas mais simples, enquanto poucas se pavoneavam exibindo suas indumentárias de última moda. Notava que Valério se escondia mais ainda nesses dias, envergonhado com suas roupas extremamente simples.

O contraste entre os alunos aparecia, também, entre os que não acessavam a cantina e aqueles que compra-vam diariamente seu lanche e refrigerante. Meus pais só me davam dinheiro para lanchar uma vez por semana, aos sábados. Durante a semana, levava meu lanchinho e uma garrafa de limonada que minha mãe preparava na véspera, deixando congelar no refrigerador, e, no recreio, ainda estava fresquinha. Aos sábados, além do lanche, comprava uma garrafinha de refrigerante: coca-cola, crush, guaraná, cerejinha ou Seven-up. O dinheiro ainda dava para eu consumir um Dan-Top, uma delícia.

Aliás, esse refrigerante Seven-up deixava-nos intri-gado pelo nome. Resolvemos perguntar ao nosso pro-fessor de inglês seu significado. Gargalhando, ele nos respondeu ironicamente:

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– São sete besteiras que esses idiotas americanos põem dentro dessas garrafas.

Valério me olhou entre surpreso e incrédulo com a resposta.

– Ele é comunista! Detesta os americanos, sussurrei explicando a resposta do nosso teacher.

– O que é comunista? Indagou Valério.– Ah, você não sabe? Depois da aula eu te explico,

respondi solicitamente.Terminada a última aula, Valério me acompanhou

na saída e caminhou comigo, descendo a Rua Doze de Outubro.

Após minha breve explicação sobre comunismo, ele me perguntou:

– Como é que você sabe tudo isso?– Eu assisto a televisão, principalmente o Repórter

Esso, leio jornal todo dia, leio a “Seleções” todo mês e um livro a cada semana. Assim fico sabendo o que acontece e procuro entender o que está por trás de todos os acontecimentos. Você não lê, nem assiste televisão?

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– Não tenho televisão, nem dinheiro pra comprar jornal, nem tempo pra ler nada, foi-me respondendo, deixando-me surpresa por expor seu dia a dia. Depois da aula, trabalho na mesma loja onde minha mãe é ven-dedora. Almoço a marmita que ela traz para nós todos os dias. A gente come na loja mesmo. Depois do al-moço, eu trabalho de Office-boy, empacotador, ajudo a carregar mercadorias e a limpar a loja. Eu e minha mãe saímos às sete horas da noite, algumas vezes vamos em-bora a pé pra economizar condução, uma caminhada de quase uma hora. Chegando em casa, ela prepara a janta e a marmita do dia seguinte enquanto eu faço a lição do dia. Não sobra tempo para ler nada. Nem de domingo, que eu aproveito para ir à missa e jogar bola de manhã e estudar para as provas à tarde. Essa é minha vida.

Nunca imaginei a existência difícil que ele levava. Comecei a entender seu comportamento retraído, en-vergonhado, considerando-se um peixe fora d’água. Fiquei muito amargurada e condoída. Mas não bastas-sem essas dificuldades para Valério sentir-se diminuído,

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compreendi a extensão de seus problemas comporta-mentais quando, parando em frente da loja em que tra-balhava, ele me apresentou, denotando certo embaraço, sua mãe, que estava na porta do estabelecimento.

Confesso que eu não estava preparada para isso. Que vergonha reconhecer, mas fiquei muda, embara-çada, surpresa, petrificada: a mãe de Valério era negra.

Esse livro foi impresso pela Rettec Gráfica

em papel norbrite 66,6 g.