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Crédito e Expansão da Cafeicultura: o caso do município
paulista de Franca 1887-1914
Rodrigo da Silva Teodoro
Doutorando em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), sob orientação do Professor José Jobson de Andrade Arruda.
Endereço para correspondência: Rua das Garças, nº 180, Jardim Primavera, Franca-SP. CEP 14404-021. E-mail: [email protected]
Resumo: Neste artigo buscamos identificar os nexos entre crédito e cafeicultura,
notadamente no que tange à expansão da produção e o papel desempenhado nesta por
pequenos e grandes cafeicultores no município paulista de Franca entre 1887 e 1914,
portanto durante a introdução definitiva do trabalho livre nas lavouras de café. Utilizamos
como eixo documental escrituras de dívida registradas em cartório e tentamos associar a
disponibilidade de crédito às políticas monetárias seguidas pelo governo em diferentes
períodos.
Palavras Chave: crédito, cafeicultura, políticas monetárias, Franca, trabalho livre.
Abstract: In this article we seek to identify the links between credit and coffee planting,
mainly the expansion of coffee production and the role of small and big farmers at this
process in town of Franca, into state of São Paulo during 1887 until 1914, hence during
the ultimate introdution of free labour. We use as main document source the loans writings,
searched in register office. We also tried to link the monetaries policies from government to
the availability of credit.
Key Words: credit, coofee planting, monetary policy, Franca, free labour.
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1) Introdução
Um aspecto da cafeicultura, quiçá fundamental para sua expansão, ficou como que
relegado a segundo plano nos estudos sobre a economia cafeeira. Refiro-me a atividade
creditícia. Não que a maioria dos autores que se dedicaram a analisá-la tenham ignorado o
crédito; pelo contrário, todos eles insistem na importância deste, notadamente para o
custeio da lavoura, já que o cafeeiro só se tornava efetivamente produtivo após seu quarto
ou quinto ano de vida, implicando assim em gastos iniciais que para serem satisfeitos
exigiam a existência de uma fonte externa de financiamento. Mas, com a exceção de
algumas obras sobre esta temática (SAES, 1986; PIRES, 2004; HANLEY, 1995;
MARCONDES, 1998; OLIVEIRA; 2005), pouquíssimos trabalhos historiográficos se
voltaram especificamente para o papel do sistema bancário e menos ainda para o crédito no
Brasil.
Empreenderei um estudo das relações entre crédito e cafeicultura no município
paulista de Franca entre 1887 e 1914, com especial atenção para o período entre 1899 e
1906, marcado por uma escassez monetária devida principalmente às políticas
deflacionistas da época. A documentação a ser trabalhada compõe-se fundamentalmente
das escrituras de dívida contidas nos livros cartoriais de 2º ofício do município de Franca e
que cobrem todo o período. A escolha dessa localidade se deve ao fato de que suas lavouras
nem se encontravam com produtividade decadente no período em tela como já ocorria em
zonas cafeeiras mais antigas e tampouco se situava em patamares muito altos, já que o solo
predominante na região, o lato-solo amarelo fase arenosa, não reunia condições tão
favoráveis ao cultivo do café quanto a famosa ‘terra roxa’. Esta característica se mostrou
decisiva para a escolha da região a estudar porque uma produtividade muito alta, como
aquela experimentada em regiões de fronteira, poderia obscurecer outros fatores que
explicariam uma capacidade de expansão da cafeicultura mesmo na ausência de uma maior
oferta de crédito.
O período escolhido, por sua vez reflete os movimentos da cafeicultura em Franca.
A produção de café em larga escala no município ocorre apenas após o avanço dos trilhos
da Companhia Mogiana sobre a cidade, onde uma estação foi inaugurada em 1887. A data
final, porém, refere-se a fatores mais de ordem geral que local, pois já que o objetivo é
4
analisar o financiamento das lavouras de café decidimos não ultrapassar o ano de 1914,
tanto porque durante a Primeira Guerra Mundial o Brasil sofre inúmeras restrições em seu
comércio exterior quanto pelo fato de na década de 1920 se experimentar um processo de
diversificação econômica que se não anula a centralidade da produção e comércio do café
até certo ponto a minimiza. Este procedimento é a meu ver inteiramente justificável, na
medida em que após o desenvolvimento da lavoura cafeeira na região a economia desta
passa a se conformar mais por esses movimentos de alcance geral do que por determinantes
estritamente locais.
As escrituras de dívida, que serão nosso eixo documental, são muito ricas e em geral
contém o ano em que se efetuou o negócio, o nome do credor, o nome do devedor (em
algumas há referência à ocupação de ambos), a cidade onde cada um reside, o valor
emprestado, o prazo, a taxa de juros, o bem dado como garantia que por vezes encontra-se
melhor detalhado, com suas dimensões, localização e benfeitorias (dificilmente
encontramos uma informação mais precisa sobre o número dos pés de café de uma dada
propriedade); em algumas escrituras aparecem também o motivo do empréstimo e a forma
como foi usada a quantia. Para que possuíssemos dados completos far-se-ia necessária a
inclusão das escrituras de dívida do cartório de 1º ofício, mas de modo algum acreditamos
que isto alteraria a dinâmica esboçada apenas nos livros cartoriais de 2º ofício. Os
documentos utilizados foram coletados no Arquivo Histórico Municipal de Franca, para o
qual usaremos a abreviatura AHMF e no Museu Histórico Municipal de Franca, para o qual
usaremos a abreviatura MHMF.
2) Crédito e Expansão da Cafeicultura no Estado de São Paulo
Especificamente sobre o Estado de São Paulo bastante elucidativos são os
argumentos de Flávio Azevedo Marques de Saes. O autor demonstra, após um longo
percurso, que na verdade o crédito bancário em geral não se destinou às lavouras de café,
mas principalmente para as atividades comerciais de grande porte, contribuindo sobretudo
para dinamizar a economia urbana da cidade de São Paulo. A razão principal seria a
concentração das atividades do sistema bancário paulista em operações de curto prazo,
totalmente inadequadas ao financiamento dos cafeicultores dado o ciclo de maturação do
5
seu produto. Essas conclusões são amparadas principalmente em reclamos da chamada
“lavoura” (composta de fazendeiros do interior cuja atividade econômica centra-se quase
que exclusivamente na produção de café) presentes em vários artigos de jornal durante a
República Velha e mesmo em alguns discursos parlamentares de representantes dos
cafeicultores.
Segundo Saes, mesmo os bancos hipotecários pareciam não fornecer crédito à
lavoura de café no montante e condições de que esta necessitava. Entre os bancos
hipotecários contavam-se o Banco de Crédito Real de São Paulo, formado em 1882 e
liquidado em 1906 e o Banco de Crédito Hipotecário e Agrícola do Estado de São Paulo,
formado em 1909 e incorporado ao Estado em 1926, mas ambos recebiam acusações de
privilegiar suas carteiras comerciais em prejuízo de suas carteiras hipotecárias, drenando
recursos destas para aquelas (SAES, 1986: 70 a 71)1. Destarte, a cafeicultura não pareceu
encontrar no sistema bancário o suporte financeiro de que necessitava. Diante desse
contexto, tornam-se abundantes os bancos de custeio rural no interior, criados com o
objetivo de suprir os fazendeiros com os recursos que demandavam. Assim como outros
pequenos bancos que atuavam localmente, possuíam pouco capital e geralmente não se
mostravam capazes de prover crédito à lavoura no montante requerido por esta, o que se
revelava de forma cabal na curta duração dessas instituições tomadas individualmente
(SAES. 1986: 123 a 125). Apesar de Saes utilizar como evidência basicamente as
declarações dos representantes da própria “lavoura”, estas características dos pequenos
bancos parecem corroborar sua hipótese.
Como os bancos não atendiam às necessidades por numerário dos fazendeiros de
café, estes teriam que obtê-lo de fontes não institucionais, deveriam recorrer a agentes
privados. Freqüentemente, se discutiu a atuação do comissário de café, um intermediário
entre o fazendeiro e os exportadores, enquanto um elemento central no fornecimento de
crédito para a lavoura e enfatizou-se as bases pessoais desta relação (FRANCO, 1974;
NETTO, 1979; CANO, 1998; STEIN, 1961; HOLLOWAY, 1978). O comissário surge
como um intermediário entre o fazendeiro e o exportador na venda do café. Na verdade, ele
1 Os bancos hipotecários ofereciam menores taxas de juros e prazos mais longos para a lavoura, como o Banco de Crédito Real nos anos 1880, que fixava os juros em 8% ao ano para prazos de 5 a 10 anos e 9% para 15 ou 20 anos, mas o problema residia na forma de destinação dos recursos para empréstimos, que no caso do banco em questão eram compostos em 5% de numerário e outros 95% em letras hipotecárias. Ademais, a avaliação dos bens hipotecados, em geral, correspondia a 50% de seu valor de mercado.
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não agia apenas como um mero representante comercial, embora inicialmente suas
atividades tenham se restringindo a tal função. Também fornecia a seus clientes vários
artigos oriundos dos grandes centros urbanos de que estes necessitavam, mas sua
centralidade na economia cafeeira advinha da posição que ocuparam no fornecimento de
crédito para a lavoura, que se impôs ao comissário praticamente como uma exigência para a
prosperidade de seus negócios, já que o fazendeiro dificilmente dispunha de condições para
se autofinanciar.
Segundo parte da bibliografia, apesar de o comissário conservar suas funções de
intermediário comercial e fornecedor de crédito para a lavoura cafeeira de São Paulo,
progressivamente foi eclipsado pela atuação das casas exportadoras junto aos produtores.
Para Delfim Netto, com o advento do trabalho livre, a necessidade de numerário para a
cafeicultura excedeu a capacidade dos comissários de lhe fazer frente, o que os tornou
dependentes de financiamento e quebrou sua resistência diante dos exportadores. Este
processo se consolidaria em 1903, com a regulamentação dos armazéns gerais, o que
facilitou a negociação direta entre exportadores e produtores, eliminando a intermediação
dos comissários e dos ensacadores (NETTO, 1979: 8 e 37). Para Wilson Cano os
comissários continuaram importantes até a Primeira Guerra Mundial, mas: “À medida que
expande o sistema bancário de São Paulo e que aumenta o grau de intervenção do Estado
nos planos de valorização, esses dois intermediários (comissários e ensacadores) tendem a
desaparecer, restando somente os corretores e os exportadores” (CANO, 1998: 83).
Na afirmação de Wilson Cano implicitamente o autor supõe que o sistema bancário
se constituiu na principal fonte de crédito para a lavoura, o que, segundo a visão de Saes,
não chegou a ocorrer de forma significativa em nenhum momento em toda a República
Velha. Entretanto Cano situa o declínio do comissariado em um período posterior ao nosso.
O argumento de Delfim Netto, de que os comissários entram em decadência por tornarem-
se dependentes de financiamento, por outro lado parece possuir baixo poder explicativo, já
que alguns autores demonstram, com dados empíricos, que os comissários sempre
buscaram financiamento em alguma instituição financeira. Carlos Guilherme Guimarães
assinala que o Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, fundado na década de 1850,
apesar de nunca haver priorizado o crédito hipotecário em suas aplicações (que seria o
melhor tipo de operação para a lavoura) parece ter indiretamente desempenhado um papel
7
importante no incremento do crédito direcionado à agricultura, já que grande parte de seus
empréstimos destinou-se a elementos qualificados como comissários, alguns destes
possuindo ações da própria instituição (GUIMARÃES, 2001: 7).
Stanley Stein também enfatizou esta função dos bancos enquanto emprestadores dos
comissários: “Constituindo de longe, o mais ativo e poderoso setor do comércio do Rio de
Janeiro, os comissários sacavam abundantemente sôbre as vinte e uma casas bancárias
fundadas na década de 50 e 60. A despeito dos serviços prestados pelos estabelecimentos
bancários aos comissários, os capitais de que dispunham eram relativamente restritos;
individualmente, nenhum dêles possuía o capital do Banco do Brasil, instituição oficial,
com seus 30.000 contos. Redescontavam no Banco do Brasil títulos de crédito assinados
pelos comissários. O Banco do Brasil se transformou, assim, de fato, em ‘banqueiro dos
bancos’”(STEIN, 1961: 255 a 256). É bem provável que esta ligação entre sistema
bancário e comissariado e mesmo entre sistema bancário e outros credores privados2
existisse também no Oeste Paulista, de modo que uma conjuntura de expansão ou retração
econômica experimentada pelos bancos poderia espraiar-se por toda a economia cafeeira.
Pode-se afirmar, sobre o sistema bancário paulista, pelo menos até 1914, que seu
poder de multiplicar os meios de pagamento era bastante reduzido, dadas as condições em
que essas instituições financeiras operavam: o uso dos bancos não se encontrava
generalizado, não havia aceitação geral do cheque, inexistia uma câmara de compensação
de pagamentos interbancários e tampouco um banco central de redescontos. De modo que
grande proporção do papel-moeda emitido se concentrava em poder do público e não nos
bancos. Tudo isso exigia a manutenção de grande proporção de caixa para fazer frente às
situações de crise. Assim, até 1914 o sistema bancário retrai-se na medida em que há
redução do papel-moeda emitido ou uma queda no valor das exportações de café (SAES,
1986: 90 e 144 a 147)3. Certamente que estas retrações também afetariam o financiamento
da lavoura cafeeira, já que o comissariado, como aludimos anteriormente, possivelmente
captava recursos junto às instituições bancárias. Assim, ainda que de forma sumária, faz-se
2 Destacamos aqui elementos que atuavam localmente e eram conhecidos como “capitalistas”, designação que na verdade aludia à posse da riqueza em sua forma monetária, como “capital”, que servia ao empréstimo a juros. 3 Ademais, a diversificação econômica (notadamente as atividades voltadas para o mercado interno, como a produção de alimentos e industrial) encetada pelo comércio de café, mas relativamente autônoma em relação a este, ainda não atingira uma amplitude e força suficientes para gerar operações de depósitos e empréstimos capazes, por seu volume, de dinamizar o mecanismo de multiplicação dos meios de pagamento.
8
necessário a referência às diversas conjunturas monetárias de nosso período como também
o comportamento das exportações de café.
A possibilidade de elevação dos preços do café sempre fora limitada,
principalmente pela possibilidade de substituição do café por outras bebidas e pela
concorrência internacional entre os produtores. Como resultado, inexistiu uma tendência
secular para os preços do produto (levando-se em conta a impossibilidade de que se
elevassem indefinidamente, ou ainda, de que baixassem de forma contínua sem que se
operassem ajustes entre a oferta e a procura) (MELLO, 1982: 65 e 66). O preço do café de
fato apresentou um comportamento cíclico, ditado principalmente pelo lado da oferta,
considerando-se o caráter inelástico da demanda (em determinado ponto um aumento da
renda dos consumidores não se converte na compra de mais café). Grosso modo e
abstraindo o papel do câmbio e de eventos de ordem climática, o ciclo funcionaria assim:
como o cafeeiro inicia sua produção apenas após o quarto ano, qualquer estímulo a uma
expansão das plantações por um eventual aumento de preços somente elevaria a quantidade
exportada depois de decorrido este prazo. Claro é que, com mais café no mercado, seu
preço tendia a se deprimir, desestimulando investimentos em novos plantios, reduzindo a
oferta futura, o que pressionaria os preços para cima, reiniciando o ciclo (NETTO, 1979: 7
a 19 e 29 e 30). Cabe perguntar: como as políticas monetárias executadas afetavam este
ciclo?
Segundo Tannuri, as medidas de política monetária adotadas pelo ministro Rui
Barbosa no início da República visando expandir o meio circulante, fundadas na
autorização para certo número de bancos (em 1890 eram 9) emitirem notas até o triplo de
suas reservas monetárias atendiam basicamente ao grande capital mercantil e financeiro
carioca (TANNURI, 1981: 55). Entretanto fizeram sentir seus efeitos em toda a produção
de café no Brasil. A média das exportações entre 1886 e 1890 situou-se em 5,2 milhões de
sacas, o que não representava muito naquele momento frente à procura internacional,
resultando em um aumento dos preços em moeda externa em um ritmo superior ao dos
preços internos4. Estes aumentos estimularam uma expansão nas plantações que apenas
repercutiriam seus efeitos quatro anos depois.
4 Se tomarmos como base 100 tanto para os preços externos quanto para os internos no ano de 1885, estes atingiriam o índice 149 em 1890 e aqueles 237 no mesmo ano (NETTO, 1979: 17 e 18 e quadro 6 à página 18).
9
Uma combinação perversa de uma retração econômica na Europa (a partir de 1890)
e nos Estados Unidos (a partir de 1893) com o aumento do total exportado (em 1890/1891
5,58 milhões de sacas, em 1891/1892 7,60, em 1892/1893 6,34 com uma pequena
diminuição em 1893/1894 para 4,84) determinou uma queda acentuada da procura e
conseqüentemente dos preços externos que se intensifica a partir de 1894. Ocorre que
devido à ampliação do meio circulante o câmbio se deprimia concomitantemente à queda
dos preços externos, tornando por algum tempo ainda atrativas as inversões em novos
plantios, já que o cafeicultor recebia em moeda nacional5. A produção cafeeira permaneceu
em ascensão até 1898, assim como a desvalorização cambial e uma inflação que depreciava
sobremaneira o mil-réis, afetando não apenas os cafeicultores, pois o governo federal
auferia suas rendas fundamentalmente de receitas sobre as importações em valores fixados
em moeda nacional.
Em 1898 o pagamento da dívida externa estava além da capacidade do governo
brasileiro. Destarte, em 15 de junho de 1898 celebrou-se um acordo para consolidação da
dívida, conhecido como funding loan, pelo qual o governo federal receberia um empréstimo
cujos títulos serviriam para pagar as dívidas anteriores e as garantias de juros para as
estradas de ferro. Ficariam suspensas as amortizações (pagamento apenas do capital) de
todos os empréstimos para consolidação até 1º de julho de 1911. Contudo, o governo
concordava em dar como garantia as receitas de todas as alfândegas do país e a retirar de
circulação uma soma de papel-moeda equivalente (ao câmbio de 18 dinheiros esterlinos por
mil-réis) aos títulos do funding. Ademais, restaurou-se a cobrança em ouro dos impostos
de importação e o governo reduziu sobremaneira suas despesas de consumo, diminuindo,
sobretudo, os gastos com investimento público (VILLELA e SUZIGAN, 1975: 87 e 88;
118 a 120; 91, tabela III.1)6. Os efeitos não demoraram a se fazer sentir: os preços caíram
30% até 1902 (gerando deflação) e quase metade do sistema bancário entrou em falência
em 1900 (VILLELA e SUZIGAN, 1975: 88).
5 A taxa cambial, de 26 7/16 dinheiros por mil-réis em 1889 passa a 7 3/16 em 1898, e os preços internos e externos, se admitirmos um índice 100 para ambos em 1889, chegam a 163 em 1898 no caso dos primeiros e a 41 no caso dos segundos para o mesmo ano, sendo que o pico daqueles se situaria em 290, atingido em 1894, quando os preços externos apresentariam o índice de 92 e a taxa cambial a 10 3/32 (NETTO, 1979: 19 e 22 e quadro 8 à página 22). 6 As despesas efetivamente realizadas caíram de 668,1 mil contos de réis em 1898 para 295,4 mil contos de réis já em 1899, resultado também da deflação que se seguiu.
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A produção cafeeira continuou se expandindo ainda sob o efeito dos plantios da
década de 1890 a tal ponto que em 1902 o estoque mundial visível chegou a 11,3 milhões
de sacas. Em 1902 uma geada diminuiu a oferta do produto nos anos posteriores, reduziu o
estoque mundial visível e amenizou até certo ponto a situação dos cafeicultores. A situação,
como observa Delfim Netto: “... caminhava, portanto, para a regularização quando as
floradas da safra 1906/1907 mostraram claramente que o Brasil estava diante de uma
produção de volume até então desconhecido. O estoque mundial, que na abertura daquela
safra seria de pouco mais de 9 milhões de sacas, tinha perspectiva de ser duplicado e os
preços deveriam cair abaixo do que havia vigorado em 1901. Este fato, ligado ao câmbio
de 15 57/64, vigorante em 1905, reduziria os preços do café, em moeda nacional, a níveis
até então desconhecidos”(NETTO, 1979: 45).
Após várias negociações em torno de uma intervenção no mercado cafeeiro, em
1906 um consórcio internacional de banqueiros e comerciantes internacionais, juntamente
com o governo do Estado de São Paulo, implementaram um plano para retirar grande parte
do produto do mercado a fim de elevar seus preços. Estima-se que durante a vigência do
plano retirou-se do mercado algo em torno de 8,1 milhões de sacas de café de alta
qualidade, ou um terço da produção mundial e mais da metade da produção brasileira
(HOLLOWAY, 1978: 71 A 96). Para refrear a valorização cambial advinda da maciça
entrada de divisas – seu movimento não se interromperia já que neste momento havia a
possibilidade de expansão das plantações sem a contrapartida de uma queda acentuada nos
preços externos – no mesmo ano de 1906, sob a gestão do Presidente Afonso Pena, o
governo federal criou a Caixa de Conversão. Esta manteria uma taxa cambial ligeiramente
superior à de mercado, comprando divisas estrangeiras equivalentes ao ouro por meio da
emissão de notas de estabilização, cujo teto se situaria em 320.000:000$000 (VILLELA e
SUZIGAN, 1975: 298, nota 8)7. A Caixa de Conversão funcionou até o ano de 1914,
7 Para estes autores a mediada visava atender aos fazendeiros. Renato Monseff Perissinotto, ao contrário, defende que a medida na verdade não visava atender os produtores, pois estes queriam a taxa de câmbio fixada a 12 pences por mil-réis e esta de fato foi fixada pela Caixa de Conversão em 15 pences por mil-réis. A Caixa de Conversão, na interpretação deste autor, serviu muito mais a conciliação dos diversos interesses em pugna (PERISSINOTO, 1994: 74 e 75). Leandro Salman Torelli, por outro lado, defende que a utilização da Caixa de Conversão visava principalmente a adoção definitiva do padrão ouro no Brasil, com o objetivo de garantir a credibilidade do Brasil frente aos capitais financeiros internacionais, de tal forma que o Brasil se preparava para aproveitar-se dos fluxos financeiros internacionais, abundantes naquele momento. Em dado momento de seu trabalho Torelli, amparado nos debates parlamentares acerca da criação da Caixa de Conversão, deixa entrever a natureza dos interesses que se reuniam em torno da sua atuação: “defendem o
11
quando não suportou a corrida às suas cambiais, decorrente das condições desfavoráveis do
mercado internacional frente à eclosão da I Guerra Mundial.
A grande questão que surge quando analisamos os números da produção brasileira
de café no período e tendo em mente as várias conjunturas monetárias enfrentadas é: como
se passou de uma produção de 11,2 milhões de sacas na safra de 1897/1898 para 16
milhões na de 1906/1907 (levando-se em conta que os expressivos números desta safra
originar-se-iam de plantios efetuados entre 1902 e 1903, já que o café demora no mínimo
quatro anos para dar frutos)? Derivaria este incremento da expansão cafeeira para novas
áreas? Ou se criaram formas de se furtar a esta escassez de numerário por meio de arranjos
locais que pudessem minimizar o uso da moeda e estabelecer mecanismos de troca e de
financiamento capazes de atender as demandas dos produtores? Teria realmente havido
uma escassez monetária? Que papel jogariam as relações de produção neste sentido?
3) Crédito e Cafeicultura em Franca
A primeira questão com a qual nos defrontamos quando nos voltamos para a região
eleita como objeto de estudo é: os mesmos processos que ocorreram em um nível mais
amplo, afetando a lavoura cafeeira do Estado de São Paulo como um todo, também
atingiriam a produção de café no município de Franca? O que equivale a afirmar: a
expansão e retração da cafeicultura, bem como a disponibilidade de moeda nos canais de
financiamento seguiriam nesta localidade os mesmos movimentos que seguiram no Estado
de São Paulo no seu conjunto? Observemos a tabela na página seguinte:
instrumento aqueles que diziam acreditar que o maior mal para a economia nacional era a oscilação cambial. Esta era nociva à produção e ao consumo, portanto, aos importadores e exportadores, visto que impedia o cálculo de longo prazo, as expectativas eram desvirtuadas e quem ganhava com isso eram os especuladores, os jogadores de câmbio, que nada produziam para o país.” (TORELLI, 2004: 30 e 31). As diferentes interpretações desses autores derivam de perspectivas diferentes acerca das relações de poder no seio do Estado, mas para os nossos objetivos o importante é perceber apenas os efeitos da atuação da Caixa de Conversão.
12
Tabela 1 – Quantidades de café produzidas e embarcadas na Estação da Companhia
Mogiana em Franca entre 1888 e 1914 em toneladas
Ano Quantidades Produzidas Quantidades embarcadas Diferença
1888 - 131,26 -
1889 - 428,94 -
1890 - 531,57 -
1891 - 780,26 -
1892 - 654,55 -
1893 - 842,35 -
1894 - 912,31 -
1895 - 2.238,96 -
1896 - 3.772,49 -
1897 - 4.998,92 -
1898 - 4.784,91 -
1899 - 5.653,25 -
1900 - 7.284,55 -
1901 - 8.565,03 -
1902 - 9.755,31 -
1903 - 8.389,06 -
1904 - 6.923,30 -
1905 - 5.490,61 -
1906 - 8.469,10 -
1907 - 11.007,52 -
1908 - 6.625,63 -
1909 11.918,40 9.663,60 2.254,80
1910 6.273,00 5.297,32 975,78
1911 9.355,35 5.692,22 3.663,13
1912 9.390,36 5.935,37 3.454,99
1913 10.042,35 7.188,41 2.853,94
1914 - 5.873,35 -
Fonte: adaptado de (TOSI, 2003: 303, anexo 2; 132, tabela 4) Para os dados referentes até o ano de 1906 o autor utilizou os relatórios da Companhia Mogiana, para os anos posteriores utilizou fontes variadas.
Além do item quantidades embarcadas acrescentamos o item quantidades
produzidas, pois a partir da implementação do plano de valorização de 1906 nem todo o
café era imediatamente comercializado. Os números da tabela demonstram uma produção
13
crescente até 1902, quando chega a 9.755 toneladas, provavelmente devido aos plantios
realizados ainda durante a década de 1890. De 1902 em diante têm-se uma queda
progressiva de toneladas de café embarcadas, chegando a apenas 5.490 no ano de 1905.
Entretanto, no ano seguinte o município exportou 8.469 toneladas e no ano seguinte esse
número já atingira surpreendentes 11.000 toneladas. Evidentemente este aumento foi o
resultado de plantios efetuados entre 1902 e 1903, já que as quantidades de café
embarcadas nos anos anteriores a 1906 e 1907 situaram-se em níveis inferiores, além de
decrescerem até 1905, de modo que não podemos imputar a elevação na produção que se
verificou entre 1906 e 1907 aos plantios da década de 1890.
Percebemos, portanto, que também houve uma expansão das lavouras de café em
Franca exatamente no momento em que se passava por uma severa restrição monetária,
oriunda das políticas deflacionistas adotadas pelo ministro da fazenda Joaquim Murtinho a
partir de 1898. Após o plano de valorização de 1906, contudo, a produção do município
parece haver se estabilizado em torno de 9.000 a 11.000 toneladas de café. Entretanto, teria
havido realmente uma escassez monetária no município de Franca entre 1899 e 1906? O
gráfico a seguir, com dados deflacionados (VILLELA e SUZIGAN, 1975: 410 e 411, tabela
VII) 8 é bastante sugestivo:
Gráfico 1 - Volume de empréstimos efetivamente tomados no município de Franca 1889-1914 dados deflacionados
0
200
400
600
800
1.000
1889 1891 1893 1895 1897 1899 1901 1903 1905 1907 1909 1911 1913Anos
Val
or r
eal
em
co
nto
s de
réi
s d
e 1
919
Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 12 ao 79. AHMF. Utilizamos os índices de preço de Aníbal Villanova Villela e Wilson Suzigan que usam o índice 100 para os preços de 1919 e definem os valores para os demais anos conforme sua proporção em relação aos preços deste ano.
8 Os índices de preços que os autores elaboraram referem-se principalmente à cidade do Rio de Janeiro. O município de Franca, após entrosar-se definitivamente na economia cafeeira, provavelmente seguia a flutuação de preços da economia paulista e da cidade de São Paulo em particular. Apesar dos maiores impactos do Encilhamento sobre a economia carioca, consideramos que a tendência geral sobre os preços deve ter sido bastante semelhante.
14
A primeira coisa que chama a atenção é o entrelaçamento entre a dinâmica da
cafeicultura e a dinâmica do crédito: enquanto o café desfrutava de bons preços (pelo
menos internos) incrementavam-se as operações creditícias; quando havia uma depreciação
na renda auferida pelo cafeicultor também decaía o montante do valor de empréstimos
registrados no município. Ademais, os empréstimos ganham certo vulto apenas quando a
lavoura cafeeira passa a atuar em escala significativa em Franca. Como observamos na
tabela 1 a produção de café se elevou até 1902 enquanto que o volume de operações de
empréstimos começa a cair já em 1900, mas os fazendeiros de café provavelmente passam
a experimentar um declínio na lucratividade de seus negócios já em 1899, devido ao
ajustamento dos preços internos do produto (devido às políticas deflacionistas de Joaquim
Murtinho) aos externos, que há muito tempo vinham baixando. Entre 1901 e 1907 o valor
total de empréstimos permanece baixo, com uma fraca recuperação entre 1902 e 1904,
possivelmente devido à elevação dos preços do café como resultado da diminuição da
oferta que ocorreu após a geada de 1902. Exatamente nesse período que acreditamos que
foram realizados os plantios que frutificaram nos anos de 1906 e 1907, mas mesmo assim o
montante de empréstimos efetuados entre 1902 e 1904 parecem ter sido bem inferior ao
total dos anos 1890 e após a valorização de 1906.
Os números referentes às operações de crédito realizadas entre 1902 e 1904 tornam-
se ainda menores comparativamente à década de 1890 se adicionarmos aos dados contidos
no gráfico informações contidas em procurações firmadas em Franca e também registradas
nos livros cartoriais de 2º ofício que visavam conferir poderes a um procurador para que
este conseguisse levantar somas fora do município, em geral junto a alguma instituição
financeira. Do ano de 1895 até 1900, segundo os registros dos livros cartoriais de 2º ofício,
foram emitidas 20 procurações desse tipo, 19 especificando que o empréstimo deveria ser
tomado no Banco Real de Crédito de São Paulo, com as quantias solicitadas atingindo a
soma de 2.670:000$000 ou 2.670 contos, mais 15 contos pedidos a Antonio Pimenta de
Pádua no ano de 1900. Após este ano há apenas uma procuração deste teor registrada pelos
sócios da fazenda União em 1909, mas não há referências à quantia ou ao possível credor9.
Não há como saber, com a documentação de que dispomos, se estes empréstimos
realmente se efetivaram, mas a presença do Banco de Crédito Real de São Paulo em uma
9 Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79. AHMF.
15
lista de cafeicultores do município de Franca de 191010 (apesar de sua liquidação em 1906,
o que não é de todo estranho se pensarmos que este processo poderia levar alguns anos)
indica que pelo menos parte destas solicitações de financiamento devem ter se convertido
em contratos de hipoteca e que na virtual insolvência dos devedores o banco executou suas
propriedades. Isto parece demonstrar que se houve alguma participação direta do sistema
bancário no financiamento da cafeicultura no município de Franca, esta se deu durante o
período de maior abundância monetária, na década de 1890. A inflação deste período pode
ter incrementado até mesmo a capacidade de solvência dos fazendeiros de café, pois o valor
real do montante a pagar aos seus credores declinava por ocasião da liquidação de suas
dívidas, de forma que o cafeicultor se beneficiava duplamente da elevação dos preços:
vendia sua colheita em moeda nacional e saldava suas dívidas após o valor real destas ter se
deprimido, o que certamente também pesou na expansão cafeeira da década de 1890.
Evidentemente, numa conjuntura de aguda escassez monetária e deflação, como foi
a do início do século XX, os fazendeiros sofriam os efeitos do baixo preço do café em
moeda nacional, o que corroia a lucratividade de seu negócio, além de assistir ao avolumar
do valor real de suas dívidas exatamente em um momento em que se estreitavam as
possibilidades de se obter mais crédito a fim de pagá-las. Cabe perguntar: como os
cafeicultores de Franca experimentaram esta crise? Esta é melhor circunstanciada por uma
apreciação qualitativa que quantitativa. Transformação de amplos reflexos sobre a
produção cafeeira, a mudança que se processou nas relações de trabalho, observada por
Rogério Naques Faleiros a partir de 1898, agia no sentido de transferir parte dos prejuízos
aos trabalhadores, pois introduzia, nas fazendas da região, o regime de parceria, ou o da
empreitada conforme a idade dos pés, em detrimento do outrora bem-sucedido sistema do
colonato11.
O processo não se esgotava nas alterações sofridas pelas relações de trabalho, a
nova condição dos parceiros, fossem nacionais ou imigrantes, colocou-os em uma posição
extremamente propícia para acumular algum pecúlio que poderia ser invertido na aquisição
10 Cf. Vital Palma. Almanach de Franca: 1912. São Paulo: Salesianas, 1911, pp. 203 a 207. MHMF. 11 A principal diferença entre estes sistemas de trabalho era que além da permissão para o plantio de alimentos em áreas específicas e pagamentos pro ocasião da colheita, o colonato pressupunha pagamentos fixos pelo trato de determinada quantidade de café, enquanto que na parceria os trabalhadores só recebiam após a venda do produto, de modo a ajustar os pagamentos em moeda ao preço recebido pelo fazendeiro na venda do produto.
16
de terras, desvalorizadas pela depreciação do café, o que se mostrou um caminho viável
para que os fazendeiros saldassem seus débitos (FALEIROS, 2002: 125 a 136). Assim
teríamos de um lado fazendeiros vendendo suas terras para fazer frente às suas dívidas e de
outro trabalhadores tornando-se pequenos proprietários, o que de fato ocorreu em Franca
por esta época (TOSI, 2003:131).
Portanto identificamos dois procedimentos que visavam driblar a escassez
monetária e ao mesmo tempo fazer frente às dívidas contraídas na década de 1890: a venda
de terras e a introdução de relações de parceria. Entretanto isto não parece haver viabilizado
os plantios realizados no início do século XX, tanto que segundo números do trabalho de
Faleiros a quantidade de contratos lavrados para trato de café entre 1900 e 1906 não chega
sequer à metade do que atingiu durante a segunda metade da década de 1890 (FALEIROS,
2002: 24, gráfico 1). Mas quando se analisa mais detalhadamente as operações de crédito,
abrem-se algumas vias de explicação. Vejamos o gráfico abaixo:
Gráfico 2-Proporção dos créditos registrados em Franca por faixa de valor, períodos selecionados
0
100
200
300
400
500
1887-1898 1899-1906 1907-1914
Período
Co
ntos
Até 10 contos De 10 a 20 contos De 20 a 30 contosDe 30 a 40 contos De 40 a 50 contos Mais de 50 contos
Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 10 ao 79, AHMF.
O que se mostra mais surpreendente neste gráfico é o extraordinário aumento dos
empréstimos envolvendo pequenas quantias entre 1899 e 1906, aumento não apenas em
termos absolutos mas principalmente relativos, pois este tipo de operação passa
praticamente a dominar o mercado de crédito local. Destes empréstimos de até 10 contos,
17
para todo o período pesquisado, 29% em termos de valor foram concedidos a devedores
identificados nas escrituras como “lavradores”, 13% a “comerciantes” e o restante (58%) a
devedores com ocupação não determinada nas escrituras, profissionais liberais e a
elementos designados genericamente como “proprietários”.
Destes empréstimos de pequenas quantias em que a ocupação dos devedores
definiu-os como lavradores, apenas 11% se firmaram com garantia hipotecária de imóveis
urbanos em termos de valor, de forma que o bem dado como garantia é um bom indicador
da atividade exercida pelo devedor. Vejamos o gráfico que segue:
Gráfico 3-Proporção por tipo de bem dado como garantia nos empréstimos de até 10 contos registrados no município de Franca entre 1887 e 1914, por valor
33%
36%
10%
8%
5%4%
2%2%
Imóveis Rurais Imóveis Urbanos Café e gêneros agrícolasLetras e transações diversasMercadorias OutrosMistos Rurais/Urbanos Indeterminado
Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 10 ao 79, AHMF.
Como os bens dados como garantia especificamente de origem rural (imóveis rurais
e café e gêneros agrícolas) perfazem um total de 41% e como 86% destes bens tem a
origem rural ou urbana bem determinada (10% são indeterminados, 2% mistos e 2%
corresponde a outros), podemos concluir que cerca de 46,6% destes empréstimos
destinavam-se a pequenos agricultores e a maior parte destes possivelmente fossem de
cafeicultores, já que devido ao maior valor do café em relação a outras culturas as terras
que contivessem cafeeiros possivelmente garantissem empréstimos de maior valor.
Estamos aventando, portanto, a possibilidade de que a pequena cafeicultura, para a
qual certamente fluiu grande parte desses empréstimos de até 10:000$000 ou 10 contos,
efetuados entre 1899 e 1906, tenha sido a principal responsável pelos plantios realizados
durante este mesmo período. Todavia, se analisamos as taxas de juros e os prazos destes
18
empréstimos de pequenas quantias percebemos que os cafeicultores de maior porte
possuíam melhores condições de obtenção de crédito que os menores:
Gráfico 4 - Taxas de Juros Praticadas por Faixa de Valor - Franca 1887-1914
0,00%
20,00%
40,00%
60,00%
80,00%
Até 10 contos Mais de 10 contos até 50
Sem Juros Até 12% ao ano Mais de 12 até 24% ao anoNão Consta
Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 10 ao 79, AHMF.
Gráfico 5 - Prazos Praticados nos Empréstimos por Faixa de Valor por Montante de Valor - Franca 1887-1914
0,00%
10,00%20,00%
30,00%40,00%
50,00%60,00%
Até 10 Contos De 10 a 50 Contos
Até 1 ano De 1 a 2 anos De 2 a 3 anos De 3 a 4 anos
Mais de 4 anos Variável Não Consta
Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 10 ao 79, AHMF.
Ademais, algumas escrituras envolvendo pequenas quantias nos sugerem que
pequenos cafeicultores se submetiam a condições ainda mais desfavoráveis na obtenção de
crédito, como o contrato registrado no 2º tabelionato de notas de Franca no ano de 1.900
entre o Dr. Marcílio Mourão, capitalista e Joaquim Antonio de Andrade, lavrador, onde
aquele efetua um empréstimo a este no valor de 2:100$000 (dois contos e cem mil réis) a
1,5% de juros ao mês com capitalização semestral (os pagamentos deveriam realizar-se de
seis em seis meses) e garantia de 300 arrobas de café. Mas o importante nesta escritura
reside no fato de o escrivão observar que o credor receberia 15 quilos pelo preço de 10 que
19
vigorasse em Santos12. No mesmo teor era o contrato entre Olívio Alves Ferreira,
capitalista, e José Urias do Nascimento, lavrador, onde aquele emprestou a este a quantia de
6:000$000 com a garantia sobre 900 arrobas de café que deveria entregar na estação
Mogiana, limpo e beneficiado; o devedor pagaria uma arroba por cada 10 quilos, ou
melhor, pagaria a dívida com cada arroba de café valendo 10 quilos13.
Estas são as únicas escrituras, em mais de quinhentas, que estabelecem e explicitam
este tipo de relação. Todavia isto não significa que este deliberado rebaixamento dos preços
dos produtos do devedor não ocorresse com certa freqüência, até porque em se tratando de
laços de confiança14 mútua nos quais se enredava o negócio, nem todos os procedimentos
concernentes a este necessitariam de registro. Um outro fato reforça o argumento que
esboçamos acima: Pedro Geraldo Tosi, estudando o desenvolvimento da cafeicultura na
região, alude à propaganda do Banco de Custeio Rural, fundado em 19 de agosto de 1911,
onde se anunciava que realizava contratos de penhor agrícola deixando plena liberdade ao
devedor na venda da produção (TOSI, 2003: 134 e 135)15. O que Tosi argumenta é que o
banco estava tentando se constituir em uma opção às fontes tradicionais de crédito na
região, oferecendo para tanto condições de empréstimo que buscavam se diferenciar de
relações que provavelmente se fundavam em uma grande dependência do cafeicultor em
relação ao capitalista ou comissário16.
12 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2ºofício de Franca, 1900, nº 36, folha 14. AHMF. 13 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1900, nº 36, folha 16v. AMHF. 14 Vejamos o que afirma um trabalho escrito por um autor que pertenceu a uma família de importantes negociantes da região na época, os Caleiros: “...principalmente aos lavradores, eram fornecidas mercadorias com a célebre ressalva, ‘em prazo de colheita’. Para melhor esclarecer esta parte, o produto da venda do comerciante era para ser paga apenas na época das colheitas, fossem elas de café, cereais ou outros gêneros de montante vultoso. Apenas nestas ocasiões, ficava o lavrador apto a regularizar seus débitos, ressalvadas as exceções das trocas por queijo, farinha, rapaduras e outras rendas de menor monta que a todo tempo eram válidas... o comerciante, mesmo cobrando algum juro pela espera na regularização dos débitos, deveria possuir um capital apreciável, pois ao lado do suprimento de suas prateleiras, deveria arcar com o financiamento dos seus freguêses. Surgiram, em razão disto, os embriões... de muitos organismos bancários do interior, pois nesta altura, já se confundiam as figuras do negociante com a do banqueiro. Foi o que se deu com o próprio Hygino de Oliveria Caleiro, com o grupo Moreira Salles de Poços de Caldas, com o grupo Artur Scatena de Batatais”. (CALEIRO, 1967: 9 e 10). 15 A propaganda a que aludimos encontra-se em Vital Palma (org.). Almanach de Franca: 1912. São Paulo: Salesianas, 1911, p. 33, MHMF. 16 Acredito inclusive que a atuação deste banco possa estar por trás da diminuição do número de empréstimos registrados nas escrituras a partir de 1911 e evidenciado no gráfico 1, pois operações do banco poderiam ser registradas em outros documentos e não nos livros cartoriais. Isto não significa que o sistema bancário tenha desfrutado de uma posição de destaque no financiamento da lavoura, tanto que não encontramos, na documentação local, nenhum outro registro sobre o banco, o que pode indicar que funcionou por pouco tempo, como os bancos de custeio rural analisados por Saes.
20
Mesmo com estas condições desfavoráveis para obtenção de crédito, os
empréstimos de pequenas quantias permaneceram no mesmo patamar entre 1907 e 1914,
apesar do crescimento das operações creditícias envolvendo somas mais altas, conforme
mostra o gráfico 2. Como, diante do que já foi exposto, dificilmente podemos postular uma
lucratividade mais alta da cafeicultura de dimensões diminutas em relação às fazendas de
maior porte, devemos entender porque estes pequenos cafeicultores demonstravam (ao
menos é o que as escrituras de dívida nos sugerem) esta grande capacidade de
sobrevivência em seus empreendimentos.
Neste ponto as escrituras de dívida não podem nos ajudar. Embora neste trabalho eu
não tenha realizado um exaustivo estudo empírico, a análise de um inventário de um desses
pequenos cafeicultores nos deixa uma série de sugestões sobre esta questão. Trata-se do
inventário de Joaquim Antonio de Andrade17, que já observamos efetuando um contrato de
empréstimo com o Dr. Marcílio Mourão em 1900, onde deveria entregar a este último cada
arroba dos frutos de seu cafezal ao valor de 10 quilos. É ao mesmo tempo um exemplo de
pequeno cafeicultor e de um devedor que enfrentava condições extremamente
desfavoráveis na obtenção de crédito.
Um primeiro fato chama a atenção no inventário de Joaquim Antonio de Andrade e
já o distingue do grande cafeicultor: a não utilização de empregados em suas terras, o que
denota a exploração do solo por meio do trabalho familiar, uma primeira forma de se
rebaixar os custos de produção de que o pequeno produtor se valia. A vida de sua família
não aparentava muita sofisticação, dado que a avaliação do valor total dos móveis chegava
a 456$000, com um carro compondo a maior parte do montante, com 400$000. A
existência do carro, todavia, indica que o próprio inventariado buscava os artigos de que
necessitava na cidade, dispensando portanto os serviços de um intermediário ao mesmo
tempo em que poderia também colocar os artigos produzidos em sua fazenda no mercado
urbano.
Joaquim Antonio possuía como semoventes oito bois ‘de carro arriados’ no valor de
85$000 cada um, uma égua russa com um poltro por 100$000, um cavalo castanho por
100$000, quatro porcos a 30$000 cada um e duas ‘marãn’ (?) pequenas no valor de 10$000
17 Inventário de Joaquim Antonio de Andrade. Caixa 138 do Tabelionato de 1º ofício, 1902, volume 58, AHMF.
21
cada uma. Ora, ao menos no quesito ‘subsistência’ o inventariado em questão parecia bem
suprido. Garantia-se a alimentação, mesmo em períodos de aperturas financeiras e baixa
nos preços do café, com carnes e mesmo com alimentos vegetais. Embora no inventário não
haja referências a cereais ou leguminosas que porventura Joaquim Antonio e sua família
cultivassem em sua propriedade, talvez o valor mercantil destas se encontrassem em um
nível muito baixo para sua inclusão na avaliação, ainda que facilitassem a subsistência da
família. Quando se procede à avaliação dos bens imóveis, em um trecho fica implícita a
cultura de outros gêneros que não o café, quando se atribui o valor de um conto para dois
mil pés de café ‘nas bananeiras’, indicando a existência de um pomar. Listavam-se mais mil
pés de café no quintal, no valor de 500$000, num total de três mil pés de café na
propriedade, além de uma casa coberta de telhas ‘em péssimo estado’, pasto cercado de
arame, no valor de 700$000 mais uma casa com paiol (geralmente utilizado para
armazenagem de milho seco) cobertos de telhas, monjolo e quintal com café e cercado de
arame, no valor de 1:400$000. As partes de terras que possuía, de cultura e campos, na
fazenda ‘Rangel Bôa União’ ou ‘arrependidos’ fora avaliada por 5:000$000, num
patrimônio total de 10:076$000.
O fato de a família praticamente não possuir mobília, embora indique um nível
muito baixo de vida, não significa que não travasse relações com a economia citadina, pois
ao menos algumas roupas e alguns tipos de alimentos deveriam buscar no meio urbano
(ainda que em quantidades mínimas), além de ferraduras para os animais, instrumentos de
trabalho agrícola, arreios, etc., o que pode significar que a sobrevivência do pequeno
comércio, para o qual também se direcionavam os fluxos creditícios de pequenas quantias,
dependia, em parte, da sobrevivência da pequena lavoura. Este argumento nos parece bem
coerente, até porque se a pequena propriedade se encontrasse em uma situação de completa
autonomia, não far-se-ia necessário a entrada de seus produtos no giro mercantil,
notadamente o café. Portanto, podemos concluir que ainda que menos lucrativa que a
grande propriedade (em conjunturas propícias do mercado cafeeiro), a pequena lavoura,
dadas as suas condições de vida material, se encontrava muito bem estruturada para
sobreviver às flutuações econômicas, permitindo que os grandes capitais dos emprestadores
de dinheiro permanecessem se valorizando, mantendo um nível mínimo de acumulação
(TEODORO, 2006: 103 a 115). Esta afirmação se confirma na medida em que para pagar
22
as antigas dívidas de Joaquim Antonio de Andrade, a família não se desfez de nenhum bem
legado pelo finado, ao menos segundo as informações constantes do inventário.
A dívida para com Marcílio Mourão, firmada em 24 de fevereiro de 1900, com a
inclusão de juros até 24 de agosto do mesmo ano, de 2:100$000 passou a 2:289$000; com o
pagamento, em café, de 1:655$000, reduziu-se a um total de 634$000, que somado aos
juros computados até 29 de dezembro de 1902, elevou-se a quantia de 944$000, que com
mais um pagamento de 355$380, mais uma vez em café, chegou a 608$620. Isto demonstra
uma capacidade de manutenção das dívidas pela família de Joaquim Antonio, pois aquela
em nenhum momento sofre uma alta muito elevada, mesmo com os devedores pagando o
montante com cada arroba de café cotada ao preço de dez quilos do produto. O fato de a
família de Joaquim Antonio não conseguir pagar efetivamente o empréstimo também não
significa que esta ficasse na contingência de não poder adquirir produtos na cidade, na
medida em que outros artigos produzidos na fazenda (arroz, milho, porcos, etc.) poderiam
entrar no giro mercantil.
4) Conclusão
O que esta análise nos sugere, portanto, é que a pequena propriedade produtora de
café mostrou-se fundamental para a manutenção de uma margem de lucratividade mínima
para os negociantes de dinheiro – o que se mostrou importante para o nível de acumulação
de capitais na região principalmente se pensarmos que grande parte destes poderia ser de
origem local e que sem essa margem de lucratividade aplicariam seus capitais em outra
região – que durante o período compreendido entre 1899 e 1906 voltaram-se para os
pequenos cafeicultores e para os pequenos comerciantes, que também dependeram da
demanda da pequena propriedade rural para sobreviver. Destarte, além de fundamental para
a manutenção dos níveis de acumulação, dada sua imensa capacidade de sobrevivência, a
pequena cafeicultura ainda mostrou um grande potencial (certamente bem menor que o da
grande cafeicultura em uma conjuntura financeira favorável) para expandir-se na ausência
de abundância de numerário, sendo responsável, juntamente com algumas das grandes
propriedades que conseguiram contornar suas aperturas financeiras, pela expansão da
lavoura cafeeira no ano de 1906, ao menos para Franca. Como os negociantes de dinheiro
23
(comissários, capitalistas, etc.) conseguiram manter uma lucratividade mínima (ou ao
menos minoraram seus prejuízos) puderam direcionar sua oferta de crédito novamente para
a cafeicultura de maiores dimensões assim que a conjuntura mostrou-se mais favorável ao
comércio do café, após o plano de valorização de 1906.
Este processo apenas foi possível porque a pequena lavoura cafeeira era uma parte
mercantil de uma realidade econômica (a pequena propriedade), caracterizada,
fundamentalmente, por perseguir primariamente a subsistência e apenas secundariamente a
colocação de seus produtos no mercado, o que explicaria sua capacidade de sobrevivência
frente às várias flutuações econômicas. Resta saber, conforme avance os estudos sobre
outras regiões, qual a abrangência deste argumento.
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24
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