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Criou-se um manual de higiene, o qual se tornou um texto de estudo. Assim, sucessivamente em todas as instâncias educacionais se trabalhou com o princípio de ensinar o outro, adequando-o, disciplinando-o pois um povo amigo da limpeza logo o será da ordem e da disciplina (p. 216). No final do século XIX a água ganhou uma legitimidade científica que nunca mais foi ultrapassada e o banho adquiriu um espaço que é totalmente privatizado. Como se pode ver, o banho tem duas características básicas no decorrer dos tempos: prazer e higiene. Como afirma Vigarello, estes dois caracteres parecem não poder caminhar juntos, ou é isto ou é aquilo. Na Idade Média, quando se banhava, significava tempo do ócio, da preguiça. Contrariamente, no século XVIII, a ciência legitimava a limpeza do corpo por meio do banho, moralizando-o. Desse modo, com o banho fazendo parte da ciência que não falta à verdade (p. 253), deve ser transformado o costume de quem quer que seja, pois a limpeza não é só um instrumento da saúde, mas também um instrumento da moral. A história do banho mostra que o que está em jogo é a intimidade das pessoas com o corpo. Assim, mesmo depois de aceito como prática social, ele sempre foi pensado com cuidados. No início era coletivo, posteriormente foi se individualizando para todas as classes sociais, mas com restrições. Assim, como podemos perceber, há várias maneiras e entendimentos sobre o banho. No entanto, é interessante frisar que enquanto ele era visto como ilegal, transgressor, era considerado como uma prática principalmente das mulheres. Somente quando se pensa na alteração dos hábitos das pessoas, é que se modifica o espaço público para atingir a todos, principalmente os pobres e aí o banho deixa de ser transgressor para ser da "ordem". Desse modo, vejo esta obra como sendo bastante pertinente, pois vem revelar práticas cotidianas sobre o tema, trazendo à tona significados morais, sociais e políticos, ao abordar a questão da higienização do espaço público pelo Estado, a fim de atingir as classes sociais mais pobres. Portanto, esta obra é uma referência bibliográfica interessante para as diferentes áreas do conhecimento e seus estudos referentes ao espaço público e privado, que no caso desse livro, tem como tema o banho com as categorias disciplina e transgressão. CRIANÇAS COMO VOCÊ: UMA EMOCIONANTE CELEBRAÇÃO DA INF ÃNCIA NO MUNDO KINDERSLEY, Barnabas e Anabel. Crianças como você: Uma emocionante celebração da infância no mundo. São Paulo: ÁticaIUNICEF, 1996,79 pp. o livro em apreço, de autoria dos fotógrafos Barnabas e Anabel Kindersley, é patrocinado pelo UNICEF. Traduzido por Mário Vilela Filho do original Children Just Like Me, sugere já no título emoção e aventura, ao mesmo tempo em que é instigante, intrigante e provocativo. A palavra criança escrita com letras maiúsculas sugere destaque, uma dignidade para os sujeitos infantes, supostos participantes da aventura literário-imagética. O design possui uma aura de rara beleza visual e estética, simulando através das cores, uma verdadeira aquarela da infância mundial, ao mesmo tempo que permite repouso, relaxamento e o aflorar de sentimentos e emoções. As fotografias retratam crianças oriundas dos mais longínquos rincões do "Ártico à linha do Equador, da América do Sul ao Sudeste". A capa possui uma força simbólica e mágica centrada na alegria, no bem estar social, no lúdico, num verdadeiro reino do faz- de-conta, da fantasia e da felicidade ... Esta publicação tem como principal teor de mensagem imediata o apelo emocional através

CRIANÇAS COMO VOCÊ: UMA EMOCIONANTE … · ao espaço público e privado, que no caso desse livro, tem como tema o banho com as categorias disciplina e transgressão. CRIANÇAS

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Criou-se um manual de higiene, o qual setornou um texto de estudo. Assim,sucessivamente em todas as instânciaseducacionais se trabalhou com o princípio deensinar o outro, adequando-o, disciplinando-opois um povo amigo da limpeza logo o será daordem e da disciplina (p. 216).

No final do século XIX a água ganhou umalegitimidade científica que nunca mais foiultrapassada e o banho adquiriu um espaço queé totalmente privatizado.

Como se pode ver, o banho tem duascaracterísticas básicas no decorrer dos tempos:prazer e higiene. Como afirma Vigarello, estesdois caracteres parecem não poder caminharjuntos, ou é isto ou é aquilo. Na Idade Média,quando se banhava, significava tempo do ócio,da preguiça. Contrariamente, no século XVIII,a ciência legitimava a limpeza do corpo pormeio do banho, moralizando-o.

Desse modo, com o banho fazendo parte daciência que não falta à verdade (p. 253), deveser transformado o costume de quem quer queseja, pois a limpeza não é só um instrumento dasaúde, mas também um instrumento da moral.

A história do banho mostra que o que estáem jogo é a intimidade das pessoas com ocorpo. Assim, mesmo depois de aceito comoprática social, ele sempre foi pensado comcuidados. No início era coletivo, posteriormentefoi se individualizando para todas as classessociais, mas com restrições.

Assim, como podemos perceber, há váriasmaneiras e entendimentos sobre o banho. Noentanto, é interessante frisar que enquanto eleera visto como ilegal, transgressor, eraconsiderado como uma prática principalmentedas mulheres.

Somente quando se pensa na alteração doshábitos das pessoas, é que se modifica o espaçopúblico para atingir a todos, principalmente ospobres e aí o banho deixa de ser transgressorpara ser da "ordem".

Desse modo, vejo esta obra como sendobastante pertinente, pois vem revelar práticascotidianas sobre o tema, trazendo à tonasignificados morais, sociais e políticos, aoabordar a questão da higienização do espaço

público pelo Estado, a fim de atingir as classessociais mais pobres.

Portanto, esta obra é uma referênciabibliográfica interessante para as diferentesáreas do conhecimento e seus estudos referentesao espaço público e privado, que no caso desselivro, tem como tema o banho com as categoriasdisciplina e transgressão.

CRIANÇAS COMO VOCÊ: UMAEMOCIONANTE CELEBRAÇÃO DAINF ÃNCIA NO MUNDO

KINDERSLEY, Barnabas e Anabel. Criançascomo você: Uma emocionante celebração dainfância no mundo. São Paulo: ÁticaIUNICEF,1996,79 pp.

o livro em apreço, de autoria dosfotógrafos Barnabas e Anabel Kindersley, épatrocinado pelo UNICEF. Traduzido porMário Vilela Filho do original Children JustLike Me, sugere já no título emoção e aventura,ao mesmo tempo em que é instigante, intrigantee provocativo.

A palavra criança escrita com letrasmaiúsculas sugere destaque, uma dignidade paraos sujeitos infantes, supostos participantes daaventura literário-imagética.

O design possui uma aura de rara belezavisual e estética, simulando através das cores,uma verdadeira aquarela da infância mundial,ao mesmo tempo que permite repouso,relaxamento e o aflorar de sentimentos eemoções. As fotografias retratam criançasoriundas dos mais longínquos rincões do"Ártico à linha do Equador, da América do Sulao Sudeste". A capa possui uma força simbólicae mágica centrada na alegria, no bem estarsocial, no lúdico, num verdadeiro reino do faz-de-conta, da fantasia e da felicidade ...

Esta publicação tem como principal teor demensagem imediata o apelo emocional através

das imagens de crianças sadias, bem vestidas esorridentes no limiar do século XX, encantado,sem conflitos e sem miséria. Os autoresoptaram, predominantemente, pela linguagemvisual de efeito afetivo e carregada de metáforasde uma infância ideal e idílica em detrimento douso excessivo da palavra. Os textos são curtose de compreensão imediata, evocando por umlado as representações do mundo infantil:sonhos, medos, esperanças e fantasias e, poroutro, descrições de lugares, acontecimentos esituações experimentadas pelas crianças.

O objetivo do livro está implícito nopróprio título que carrega em seu bojo as visõesde criança, mundo e sociedade. A opção pelacelebração da infância revela afinidades comprojetos políticos que festejam, fomentam eaprisionam as crianças no reino da necessidadee da opressão.

O prefácio é assinado pelo representante doUNICEF no Brasil, Sr. Agop Kayayan. O fulcrode seus comentários consiste nos seguintesaspectos: a apresentação didática e alegre docotidiano das crianças, a filosofia do UNICEFna intenção de "empreender esforços paralapidar uma atitude e um comportamentofavoráveis em relação à infância e àadolescência e ainda na ênfase dos direitos dascrianças". O Sr. Kayayan justifica a opção pelaindiazinha Celina para representar o Brasil:"(. ..) A escolha de uma criança indígena nãopretende representar as crianças brasileirascomo um todo, mas sim para chamar a atençãodo público brasileiro sobre a imensa diversidadecultural e os inúmeros contrastes existentes noBrasil".

Segundo ele, o UNICEF tem comopropositura considerar essa rica diversidadeatravés de "atitudes de respeito e valorizaçãodas diferenças raciais e étnicas", e concluiconvidando os leitores para uma "leituragratificante que deverá fazer vibrar assensibilidades" .

Na apresentação, os autores afirmam que"no mundo inteiro as crianças estão ocupadascom as mesmas coisas, que adoram esconde-esconde e os jogos de bola, e gostam de ir àescola". Em seguida, convidam os leitores para

"descobrir o cotidiano, as esperanças, os medose os sonhos dessas crianças, que têm muito emcomum umas com as outras."

Ensejando ser didático para crianças, o livroé informalmente dividido em episódios relativoaos continentes, e não em capítulos, para emseguida apresentar o Diário de Viagemacompanhado de um índice remissivo e osagradecimentos às crianças envolvidas naprodução do livro e às instituiçõescolaboradoras. Cada episódio é apresentadoconsistindo no conteúdo, a saber: o cotidianodas crianças, a família, as manifestações lúdicas(danças, crenças), utensílios domésticos, ageografia, a fauna, a flora, a moradia, aalimentação, o transporte, a escola e o trabalhomeramente familiar. Tais descrições sãocompletadas com os depoimentos das crianças,cujas falas soam um eco oco sem ressonância, eartificialmente coladas às fotografias, ao álbumde recordações de um tempo futuro ...

No decorrer das narrativas imagéticas,celebra-se o trabalho de natureza apenasfamiliar fazendo vistas grossas aos 250 milhõesde crianças exploradas pelo trabalho precoce,escravo e alienante no campo e nas cidades, emtodo o mundo. Mostra as imagens dos paisdessas crianças mas, sequer levantam a lebresobre os 800 milhões de adultos desempregadosou desempenhando tarefas precarizadas.

Anabel e Barnabas optaram por fotografaro mito da infância feliz que termina porcamuflar o reino da necessidade, ressaltando umpseudo-reino da liberdade, consequentemente,mascarando a imagem da criança como sujeitodas relações sociais e de produção.

Trata-se de um simulacro de infância cujaconcepção de criança é baseada na idéia destacriança como ícone de uma tábula rasa ou deuma folha de papel em branco. Portanto, o livrocumpre sua função ideológica, mistificando aimagem da infância, vinculando-a de modofestivo e subreptício a uma sociedadeharmônica, sem conflitos e pacífica.

Acredito que publicações dessa perspectivaemergem para reforçar e atender àsnecessidades e interesses das instâncias depoder e dominação. Felizmente, existem no

Brasil dois livros muito mais didáticos paracrianças e que abordam as questões vivenciaisda realidade da criança pobre, trabalhadora eexplorada. Tais produções se contrapõemdiametralmente ao livro ora em análise,nomeadamente Serafina e a criança quetrabalha e Crianças de Fibra, ambos de lôAzevedo e Iolanda Huzak.

Em meio à valorização da imagem piegas etravestida da infância, considero de bom tomperguntar por que os autores, ensimesmados emsuas próprias aventuras e interessesmercadológicos, ocultaram a concretudepolítico-econômica e social dessas crianças? Porque emprestaram ao cotidiano os matizes apenasda diversidade cultural e étnica, escamoteandoassim as diferenças entre as classes sociais? Deque infância falam eles? Quiçá referem-se àscrianças que trabalham em regime escravo nasfábricas-dormitório em Hong-Kong, onde sefabricam brinquedos para o fetiche dosmercados globalizados. Talvez façam menção àinfância que vive como bicho do lixo dasclasses dominantes e tratada como gente nalegislação e nas politicas ditas de proteção eassistência apenas no papel?

Bamabas e Anabel, no ímpeto pelo exóticoe pelo inusitado, esqueceram-se das criançasque, já a partir da mais tenra idade, sãoviolentadas sexualmente para incrementar a tarada indústria capitalista do sexo-turismo,principalmente no Sudeste Asiático e naAmérica Latina. Esqueceram-se das criançasque brincam de cabra-cega sob a mira dorevolver dos traficantes de drogas. Quem sabenão viajaram pelos campos de refugiados, ondese pode fotografar crianças com o risoemblemático de uma infância nunca vivida?Talvez, no ímpeto pela "celebração dainfância", nos lugares exóticos visitados,tenham esquecido de captar as imagens debebês e avós que morreram de infecçãohospitalar, da família desestruturada e do corpotatuado pelos signos de uma história marcadapela escravidão e a dominação.

A palavra celebração indica etimolo-gicamente comemorar, festejar, exaltar,patrocinar.

Nesta linha de reflexão, considerotendencioso e perigoso, além de uma forma deviolência simbólica, a atitude de forjar o real.Vendo a questão por dois ângulos seriadeplorável tanto forjar o real para vender aimagem exagerada e apelativa da miséria quantoo ocultamento da realidade, como fizeram osautores com suas câmeras. É claro que o realdeixa de ser real, na medida em que a imagem éuma representação recriada e falseada a partirdo olhar do fotógrafo. Neste sentido, justifica-seo artificio ideológico de captação da imagemhomogeneizante da criança, retratada sob aégide de uma infância universal, desarticu-ladados reais contextos sociais e de classe. Ageneralização provoca processos de banalizaçãoe naturalização dos fenômenos sociais,nomeadamente da infância.

A fotografia é compreendida durante todoo livro como um mero signo do real, e não comoum constructo objetivo-subjetivo que implicaem intencional idades e visões de mundo.

Por conseguinte, deixa margem para quecada fotógrafo forje desejos, sorrisos, olhares,alegrias, tristezas, vida e morte. Assim é queeste livro privilegia a beleza e a banalização dadignidade infantil. A forma e o conteúdo searticulam tanto na imagem e na palavra(depoimentos). As palavras das crianças estãoimpregnadas dos estereótipos das entrevistasformais e as imagens reproduzem os sorrisos eolhares dos autores.

Apesar do caráter mono lógico dosdepoimentos, estes são reveladores de desejos,sonhos, palavras verdadeiras, mentiras efantasias. Em contrapartida, o conteúdo dasimagens fabricadas provoca no leitor crítico umduplo sentimento, dotado de movimentocontraditório: encantamento e indignação.

A retórica apelativa dos autores chega aoponto de afirmar que "( ....) as crianças domundo inteiro estão ocupadas com as mesmascoisas. Elas adoram esconde-esconde e jogos debola e gostam de ir à escola" (p. 6). Talassertiva invoca o sentimento de que todas ascrianças têm tempo para usufruir do prazer dejogar, da alegria da socialização com as outrascrianças, da criatividade, da fantasia e da

liberdade, inerentes às vivências do própriotempo de lazer.

Barnabas e Anabel esqueceram-se que otempo das crianças das classes populares é cadavez mais apropriado e explorado pela fúria daexploração das pequenas e grandes empresasnacionais e transnacionais, ou ainda pelotrabalho doméstico.

É óbvio e ululante que a maioria dascrianças adora as brincadeiras de esconde-esconde, pois brincar é uma maneira de ser nomundo e de fazê-Io virar de "pernas pro ar". Éo modo pelo qual constróem cultura e história,subvertendo assim a ordem estabelecida. Étípico de uma infância digna o propiciamento detempo-espaço para o desenvolvimento do fazerlúdico, cuja essência é ousar, criar, correrriscos, gozar os prazeres e suportar as dores e astensões inerentes à própria dimensão lúdica, àesfera do jogo. O que está em jogo aqui é ageneralização que se faz de que todas ascrianças jogam, quando se sabe que mesmo ascrianças ricas estão também alienadas do lúdico,da construção da cultura, pois usam o tempo noconsumo de atividades como: aulas de inglês,piano, yoga, baIlet, natação, informática eoutras.

"As crianças gostam de ir à escola",afirmam Anabel e Barnabas. É possível! Poréma maioria das crianças das classes populares sãoevadidas da escola devido às precáriascondições materiais desta, à péssima qualidadede ensino, aos salários de miséria dosprofessores, dos métodos ultrapassados, àsgrandes distâncias da escola e, boa parte delas,evade-se pelas condições de alto risco dotrabalho precoce. Enquanto isso, as criançasfilhas dos ricos têm direito às melhores escolase se preparam para o futuro, para as novastecnologias, para os altos postos de trabalho,para o novo século e para o novo milênio.

Outro ponto digno de destaque no livro é opatrocínio do UNICEF, conhecido comopaladino na defesa dos direitos das crianças etambém pelos pressupostos ingênuos e piegasde sua filosofia, impregnada pelo caráter defilantropização de grande parte de suasintervenções. O UNICEF é portador de alto

reconhecimento nacional e internacional,principalmente pelos programas e ações contraa exploração do trabalho infantil, mortalidadeinfantil, prostituição infantil, violência contracrianças e outras. Utiliza-se da bandeira dadenúncia fazendo grande alarde dos dadosestatísticos acerca dos maus-tratos da criança nomundo. Sua imagem ligada à Caritas pode serexemplificada com o fomento e patrocínio decampanhas beneficentes do tipo Criança-Esperança da Rede Globo de Televisão. Estasconcepções terminam por veicular a idéia dacriança-coitadinha identificada com sentimentosde pena, compaixão e dó. Seu discurso éardiloso e na questão da exploração do trabalhoinfantil, culpa os empresários sem, entretanto,nomear os culpados. Arvora-se do direito denão fazer críticas radicais ao modelo neo-liberal, disfarçando assim, suas afinidades comos conluios, pactos e planos de ajuste estruturaldo FMI, Banco Mundial e outras instâncias dopoder capitalista mundial.

Acredito que os maiores problemas elimites do UNICEF são a sua falta de critériospara apoiar projetos espúrios em defesa dacriança, o atrelamento a outras instâncias dopoder capitalista, a banalização, a naturalizaçãoda imagem da criança pobre, carente eabandonada.

Pode-se dizer que sua função primordial éa manutenção do status-quo, apesar do discursodas campanhas pela eliminação da miséria e dafome.

Entre a denúncia e glamourização doUNICEF, Anabel e Barnabas preferiram optarpela segunda. Poderiam, neste caso, ter visitadonos países em questão os lugarejos que opróprio UNICEF apresenta no relatóriointitulado Situação Mundial da Infâncía/199ZPor isso, a título de exemplo, sugiro querevisitem pelo menos dois dos paísesenunciados para retratarem com outros olharesas seguintes imagens:

1. Em Bangladesh, onde 62% da população é dedesempregados, as crianças substituem ospostos dos adultos, predominantemente naagricultura e no trabalho doméstico;

2. Na Tailândia, opera uma rede internacional elocal de prostituição infantil no meio urbano e,no meio rural, as crianças são usadas comomão-de-obra barata nas plantações de cana-de-açúcar, seringais e outras instâncias do setorprodutivo.

"A emocionante celebração da infância nomundo" assemelha-se aos matizes de TheUnited Collors of Benetton e aos apelosemocionais da propaganda da Parmalat, quevendem a diversidade cultural e étnica, ainfância feliz, através das cores. Na verdade, asimagens coloridas das crianças são inerentes àlógica capitalista do mercado que comercializasonhos, desejos, sentimentos, seres humanos.

Existe então, na perspectiva deste livro,uma relação dialética entre a visibilidade e abanalização da imagem da infância, semelhanteaos ditames da mídia e da publicidade. Esteprocesso de alienação, entretanto, atinge ascrianças em geral mas, sobretudo, as das classesexcluídas da cidadania. Este artifício imagéticoe contraditório, de natureza ideológica emercado lógica tem como pano de fundo oespetáculo, a festa. Seu sentido etimológico,segundo o Aurélio, advém do latim quesignifica "tudo o que chama a atenção, atrai eprende o olhar" ou ainda "que provocaescândalo", portanto dado à visibilidade. Talvisibilidade com base nos eventosespetaculares, falseia os olhares e opiniões noâmbito dos possíveis subtextos circunscritos noterreno do indizível, do oculto e do invisível. Épor este motivo que leitores e espectadores têmdas imagens e textos a sensação positiva deatenção, zêlo, assistência e preocupações com aproblemática da infância. Deste modotransparece que a criança está em alta nomomento em que está em baixa, no que serefere aos seus reais direitos e necessidades.

A ilusão da atenção, inerente à repetitiva esensacionalista exposição da imagem infantil,induz aos sentimentos de naturalização,generalização e homogeneização. Neste sentido,a visibilidade, ao gerar processos de banalizaçãotennina por lançar uma cortina de fumaça sobreas especificidades da infância pobre, explorada

e desasistida. Tais mecanismos banalizadorestêm como função o controle que,conseqüentemente, gera a adaptação, oaprisionamento e a alienação dos olhares. E opoeta Walt Whitman tem plena razão ao dizer:"C ..) faltando um, faltam ambos e o visível éprova do invisível, até que se torne invisível e,por sua vez, seja aprovado."

Como se não bastasse fotografar o exóticoe o inusitado, Anabel e Barnabas limparam oscenários, tornando a realidade visitada, oespaço, a família e a criança, assépticos.

O diário de viagem possui um sabor deaventura amazônica, principalmente no que dizrespeito à visão romântica e estereo-tipada doíndio brasileiro, representado pela indiazinhaCelina, cuja finalidade é chamar à atençãoapenas para a diversidade cultural e étnica. Taldiversidade folclorizada centra o seu focus noscurumins, escravizados pela ideologia dacatequese em 1500 e cuja imagem era de umafolha de papel em branco, portanto maispropensos à domesticação. As crianças negrase mestiças foram deixadas de lado, justamenteelas que juntamente com as indígenas, vivem nacorda bamba da humilhação entre o risco, aindigência e a escravidão. Neste caldeirãocultural, as crianças brasileiras das classespobres e desasistidas pelo Estado são a manchaindelével da história de negligência e deferimento aos direitos humanos.

A região dos Tembé é uma região dedisputas pela terra. Neste caso, um dos maioresconstrangimentos deste livro didático, a meuver, é um forte apego às narrativas da históriaoficial ao camuflar, através de cosméticos, os500 anos de dizimação de um povo. Anabel eBarnabas preferiram c1icar suas câmeras nadireção do exótico, do folclórico e domisterioso, coletando imagens de trajes típicos,comidas estranhas, piranhas, rios, urucum,mandioca, flechas. Desta maneira, os curuminse crianças do mundo inteiro podem anunciarpara o mercado das agências de viagem, asmelhores trilhas para a vivência dos turismosecológicos.

O caráter de superprodução da aventurapelos lugarejos, aqui e alhures, visível no

privilegiamento das tabas, iquapés, montanhase planícies, pode ser constatado nos 110 Kg deequipamentos, câmeras com tripé, telas,holofotes, etc... Muitas das fotos foramrealizadas em ambientes de estúdio numa provado total distanciamento e estranhamento dosfotógrafos na realidade explorada. A relaçãosujeito-objeto privilegiou a inserção de sujeitosnão-falantes, passivos e contemplativos, e oobjeto como artificialmente construído eidealizado.

A intersubjetividade priveligiou as imagense as palavras de sujeitos ocultos, portanto, nãomanifestos e que carecem de um maior respeitoe cumplicidade.

O exotismo evocado através das imagens daindiazinha Celina, desrespeita não só a naçãodos Tembés, mas todos os outros povos cujascrianças pousaram sob a mira do guardião dosrebanhos infantis nacionais e internacionais: oUNICEF.

É possível que os olhares, comentários eargumentos, por mim aqui evocados, traduzamapenas meu ponto de vista acadêmico e critico.Entretanto, o meu olhar não é o único e nem o

verdadeiro, mas sim aquele que procurouemprestar ao livro uma outra dignidade eestética à infância, aqui compreendida comoapenas ingênua, feliz e franca. Minhas críticassão apenas um possível recorte, na tentativa deuma releitura, resignificação e contextualizaçãoda criança ligada não só aos contextos culturaise étnicos mais amplos, mas, também, aospolíticos, econômicos e éticos. Devo, entretanto,ressaltar que o livro possui positivamenteefeitos visuais, emocionais e imagéticos capazesde provocar o êxtase nas lentes dos diferentes esubjetivos olhares fotográficos. É um livro quedeve ser recomendado para ser lido,acompanhado de reflexões críticas capazes deentender as retóricas da alegria, da felicidade,do sonho, da liberdade e da esperança, tambémcomo possibilidades concretas e utópicas naconstrução de uma outra "celebração dainfância no mundo".

Por enquanto vou ficando carente deinfância, no reino da necessidade no qual adecantada in-fans não tem direito a fala. Vouatrás do esconde-esconde e da bola do mundoda liberdade.