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47 D a dose tnográf i cosdepresençase strange iras: inte rv e nçõe sdeu m aa ntropól ogan otr aba lhocom cri a nça s re f ugi a da s na I ng la terr a LIANA LEWIS * Res umo: A noção de ciência, como saber descomprometido, vem sendo substituída pela compreensão da necessidade de intervenção por parte dos produtores de conhecimento. Tal produção constitui-se em ato inevitavelmente político quando observamos a vida das pessoas e as relações de poder que permeiam seu cotidiano. Como resultado de um trabalho etnográfico com crianças refugiadas em uma escola na Inglaterra, discorro sobre a necessidade de um posicionamento por parte do antropólogo através da explicitação das alianças estabelecidas no campo. Acredito que tal atitude possa permitir a viabilização de intervenções a favor dos grupos estudados e que tal comprometimento se faz fundamental, caso o trabalho não seja caracterizado por uma atitude reprodu tora de desigualdades sociais. Palavras-chave:  ciência, relações sociais, poder, crianças refugiadas, racismo, cultura hegemônica inglesa. De que lado você está? Minha decisão em iniciar este artigo, através de um questionamento que demanda clara m en teum ade fini çãoporpartedocientista, representa minha atitude de contraposição a qu alque r resqu ício do m ito m ode rno/posi tivista de neutralidade científica (Blair, 1998, p. 13). Seguindo o preceito pós-estruturalista e feminista de que todo saber é parcial e situado (Haraway, 1991 , p. 195; L athe r, 1991, p. 33), acredi to se r ta l m itoum a rtif ício discu rsivo, cu jafina lidade é a dissimulação dos interesses do cientista (Gillborn, 1998, p. 47). Retornando a minha indagação, no caso do antropólogo, ela aponta não apenas para a necessidade de exposição de um posicionamento político, como também paraoreconheci me ntodeq uetoda relaçãos oci al é con sti tuí da pe lo pode r (Fouca ul t, 1991, p. 26) e que nós esta mos i nseridos em um a te ia práti ca e discursiva cons truída d e form a de si gua l. O tradicional olhar antropológico que constitui e aprisiona o Outro no âmbito da diferença, tomando o próprio cientista como referencial de normalidade, vem sendo substi- tuído por um olhar e uma voz críticos que identificam, explicitam e desafiam relações de dom ina ção.Porém ,o traba lhodeca m posusci ta questões éticas e práticas quanto à linearidade das açõe s acim a referi da s. A obse rvação participante, técnica privilegiada, tomada quase como sinônimo de antropologia, que visa apree nde rasdi nâm icassoci ai sem sua ssuti lezas contra di çõe s,l ap sos, reprodu çõe s,re di m e nsio- namentoserupturas–,sósefazpossívelquando da autorização da inserção do antropólogo no cotidiano de uma dada instituição, comunidade ou grupo. E a permanência em tais localidades * Doutoranda na The Nottingham Trent University, Grã- Bretanha. Mestre em Antropologia Cultural pela Universi- dade Federal de Pernambuco. Bolsista da Capes – Brasília/ Brasil. E-mail: lianalew@hotmail. com.

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Dados etnográficos de presenças estrangeiras:intervenções de uma antropóloga no trabalho com

crianças refugiadas na Inglaterra

LIANA LEWIS*

Resumo: A noção de ciência, como saber descomprometido, vem sendo substituída pelacompreensão da necessidade de intervenção por parte dos produtores de conhecimento.

Tal produção constitui-se em ato inevitavelmente político quando observamos a vida das

pessoas e as relações de poder que permeiam seu cotidiano. Como resultado de um

trabalho etnográfico com crianças refugiadas em uma escola na Inglaterra, discorro sobre a

necessidade de um posicionamento por parte do antropólogo através da explicitação das

alianças estabelecidas no campo. Acredito que tal atitude possa permitir a viabilização de

intervenções a favor dos grupos estudados e que tal comprometimento se faz fundamental,

caso o trabalho não seja caracterizado por uma atitude reprodutora de desigualdades

sociais.

Palavras-chave: ciência, relações sociais, poder, crianças refugiadas, racismo, culturahegemônica inglesa.

De que lado você está?

Minha decisão em iniciar este artigo,através de um questionamento que demandaclaramente uma definição por parte do cientista,representa minha atitude de contraposição aqualquer resquício do mito moderno/positivistade neutralidade científica (Blair, 1998, p. 13).

Seguindo o preceito pós-estruturalista e feministade que todo saber é parcial e situado (Haraway,1991, p. 195; Lather, 1991, p. 33), acredito sertal mito um artifício discursivo, cuja finalidade éa dissimulação dos interesses do cientista(Gillborn, 1998, p. 47). Retornando a minhaindagação, no caso do antropólogo, ela apontanão apenas para a necessidade de exposiçãode um posicionamento político, como também

para o reconhecimento de que toda relação socialé constituída pelo poder (Foucault, 1991, p. 26)e que nós estamos inseridos em uma teia práticae discursiva construída de forma desigual.

O tradicional olhar antropológico queconstitui e aprisiona o Outro no âmbito dadiferença, tomando o próprio cientista comoreferencial de normalidade, vem sendo substi-

tuído por um olhar e uma voz críticos queidentificam, explicitam e desafiam relações dedominação. Porém, o trabalho de campo suscitaquestões éticas e práticas quanto à linearidadedas ações acima referidas. A observaçãoparticipante, técnica privilegiada, tomada quasecomo sinônimo de antropologia, que visaapreender as dinâmicas sociais em suas sutilezas– contradições, lapsos, reproduções, redimensio-namentos e rupturas –, só se faz possível quandoda autorização da inserção do antropólogo no

cotidiano de uma dada instituição, comunidadeou grupo. E a permanência em tais localidades

* Doutoranda na The Nottingham Trent University, Grã-Bretanha. Mestre em Antropologia Cultural pela Universi-

dade Federal de Pernambuco. Bolsista da Capes – Brasília/Brasil. E-mail: lianalew@hotmail. com.

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depende, na maior parte das vezes, de umaatitude não-desafiadora em relação aos grupose discursos dominantes.

A narrativa que será apresentada tem comoobjetivo relatar parte do percurso da minhapesquisa doutoral de campo, na qual a linea-ridade da intervenção foi algumas vezes inter-rompida, em prol de uma ação que visasse àpromoção mais imediata do bem-estar dascrianças com quem trabalhei, e outras vezesmantida, visando à continuação da observação-participante, já que explicitações e desafiospodem se tornar ações disrruptivas ao longo dotrabalho de campo.

Introduzindo o campo

Moulton, o local onde a pesquisa foiefetuada, é uma cidade mediana situada no lestecentral da Inglaterra, englobando aproxima-damente trezentos mil habitantes. Uma diver-sidade de comidas, roupas e línguas compõemo cenário local. Europeus, asiáticos, sul-asiáticos,sul-americanos, afro-caribenhos, africanos,curdos, intersecção de diversas etnicidades dãoo tom da diversidade.

Um dos fatores determinantes da compo-sição étnica de Moulton é a política de dispersãode refugiados implementada pelo governofederal, que impõe a difusão de asilados com opretexto de reduzir a quantidade de serviçosoferecidos em Londres e no sudoeste do país.No ano 2000, Moulton ocupava a nona posiçãono ranking das cidades provincianas a recebera maior quantidade de asilados sob o esquemaque começou a vigorar em abril do mesmo ano(Moulton Refugee Association).1

Atualmente, na composição mundial, maisde dezessete milhões de pessoas são refugiadasou asiladas (United Nations High Comission forRefugees). A definição de refugiado foiconcebida pela Convenção das Nações Unidasde 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados,que estabeleceu o refugiado como uma pessoaque tema

ser perseguida por motivos de raça, religião,nacionalidade e que não pode, ou em virtudedesse temor não quer, valer-se da proteçãodesse país, ou que, se não tem nacionalidade e

se encontra fora do país no qual tinha suaresidência habitual em conseqüência de taisacontecimentos, não pode ou, devido aoreferido temor, não quer voltar a ele.

No Reino Unido, a condição de asilado édefinida como alguém que está à espera de umadecisão do governo federal em relação àpossibilidade de receber ou não o status derefugiado (Rutter, 2001, p. 4).

Meu trabalho foi efetuado com crianças

refugiadas e asiladas que migraram com suasfamílias da área curda na Turquia, de Angola,do Congo, do Afeganistão e de Zimbabwe. Aobservação-participante foi realizada na EscolaPrimária Green Park, localizada em um bairrodo mesmo nome, predominantemente proletário.No Brasil, tal localidade seria comumentedenominada de classe baixa ou classe médiabaixa. Tais bairros, social e economicamentedesfavorecidos, são os locais escolhidos pelogoverno para o fornecimento de moradias paraos asilados, devido ao baixo preço dos aluguéis.

Dessa forma, chegando na Inglaterra, taiscrianças são automaticamente posicionadascomo social e economicamente desavantajadas.Um dos fatores representativos do desfavo-recimento da área é ela ser composta majori-tariamente por asiáticos e seus descendentes,pessoas provenientes em sua maioria doPaquistão, ex-colônia britânica, que lá chegandoexercem atividades relegadas às camadas maisdesfavorecidas da população.

A Escola Primária Green Park concentra

o maior número de crianças refugiadas dacidade. A distribuição étnica total dos estudantesé composta por cerca de 80% de crianças ingle-sas de descendência asiática, 16% de criançasinglesas brancas e 4% de outras nacionalidades,aqui incluindo as crianças refugiadas. Emboraa instituição seja localizada em um bairro predo-minantemente asiático, os professores são, emsua maioria, brancos de classe média. Consideroimportante especificar a composição étnica esocioeconômica da escola, por acreditar que tais

condições, juntamente com outros determinantescomo genêro e geração, vão informar as rela-

1. Com o intuito de preservar a confidencialidade dos sujei-tos da pesquisa, fez-se necessário alterar o nome da cidadee, por conseqüência, da ONG que trabalha com refugiados e

asilados. Dessa forma, a referência bibliográfica teve de seradulterada para seguir o padrão de discrição.

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ções dos diversos grupos, posicionando certaspessoas como diferentes em relação a padrõesde normalidade (Woodward, 1997, p. 1).

Através da observação e participação nocotidiano das salas de aula, assembléias,atividades recreacionais, conversas informaiscom as crianças e professores e entrevistas,busquei apreender as configurações dasrelações sociais estabelecidas pela presença dascrianças refugiadas na instituição, como essascrianças seriam posicionadas discursivamente,bem como as percepções delas próprias emrelação ao cotidiano escolar e ao novo país.

A inserção através do desafioEm meu primeiro dia de pesquisa, Frieda,2

professora responsável pelas crianças refugia-das, introduziu-me à escola, pontuando ser otrabalho na instituição bastante desafiador. Semoferecer maiores explicações, ela observou queem outra escola, no bairro de Benington, ascrianças são mais bem comportadas. TantoGreen Park, quanto Benington são dois bairroscom população de baixa renda. Ao compararescolas de ambas as localidades, utilizando o

comportamento das crianças como referencial,Frieda explicitou uma valoração social baseadano grau de internalização da disciplina por partedas crianças.

Faz-se necessário pontuar aqui o lugar deFrieda ao longo da pesquisa e deste artigo. Comoera ela a profissional que se encontrava maiscomprometida em relação às crianças refugia-das e que tinha maior conhecimento destasindividualmente, minhas discussões deram-sebasicamente com ela. Em virtude desse contato

mais próximo, Frieda foi a profissional que maisexpôs (e se expôs) suas percepções, muitasvezes de caráter discriminatório. Não se trataaqui de culpabilização de indivíduos (Mac anGhaill, 1988, p. 6). As percepções de Friedatornaram-se mais evidentes ao mesmo tempoem que ela apresentava um genuíno compro-metimento em ajudar as crianças, sem saberestar, muitas vezes, promovendo a discriminação

destas últimas através de reproduções dediscursos de caráter racista.

Minha inserção na escola foi marcada por

um forte impacto em relação à rígida disciplinaescolar, disciplina esta que vejo não comocaracteristicamente intrínseca à instituiçãoescolar, já que toda instituição está, também,relacionada à dinâmica da sociedade mais ampla(Mac and Ghaill, 1988, p. 64). Chegando na salade aula, que agrupa crianças diversas, nãoapenas refugiadas, com idades de oito a noveanos, impressionou-me o fato de a professora,Grace (Miss Curtis), lembrar constantemente,e com voz alta e autoritária, como as criançasdeveriam se comportar enquanto estão sentadasno carpete durante as lições: direcionando oolhar direta e constantemente para ela, man-tendo os braços cruzados, a coluna ereta, o“bumbum” encostado no chão e sem estabelecernenhum tipo de conversa paralela ou comen-tários sem sua autorização. O ambiente é detotal controle e formalidade, a professora éadereçada por Miss  (título indicativo deautoridade geracional, já que crianças não sãoreferidas dessa forma) e o sobrenome. Afamosa “tia”, forma carinhosa tão comumente

utilizada nas escolas primárias no Brasil, não fazparte da lógica relacional na Inglaterra.Afetividade tem de ser, na maior parte das vezes,substituída por formalidade.

Na obra Discipline and punish, Foucault(1991, p. 200-201) chama-nos a atenção sobrecomo a disciplina organiza e caracteriza gruposde pessoas como socialmente desviantes,necessitando de controle. No caso de GreenPark, a relação de poder é atualizada peladisciplina que permeia todo o cotidiano escolar,

sendo entrecortada por outras relações dedesigualdade, como a de gênero e a racial.Comecei a tentar vislumbrar estratégias decomo desafiar a disciplina institucional, de como,através da minha presença na escola, comunicaràs crianças que aquele não é o único modelopossível de relação. Mas como transgredir umpadrão de relação institucional sem ser disrrup-tiva? Como transgredir ou desafiar a culturainstitucional sem que as portas de tal organizaçãose fechem para mim?

Uma das formas de estabelecer umaaliança com as crianças foi desafiando tal

2. Frieda é a professora responsável pelo Ethnic MinorityAchievement Group, espaço institucional reservado à

assistencia a crianças estrangeiras ou descendentes de es-trangeiros.

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disciplina quando possível, e de forma bastantesutil, caso contrário, o óbvio aconteceria: ainstituição recusaria minha presença. Minha

intervenção como pesquisadora e estrangeira foiatualizada, nesse início, de forma bastantegeneralizada, não sendo direcionada particu-larmente às crianças refugiadas, já que, nesseprimeiro momento, ainda não era possívelperceber qual seria o discurso e a prática daescola em relação a estas últimas.

Quando me introduziu à turma, Grace mepediu para descrever brevemente o Brasil. Umadas minhas observações foi de que aqui, emgeral, as pessoas falam alto e expressam-se

muito através do corpo durante uma conversa.Nesse momento, utilizei meu privilégio comoadulta para comunicar às crianças que é possívelfazer parte de uma lógica distinta da exercidapela cultura dominante inglesa sem se consi-derar fora de lugar. Essa foi minha primeiraestratégia para dizer às crianças que a disciplinae a formalidade britânicas me eram estranhas,que minha aliança não se daria com a culturahegemônica.

O fato de me apresentar de forma mais

espontânea, inclusive brincando com as criançasna hora do recreio, fez com que um contato maisafetivo fosse possível. Nas semanas subse-qüentes, uma cena comum era, quando da minhachegada na escola, ou durante o recreio, ascrianças correrem em minha direção e meabraçarem. Tal possibilidade de contato corporale afetividade pareceu ser viabilizada em razãodo fato de as crianças perceberem que, assimcomo a maioria delas, venho de uma culturabastante diferenciada da hegemônica inglesa.

Durante o recreio, elas comumente pergun-tavam-me de onde vinha, qual a língua que falavae quais as características do Brasil.

Em nível mais generalizado, minha interven-ção foi efetuada através da afirmação de meiosde comunicação e relações que percebo comoconstitutivas da idéia generalizada de identidadebrasileira, em oposição à concepção dominantede identidade inglesa. Considero tal movimentouma atividade política, já que o encontro ou asrelações culturais são tecidas através de

valorações, de relações de dominação. Emrelação às crianças refugiadas, as intervenções

seriam mais específicas, em virtude damultifacetada constituição de suas identidades.

Desafiando o estereótipo do garotonegro

A experiência de ser uma criança refugiadanão é determinada apenas pelo evento de umdeslocamento geográfico. Elas são não apenascrianças que migram de seus países em buscade refúgio. Elas são meninos e meninas, negrase brancas, elas vêm de determinadas classessociais. Elas são transformadas em Outro deformas diferenciadas, de acordo com hierarquiasespecíficas e as várias posicionalidades de suas

identidades. Elas também vão responder a taismovimentos de acordo com suas possibilidadesindividuais. O fato de não fazer parte da estru-tura ocupacional escolar, bem como da culturainglesa, possibilitou-me um distanciamentocrítico no que diz respeito a tais hierarquias e aodiscurso institucional em relação às crianças eàs concepções hegemônicas de infância.

No meu primeiro dia de pesquisa, aprofessora perguntou:

Vocês acham que se vocês vêm de um país muitodiferente da Inglaterra, isto faz vocês diferen-tes? Nós somos muito sortudos nesta escolaporque nós temos pessoas diferentes. Levantea mão se você já morou num país diferente.Como ele é diferente? Pode ser através dacomida, da religião, clima, montanhas.

Essa indagação constituiu-se em umatentativa de celebração da diversidade culturalna escola, sem a professora perceber estar, naverdade, transformando algumas crianças em

Outro, posicionando-as como diferentes emrelação a um referencial de normalidade: oinglês branco. Pessoas, elas têm diferentescores. Tal resposta foi fornecida por Armand,um garoto de nove anos de idade que foi doCongo para a Inglaterra morar com sua tia quelá reside há anos. Para Armand, é evidente quesua negritude seja constitutiva das suas expe-riências no novo país. A diferença em seuatributo físico vai determinar a hierarquia dasdinâmicas sociais.

Grace, a professora, uma inglesa branca,ignorou completamente a resposta de Armand.

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Logo após fazer sua pergunta, ela pediu àscrianças que escrevessem em um pedaço depapel o que achavam que todo mundo precisa

para sobreviver e viver alegremente. Armandescreveu: família, pais. Grace respondeu que elaestava mencionando algo, nas palavras dela,como quando você está com sede, e pediu aArmand para apagar sua resposta. Armandpercebeu a impossibilidade de Grace em escutarsuas necessidades e pediu-me que o auxiliassena soletração da palavra família, adicionandoessa palavra ao final da sua lista.

A razão para a migração de Armand foi aperda de toda sua família nuclear em umaerupção vulcânica no Congo. Era explícita aimpossibilidade de Grace em ver sentido ou terempatia com sua trágica história. Ao contrário,ela e outros professores interpretavam apresença de Armand na escola em termos raciaise de gênero. Apesar de Armand ser um criançamuito vivaz e ter um excelente senso de humor,ele experienciava alguns problemas sociais ecomportamentais. Durante o recreio, não tinhaamigos regulares e, quando estava na sala deaula, muitas vezes transgredia as normas falandoalto, quando deveria permanecer em silêncio,

brincando com os colegas, quando deveria estarquieto.

Embora Armand não fosse a única criançaa se contrapor à disciplina escolar, ele erafreqüentemente o único a ser repreendido. Umacena comum era de apenas seu nome sermencionado quando outras crianças estavam secomportando da mesma forma. Ele era acriança a ser focada e mencionada comoindisciplinada. Frieda sempre me comunicavasua desobediência e suas dificuldades de socia-

lização. Certo dia, após escutar as correntesreclamações de Frieda em relação a Armand,eu lhe perguntei o que ela achava que o levavaa agir de tal maneira. Ela respondeu que existetoda uma literatura relacionada aoproblema dogaroto negro e que muitas dessas crianças vêmde uma estrutura familiar desorganizada. Deacordo com ela, os pais de tais garotos constan-temente abandonam suas famílias, não propi-ciando uma figura masculina para eles seidentificarem.

 Tal representação de estrutura familiar éencontrada em uma literatura específica,

relacionada às crianças afro-caribenhas, queidentifica na cultura de origem a responsávelpelo insucesso escolar dos garotos, ignorando

ser esse insucesso resultante do racismoinstitucional.3 Essa concepção de comunidade,ou de uma cultura como intrinsicamenteproblemática, constitui-se um recurso retóricoque evita o termo raça, como significante, a fimde prevenir acusações de racismo (Solomos &Back, 1996, p. 19). De acordo com Máirtín Macan Ghail, “racismo agora tende a ser raciona-lizado em termos de diferenças culturais ao invésde superioridade cultural”4 (1988, p. 3).

Devemo-nos nos lembrar, no entanto, queArmand não é afro-caribenho, ele é africano, eque seu pai não abandonou sua casa, ele morreu,como os outros membros de sua família nuclear.Frieda não conseguia perceber que o compor-tamento de Armand era decorrente de suatrágica história de vida e que ele sinalizava comum pedido de ajuda. Ela também não conseguiaentendê-lo como atuando em reação ao racismoinstitucional, já que, conforme mencionadoanteriormente, é uma prática comum entre osprofessores chamarem apenas sua atençãoquando outras crianças estão também desa-

fiando as regras escolares.Ele estava sendo posicionado dentro do

estereótipo do homem negro disrruptivo epotencialmente violento. Quando ele deixou aescola para ir morar em outro bairro,5 uma áreapredominantemente afro-caribenha e conhecidana cidade como local de diversos assaltos etráfico de drogas, Frieda manifestou suapreocupação com ele, pois, para ela, Armandpodia, no futuro, juntar-se a uma das gangues.Vale lembrar que Armand tinha, então, apenas

nove anos de idade e que nunca havia apre-sentado nenhum comportamento violento.

Enquanto os professores desconsideravamsua história de vida, as crianças se apropriavamdesta de uma forma bastante cruel. Em um dado

3. Existe uma vasta literatura etnográfica atestando o cará-ter discriminatório da instituição escolar inglesa em relacãoàs crianças negras, principalmentes do sexo masculino. VerBlair, 1998; Connolly,1998; Gillborn, 1998; Mac an Ghail,1988; Williams, 1995; Wright, 1992.

4. Tradução da autora.

5. Na Inglaterra, as crianças que fazem parte da rede pública

de ensino são direcionadas às escolas mais próximas dolocal de residência.

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momento, Armand confidenciou a um colega deturma a forma como seu pai morreu. Essacriança tornou público o segredo de Armand,

fazendo piadas sobre sua situação durante a horado almoço, quando todas as crianças encon-travam-se reunidas. Armand pareceu percebersuas dificuldades em socializar como umproblema racial. Uma vez, ele disse-me, em tomde brincadeira, que gostaria de pintar sua pelede branco. Quando lhe perguntei o porquê, elerespondeu:

Se eu pintar minha pele, se eu me tornar branco,eu posso ir para, hum... Se eu me tornar umanova pessoa. Então eu, eu sei agora. Eu digo

isto porque eu quero, eu quero ter muitosamigos.

Durante a semana que sucedeu à revelaçãopública de sua história de vida, Armand foiconstantemente repreendido por Mark, oprofessor estagiário que permanecia impassívelaos choros da criança. Mesmo tendo conheci-mento do ocorrido na semana anterior e do fatode algumas crianças terem desdenhando dadolorosa experiência de Armand, Mark ignorou

completamente a expressão de sentimento domenino, que eu percebi como uma súplica porauxílio.

Aproximei-me de Armand para consolá-loe ele retrucou: “Eu quero voltar pra casa. Euquero voltar pra África”. Apesar de nãoexperimentar a discriminção de raça associadaao genêro, como ocorre com Armand, tenteialguma empatia com sua dor, através das nossasexperiências comuns como estrangeiros. Disse-lhe imaginar o quanto devia ser difícil para ele

se adaptar à vida na Inglaterra,6

 mas já que eleestava lá deveria tentar fazer o melhor possível.Apesar de saber que estava solicitando muito auma criança de apenas nove anos, que seencontrava em situação de tamanha vulnera-bilidade, achei necessário deixar claro para eleque sua perspectiva de vida no novo país iriadepender, também, de um esforço da parte dele,

 já que o racismo institucional opera contra osgarotos negros, visando a seu insucesso.

Quando perguntei a Frieda o que consi-derava como causa para o comportamento deArmand, ela respondeu-me com base em um

conhecimento científico que legitima o racismoinstitucional, através da abstenção do registrodos mecanismos de atuação dessa discrimi-nação. Em seguida, ela quis saber a minhaopinião. Este foi um momento crucial no desen-volvimento da pesquisa. Pois adotar a estratégiade atuação proposta por mim no início destetexto seria desaconselhável naquele momento.Estando apenas no início do trabalho de campo,não havia colhido ainda dados suficientes emrelação ao racismo institucional. Assim, explicitarminha opinião naquela fase interferiria na formacomo os membros da instituição tratavam ascrianças na minha presença e, conseqüen-temente, comprometeria uma apreensão maissutil da dinâmica institucional.

Este se tornou o momento de meias verda-des. Aproveitando da minha formação comopsicóloga, e do fato de Frieda considerar-mecomo uma espécie de conselheira em relaçãoàs crianças refugiadas, disse-lhe que achava queo comportamento de Armand era decorrente dasua história de vida, e que sua constante deman-

da de atenção constituía-se em um pedido deajuda, sendo aconselhável a intervenção de umprofissional da área de psicologia, o que ocasio-nalmente acabou acontecendo. Essa situaçãoconfigurou-se como um dos momentos de maiorangústia e dilema ético do trabalho de campo.Explicitar o impacto do racismo institucional emrelação a Armand interferiria de forma diretana dinâmica institucional. Minha imagem diantedos outros professores poderia tornar-se com-prometida e, conseqüentemente, minha presença

na instituição questionada. Nesse momento, aprodução do saber (identificação das dinâmicassociais) se sobrepôs a atitudes mais imediatistas(explicitação e desafio). Este foi o momento deruptura entre conhecimento e ativismo. Porém,a íntima conexão de ambos poderá ser restau-rada ao final da pesquisa.

Um novo nome, uma nova cor

O racismo institucional opera de formas

diferenciadas em relação às crianças refugiadas.No que diz respeito à criança negra, ele é

6. Essa declaração não foi guiada por uma mera tentativa de

empatia, mas pela lembrança do meu processo de angústiaquando da chegada no país.

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perpassado pelas relações de gênero. EnquantoArmand percebe a impossibilidade da suaintegração como conseqüência do racismo

institucional, a garota negra vai estabelecer umcompromisso com o mundo branco através deuma atitude assimiladora, como pode ser vistona experiência de Mariana.

Mariana, oito anos de idade, foi de Angolapara a Inglaterra com sua mãe e duas irmãsadolescentes. Durante as observações de salade aula, percebi que a professora e as criançasestavam anglicizando seu nome, chamando-a deMary. Perguntei-lhe como e quando as pessoascomeçaram a se referir a ela por esse nome eela respondeu que, no primeiro dia de aula, aprofessora perguntou-lhe através de qual desig-nação ela gostaria de ser chamada: Mariana ouMary? E ela respondeu que era por Mary. Euperguntei-lhe, então, o porquê de tal escolha.Ela respondeu que Mary era “melhor e maisbonito”. Em outra ocasião, ela pontuou: “Aquiem casa as pessoas me chamam de Mariana,na escola, as pessoas me chamam de Mary”.

De fato, na escola Mariana tornou-se Mary.Ela internalizou a rígida disciplina institucional,considerada por mim como o principal ethos

escolar. Sempre respondia aos comandos daprofessora com uma expressão extremamenteséria e postura rígida. Ela internalizou a disciplinaescolar a ponto de reproduzi-la para outrascrianças, ordenando-lhes para se comportaremquando estas não atendiam às expectativas daprofessora. Em contraste, quando estava emcasa, Mariana era extremamente vivaz ecarinhosa.

A representação desse duplo papel, sina-lizador de uma dupla consciência, sendo Mary

na escola e Mariana em casa, parece ser umaconseqüência de uma entrada mais efetiva nomundo branco. Esta é uma das suas estratégiasde sobrevivência. No livro Black skin, whitemasks, Frantz Fanon faz uma análise daconstituição da subjetividade do homem negrocomo resultado do encontro colonial. Concluique, como conseqüência da violência colonial, abranquitude tornou-se a norma. Em suaspalavras: “Para o homem negro existe apenasum destino. E ele é branco”7 (1986, p. 12).

 Todo processo de internalização é decor-rente de uma identificação, de um desejo deocupar o lugar do outro. No caso de Mariana, o

corpo da mulher branca é o corpo desejável.Durante o processo de entrevista, ela foi a únicacriança que qualificou a professora em termosde corpo. Quando perguntei-lhe o que elaachava de Grace, sua professora, ela primei-ramente respondeu: “Bonita”. Durante uma dasatividades de arte, Mariana desenhou trêsgarotas e uma mulher de pele branca e cabelosloiros. Temendo ser aquela uma versão embran-quecida da sua familia nuclear, perguntei-lhequem eram tais pessoas. O meu temor foiconfirmado quando ela respondeu serem ela,sua mãe e duas irmãs. Eu chamei a atençãopara o fato de as pessoas no desenho serembrancas. Ela disse: “Quando estavámos emAngola nós éramos morenas, mas desde quechegamos na Inglaterra nós estamos nostornando brancas”. Ela parecia internalizar anoção de ser sua cor considerada fora de ordem.De fato, para Mariana, o destino era branco.

Branco é o destino, porque branco é anorma. Nenhuma das professoras presentesobservou o desenho de Mariana, e sua negritudeteria “passado completamente em branco” casoeu não tivesse interferido, fazendo comentáriospositivos em relação a sua cor e à importânciade assumirmos quem somos. Porém, a afirma-ção da cor negra torna-se tarefa difícil quandoo olhar branco nega sua capacidade de repre-sentação.

Em certa ocasião, Frieda mostrou-me umdesenho elaborado por Malaika, uma garotaproveniente do Zimbábue. Com expressãoapreensiva, ela observou serem todas as pessoas

representadas através da cor preta. A intençãode Frieda era de que eu analisasse o desenho,com base na minha formação de psicóloga,sugerindo que a cor preta apresentava-se comosinal de algo fora de ordem, de algum sintomaque necessitasse ser restituído pelo olhar dobranco. Explicitei não perceber o que podiahaver de errado em alguém representar em seusdesenhos indivíduos negros, principalmentesendo a própria pessoa que elabora o desenhonegra. Frieda concordou e permaneceu em

silêncio com um olhar pensativo. Essa atitudede sutil desafio em relação às concepções7. Tradução da autora.

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racistas de Frieda repetiu-se ao longo da minhapermanência em campo e acredito terempropiciado oportunidades de reflexão sobre um

discurso que permeia a instituição, posicionandoos indivíduos através de dualidades de cores.

Quais corpos são importantes?

Malaika, nove anos de idade, migrou doZimbábue para a Inglaterra, com suas irmãsmais velhas (ambos os pais de Malaika estãomortos). A primeira vez que a vi, percebi serseu corpo muito menor do que os das criançasda sua turma, apesar do fato de ela ser a maisvelha. Malaika era extremamente magra, a peleressecada e os dentes visivelmente danificados,sendo alguns erodidos e de cor enegrecida.Quando me falava de Malaika, Frieda comen-tava sobre a vulnerabilidade em que ela seencontrava, já que sua irmã mais velha, comapenas 21 anos de idade, já tinha um filho recém-nascido. O corpo de Malaika era a expressãomaterializada de uma criança que necessitavade cuidados mais efetivos. E ela era muitoconsciente da sua estética corporal.

Durante uma das assembléias, ela defron-

tou-se com a diferença no cuidado do seu corpo,em relação ao restante das crianças da escola.O tema da reunião era a Semana Nacional doSorriso, e a professora que coordenava o eventofalava da importância do cuidado com os dentespara a apresentação de um belo sorriso. Ela,então, pediu às crianças para mostrarem o quãobonitos eram seus sorrisos. Malaika parecia sera única criança que não sorria, apresentandouma expressão constrangida. Durante o inter-valo, fui para a sala dos professores e observei

que a professora coordenadora da assembléiadescrevia o ocorrido com Malaika, rindo dasituação. Frieda e Grace juntaram-se a ela etambém divertiam-se com o ocorrido. Uma dasprofessoras comentou ter sido a escola consi-derada pelo Sistema Nacional de Saúde comouma das piores, em Moulton, quanto à saúdebucal das crianças. Frieda deu uma contribuiçãoà atmosfera bizarramente divertida: ela observouque os dentes de Hiwa, outro garoto refugiado,eram amarelos. Grace fez uma expressão de

asco e pediu para que as professoras finalizas-sem os comentários, não pelo absurdo e pela

falta de respeito, mas por ela estar fazendo suarefeição.

Minha presença na sala dos professores

sempre deu-se de forma bastante discreta. Apouca interação era devida, por um lado, arazões diversas, como não estar diariamente nainstituição, não fazer parte do corpo defuncionários e pelo caráter reservado da maiorparte dos ingleses. Por outro lado, optei por umdistanciamento para que os profissionaispudessem interagir de forma mais espontânea,como aconteceu no evento acima descrito.

Interessante enfatizar que as criançastornadas visíveis pelas professoras eram ambas

refugiadas. A sala dos professores funcionacomo espaço revelador das percepções dedistinções não apenas de geração, mas tambémde cor, classe social e pertencimento cultural.A diferenciação das crianças refugiadas é feitanão apenas pelas professoras, como pelorestante da escola e mesmo da cidade, onde talinstituição apresenta-se como a mais vulnerávelem relação à saúde bucal das crianças. Atravésda competência e aparência corporal, signos denormalidade, as crianças refugiadas tornam-se

os Outros em relação à totalidade da escola e àsociedade mais abrangente.Em seu livro Purity and danger (1994),

Mary Douglas postula que as relações emdeterminadas sociedades são organizadasatravés da dicotomia pureza x poluição ritual.Sendo a noção de poluição análoga a uma visãoda desordem social, separar, punir, purificar sãoações sistematizadoras de uma experiênciadesordenada. É por meio da separação que aordem é estabelecida. Ao observar que, na

sociedade ocidental, a idéia de limpeza é anteriorà descoberta da transmissão bacteriana ocorridano século XIX, Douglas pontua que aqui a idéiade pureza não indica meramente um cuidadocom a higiene, mas um respeito pelas conven-ções, pela ordem (Douglas, 1994, p. 36). Aautora conclui que a base da idéia de pureza éuma concepção simbólica, como ocorre com apoluição ritual nas sociedades ditas tradicionais.A concepção de poluição está estritamentevinculada à idéia de moral, já que a integridade

da estrutura social é questionada quandoocorrem transgressões. Se estas acontecem, em

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contrapartida, a sociedade adota medidascoercitivas.

Rodrigues observa que a noção de impu-

reza não apenas ordena a sociedade, comoestabelece relações de hierarquia. Segundo oautor:

Quanto mais próximo do centro do poder, maisdistante da poluição; quanto mais periféricoem relação ao centro do poder, tanto mais íntimoda sujeira ou do lixo. Nunca há definiçãode‘impuro’ sem a existência de um poder quese queira próximo ao puro e que defina umahierarquia com base em sua posição. (1999,p. 92)

Na minha volta à escola, após o incidentemencionado acima, expressei a Frieda minhapreocupação em relação à saúde das criançasrefugiadas. Disse-lhe da minha percepção emrelação à vulnerabilidade corporal de Malaika eindaguei sobre qual seria a responsabilidade daescola em relação a ela, já que a famíliademonstrava uma clara impossibilidade de lheatribuir maiores cuidados. Frieda assinalou queo Sistema Nacional de Saúde trabalhava de

forma independente em relação à escola, tendoprocedimentos particulares. Em uma sociedaderigidamente burocratizada, as especificidadesindividuais são ignoradas pelas regras institu-cionais. A única possibilidade de intervençãovislumbrada por Frieda foi quanto à assistênciapsicológica em relação a Armand. Ela lembrouo fato de que a Autoridade Educacional Local– equivalente à Secretaria de Educação – cortouverbas para o trabalho com crianças de minoriasétnicas e, por conseqüência, refugiadas. Ficava

exposto, assim, que essas crianças estavamsuscetíveis não apenas ao racismo e descasoinstitucional, mas também reféns de políticaspúblicas excludentes.

Logo após minha conversa com Frieda,expus minha preocupação a Grace, professorade Malaika. Esta agradeceu minha intervenção,seguindo os predicamentos de ritualização daeducação inglesa, e observou que havia algumtempo, Malaika estava tomando medicação. Elapontuou também ser difícil para ela dar conta

dos problemas das crianças individualmente, jáque trabalhava com trinta alunos na sala de aula.

A fala de Grace apresentava-se de formacontraditória. Ela estava ciente da condição desaúde física de Malaika, já que demonstrava

saber do fato de ela ter estado em medicaçãohá algum tempo, mas, apesar disto, não interferiude forma a interromper as zombarias queaconteceram na sala dos professores sobre aaparência dentária de Malaika.

Uma semana e meia após tal intervenção,chegou ao meu conhecimento que Malaikaencontrava-se hospitalizada, em conseqüênciade problemas respiratórios. O médico sugeriuque a escola lhe fornecesse leite diariamente.Parecia que a hospitalização era resultante de

problemas de caráter nutricional, algo queacredito pudesse ter sido evitado, caso a insti-tuição tivesse assumido responsabilidade emrelação a sua saúde, cuja debilidade era visívelao primeiro olhar que se direcionava ao seucorpo. Ao que tudo indicava, o corpo de Malaikanão importava muito. A vulnerabilidade de umcorpo negro, africano, que busca refúgio, não éapreendida como uma situação de risco infantil,pois não segue os predicamentos da concepçãoideal de infância veiculada pelos tablóides

ingleses. Nesse caso, a vulnerabilidade infantilé prioritariamente representada por fotos decrianças inglesas, brancas de cabelos loiros, quesão arrancadas por um pedófilo do âmbito deuma família nuclear idealizada. As experiênciase as histórias de vida das crianças refugiadassão ignoradas, desinvestidas por uma sociedadeque relembra constantemente, por meio dosprogramas televisivos, as glórias da época doimpério, desconsiderando ainda hoje as pessoasque são vítimas e herdeiras das conseqüências

de tal dominação.

O que a escola pensa disto tudo?

Uma teia discursiva que se materializa,através de práticas cotidianas, constitui-se emresposta da Escola Primária Green Park, emrelação à presença das crianças refugiadas.

 Tanto no primeiro dia de pesquisa, quantodurante a entrevista, Frieda disse-me que aescola era bastante adequada à presença das

crianças refugiadas, em virtude de seu ethosmulticulturalista.

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A iniciativa multiculturalista que surgiu naInglaterra, na década de 1970, é baseada naconcepção de igualdade de oportunidades entre

os estudantes, sem levar em considerção asdisparidades presentes nas relações institucio-nais e da sociedade mais ampla, como classe,gênero e cor (Troyna, 1992, p. 69). Esse para-digma entende ser preconceito o resultado deignorância e prescreve como solução o sabercurricular de “outras culturas” (Rattansi, 1992,p. 28). Dessa forma, o multiculturalismo celebraa diversidade, estagnando as pessoas em suas“diferenças”, sem perceber como essas dife-renças são construídas, bem como as práticascotidianas de exclusão. Andando pelos corre-dores da escola e observando a decoração dassalas de aula, percebi um esforço por parte dainstituição em promover a perspectiva multicul-turalista. A presença de livros infantis emdiversas línguas, fotos de mesquitas, artistasnegros, crianças africanas parece ser umesforço institucional em enviar a mensagem“todo mundo importa”, sem levar em conside-ração as hierarquias estabelecidas entre aspessoas que essas figuras representam e acultura hegemônica.

Armand e Malaika sabiam que as pessoasnão importam da mesma forma. Em relação aeles, existe na escola uma hierarquia de dife-renças baseada em cor, gênero e país de origem.As diferenças são atravessadas por valoraçõese graus de exotismo, tendo a cultura inglesabranca como referencial de normalidade. Emuma das aulas, Grace contou a história de umgaroto inglês branco que vai para um país, emsuas palavras, muito exótico. Após apresentardiversos estereótipos de tal localidade, ela pediu

para as crianças adivinharem a qual país ahistória se refere. Quando uma criança respon-deu Israel (país bastante ocidentalizado), elapermaneceu em silêncio. Outra criança citouÁfrica, e ela pontuou a resposta como uma “boatentativa”. Uma próxima criança respondeuChina, ela retrucou “não” e forneceu a resposta.

Além de não explicar que a África era umcontinente e não um país, Grace reforçou anoção de que essa localidade era mais exóticaem relação aos outros exemplos fornecidos

pelas crianças. A sua pontuação “boa tentativa”foi direcionada apenas à África. Em relação a

Israel e China, ela não emitiu nenhuma obser-vação. Posicionando-se apenas em relação àAfrica, Grace transmitiu às crianças a idéia de

que esse continente é mais diferente na hierar-quia dos Outros, ocupando uma posição maiselevada na escala de exotismo geográfico ecultural. A resposta institucional – a cor, gêneroe país de origem de Armand e Malaika – tornouevidente que o multiculturalismo é um mitobenevolente que mascara as diversas desi-gualdades impostas a essas crianças. Diferente-mente do que postula esse paradigma, as culturasnão são percebidas apenas como diferentesentre si, mas diferentes em relação a um padrãode normalidade, nesse caso, a cultura inglesa.

O ethosescolar não se apresenta de formauniforme, através de um discurso único.Discursos contraditórios muitas vezes coexistemno mesmo espaço institucional, atestando ocaráter multifacetado das relações sociais.Paralelamente à concepção multiculturalista,observamos atitudes assimilacionistas baseadasno paradigma monoculturalista, que visa àanulação de diferenças étnicas, culturais elingüísticas (Troyna, 1992, p. 68). A efetivaçãodesse paradigma fez-se explícita quando aescola ofereceu a Mariana a possibilidade deescolha de um nome inglês. É como se estives-sem lhe perguntando: “você quer se tornar umade nós, ou continuar sendo você?”. Diante daspressões e privilégios do mundo branco, Marianaoptou por fazer uma aliança com a culturahegemônica, anglicizando-se.

Adicional ao fato de evitar o reconhe-cimento do racismo institucional, a escola éatravessada pelo discurso da inocência infantil.

 Tal discurso, bastante corrente na atualidade, é

herdeiro da noção rousseauniana de ser humano.Para Rousseau, o homem nasce desprovido dosmalefícios da civilização, para ser posteriormentecorrompido por esta: “O homem nasce livre; eem toda parte ele se encontra acorrentado”8

(Rousseau, apud James, J enks e Prout, 2001, p.13). Dessa forma a criança é concebida comonaturalmente boa, devendo suas característicasservirem como modelos a serem seguidos pelosadultos (James, J enks e Prout, 2001, p. 13).Sendo guiada por tal concepção de infância, a

8. Tradução da autora.

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instituição desconsidera o fato de as criançasserem seres sociais. Fazendo parte ativamentede uma comunidade, a criança tem suas

ferramentas conceituais marcadas pelas idéiasdominantes, incluindo racismo e suas expres-sões. Quando perguntei a Mr. Williams, um dosprofessores da escola, sobre as percepções dascrianças em geral em relação às criançasrefugiadas, ele respondeu que, além de a maiorparte das crianças na escola também vir dediversas origens étnicas, elas absolutamenteignoravam qualquer sinal de diferenciação.

Entendo que as dificuldades de a escola emlidar com tais situações são resultado da suaincapaciadde em reconhecer e combater opróprio racismo institucional, através da adoçãode uma perspectiva anti-racista, que tambémdaria conta de outras fontes de diferenciaçãosocial. A escola é guiada por outras estruturasdiscursivas, como multiculturalismo, assimila-cionismo e o mito da inocência infantil. Assim,a instituição falha em reconhecer as diversasformas discriminatórias como as criançasrefugiadas são dirigidas. Para combater oracismo, faz-se necessário seu reconhecimentono âmago das instituições, identificando suas

multifacetadas formas de expressão.

 Tomando partido

A explicitação do posicionamento doantropólogo em relação aos sujeitos da pesquisarepresenta o primeiro passo para a politizaçãodo trabalho de campo. O vetor orientador doolhar do cientista deve ser a identificação dasmúltiplas formas de exercício do poder, para queeste tenha a possibilidade de desconstruir mitos

e intervir a favor dos grupos estudados. Durantea negociação sobre viabilização da pesquisa,ficou estabelecido entre mim e Frieda que, findaa análise dos resultados, daria um retorno àinstituição. Este será o momento de desvela-mento do que percebi serem as diversas formascomo a instituição transforma as crianças refu-giadas em Outro e da possibilidade de constru-ção de algumas estatégias de intervenção.

Apesar de a pesquisa não ter a intenção degeneralização, acredito que possa suscitar um

olhar mais crítico entre os que trabalham comas crianças refugiadas. Como o saber deve se

tornar ação e transformação, proponho-me afornecer os dados não só para a escola, comotambém para os diversos setores da sociedade

relacionados a tais crianças – AutoridadesEucacionais Locais, organizações não-gover-namentais, outras instituições escolares, bemcomo pesquisadores da área. Espero, assim, quenovas teias possam ser construídas por meio desaberes mais justos que desafiem poderesestabelecidos.

Abstract:The notion of science as an objective knowledgehas been replaced by an understanding of the necessity of

an intervention on the part of the producers of such

knowledge. This production is an inevitably political act

when we observe people’s lives and the power relations

that traverse their quotidian. As a result of ethnographic

work carried out with refugee children in a school in

England, I consider the necessity of a position on the

part of the anthropologist through the clarification of the

alliances established in the field. I believe that such attitude

can allow the feasibility of some interventions in favour

of the studied groups and that such a compromise is

made fundamental in ensuring that our work is not

characterized by an attitude that reproduce social

inequalities.

Key-words: Science, social relations, power, refugee

children, racism, English hegemonic culture.

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RECEBIDO EM MAIO DE 2004APROVADO EM SETEMBRO DE 2004