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Discussão sobre a maldade no homem.
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CRIME E COMPORTAMENTO EM A GALINHA DEGOLADA DE HORÁCIO QUIROGA.
Thiago de Freitas (UEFS)
O objetivo fundamental deste texto é levantar duas questões substanciais no conto A
galinha degolada, de Horacio Quiroga. Em primeiro plano, quais relações podem ser
atribuídas entre a turbulenta vida pessoal do autor e sua obra. Posteriormente, detalhando o
estudo, procuraremos discutir as noções de agressividade através das personagens que
integram a obra, por meio, principalmente, das relações entre hereditariedade e meio
ambiente, como fundamentadas por Ashley Montagu e Erich Fromm.
Habitualmente, os conflitos internos na vida de um escritor induz à criatividade e
originalidade. Literariamente, reações emocionais levadas ao extremo resultam, em alguns
casos, em obras de arte de caráter igualmente pungentes, sejam elas literárias, visuais ou
musicais. Exemplos clássicos de amores não correspondidos, instabilidade mental, uso
abusivo de drogas e até mesmo profundas depressões, podem resultar em marcas
excruciantes na história cultural e intelectual.
Em A galinha degolada, as experiências de vida do autor, influenciadas pelo seu
ambiente fatídico, emergem no texto através de angústias e de uma narrativa, apesar de
bastante realística, esteticamente fantástica. Influenciado por escritores como Edgar Allan
Poe e Guy de Maupassant, Horacio Quiroga foi um dos responsáveis pela modernização
contística na América Latina e seu traço narrativo se impôs, com o tempo, como modelo
literário. Modelo este que, segundo Pablo Rocca, focaliza o efeito e a potência expressiva
do enredo e de cada uma das palavras, eliminando elementos acessórios que parecem
desnecessários, tendo o horror como marca predominante. Diferente, porém, de Poe, por
exemplo, Quiroga, como observa Pablo Rocca, “descartou os ingredientes clássicos do
relato gótico, apropriando-se, no entanto, do clima e até do detalhe mórbido ou do recurso
do “achado macabro.” (ROCCA, 2008, p. 67).
O conto em questão retrata o cotidiano do casal Mazzini-Ferraz que, recém-casados
e aparentemente saudáveis e apaixonados, teve a desventura de, em sequência, somente
procriar filhos que tiveram o infortúnio de perder suas capacidades cognitivas após
sucumbirem à doença na idade de dezoito meses. Caso após caso, eles não perdem a
esperança em dar luz à crianças mentalmente sadias, mas o resultado é sempre
consistente.
Com este andamento, chega ao leitor a impressão de que um deles, Mazzini ou
Berta, ou mesmo o cruzamento entre ambos, carrega um problema genético, que seria, em
razão dos filhos com problemas mentais, motivo de questionamento e acusações entre
ambos. Depois do nascimento dos gêmeos, e de reativação de esperança por dias
melhores, os meninos, novamente aos dezoito meses, sucumbem ao mesmo mal, a doença
mental.
Finalmente, após nova tentativa, realizando então um objetivo crucial para ambos, o
casal foi abençoado com uma filha que permanece saudável além do primeiro ano e meio. A
partir disto, eles ficam tão encantados com a menina que negligenciam ainda mais seus
primeiros quatro filhos e passam a cuidar implacavelmente de Berdita. Enquanto isso, o
casal continua acusando um ao outro pelas faltas dos filhos mais velhos e insiste em crédito
exclusivo para a filha saudável. Através do texto, sabemos que “desde o primeiro desgosto
envenenado tinham perdido o mútuo respeito. Se há algo para qual o ser humano se sente
arrastado com cruel fruição, este algo é terminar de humilhar alguém depois de já ter
começado.” (QUIROGA, 2008, p. 20). As consequências desta relação agressiva entre o casal,
aliada ao conjunto familiar, contribuem integralmente para o fim chocante da narrativa.
Em um dia como qualquer outro, de reclusão para os filhos mais velhos, os quatro
garotos testemunham a empregada degolando uma galinha para o almoço. Mais tarde,
voltando de um passeio com Berdita, os pais deixam a menina se divertir livremente no
quintal, onde os idiotas costumavam estar sempre sentados num banco, absortos, “quase
sempre apagados no sombrio letargo da idiotia.” (QUIROGA, 2008, p.15). Enquanto Berdita
inocentemente tentava subir no muro, eles, impulsionados por alguma razão, agarram a
criança e a assassinam da mesma maneira que a empregada previamente executara a
galinha, cortando-lhe brutalmente o pescoço.
Deste crime, o leitor extrai um sentimento de culpa que ecoa da reação irresponsável
do casal ao cuidar do seus outros filhos, sempre referidos no texto como idiotas. O autor
relativiza a indiferença em relação ao destino de suas personagens, juntamente com o
retrato de pessoas, que o destino reservou uma tragédia além de seu controle, passando
um sentimento de desespero e remorso.
A galinha degolada reflete, muito provavelmente, as experiências tumultuadas que
Quiroga experimentou enquanto viveu. Segundo Jesús Calledo Cabo, foi “uma vida que
condicionou toda sua obra literária”, (CABO, 2004, p.124) estando rodeada por uma fatalidade
genética, já que de um modo ou de outro, quase todos aqueles que estiveram próximos ao
uruguaio tiveram suas vidas marcadas por uma tragédia repentina.
Seu pai biológico se suicidou quando Quiroga tinha apenas dois meses de idade.
Posteriormente, aos 13 anos, presenciou a morte de seu padrasto com a mesma espingarda
que tirara antes a vida de seu pai. Sua primeira esposa e os três filhos tiveram o mesmo fim
marcante, o suicídio. Sua saúde também supõe uma série de infortúnios: asma e gagueira.
Estas questões, da maneira como enfrentadas, ocasionaram graves problemas de
adaptação e relacionamento desde a infância. Quanto à isso, é importante levar em
consideração as palavras de Quiroga em relação aos sofrimentos pessoais:
Siento una especie de placer en mis sufrimientos, en mis tristezas y aún desearía padecer más, para encontrar en el fondo de mi escepticismo una realidad que se destaque poderosa con el tinte del dolor eterno.
(QUIROGA apud CABO, 2004, p. 127)
Seguindo a quebra repentina de sua primeira relação amorosa, uma série de
acontecimentos trágicos se sucederam. Sua ida à Paris, por exemplo, gerou grandes
desventuras. Outro trauma que marcaria profundamente sua psique ocorre quando do
assassinato inesperado e acidental do amigo e poeta Federico Ferrando, o que, obviamente,
o levaria a ser interrogado e encarcerado por alguns dias. Nesse sentido, concluímos,
portanto, que as características mais marcantes de sua obra, como por exemplo, horror e
morte são reflexos de uma vida repleta de tragicidades.
Voltando ao texto, é notável como as crianças com retardo metal são subjugadas
pelos pais. A mãe, “ao nascer Bertita […] se esqueceu quase completamente deles. A mera
lembrança daqueles quatro já a horrorizava. Com Mazzini, embora em menor grau,
acontecia o mesmo.” (QUIROGA, 2008, p.20). “O aspecto desleixado e a sujeira deles
acusavam a falta absoluta de um mínimo de zelo materno. (QUIROGA, 2008, p. 15). A
empregada, encarregada dos cuidados com os filhos maiores, “os vestia, dava-lhes de
comer, deitava-os e tudo com impaciente grosseria.” (QUIROGA, 2008, p.20). Os meninos
passavam os dias sentados num banco do pátio, vidrados para o muro em frente. É evidente
no texto, desde suas primeiras linhas, que uma tragédia iminente em breve se abateria
sobre a família Mazzini-Ferraz.
A discussão entra em vigor quanto à geração de quatro crianças com problemas
mentais. Quais seriam as razões para tal infortúnio? A pergunta que Mazzini faz ao médico
quando do nascimento do primeiro filho é essencial para o entendimento desta questão. Ele
diz: “então isso pode ser herdado, algo que... (QUIROGA, 2008, p. 17)
O médico, aparentemente se esquivando, diz: “sobre a herança paterna, já lhe disse
o que pensei quando vi seu filho. Quanto à mãe, bem, ela tem um sopro no pulmão.”
(QUIROGA, 2008, p. 17). Até esta altura não temos indícios do que teria o médico dito a
Mazzini sobre seu pai. Sabemos, no entanto, pelas palavras de Quiroga, que o primogênito
pagava pelos excessos do avô. Mais tarde, quando de uma discussão mais áspera entre o
casal, temos conhecimento que o pai de Mazzini teria morrido louco, delirando. Por isto,
Berdita acredita que poderia ter tido filhos normais, já que o problema estaria supostamente
relacionado ao pai. Ao investigar o texto, supomos, portanto, que as causas dos problemas
mentais dos filhos do casal seriam genéticas, diferente, como veremos adiante, das razões
que atribuímos ao assassinato de Berdita.
Talvez isso esteja refletido nos próprios sentimentos de solidão e contenção de
Quiroga após as tribulações desastrosas de sua vida. Os infortúnios do casal não são
totalmente culpa deles próprios, mas, ao mesmo tempo, eles não são totalmente inocentes.
Um tom de culpabilidade inevitável lança uma sombra sobre o já triste enredo. Como o casal
se transforma em um outro durante os tempos difíceis, eles são incapazes de se ligar
durante os bons tempos, condenando-se a sucumbir à tragédia da situação.
Apesar do desejo por uma família normal e saudável, o idealismo do casal ofusca
sua realidade operacional, cegando-os ao destino inevitável. É quase paradoxal como o
desespero de seu destino é derivado de sua própria falta de controle sobre a situação. A
questão permanece, o casal poderia ter se poupado da agonia de perder sua preciosa filha,
se, proverbialmente falando, não tivessem colocado todos os ovos na mesma cesta,
tornando assim sua dor menos profunda? Ou o resultado seria o mesmo, mas emoção
menos intensa?
Não obstante, uma vez posto em movimento, os seus destinos foram determinados e
inalteráveis. A vida, sabemos, é composta de dois aspectos, positivos e negativos, e seria
melhor se a aceitação dos altos e baixos da vida fossem encarados no total, do que
simplesmente ignorar os fracassos em favor de se concentrar nos sucessos.
Pois é esta relação a maior responsável pelo trágico destino reservado à família
Mazzini-Ferraz. Sua falta de atenção e cuidado determinam quase que inteiramente a perda
da querida Berdita. Chegamos à questão fundamental do texto. Em razão do crime, seriam
os idiotas bons ou maus? O brutal assassinato da menina é condicionado por uma
hereditariedade similar à causa da doença mental das crianças ou estaria condicionado ao
ambiente familiar?
Erich Fromm, em Análise do homem, discute, de modo geral, algumas questões do
comportamento humano. Partindo duma análise freudiana, Fromm acredita que o homem
não seja essencialmente bom ou essencialmente mau, mas movido por duas forças opostas
igualmente pujantes. Esta posição dualista é, segundo o autor, apenas o ponto de partida e
não a resposta final para os problemas psicológicos e étnicos do ser humano. De acordo
com Fromm, a destrutividade humana passa primeiro por uma questão: diferenciar o ódio
entre racional ou “reativo”, e irracional ou “condicionado pelo caráter”.
O ódio no ser humano é, segundo Fromm, uma reação do homem em busca duma
suposta sensação de alívio, como se praticasse alguma atitude violenta ou odienta como
oportunidade de descarregar sua hostilidade. O homem que assim reage às situações
adversas encontra prazer ao insurgir de tal modo. “A destrutividade é o produto da vida não-
vivida.” (FROMM, 1963, p.193). O degolamento de Berdita, apesar de parecer somente uma
reprodução do abate da galinha, carrega consigo outras dependências. Os filhos mais
velhos teriam assassinado sua irmã por prazer, como espécie de vingança, ou teriam agido
involuntariamente, visto sua condição mental? Supomos que o ambiente familiar, encarado
da maneira que é no texto, pode proporcionar atitudes agressivas.
Outra observação de Fromm que nos é importante na abordagem temática do conto
diz respeito à não realização de condições favoráveis individuais e sociais características ao
homem. Se fossem oportunamente bem educados e familiarizados, teriam as crianças se
comportado violentamente? Fromm argumenta que com restrições de energia o homem se
torna destrutivo, manifestando o mau. “Se é verdade que a destrutividade deve formar-se
como decorrência da energia produtiva bloqueada, talvez pareça que ela pode ser chamada
adequadamente de uma potencialidade da natureza humana.” (FROMM, 1963, p.193).
Entendemos, portanto, que a potencialidade má do homem passa primeiro por
questões culturais e sociais, principalmente ligadas às condições exigidas para sua
realização. Como exemplo, Fromm menciona as capacidade de falar e pensar do homem,
que se restringidas podem gerar consequências sérias, ainda que se possa ignorar o
sofrimento. Provavelmente, se o homem deixa de utilizar suas aptidões, ficará fragmentado,
ansiando por fugir de si mesmo. A atitude agressiva das crianças do conto seria, portanto,
resultado duma privação de sentidos, agravadas, particularmente, pelo tratamento que
recebem de seus pais.
Numa perspectiva similar, discutindo as causas da agressividade do homem, Ashley
Montagu, em seu A natureza da agressividade humana, observa que o retardo mental pode
nem sempre não ser causado por deficiências hereditárias, mas por outras razões. Neste
sentido, se os filhos do casal Mazzini-Ferraz tivessem crescido num ambiente favorável,
suas capacidades cognitivas poderiam ser ampliadas, assim como as de outras crianças.
“Os genes não existem no vácuo; existem sempre em um meio ambiente de algum tipo.”
(MONTAGU, 1978, p. 23). O autor argumenta que não só as reações físicas e mentais, mas os
traços de personalidade, o comportamento e as atitudes são mais dependentes de fatores
ambientais do que hereditários.
Concordamos com as observações de Montagu ao investigar o comportamento dos
filhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz. O nascimento de Berdita, aliado ao ambiente
desfavorável, teriam sido as maiores razões para o assassinato, que funciona também, ao
nosso ponto de vista, como reação de defesa ao território invadido pela menina. Desmond
Morris, em O macaco nu, observa que o entendimento acerca da natureza dos instintos
agressivos do homem passa, obrigatoriamente, por nossa origem animal. Ou seja, a
desterritorialização leva à atitudes agressivas de defesa por parte de ambos, homem e
animal. Os filhos mais velhos, com o nascimento de Berdita, sentem-se privados e
invadidos, principalmente porque, perdem total espaço e atenção, reservados apenas à
filha.
Montagu parte do princípio de que praticamente não há comportamento agressivo
espontâneo em crianças saudáveis, normais e bem cuidadas. Já Lauretta Bender (Apud
Montagu), chegou a conclusão de que a hostilidade não é inata à criança, mas é antes um
complexo de sintomas que resultam de privações, causadas pelo interrompimento no
desenvolvimento considerado normal na estrutura de personalidade que levam a criança a
encontrar satisfação através de meios inadequados, particularmente através de impulsos
agressivos.
Este pensamento leva em conta que a agressividade, supostamente inerente ao
homem, depende de estímulos, para acontecer ela deve ser provocada. Os autores
concordam que a violência humana é uma experimentação social, antes de tudo. A
agressividade não é intrínseca. A criança, pelo contrário, tem uma tendência de se
comportar genuinamente de maneira dócil, em busca de um bem-estar social para si e para
as pessoas circundantes.
Referências
CALLEJO CABO, Jesús. Enigmas literarios: secretos y misterios en la historia de la literatura. Madrid: Ediciones Corona Borealis, 2004.
FROMM, Erich. Análise do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.
QUIROGA, Horacio. A galinha degolada e outros contos. Porto Alegre: L&PM, 2008.
MONTAGU, Ashley. A natureza da agressividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
MORRIS, Desmond. O macado nu. Rio de Janeiro: Record, 1996.