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Crimes Noturnos © 2006 Bernardo Almeida É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. Foto (capa): Bernardo Almeida Editoração eletrônica: Bernardo Almeida Edição e Distribuição: Bernardo Almeida Contato: [email protected] www.bernardoalmeida.jor.br

Crimes Noturnos

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Livro de Bernardo Almeida.

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Crimes Noturnos

Crimes Noturnos

2006 Bernardo Almeida

permitida a reproduo parcial ou

total desta obra, desde que citada a fonte.

Foto (capa): Bernardo Almeida

Editorao eletrnica: Bernardo Almeida

Edio e Distribuio: Bernardo Almeida

Contato: [email protected]

www.bernardoalmeida.jor.br

Fico de um indivduo (algum Sr. Teste s avessas) que abolisse nele as barreiras, as classes, as excluses, no por sincretismo, mas por simples remoo desse velho espectro: a contradio lgica; que misturasse todas as linguagens, ainda que fossem consideradas incompatveis; que suportasse, mudo, todas as acusaes de ilogismo, de infidelidade; que permanecesse impassvel diante da ironia socrtica (levar o outro ao supremo oprbrio: contradizer-se) e o terror legal (quantas provas penais baseadas numa psicologia da unidade!). Este homem seria a abjeo de nossa sociedade: os tribunais, a escola, o asilo, a conversao, convert-lo-iam em um estrangeiro: quem suporta sem nenhuma vergonha a contradio? Ora este contra-heri existe: o leitor de texto; no momento em que se entrega a seu prazer. Ento o velho mito bblico se inverte, a confuso das lnguas no mais uma punio, o sujeito chega fruio pela coabitao das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer Babel feliz.

Roland Barthes

Escrever cometer um crime a cada linha. Ler cometer dois a cada palavra.

Bernardo Almeida

Poesias

1. Bilheteria 31. Molho requentado

2. Gerao exonerada32. Mutao

3. De braos dados33. Institucionalizado

4. Aventura idlica34. Crime e castigo

5. Ditadura do relgio35. Encontro surpresa

6. Perfume36. Desnutrio

7. Pago37. Chamas

8. Morfina38. O segundo toque

9. Voto nulo39. Profecia

10. Perplexo40. Lana fortuita

11. De lado41. Clandestino (viajante)

12. Prescindvel42. Desapario

13. Sobras43. Cela de ouvido

14. Porta adentro44. Castelo abandonado

15. Mundo inundado45. Amor Lumire (Plus belle)

16. Vigarista46. Rompante canibal

17. Nem um, nem outro47. Isca da jovialidade

18. Fumaa48. Amigos do entorno

19. Resciso49. Duplo

20. Condenao scio-laboral50. Permuta

21. guas passadas51. Mesa farta

22. O brinde da moeda humana52. Conforto passageiro

23. Contatos noturnos53. Mltipla (transcendental)

24. Augusta54. Oito

25. Negativo55. Enganados

26. Vale-vida56. Debate

27. Observador57. Cacos espremidos

28. O veneno da saudade58. Clich

29. Deuses e demnios59. Cartas annimas

30. Desapego real60. Au revoir!

1. Bilheteria

Ao deixar-me, ainda em chamas

A tua presena no me abandona

E as palavras que proferes, agora saem de mim

Derivam todas da mesma harmoniosa fonte

Perdura em meu corpo a tua saliva

Restos de ti a completar-me

Como as migalhas da minha carne

Que levas em tuas longilneas unhas

O deleite ainda umedece os lenis

Emaranhados no palco armado sobre quatro estacas

Em que o teu amor contracenou com o meu

Diante de uma platia invisvel, que calorosamente aplaudia

Enquanto nossos msculos, pulmes e gargantas

Exaustos, agradeciam

2. Gerao exonerada

Na distino entre um sorriso e uma lgrima

Pende para o absurdo desejo da catstrofe

Uma pavorosa mania no mais possvel

De ser expressa por meio de gestos calculados

Os movimentos, seqencialmente imperceptveis,

Protegem o esquecimento que tomar conta da sua alma

Descarnada, desnuda, etrea, imaterial

Dilacerada e agredida como cada milmetro da sua ossada

Escondes este peso em um jazigo distante

Onde apenas olhares mortos te alcanam

Colabora com a terra que fornece a colheita

Da qual tanto te beneficiaste em vida

Colha agora a raiz, e deixa o fruto para os que restam

Contentas-te com a jaula em que te encerras

Sem praguejar contra o fardo que te aflige

O teu rastro, em breve, ser apagado

Para que as novas geraes sejam mais belas e ternas

Menos hipcrita, sujismunda, atvica e aptica

Como as guardas, os punhos, os coraes e as lanas

Dessa tacanha representao da realidade humana

3. De braos dados

A vida no o contrrio da morte

Mas sim o seu meio

A morte no o contrrio da vida

Mas sim o seu cume

(Bernardo Almeida)

Injeto agora em minhas veias

Finas de esperanas e tristezas tenras

Um lquido que me far perecer to brevemente

Quanto os aplausos de um espetculo medocre

Tal substncia, chamo-a de vida

Que livra a matria da calamidade opressora da eternidade

Conferindo-me um ponto final ao bem e ao mal, ao sim e ao no

Encerrando o princpio da morte enquanto fim

E da vida enquanto meio

Desafiando certezas e constataes

Pois injeto meio litro para que no haja erro

Preciso certificar-me que tal excesso ser letal

E concluir que as experincias de vida e morte

So ambiguamente similares

Posto que so riscos inevitavelmente fatais

4. Aventura idlica

Em tuas mos, pginas de idias tumultuosas

Enquanto miravas as palavras, eu te olhava

Despertaste em mim um enlevo convidativo

Reforado pela translcida vestimenta que desenhava

E demonstrava claramente aquilo que supostamente escondias

Acelerado, meus batimentos tornaram-se assassinos camuflados e furiosos

Queriam matar-me ali, no sei se de cime ou paixo

Mas as tuas coxas suscitavam um triunfante desejo excessivamente carnal

Pareciam viver para ofertar o prazer mais digno, freqente e gratuito do mundo

Enquanto eu insistia em disfarar que no te atacava

Perplexo e aturdido por intenes calorosamente mudas e nuas

Escreveste com teu sorriso o chamado de que precisava

Descobrimos por dias e noites que ramos amantes ferozes

Lembro-me dos seus seios rgidos, intumescidos da base ao pice

E dos murmrios sublimes, dos enlaces de pernas e das plpebras cerradas

Quando os meus suspiros atingiam a parte traseira da sua orelha

E tocava todo o seu corpo com uma parte do meu

Sabamos: o que bom no precisa durar pouco

E mantivemo-nos em contatos, em extratos e substratos

Constantemente conectados

At que as lgrimas da rotina nos separassem...

5. Ditadura do relgio

Correr no andar mais rpido

Mas sim um pedido de enfarto

Aos quinze minutos do primeiro tempo da vida

6. Perfume

Escuto seu perfume a me chamar

Manh e noite ele me diz querer mais

Borrifo novas gotas de mim em voc

E seus olhos brilham, a sua pele resplandece

Permaneo ao seu dispor, sua vontade

Sabes que de mim tens os possveis mais impossveis

Acaricia-me devagar, apenas para fazer-me lembrar seu nome

Abraado em seu gosto, seu rosto, seu corpo

S a viga que sustenta a minha vida

E me poupa das prximas perguntas, to dispensveis

Traz no meu pedido a sua resposta

Pe o seu mais belo vestido e aceita o meu cheiro em ti mais uma vez

7. Pago

Livro-me dos meus pecados cometendo outros

Novos, picantes e furtivamente lascivos

Sinceros, profundos e deliciosamente proibidos

Livro-me dos meus pecados falando de amor

Sendo condenado pelos olhares que nada me dizem

A no ser que so infelizes e por isso julgam demais

Livro-me dos meus pecados profanando a dureza da razo

Contestando-a diante de sentimentos que desestruturam

Qualquer lei ou idia aceita como verdade universal

Livro-me dos meus pecados sem fazer esforos

E tomo como minhas as palavras do poeta que afirmava

No conhecer pecados, apenas prazeres

8. Morfina

Uma caneta um peito morto

Mas, nas mos de um poeta,

Sangra mais sentimento

Que mil coraes humanos

9. Voto nulo

No campo de batalha

As mentiras possuem verdades de ferro

E as camisas de fora esto atadas aos libertrios

Helicpteros que sobrevoam em intensidade

As condies e incises desiguais

Da cidade que suga o capitalismo com um consumo

Que foge ao seu prprio plano estratgico

E o sucesso, e o fracasso, e a mordaa

a proposio mais frtil da coragem rebelde

Daqueles que resistem por toda a cidade

Mas no confiam plenamente nas promessas

De liberdade de expresso disseminadas

Por uma armada democrtica ps-ditadura

E o Estado consegue exibir intenes de paz e liberdade

Por trs de contas em parasos fiscais de agresses

Subornos, extorses, truculncias e censuras

E o pas emite promessas - que jamais faro cessar a fome

Mas que rendero votos dos famintos

Nas eleies dos crpulas e verdugos (imveis pierrs que constrangem em carnaval de msica monossilbica) malditos

Na assuno dos cafetes que prostituem

O trabalho do trabalho brasileiro

10. Perplexo

A chuva que machuca o vento

por ele manejada, controlada e desviada

Como um plano de encaixe, uma nota de coeso

Que distribui encanto e beleza durante um vo noturno

Flameja turvo o horizonte dos caprichos

E destina uma vida extra para quem dela se fartar

Em movimento furioso, vital e enrgico

Sem deixar dominar por qualquer vontade alheia

E os olhos catalogam e despejam sete sorrisos

Um em cada colina sobrevoada

Deixando um gosto extico, eterno e exttico

Nos bolsos do peito, nas entranhas da alma

11. De lado

Sinto-me em profundo estado de solido

E, pela primeira vez, no me vejo confortvel

Acho que mudei sem imitar quem eu era

O silncio toma formas acsticas

Nas asas que batem imveis e irritadias

Abaixo do tempo que estagnou o mundo das pessoas

E tudo desapareceu em segredo

Nem uma mo falando em meu ouvido

Nem uma lngua coroando os meus desejos

A companhia tornou-se uma vasta penria de nada

E eu que pensava ser difcil sofrer calado

Descubro que o pior se d quando o peito se agacha de dor

Precisando externar um soluo em forma de desabafo

Mas permanece corrodo pelo desamparo da impossibilidade

Da frustrao, da angstia e da calamidade do abandono

12. Prescindvel

Quantos amores um peito pode suportar

Sem ser chamado de masoquista?

E fui cair logo por ti, o prottipo do impossvel

Em jogos de azar, ter sorte mais importante que competir

E surges e somes e reapareces apenas para salvar

De forma v e egosta, as minhas esperanas da forca

Pensas em monopolizar o meu apreo, e por isso me contornas

Com pequenas fbulas que falam de promessas

Mas saiba que o tempo esquecer o teu endereo

Assim como faz com aqueles que impressionam

Sem fortalecer a cicatriz com novos cortes longitudinais

E, da profundidade, um monte se ergue

Colocando, apenas um de ns, no topo

Do fogo, do jogo, do riso e do gozo

13. Sobras

Se dissesses o que s agora me transmites

Poderamos ter procriado sonhos em casas de concreto

Mas preferiste sumir, fingir, bordar e tecer sozinha

Um sofrimento to confuso como os sinos apticos

Que cantavam belezas sem vida, vigor ou choque

No morro plido que te condenou solido

Nada fizeste para atenuar o que partia de mim para ti

Numa corrente de correspondncia dbia e mal intencionada

Fazendo fracassar o lao das minhas tentativas

De expectativas e motivaes manualmente transparentes

Perfurado pelas mil flechas de desprezo que lanaste

Tombei diante do Forte colossal que criaste ao teu redor

Em aluso a uma trgua desconfortvel e desoladora

Como foi difcil reconhecer-te pedindo por esperana redobrada

Logo para mim, que outrora dei para ti toda a que possua?

Sem saber que estavas extraordinariamente crua, frente e verso

Arrisquei-me e lancei-me em desgraas sentimentais

Como uma raiz subalimentada, desmembrada e dispensvel

14. Porta adentro

Pesa em mim a viagem, o adeus e a passagem

Inoportuna quanto a inexatido que me aflige

Ao observar-te de longe como um intruso, um desconhecido

Quando sei que no devo impedir a seqncia dos passos que ds

E nada me serve de conforto

Continuo barulhento, impreciso e agitado

Mergulhado em uma insnia sentimental

Que progride sem desvendar a profundidade abissal

Na qual escondo e preservo centenas de gritos melanclicos

E o sino dos ares que tocaste? Envia-me um bilhete distante

Compulsivamente, tento agarrar os resqucios da tua fragrncia

Que pairam na rbita dos pensamentos e emoes que me circundam

Como os braos fervorosos nos quais repousou o teu conforto

15. Mundo inundado

Dos submundos mais profundos

Derivam todos os outros mundos

Os quais habitei sem freqentar

E os quatro cantos eram sempre mais

Traziam amostras curtas e espaos ociosos

Na insanidade efervescente dos espritos mais criativos

Dentre duas ou trs loucuras, escolhi a minha

Completa e desfeita, harmoniosamente conflitante

Abria caixas sem jamais revelar um segredo

E os dentes j no sorviam a matria

Grotesca e protuberante em dias nublados de quente e frio

Mas conheciam de cabo a rabo os castiais malditos

Os destemidos, indecisos e indefinidos candelabros

16. Vigarista

Perturbado ao redor de multides anonimamente opinativas

Detentoras de inspiraes e motivaes surpreendentemente presumveis

Espalhando, com alvoroo, uma constrio

Que revela a efemeridade de qualquer perspectiva

Em v tentativa de destruir as vontades mais ntimas dos livres

O alento que carrego, empurro com os joelhos

Aperta a minha mo e beija carinhosamente as minhas costas

A pele, mantenho-a exuberantemente exposta nas horas vagas

Ainda que adormecida, inspira o vigor de quem prossegue sempre

As multides opem-se vitria do indivduo

Caminham em direo ao azedo - aperto da indiferena

O rosto definha, decadentemente representado por uma massa

De carne uniformemente distribuda, constituda por narizes e mediocridade

Impem, atravs de combates friamente ignorantes,

Que os caminhos a se seguir so limitados e no aceitam alternativas

Vertentes inteligentes daqueles que esto descrentes

Com a corrente que bate e prende, fingindo unir-nos

17. Nem um, nem outro

Escondo-me abaixo do inferno

E acima do paraso

Para que no me incomodem

Nem bons, nem maus

Nem deuses, nem diabos, nem homens

Cansei de jogos e quero equilibrar-me

Apaziguar os pensamentos que se libertam

Das foices entortadas pela gnese

S existe condenao para quem nela cr

E o purgatrio no comporta tantas almas mornas

Em nenhum biombo me encaixo, permaneo catico

Uma mtrica desconhecida, alm de comportamentos bvios

Mas qual o mssil que me interceptar?

Qual radar me captar?

Se no estou entre a escala do bem e do mal

E desperdio as explicaes oferecidas

Contundidas pelo que certo ou errado

Prefiro continuar deitado acima do paraso

Ou de p abaixo do inferno

Substituindo qualquer moral pelos meus desejos

18. Fumaa

Vi ontem a tua face flamejante

Rasgar a vista da minha janela

E destronar as aparncias de uma superao cansada de mentir

Dizendo que foi prontamente deslocada ilha da pacincia

To catastrfica quanto a pedra que me ancora no cho

Impedindo-me de voltar a voar at a morada das nuvens

Todas bbadas e saudosas, meretrizes sem rumo

Transitando com ar de superioridade, atrozes

Escolheram morar distante das frvolas vidas humanas

Para que no possam ser incomodadas com frequncia

Pela besta bpede que alastra a catstrofe por onde passa

E deixa pegadas toxicamente desafiadoras

Avisando, como placas, que um dia seremos proibidos de retornar

Ao nosso ponto de partida

Ao bero que no pariu, mas acolheu

19. Resciso

Floresce, minha querida, onde flores invejosas murcham

Faz de ti um paraso de desejos furtivamente discretos

E, dos outros, o esquecimento brotar como recompensa

Posto que um sentimento deste no existe para se plantar e colher

Mas para ser vivido como o primeiro e ltimo dia de um anjo na Terra

20. Condenao scio-laboral

Hoje eu acordei como um pedreiro

E trabalhei como um pedreiro

E cansei como um pedreiro

E almocei como um pedreiro

Hoje eu acordei como um pedreiro

E falei como um pedreiro

E cantei como um pedreiro

E vesti-me como um pedreiro

Hoje eu acordei como um pedreiro

E amei como um pedreiro

E andei nos mesmos veculos que transportam um pedreiro

E suei como um pedreiro

Hoje eu acordei como um pedreiro

E fui visto como um pedreiro

E fui ignorado como um pedreiro

E fui contratado como um pedreiro

Hoje eu acordei como um pedreiro

E morei como um pedreiro

E gastei como um pedreiro

E o meu nome passou a ser ah, o pedreiro!

21. guas passadas

O telefone marcado pela sua caneta

No verso da manga da minha camisa

Foi-se embora, levado pelas guas turvas de uma lavanderia

Agora pergunto-me como fazer para juntar as partculas de tinta

Que formaro outra vez aqueles preciosos nmeros?

As mesmas guas que lavam, levam amores

Antes fosse como colar papel picado

Mesmo que transformado em um milho de pedacinhos

Mas, na gua, tudo dissolve-se

E o que me resta esta camisa molhada

Em tom vermelho, fortemente desbotada

22. O brinde da moeda humana

Se teu corpo estremecer, bem-vinda seja minha morte

A fossa fnebre dos que te repelem, no canal,

Faz companhia queles que fingiram te amar

Sentados quando precisaste, e, de p, para agraciar a tua desgraa

Ningum torceu por ti porque na vida todos so homens

Arrogantemente frgeis, um espectro evolucionrio distante

Da terra, a misria emana suas divergncias e desigualdades

Com mais ferramentas que membros e pensamentos

Intolerantes e contundentes, um cacho de dbeis articulaes

Sem representar escndalo ou surpresa seno para a mediocridade

Um resto de perverso, uma salvao maldita

Caractersticas que no convm nossa hipcrita natureza

A civilidade como dogma, a realidade como parmetro

Conferindo qualquer f no que diz elevar-se diante de ns

Ou zelo pelo que fede de to podre que se encontra

Esttico, moribundo, anestesiado, aptico e decadente

Encaremos todos o frio que h no vero das certezas

Para que jamais sejamos enganados pelas promessas de correo

Somos impuros, imperfeitos e ambguos talvez por distrao

Compreendidos pelos detalhes das falhas que cometemos

Apresentados pelas mentiras que contamos

E preservados pelas falsidades que mantemos

23. Contatos noturnos

Passei as ltimas trs noites

Vagando em ambientes estranhos

E conversando com pessoas impossveis

As quais sei que jamais reencontr-las-ei

No durmo, no como, no bebo

Apenas respiro o trago fatal da madrugada

No sono, est a vulnerabilidade de qualquer mortal

A minha mente continua desperta, em alerta constante

Enquanto a cidade ronca em um coro mal sincronizado

Seja de descanso, preguia, conveno ou hbito

Procuro por algum, mas s encontro a mim mesmo

Ento, troco de lugar com a minha sombra e sigo-a

Sirvo de companhia para o meu eu degenerado

Deslizamos com passos soturnos por sonhos inadequados

s vezes, ganhamos asas depenadas e olhos de guia

A noite guia queles de percepo apurada

Os pensamentos mais extensos e complicados

Tornam-se nfimos e bvios, rapidamente decodificveis

E, rodeado pelo manto glido da escurido,

Decido que, o silncio da tumba que acolhe o dia,

Ser a minha eterna e estimada morada

24. Augusta

A avenida paulista

Mas os pedestres

So de todos os lugares

Cruzam-se, debatem-se e ignoram-se

Em buzinas de sirenes de ambulncias de polcias

E, do alto, a dupla hlice metlica

Dos helicpteros alternam-se e assistem

Ao drama do cotidiano

Cada vida uma remessa de jornal encalhado

Um relgio adiantado

Em um brao sempre atrasado

Nas esquinas urbanas, afeto silncio

E respeito indiferena

No escritrio, a ansiedade

Espera pelo happy hour do dia

Talvez amanh, quem sabe...

Oitenta lees e uma forca

O dinheiro o marca-passo

E a apatia conivente com a bravura

No espao em que a convivncia

um ato de loucura

H arte no teto

Um painel em tons de cinza

Anuncia qualquer coisa indefinida

Uma chuva cida de melancolia cosmopolita

Mas no sobra tempo para detalhes

E cada um s, mais uma triste interrogao

Que tenta ganhar a vida

Em um dia de um segundo

Numa extraordinria correria comum

Enquanto os monumentos observam estticos

A genrica beleza da arquitetura humana

Projetada e talhada em concreto e carne

Marcando no mapa as luzes esfumaadas

De uma ilha de calor carcinognico

No espetculo dirio dos artistas dos semforos

E na esmola dada por compensao

O progresso que conheces no tem nome

Malmente aprendeu a ler

Mas ps-doutor em clculos de estatstica

E cedo ou tarde

Inevitavelmente ir subtrair voc

25. Negativo

No me sinta

No me convena

No me leia

No me entenda

No me procure

No me imite

No me mova

No me drogue

No me beba

No me cultive

No me retorne

No me mantenha

No, no, no

No, no, no

No, no, no

No, no, no

No me proba

No me cape

No me cale

No me mate

No. Mil vezes no?

No!

No. Mil vezes no?

No!

No me responda

No me pergunte

No me mutile

No me desespere

No. Mil vezes no?

No!

No. Mil vezes no?

No!

No me diga

No me empurre

No me engula

No me admita

No me tolere

No me maltrate

No me exaspere

No me espere

No me agrade

No me repita

No me convena

No me permita

No me obedea

No me pertena

No me pea

No me perturbe

No me vigie

No me agrida

No me lapide

No me represente

No me deixe

No me beije

No me abrace

No me maltrate

No me convide

No me acalme

No me inale

No me atrase

No. Mil vezes no?

No!

No. Mil vezes no?

No!

26. Vale-vida

Sob o cu, um vadio

Desnudo, em couro

Um coturno rasgado

Sem honras ou medalhas

Na estrada faz um ninho em cada calada

E um filho em cada amante

Desenhada e conquistada

Para ser soprada no mar do prazer

Como um barco que corre sem vela

Rumo ao horizonte infinito do delrio

Sob o cu, um aprendiz

Sem sorte ou azar, amigo do que vier

Irmo do acaso e filho do vcuo

Carrega no peito uma garrafa

E um corao em cada olho

Um fraterno visitante, um eterno passageiro

Sem pressa, corre com o tempo

E traz na sola da vida uma lmina

Para abrir caminho por baixo

Sem vergonha, sem orgulho

Mantm-se um louco desvairado

Por amor sua prpria existncia

E fala alto e persevera

E vaiado pelo clamor da inveja

Pela ignorncia e pela inpcia

Daqueles que se exilaram da prpria vida

27. Observador

Olhei a flor Mas no a toquei Apenas apreciei a sua beleza

Olhei o beija flor Este tocou a flor Mas no a feriu

Olhei a abelha

Esta penetrou a flor

Tomou-lhe apenas um pouco de mel

Olhei a paisagem

Esta pegou o colorido e o aroma da flor

Precisava completar-se

Olhei o homem Este arrancou a flor E encerrou, ao seu gosto, o ciclo da vida

28. O veneno da saudade

Perdoei a ti sem que me pedisses

Porque no consigo guard-la como um espinho em meu bolso

E se digo que suporto a dor que me causaste

porque de ti, apenas a presena bastaria

Sento e rememoro os encontros s escondidas

Das manhs s tardes, e, das noites s madrugadas

Como ramos imaturamente descuidados e felizes

No entanto, jamais fomos pegos em flagrante

Eis a invejvel sorte dos ardorosos amantes

Minhas mos sutilmente vacilantes em seu corpo

Suas pernas a cambalear a cada toque

Minha voz a embargar aps atender aos seus pedidos mais carnais

ramos um espasmo lunar

O que seria de mim sem aqueles saudosos dias

Em que o fulgor do amor, ainda jovial, falava mais alto?

O que seria do vento no fossem seus cabelos para bagunar

E o seu perfume a espalhar e distribuir graa ao mundo?

Portanto digo, com carinho: perdo-te sem que me peas

Porque de ti, quero apenas guardar a ternura e a beleza

Dos momentos brevemente eternos que dividimos um dia

29. Deuses e demnios

A mentira faz dos homens homo sapiensOs demnios so todos assim

Tenho conversado com dezenas deles

Porm, os deuses aspiram a perfeio

Ambos falham e mentem em formas

E em conjecturas arrogantemente expostas

Mas subdividem-se em bem e mal

Sois o que podeis captar da natureza

Exrcitos so formados em nome do dio

Mas no amor de um Cristo qualquer, velho e ultrapassado

Encontram a sua justificativa para matar e oprimir

So todos servos de uma estupidez esqulida

De um sinal que no deveria ser dado

E de divindades mortas, mas logo ressuscitadas

Nos tmulos do fanatismo catrtico das religies

30. Desapego real

Vejo do alto do sublime castelo do perdo

Rainhas e reis deitados com a face virada para o cho

Admitem e arrependem-se dos seus erros

E pedem que suas cabeas sejam cortadas com rapidez e zelo

Mas no precisa desta atitude radical

Chega de sangue derramado em nossos quintais

As sobrancelhas franzem-se todos os dias

Porque entre homens violentos e selvagens

Faz-se presente diariamente a covardia

Apenas levem em seus coraes a lio

Larguem todo o ouro e a prata no cho

As vestes e os reinos, coletivize-os agora

E liberte-se da praga miservel do apego

31. Molho requentado

Um brinde morte

Esta idnea rapariga

Que de to especial que

Restringe-se a aparecer

Uma nica vez em cada e toda vida

32. Mutao

Passei tantos anos sob o olhar infecundo da luz

Que comecei a acreditar no haver forma, distino e equilbrio na escurido

Porm, em poucos e insensatos minutos, as aparncias fceis se transformam

Em delineamentos perfeitamente disformes, depurados e apurados

mostra est unicamente a mscara da perfeio

Estpida, monstruosa, egocntrica e ilusoriamente independente

No consegue sequer transpor a barreira das aparncias

E desenvolver uma percepo transmutada, aguada e expandida

Focalizo o espao em que me encontro, extrado de mim mesmo

Cem vezes mais vasto, absurdamente amplo e copioso

Redimensiono as minhas perspectivas para chegar perto daquilo que busco

E ganho nova alma para compreender o que est sempre alm

Inusitadamente a obviedade torna-se um insulto insuportvel

Fugindo das similitudes, no sinto-me atrado por qualquer oposto

Agora nada pode guiar-me seno a voz da intuio

Desvendado pela lupa do auto-conhecimento, tornei-me eu mesmo

Indefinvel, inimitvel, irreproduzvel, insondvel e ambguo

Um vulto cintilante na claridade sombria

33. Institucionalizado

Vitimado, constrangido, monitorado

Humilhado, oprimido, controlado

Vigiado, atacado, manipulado

Seduzido, induzido, conduzido

Enganado, trado, castrado

Encarcerado, silenciado, evitado

Doente, rejeitado, humilhado

Discriminado, violentado, trapaceado

Abocanhado, acorrentado, apanhado

Sufocado, apaziguado, maltratado

Rotulado, legislado, cadastrado

Corrodo, descaracterizado, padronizado

Registrado, aprisionado, formulado

Inanimado, abatido, indolente

Indiferente, esquecido, carente

Aptico, acomodado, conformado, inconsciente

34. Crime e castigo

Viver no ter medo de estar vivo

Para alguns homens

A morte a mais alta condenao

O mais temvel dos castigos

No entanto, para outros,

A mais poderosa e dolorosa reprimenda

a prpria vida

35. Encontro surpresa

Fingiste que no me vias

Nem longe estavas do meu corpo

Sempre desejoso e incansvel, em alerta freqente

Por que cobres-te tanto de panos?

Esquece-os! Lana-os longe de ti, aonde no ser possvel alcan-los

Nem com mos, nem com olhos, nem com arrependimentos

E estes ps que avanam e retraem

Preconizando o que h por vir...

Querem matar-me em premonies viosas e lbricas

No derrubem sequer uma rvore deste planeta

Para que possamos construir um ninho em qualquer lugar

E que apenas o amor seja digno de habitar e procriar desejos

Mas o teu olhar teimoso, embora queime

E finges mais uma vez que no me conheces...

Vais deixar o desejo passar como os segundos que no voltam?

No sou to constante ou disponvel como presumes

Pegarei a tua mo agora, estou decidido

E, em um nico movimento, silenciarei todo o universo

Barulhento dois, nunca um calvrio

Ainda que ermo, jamais solitrio

36. Desnutrio

Ao chupar o seio da sociedade

Como um bezerro faminto que suga as tetas da progenitora

Engasgo-me sempre, no por ir com demasiada sede ao pote

Mas pela nusea e nsia de vmito que me d

Ao provar do alimento que ela me oferece

37. Chamas

Fui eu quem desceu o rio da vergonha pela primeira vez

Despido de qualquer idia do rebanho

Atarantado e suavizado pela validade da ao

Aos gados, a terra; aos peixes, o mar; aos homens, a liberdade

Estava escrito no peito do lcido e misterioso ancio

Eu mesmo li sem precisar de lentes especiais

Pulsava firme a idia tal qual nos primeiros anos

E revelava alm do que a boca permitia expressar

Enxuguei-me e voltei a pensar nas tardes sombrias

Em um ms pesaroso e cruel

Lembrei-me das obrigaes insensatas e inteis

Agora to distantes e ainda mais absurdas

Aonde estou, no vejo tantas leis a cumprimentar-me

Capazes de enfastiar at o gado mais estpido - no fosse a hipnose

Abandonei o chocalho pregado em meu pescoo desde o nascimento

No quero ser encontrado, localizado, rastreado

Do meu passado, apenas o casco das minhas unhas

Porque a realidade que vivo a aventura mais humana

Sem posses e sem concesses, sem medo e sem violncia

Desperto e renovado, fortalecido e revitalizado

Em chamas para iluminar a conscincia que reside em mim

38. O segundo toque

Os dentes da moa ansiosamente rangiam

Como as desarrumadas camas que abrigam lbricos amantes

E acobertam as paixes recnditas dos indecisos furaces

Que sussurram em tons pastis e revelam sem reverncias

A fora que no tm diante do amanhecer e da esperana perdida

Mas os mesmos que antes traziam sossegos, promessas e flores

Enfurecidamente jogam agora jarros uns contra os outros

E o descuido das janelas abertas me deixa participar

Do espetculo que, ao trmino, no aplaudirei

E as pernas que abriam caminho para que o desejo

Pudesse soletrar livremente o amor a plenos pulmes

Agora chutam as portas da desistncia e da solido

Sem deixar espao para um carto de reconciliao

39. Profecia

A partir dos teus lbios

Tive a permisso para adentrar

Os mais perversos versos

De amor e dio

De gozo e desprezo

Mas, como no pensara nisto antes?

As escrituras sagradas e diablicas

Convivem juntas no mesmo altar

E a hstia, por vezes to hostil,

A misturar-se ao sangue do Homem

Consagra os desejos de outros homens

Libertando-os do tdio mais frontal, franco e fatal

40. Lana fortuita

A vida acontece sem que tenhamos tempo para decidir

Sobre o que parece, o que e o que perece

Apenas vislumbramos um foco de exatido

Um calafrio pela no vivncia, pela incerteza

Devemos fazer dos prximos segundos

O desafio sagrado de nossas existncias

A vontade no-linear do risco inevitavelmente estabelecido

O compromisso assumido, a verdade renegada

A gerao do modelo reprovado, a superao do possivelmente aceito

O estalo canhoto da fortuita inteno imprevisvel

A espera que nunca alcana, a vela que jamais apaga

Como o espetculo que nunca se finda ou o barco que jamais naufraga

41. Clandestino (viajante)

Sou o p da raiz triturada pela sede,

Saturada pelo sol e nutrida pelo esterco

Falo grave neste cho rido e severo

Ao qual lano o meu olhar

Descansado sob o mel que derrama

Sobre as cercas de calor desumano

To irnico, lacnico e desgastado

Quanto as fardas de uma tortura condecorada

Guardo ento as medalhas que recebi da Terra e do mrito

Fruto cadente da rvore do orgulho alheio

E sinto o caule do sucesso, sempre ascendente

Encontrar o recesso no topo carente da alma do lutador

Escondido na transitoriedade da sensibilidade de um trovador

Que se aventura na estrada das emoes

Plantando saudade no seio da colheita repartida

Enjaulada na seleo inusitada do cantil da liberdade

42. Desapario

Estes lbios que so temporariamente meus

Capazes de secar o mais largo e comprido dos rios

Poderiam ser teus tambm, minha amada!

Mas preferistes beber na borda de outro clice

Afastada pelo medo de ser possuda e tragada

Sugada, incorporada e consumida

Sumindo atravs da sede exttica dos lbios meus

43. Cela de ouvido

O tempo gasto, velho, intrpido e ultrapassado

De sinfonia estridente e mordaz

Cala perante as splicas dos amores sagrados

Faz-se estanque em meio ao movimento eterno das coisas

E se distingue de tudo o que no manejvel, controlvel

O tempo dos amantes coexiste com a ausncia dele

Como um sinal de respeito pelo deserto que se levanta

Em meio ao excesso de rostos e mos e pernas e sexos

Mas, o que diriam os sedutores assexuados pela vaidade?

Talvez reclamem do tempo mais tarde

Quando os apelos corpreos bruscamente os abandonarem

Fazendo instalar em si mais lembranas que vivncias

44. Castelo abandonado

As visitas que fazes a este corao

So como elixires poderosos

Que acalmam e equilibram este peito sempre faminto

Desejoso, inquieto, incansvel e insacivel

E nem por isso precisas despir-te diante de mim

Criando e mantendo uma das faces que mais adoro e venero

Independente dos mistrios que ainda calam na minha presena

E fazem desfalecer esperanas tardias, impossveis...

Mas o que digo diante de ti demarca territrios

Os quais jamais ousaria invadir ou depredar

Inconsolado, carregado e desesperado

Implorando por mais uma apario sua

Convena-me de que a sua deciso representa o melhor

Embora no queira acreditar nem aceitar

Faa-me deitar tranqilo outra vez para entender a vida

Como uma fonte inesgotvel de novas possibilidades

E j no acredito que haja salvao para as afeies

Cultivadas na sua ausncia to inesperada

Representada por um sorriso em degelo, em recuperao

Verdadeiramente feliz, porm, afastado de mim

E bateu e perfurou e doeu. Mas sarou!

Contenes? Apenas entenda este convite

Como uma derradeira expresso da parte mais exaltada do meu ser

E no faa do prazer uma manivela confusa e desamparada

Cheirando a uma saudade mofada e bolorenta

45. Amor Lumire (Plus belle)

Alguns filmes de amor

Podem causar-nos mais espanto

Do que qualquer filme de terror

Pois revelam em ns sentimentos

Dos quais nem sabamos ser possveis

E podem fazer emergir em nossas vidas

A estranha, macabra e horripilante sensao

De que, talvez, nunca passaremos

Por nada daquilo que encenado

E que possivelmente morreremos frustrados

Por nunca termos cinematograficamente amado

46. Rompante canibal

E se sobre o cho que cobre o corpo deste desesperado mundo

Pudesse caminhar algum tipo de honestidade

Talvez conseguisse enxergar em mim

Uma aparncia menos inquieta e revolvida

Maior do que a desregrada sensao que me traga e me expulsa

Mas no falarei de boca aberta quando o meu corao est apertado

Vejo que no existem as liberdades as quais busquei

Mataram-nas ao perceberem que o limite

uma imposio que nunca lhes cai bem

E derruba, e sangra, e degrada a integrao de foras antagnicas

Veste de uma realidade opressora - cadver de todas as molstias

Uma fotografia visionria em que serpentes digladiam-se

Em busca de dentes humanos caricaturados

Jamais poderei esquecer-me da sua malcia

E da msica que toca e aglutina violncia

D-me um novo motivo para arriscar novas palavras

Pois este abrigo imenso no mais pode colidir com o habitat dos vermes

Que repugnantemente apropriam-se da carne

E dos sonhos dos mais fracos, do ventre morte

47. Isca da jovialidade

Este apenas mais um daqueles fins de noite

Em que sinto-me perdido e abandonado

Fincado contra gosto em um mundo to vasto

Para um solitrio convicto, temperamental

Dispersivo, despretensioso, evasivo e catastrfico

Um claro que se doa escurido alheia

E escreve calado enquanto apanha dos sinos

Mudos e contemplativos da obscuridade protetora da noite

Mantendo um ritmo s para passos e versos, evitando rimas

E disseram ainda que precisava de um ofcio urgentemente

Pois a frmula da auto-realizao, do sucesso e da felicidade

Seria ter ambies flutuantes, metas slidas, especializaes abundantes

E diplomas para irrigar a plantao de inutilidades que se tornou a vida do homem

Sorte a minha no ter precisado jogar cinqenta preciosos anos aos ares

Como a poeira deixada por um corpo cremado pelas mos restantes

Para descobrir que tentavam ludibriar-me atravs de variados meios

Visto que a nica lurea da vida consiste em viv-la plenamente

48. Amigos do entorno

Alguns dos meus amigos venderam

Palmas ao diabo, e tocavam-lhe a face

Alternando carinho e desprezo

Vertendo lgrimas de cor anil

O sangue, invariavelmente seco

Uma vez ao ano, no inverno

Poder-se-ia purificar de novo

No entanto, o agouro frouxo

Do martrio das almas penadas e penosas

Destoava aos borbotes do plano turvo dos crentes

Carentes de ateno e vitrias - entregavam-se

E o que fazer com todo o mal...

Aqui o vemos em abundncia

E no o podemos tocar?

Digam-me com toda a franqueza

Ao descruzar as pernas e retirar o dedo dos cus

Ainda possvel distinguir certo e errado?

Talvez ir-se-o em anos, quem sabe em segundos

E os meus amigos, to franzinos na infncia

Acendem fogo do cho para mais baixo

Em reverncia aos deuses de uma f inversa e clandestina

49. Duplo

Escuto um soluo insistente vindo da sala

Talvez seja a Lua aflita pelos troves

Que cercam-na em forma de pensamentos

E h tambm uma estrela que chora em meu quarto

Deita sobre a minha cama pontualmente s dez

E deixa brotar a crise de todos os amantes abandonados e trados

O meu quintal um cemitrio de carros roubados

No qual abundam esqueletos metlicos

Que ordinariamente reluzem formando um bizarro carrossel

De seres com cabea de animal e corpo de homem

Conduzidos invariavelmente pelos dedos da vergonha, da decepo e do arrependimento

Brado ento, em desesperado clamor, pelo Sol

Que sempre ascende quando apago

Mas ele parece no me atender

O pedido que fao est fora do seu imutvel turno

E, enquanto espero, tento expurgar a minha dor

Para consolar a Lua e enxugar a lgrima da estrela depressiva que me guia

50. Permuta

Troquei o amor pelo jogo de amar

Traidor e infiel. , sentimento!

Sorridente e sedutor, imprudente

Nesta noite selei o meu destino

Farto de dores e amores volteis

Enterro em cada esquina um pedao de mim

Antecipando o meu funeral emocional

Por que diferenciar o amor errante

Do amor em linha reta, por vezes, insosso?

Ambos tm incio e trmino

Por que diferenciar o amor de final de semana

Do amor dos dias teis?

Ambos podem exalar o perfume da vida

Por que diferenciar o amor completo

Do amor cocho, incompleto?

Ambos fazem chover em dias de sol

Por que diferenciar o amor incondicional

Do amor condicional?

Ambos trazem uma felicidade com data de validade

Por que ser um ou ser outro?

Na escolha, perdemos a ambivalncia

Inerente ao universo do amor

51. Mesa farta

mesa, refeies e olhares

Cada um com o seu

E cada seu com o meu

No havia privacidade

Estalavam garfos e facas

Permutavam sensaes e agonias

Um deles engasgou com um pedao de verdade

Contra a sua vontade, desceu

Estava s na simulao

Outro, pediu desculpas

Algum levantou sem se fartar

Quem estava cabeceira fez o mesmo

Aos poucos, a mesa estava vazia

Apenas eu e o banquete

As sobras como prmio

Por ter resistido at o fim

52. Conforto passageiro

Vi o que olhos humanos no deveriam atestar

Agora, dissemino o que presenciei

Vejo a cara dos fantasmas na noite escura

Sem glria, sem nomes conhecidos

As celebridades esto mortas, todas!

No penetram o paraso do meu mundo

E no podem fugir do esquecimento

Por mais que torturem o incrvel anonimato

Ao qual sero acometidos, cedo ou tarde

Em chuva, o tempo passa e pesa

O corpo apodrece, a pele enruga

E a beleza que antes confortava

Agora, doce princesa, tortura... tortura...

53. Mltipla (transcendental)

Ascende em mim o incontrolvel desejo

De profanar a tua inclume beleza

E apresentar-te as taras que me convm

Apedrejando os censores da tua libido

Busco em ti a fora que divide cus, mares e terra

Que resplandece diante da avidez da carne

Sem a clausura to comum dos coraes castos

Miserveis na vida e na morte, na abundncia e na escassez

Molha, como uma cascata, aquilo que pulsa dentro de ti

E fecha os olhos, sem dormir, de todos os pudores

Faz brotar em ti uma nova alma que recolhe tristezas

E as lana fora, para longe, sem emitir rudos de saudade

Esquea o mundo incolor e inspido em que vivias

Posto que dorme enterrado no solo mido do prazer

Enxugando as lgrimas que inocentemente derramavas

Por desconhecer a magia energicamente reparadora de um orgasmo

54. Oito

Os limites que conheo

Encontram-se todos acima do cu

L onde Deus se esconde

Para no ver o planeta de terra

Que criou durante um porre

E que agora tem de o manter

Mesmo com desgosto

Pagando segundo a segundo

Pelo hobby mais caro

De toda a sua existncia eterna

55. Enganados

Um espelho quebrado a mtrica negativa da saudade

a lacuna deixada pela indeciso da brevidade

Em detrimento da longevidade, do percurso prolongado

a sade como recurso de profuso e xtase da matria

Atravs da permanncia inerte e casual

Da avareza e dos conflitos entre o ponteiro e a imagem refletida

Surge ento a destreza insincera e desonesta

Que preconiza um falso ideal de bem

Destituindo a vida do valor dos momentos mais intensos

Adiando-os como fosse uma realidade para todos

At que uns poucos caem, alguns esmaecem e outros desistem na metade

E, raivosos, antes da derrocada percebem que foram enganados

Que abriram mo do mais importante, vvido presente, ganho e admissvel

Por uma promessa tola, incoerente, imprecisa, imprudente e irresponsvel

Mas, afinal, quem mandou no pensar por si mesmo?

56. Debate

Sinto-me tragado, possudo e consumido

Por uma imagem retumbante que se levanta

No antagonismo da perfeio

Soberana, comove at os mais incrdulos

Mil cores para expressar uma abstrao

Beleza indistinta, incompreensvel ainda

Mas no posso ignor-la, nem toc-la

Quando nada, um olhar e uma reflexo a respeito

Aos poucos, forma-se em mim um debate de sculos

Como no render-se a tal concepo

Esteticamente inovadora e extravagante?

Em que apenas a presena permanente

Fala mais alto do que centenas de gritos

E atrai mais olhares que mil holofotes juntos

57. Cacos espremidos

Em breve, o barco seguir

Sem rumo, sem turno, sem passageiros

E no deixar rastro no oceano

Em sua infinidade cmplice de um fugitivo descrente

Dos bens e dos males do corao

Entre a ltima e a prxima paixo, situado

E, das tormentas mais enrgicas, serei companheiro fiel

Um corte profundo costurado com fios de aventuras insanas

Desenvolvidas por uma fbrica de riscos adrenalticos intensos

Em constante mutao - remdio contra o marasmo

Vivendo dos cacos deixados - alternativa de um ser magoado

58. Clich

As palavras adestram o que sentimos

Servindo as regras em pratos frios e condescendentes

Sem qualquer esperteza ou dvida, aceitando o que consentvel

Raramente duvidamos da falsa verdade que nos favorece

Os parmetros continuam a conduzir-nos aos mesmos enganos

Sempre estalando seus dedos finos e firmes em nossas faces

Mas o que fazer com aqueles que realmente amam?

Usar das mesmas palavras para expressar o que se difere em intensidade...

No h conselho mais escasso e remoto

Quanto aquele que guia as estradas

Flgidas e malfazejas palavras,

Que indicam pontos despreocupados de inconstncias relativas

Mas, falo de amantes que se recompem

Em gozos infindos de cumplicidade

Sem que possam reconhecer-se,

Nem antes nem depois da mgica que os acolheu

E as palavras continuam l, proporcionando a unio

De pessoas desconhecidas, desabituadas e deslocadas

Mantendo um amor base de aparncias ridculas e idnticas

Perfazendo o contexto de uma iluso retratada pela cpia mentirosa

De que quem diz amo-te para tentar igualar-se a todos que repetem esta chacota

59. Cartas annimas

A posse a triste e aterradora ferramenta

Que usas com maestria para machucar-me

Com controles sufocantes e ataques histricos

Um cime que no justificado pelas minhas aes

Mantenho-me como se estivesse sempre partindo

O medo dos teus rompantes cruis acompanha-meAo passo que esmagam sublimes sentimentos

E os transformam em lgrimas salgadas, como as que choram as nuvens

Vem mim sem desconfianas e torpedos

Sabes bem que desnecessrio tais torpezas

Porm o teu descontrole se repete sem compreender

Que a maneira em que tentas guardar-me a que mais me afastaNo percebes o quanto intil e inconveniente

Os teus estratagemas e as tuas artimanhas degeneradas?

Uma extravagncia desnecessria e incompleta

Que me tolera e rejeita em movimentos simultneos

De conquista e abandono, domnio e entrega

60. Au revoir!

A saudade soletra o seu nome em meu ouvido

Lembrando-me de palavras que preferiria ter esquecido

Mas sou exageradamente atrevido, fraco, louco e franco para suportar a sua falta

E renuncio vontade no intento de prender ao meu corpo

Um pedao do seu vale, repleto de minrios incandescentes e preciosos

Excerto supremo de experincias carnalmente desejveis e possveis

Talvez essas doces palavras no passem de um jogo

Tempo perdido, luz apagada, olho mudo ou vida em coma

Uma mentira que seduz e engana pela ltima vez

Traduzindo este estrangeiro idioma para a lngua do meu desespero

Sem reduzi-lo s vises lingsticas das olheiras e lgrimas

Que enfeitam rostos perfeitos e borram tintas de rosto, mscaras perfdias

Transformando tudo em uma mistura lamacenta de rosas negras

Como um manto que aquece e entristece os sorrisos mais esperanosos

No! Esquea-me na mesma proporo em que me destruo

Porque apesar de saber que o amanh um olhar perdido

Vejo seu nome riscado em minha pele com tinta e desgosto

Fazendo sangrar o desgaste, o distrbio, a derrota e a decepo

Sem render-me, contemplo o amargo do seu amor

E inicio a minha despedida repentina

Sinalizada com uma breve e ansiosa contagem regressiva EMBED CorelDRAW.Graphic.11

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