CRIMINOLOGIA & DESCONSTRUÇÃO – moyses

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  • 7/24/2019 CRIMINOLOGIA & DESCONSTRUO moyses

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS CRIMINAIS

    MESTRADO EM CINCIAS CRIMINAIS

    MOYSS DA FONTOURA PINTO NETO

    O ROSTO DO INIMIGO:UMA DESCONSTRUO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO COMO

    RACIONALIDADE BIOPOLTICA

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza

    Porto Alegre2007

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    MOYSS DA FONTOURA PINTO NETO

    O ROSTO DO INIMIGO:UMA DESCONSTRUO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO COMO

    RACIONALIDADE BIOPOLTICA

    Dissertao apresentada como requisito paraobteno do ttulo de Mestre pelo Programa dePs-Graduao em Cincias Criminais daFaculdade de Direito da Pontifcia UniversidadeCatlica do Rio Grande do Sul.rea de concentrao: Sistema Penal eViolncia.Linha de pesquisa: Criminologia e ControleSocial.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza

    Porto Alegre2007

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    P659r Pinto Neto, Moyss da FontouraO rosto do inimigo: uma desconstruo do Direito

    Penal do inimigo como racionalidade biopoltica / Moyssda Fontoura Pinto Neto. Porto Alegre, 2007.

    211 f.

    Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Cincias Criminais, PUCRS, 2008.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza.

    1. Direito. 2. Inimigo - Exceo. 3. Racionalidade.4.Funcionalismo. 5. tica. 6. Alte ridade. I. Souza,Ricardo Timm. II. Ttulo.

    CDD 341.5

    Bibliotecria ResponsvelIsabel Merlo Crespo

    CRB 10/1201

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    MOYSS DA FONTOURA PINTO NETO

    O ROSTO DO INIMIGO:UMA DESCONSTRUO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO COMO

    RACIONALIDADE BIOPOLTICA

    Dissertao apresentada como requisito paraobteno do grau de Mestre, pelo Programa dePs-Graduao em Cincias Criminais daFaculdade de Direito da Pontifcia UniversidadeCatlica do Rio Grande do Sul.

    Aprovada em 04 de dezembro de 2007.

    BANCA EXAMINADORA:

    _____________________________________Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    _____________________________________Prof. Dr. Salo de Carvalho

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    ____________________________________Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    Universidade Federal do Paran

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    AGRADECIMENTOS

    O mundo do cuidado precede o mundo intelectual. Sem cuidado, no h pensamento.Por isso, meu primeiro agradecimento para minha famlia, que me cuidouat o momento derealizao dessa Dissertao: aos meus pais, Moyss e Ftima, minha irm, Andra, minhaav, Francisca, dindos e tios.

    minha namorada e amor, Maria Julia Ledur Alles, que me deu equilbrio e paz emmomentos turbulentos e agentou as minhas reflexes sobre os temas aqui trabalhados, apesarde ser de rea distante.

    Esta Dissertao no teria sido possvel se no existisse o Mestrado em Cincias

    Criminais da PUCRS. A oportunidade de pesquisa transdisciplinar, to rara nos meiosjurdicos, foi nica e o aprendizado permanente. Se no existisse a liberdade acadmica comque me movimentei ao longo de toda pesquisa, o trabalho no teria o desenvolvimento queteve.

    Ao Professor Ricardo Timm de Souza, presena intensa e permanente ao longo dotrabalho, por ter me revelado um referencial terico no qual finalmente me encontrei, e peloconvvio pessoal e exemplo de vida.

    Aos Professores Ruth Maria Chitt Gauer, com quem aprendi a olhar a diferenacultural de outra forma, a partir das suas lies de antropologia; Salo de Carvalho, que abriuas portas para pensarmos um horizonte criminolgico ps-crtico no qual a filosofia bem-vinda; e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, pelas anlises preciosas da contemporaneidade a

    partir do vis sociolgico e vislumbre de alternativas polticas viveis para rompermos com ocrculo vicioso do fenmeno criminal.

    Aos meus amigos Gabriel Antinolfi Divan, companheiro de dia-a-dia no duro primeiroano de Mestrado, e Otvio Binato Jnior, pelas inmeras discusses e trocas de idias acercado nosso tema em comum. Mas, acima de tudo, pela amizade inestimvel de ambos.

    Aos meus amigos-irmos Daniel, gor, Maldonado, Mariano, Ulisses, Daniel Irum,Daniel Negro, Filipe, Moiss, Carlos e todos que esto no dia-a-dia da nossa Fraternidade.Vocs tambm foram fundamentais!

    Aos amigos do !TEC (Jr.), que represento nas pessoas de Alexandre Pandolfo, GregoriLaitano, Marcelo Luchese e Marcelo Mayora, com quem aprendi muito no nosso grupo de

    estudos sobre Emmanuel Levinas.

    Aos colegas e amigos Bizzoto, Andra, Eliane, Dinia, Inezil, Gustavo, Marisa, Camile,Marcos, Tovo, Elisa, Maura, Roberta, Vincius e todos os demais: obrigado por agentarminha malice!

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    RESUMO

    A presente dissertao, desenvolvida na linha de pesquisa Criminologia e Controle

    Social, articula-se como uma reflexo crtica sobre a tese do jurista alemo Gnther Jakobs

    acerca do Direito Penal do Inimigo. O ponto de partida de que o Direito Penal do Inimigo

    deve ser compreendido enquanto espcie de estado de exceo, no qual se suspende a

    vigncia das normas jurdicas sem revog-las, formando um vazio que complementado pelas

    figuras do homo sacer, enquanto indivduo submetido ao Poder Soberano, e do campo,

    enquanto espao biopoltico anmico. A inflexo de Jakobs permite que essa desvinculao

    dos textos constitucionais vigentes se situe na normativizao do conceito de pessoa, peloqual consegue abrir um flanco na ordem jurdica onde se infiltra o estado de exceo. Por

    isso, o cotejo com a Constituio brasileira, por exemplo, mostra-se insuficiente, medida

    que no toca o fundo do problema. Esse fato norteou a pesquisa no sentido de confrontar a

    racionalidade que orienta a construo do Direito Penal do Inimigo, enfrentando-o desde as

    suas bases. Procurou-se descer at a excepcionalidade do concreto, a partir da estratgia da

    desconstruo, buscando atacar a construo de Jakobs a partir da abertura de flancos de

    alteridade. Dessa forma, toda uma lgica que atua de forma biopoltica no sistema penal a

    lgica do Inimigo que combatida. Os conceitos que foram objeto de desconstruo,

    tidos como pedras estruturais do edifcio terico de Jakobs, so os de: 1) ordem, enquanto

    estratgia de construo do Inimigo; 2) representao, enquanto suporte cognitivo que

    tematiza o Inimigo; e 3) persistncia no ser, como a estrutura ltima que cimenta uma ordem

    de imanncia incapaz de abertura para o Outro. Portanto, desde a estratgia da desconstruo,

    foi procurado um constante conflito entre a racionalidade instrumental do funcionalismo e a

    racionalidade tica da alteridade.

    Palavras-chave: Inimigo Exceo Racionalidade Funcionalismo tica

    Alteridade.

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    ABSTRACT

    The present dissertation, developed in the research line Criminology and Social Control,

    is a critical reflection about the German jurist Gnther Jakobs' thesis Penal Law of the Enemy.

    The starting point is that the Penal Law of the Enemy must be read as a kind of state of

    exception, in what the juridical norms are suspended without losing their validity, forming an

    emptiness complemented by the figures of homo sacer, as an individual submitted to the

    Sovereign Power, and the camp, as a biopolitical anomic space. The Jakobs' inflection is able

    to disconnect itself from the constitutional texts based on a normative concept of person,

    creating a gap where is possible to infiltrate the state of exception. This argument turns theconfrontation with the Brazilian Constitution, for example, insufficient, because it does not

    get the main point. This fact conducted the research to confront the Penal Law of Enemy's

    foundation rationality, discussing it in its basis. Trying to go under the concrete's

    exceptionality, based on the desconstruction's strategy, the research looked for attack the

    Jakobs theory opening alterity gaps. By this way, all the biopolitical logic of the penal

    system the Enemy's logic is attacked. The concepts elected as the main structural stones of

    the Jakobs' theoretical building are: 1) order, as a strategy of Enemy's construction; 2)

    representation, as the cognitive support that thematizes the Enemy; and 3) persistence on

    being, as the last structure that fixes an immanence order unable to open itself to the Other.

    Therefore, by the desconstruction's strategy, a constant conflict between the instrumental

    rationality of functionalism and the ethical rationality of alterity was aimed.

    Key words: Enemy Exception Rationality Funcionalism Ethics Alterity.

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    SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................. 10

    CAPTULO I - DIREITO PENAL DO INIMIGO, ESTADO DE

    EXCEO E DESCONSTRUO ....................................................... 14

    Seo I O Direito Penal do Inimigo e o Estado de Exceo ............................ 14

    1. O Direito Penal do Inimigo: Noes ............................................................... 14

    1.1. Pressupostos Tericos ................................................................................ 141.2. Delimitao e Objeto do Direito Penal do Inimigo .................................... 17

    2. Estado de Exceo ............................................................................................ 20

    2.1. A Emergncia inscrita no Corao da Normalidade .................................. 20

    2.1.1. Estado de Exceo e Fora de Lei ........................................................ 20

    2.1.2. O Direito Penal do Inimigo como Exceo Permanente ...................... 25

    2.2. OHomo Sacer ............................................................................................ 28

    2.2.1.Homo Sacer Vida Nua na Biopoltica................................................ 28

    2.2.2. O Inimigo comoHomo Sacer ............................................................... 31

    2.3. Um campo sem limites? ......................................................................... 33

    2.3.1. Campo como Nmos da Biopoltica .................................................... 33

    2.3.2. O Campo do Inimigo ........................................................................... 37

    2.4. Uma proposta de enfrentamento ................................................................ 38

    Seo II A Desconstruo como Forma de Racionalidade ............................ 41

    1. Forma de Racionalidade .................................................................................. 41

    2. A Desconstruo como hiperconceitualizao ................................................ 45

    3. A Desconstruo como justia ......................................................................... 48

    4. Desconstruindo o Direito Penal do Inimigo .................................................... 56

    CAPTULO II INIMIGO E ORDEM ............................................................... 59

    Seo I - O Inimigo enquanto Perigo: Pureza e Impureza na Ordem Social .... 59

    1. O Inimigo o inimigo da ordem......................................................................... 59

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    2. Pureza, Perigo e Ordem ..................................................................................... 61

    2.1. O Pensamento das Relaes de Lvi-Strauss .............................................. 61

    2.2. Pureza ordem, impureza perigo.............................................................. 64

    3. O Projeto de Engenharia Social Moderno ......................................................... 66

    3.1. O Jardim sem Ervas-Daninhas ..................................................................... 66

    3.2. Exacerbaes ou produtos legtimos da Modernidade? ............................... 69

    3.3. Cumprindo ordens... ................................................................................ 71

    4. O Contexto Social Contemporneo ................................................................... 72

    4.1. O Neoconservadorismo e a Exploso do Medo ........................................... 72

    4.2. A complexa situao brasileira .................................................................... 78

    5. O Direito Penal do Inimigo enquanto Utopia da Pureza .................................... 81

    Seo 2 Indagando as razes da ordem e do medo ............................................. 861. A Ordem convertida em Totalidade ................................................................... 86

    2. A Razo como instrumento da Totalidade ......................................................... 92

    3. O Direito Penal do Inimigo enquanto Projeto Totalitrio .................................. 97

    CAPTULO III INIMIGO E REPRESENTAO .......................................... 99

    Seo I O Inimigo enquanto Projeo Representacional ................................. 99

    1. Runa da Representao .................................................................................... 99

    2. Estigma ............................................................................................................. 104

    2.1. O que estigma? ......................................................................................... 104

    2.2. Estigmas no contexto social contemporneo .............................................. 107

    3. Poder Punitivo e Vulnerabilidade ..................................................................... 115

    3.1. Seletividade e Vulnerabilidade ................................................................... 115

    3.2. A experincia punitiva na Tolerncia Zero e no Brasil ........................... 119

    4. Quem o Inimigo? ............................................................................................ 122

    Seo II O Outro no-ontolgico ........................................................................ 125

    1. A tica como Fundamento Crtico .................................................................... 1252. A Crtica de Levinas a Martin Heidegger o Outro no-ontolgico ................ 126

    3. O Assassinato do Outro ..................................................................................... 132

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    CAPTULO IV PERSISTNCIA NO SER, TRANSCENDNCIA E

    HOSPITALIDADE ............................................................................. 139

    Seo I Persistncia no Ser e Individualismo ................................................... 139

    1. Inimigo e a Ordem da Imanncia ..................................................................... 139

    2. A Ordem da Imanncia .................................................................................... 141

    2.1. O Individualismo ........................................................................................ 141

    2.2. Do atomismo ao narcisismo do indivduo contemporneo ......................... 146

    2.2.1. Mnadas Diferentes: o turista e o vagabundo no espao social ............ 146

    2.2.2. Da Solido ao Narcisismo ..................................................................... 150

    2.3. Neutralizar o Outro. ..................................................................................... 153

    3. O Inimigo no contexto individualista contemporneo ....................................... 157

    Seo II Rumo transcendncia rompendo a imanncia em direo ao

    Outro ..................................................................................... 161

    1. Reconhecendo a Transcendncia: Levinas e a Alteridade ................................. 161

    1.1. Relao Metafsica. tica e Discurso. ........................................................ 161

    1.2. O Atesmo e a Vontade: a interioridade como condio da tica ................ 165

    1.3. Liberdade Questionada a emergncia da justia ....................................... 168

    1.4. O Infinito e a transcendncia como metforas de um vocabulrio tico ...... 173

    2. A Hospitalidade .................................................................................................. 176

    2.1. O Adeus e a Hospitalidade ........................................................................ 176

    2.2. A Hospitalidade: para alm da ordem da crueldade ..................................... 180

    2.3. Uma metfora para um espao poltico de justia ao Outro ......................... 183

    CONCLUSO ......................................................................................................... 186

    BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 191

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    INTRODUO

    Em 1985, naZeitschrift fr die gesamte Strafrechtswissenschaft, fundada por v. Lizst e

    Dochow no sculo XIX, Gnther Jakobs apresenta o trabalho Kriminalisierung im Vorfeld

    einer Rechtsgutverlezung (Criminalizao no estdio prvio leso a bem jurdico), no qual

    enuncia pela primeira vez a idia de Direito Penal do Inimigo, em sentido crtico,

    confrontando-o com o Direito Penal do cidado e buscando fixar limites materiais a essa

    tendncia legislativa. Trata-se de uma crtica da antecipao da punibilidade muita prxima ao

    estado prvio e da quase equivalncia dos apenamentos com hipteses de tentativa de delitosgraves. Sua idia, em sntese, que o Direito Penal pode ver o autor como um cidado,

    otimizando sua esfera de liberdade, ou como um inimigo, vendo-o como fonte de perigo.

    Seria preciso revisar a teoria do bem jurdico, responsvel pela antecipao, a fim de garantir

    a esfera privada do cidado. A repercusso desse artigo foi, via de regra, positiva1.

    No entanto, j em 2000 aparece o primeiro comentrio de Jakobs das Jornadas de

    Berlim, realizadas em 1999 e dedicadas cincia jurdico-penal alem frente mudana de

    milnio, no qual a sua viso comea a ser tratada como descritiva, propugnando o

    reconhecimento do Direito Penal do Inimigo como mal menor. Em 2003, por fim, publica

    trabalho especfico sobre o tema, Direito penal do cidado e Direito penal do inimigo, vindo

    primeira luz em espanhol, traduzido o manuscrito por Cancio Meli, que publica

    conjuntamente resposta ao professor alemo. A partir disso, tem publicado novos artigos

    abordando o tema2.

    1GRECO, Lus. Sobre o chamado direito penal do inimigo.Revista Brasileira de Cincias Criminais, n. 56, So

    Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 83-84 e 88-89; PASTOR, Daniel R. El Derecho penal del enemigo em elespejo del poder punitivo internacional. In: Derecho Penal del Enemigo: el discurso penal de la exclusin. Org.Cancio Meli e Gmes-Jara Dez. Vol. 2. Buenos Aires: Euros Editores, 2006, pp. 475-476 (doravante osvolumes sero abreviados para DPE); POLAINA NAVARRETE, Miguel & POLAINO-ORTIS, Miguel.Derecho penal del enemigo: algunos falsos mitos. In:DPE, v. 2, pp. 591-596.2PASTOR, Daniel R. El Derecho penal del enemigo em el espejo del poder punitivo internacional. In: DPE, v.2, pp. 476-477. Jakobs dedicou pelo menos mais dois artigos ao tema: Terroristen als Personen im recht?(Terroristas como pessoas em Direito?) (2005) e Feindstrafrecht? Eine Untersuchung zu den Bendingungenvon Rechtlichkeit (Direito penal do inimigo? Uma investigao sobre as condies de juridicidade) (2007).POLAINA NAVARRETE, Miguel & POLAINO-ORTIS, Miguel. Derecho penal del enemigo: algunos falsosmitos. In:DPE, v. 2, p. 602.

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    Investigar o Direito Penal do Inimigo percorrer o ponto mais radical da inflexo

    punitivista dos ltimos anos. A tese defendida por Gnther Jakobs de que se deve cindir o

    Direito Penal em duas partes, uma aos cidados e outra aos inimigos constitui uma

    espcie de formulao terica de tendncia a uma poltica de inimizade que vem percorrendo

    os cenrios sociais do mundo ocidental nas ltimas dcadas. Jakobs tem o mrito de no

    utilizar subterfgios retricos: argumenta claramente de acordo com as tendncias mais

    antiliberais, sem fazer qualquer ressalva (sob o libi de ser puramente descritivo). Busca,

    efetivamente e sem meios termos, o reconhecimento de um Direito Penal de guerra, no qual o

    Estado combate o Inimigo sem quaisquer espcies de restries garantistas, sintetizando

    alguns sculos de atuao do Poder Punitivo em uma formulao ao estilo dogmtico-penal.

    O ponto de partida do trabalho, aps apresentar a teoria de Jakobs, o de que o DireitoPenal do Inimigo uma espcie de estado de exceo, pois busca suspendera ordem jurdica

    sem revogar suas normas. Buscar-se- argumentar, nesse sentido, que, conquanto no se

    esteja de acordo com a constitucionalidade dessa formulao, francamente contraditria com

    os princpios elementares do texto constitucional, insuficiente a discusso no nvel tcnico-

    jurdico, vez que claramente no se est diante de um conflito de normas. O que Jakobs

    prope, ao contrrio, a suspenso do ordenamento jurdico em especial o constitucional

    diante da presena do Inimigo, que no pessoa, circunstncia que, por bvio, motivaria a

    inaplicao dos diversos princpios limitadores do Poder Punitivo. O penalista alemo

    pretende, a partir disso, criar um Direito Penal paralelo ao ordenamento jurdico em geral,

    tornando normas as regras de guerra que dele seriam prprias.

    Isso no significa, no entanto, que estejamos atando nossas mos diante da tese. O que

    se prope, ao contrrio, enfrent-la em um nvel metajurdico, ou seja, a partir dos

    pressupostos filosficos informadores, sua forma de racionalidade. Com isso, no se est

    apenas questionando a possibilidade jurdica de implementao de um Direito Penal do

    Inimigo no Brasil, mas tambm a prpria racionalidade que ampara o pressuposto de fundo

    que subdivide pessoas em cidados e inimigos. a partir da estrutura que forma a idia deDireito Penal do Inimigo que se pretende enfrent-lo. A partir disso, pretende-se elaborar uma

    contraposio no apenas tese de Jakobs, mas ao que chamamos, com base em Giorgio

    Agamben, de biopoltica do inimigo.

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    Aforma de racionalidade eleita para contraposio a desconstruo, estratgia prpria

    do pensamento de Jacques Derrida. A desconstruo pretende ser um mergulho radical no

    texto de Jakobs para, a partir dos seus prprios conceitos, buscar a imploso das suas teses,

    mostrando o fora que omitido no dentro do texto, embora pertena a ele. Esse Outro

    que procuramos abrir no flanco textual tambmum Outro concreto, o indivduo que sofre a

    representao de Inimigo e v-se reduzido, com isso, a um estigma. motivada numa

    exigncia tica dejustia a essa alteridade que a desconstruo se movimenta.

    De forma distinta que Derrida, no entanto, pretende-se elaborar a pesquisa a partir de um

    vis transdisciplinar e no estritamente filosfico buscando trazer aos conceitos puramente

    formais sua contaminao ftica e tica. Com a transdisciplinaridade igualmente busca-se

    contrapor o Direito Penal do Inimigo na excepcionalidade do concreto, ou seja, no local emque efetivamente enquanto estado de exceo atua, no apenas no mundo metafsico do

    conflito de normas jurdicas. Essa camada da desconstruo, como abordaremos adiante,

    tem a dupla finalidade de, a um s golpe, atingir o purismo do positivismo jurdico, que no

    enfrenta os problemas na faticidade dando espao a uma biopoltica que se infiltra entre lei e

    fora de lei e de inserir o Direito Penal do Inimigo nessa faticidade, inflacionando suas

    pedras estruturais at a respectiva imploso.

    Esse movimento de primeira camada, que corresponde s sees 1 dos captulos,

    seguido de uma segunda camada, na qual a desconstruo pretende fazer irromper o Outro

    silenciado, assumindo-se enquanto uma exigncia tica de justia. o momento em que se

    pretende des-neutralizar o discurso de Jakobs, confrontando-o com a alteridade engolida

    pelo seu sistema totalizante, fundamentalmente a partir das teses filosficas de Emmanuel

    Levinas, Jacques Derrida e Ricardo Timm de Souza.

    Os conceitos eleitos enquanto pedras angulares do Direito Penal do Inimigo foram: a) a

    ordem, que o que precisamente define o Inimigo enquanto tal, na medida em que pretende a

    ela se opor; b) a representao, intimamente pressuposta no discurso que sobrepe aoindivduo a imagem mental do Inimigo; e c) apersistncia no ser, que expressa no idia de

    manuteno do prprio corpo, circunstncia que, ao fim e ao cabo, leva Jakobs a defender a

    necessidade de suspenso da ordem jurdico-constitucional e a criao de um novo mbito

    normativo, no destinado a pessoas.

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    A partir da infiltrao de elementos estranhos a essas noes abstratas, busca-se,

    portanto, inflacion-los at mostrar seus limites, situando-os a partir das suas manifestaes

    reais, para, em um segundo momento, confront-los com as exigncias da tica da alteridade.

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    CAPTULO I

    DIREITO PENAL DO INIMIGO, ESTADO DE EXCEO

    E DESCONSTRUO

    SEO I O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O ESTADO DE EXCEO

    1. O Direito Penal do Inimigo: Noes

    1.1. Pressupostos Tericos

    Gnther Jakobs provocou volumosa celeuma do mbito da dogmtica penal pela

    sustentao da necessidade do reconhecimento de um Direito Penal do Inimigo, que

    desvincularia determinados indivduos do conceito de pessoa, admitindo que, diante da

    insuficincia de pacificao interna, seria imprescindvel o reconhecimento dessa esfera

    destinada aos indivduos perigosos. Antes, contudo, de ingressarmos propriamente na sua

    tese, faamos uma breve incurso nos respectivos pressupostos.

    Jakobs se utiliza do modelo luhmanniano de sociedade3, concebendo o Direito Penal

    como um instrumento de garantia da identidade normativa. A sociedade, segundo ele, no

    deve ser entendida a partir da conscincia individual ou do sujeito, mas como processo

    comunicativo. Assim, ela poderia estar configurada de modo diverso, tratando-se, sempre, de

    um estado configurado, e no constitutivo; determinado a partir de normas, e no de estados

    ou bens. Da a importncia do Direito Penal enquanto meio de confirmao dessa identidade

    normativa, em face de modelos divergentes que possam surgir, a fim de que no se tome toda

    divergncia como evoluo4.

    3 LUHMANN, Niklas. O Conceito de Sociedade. In: Niklas Luhmann. A Nova Teoria dos Sistemas. Org.Clarissa Neves e Eva Samios. Trad.: Eva Samios. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997, p. 80.4JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e Pessoa. trad. Marco Antnio R. Lopes. Barueri: Manole, 2003, pp. 10-11. Uma excelente correlao entre Luhmann e Jakobs est em: PIA ROCHEFORT, Juan Ignacio. Laconstruccin del enemigo y la reconfiguracin de la persona. Aspectos del proceso de formacin de unaestructura social. In:DPE, v. 2, pp. 571-581.

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    A teoria dos sistemas trabalha com a idia de complexidade das sociedades modernas,

    onde, para facilitar a orientao do homem no mundo, devem-se criar mecanismos que

    permitam a reduo dessa complexidade, entre os quais figuram os sistemas sociais,

    demarcando o Direito os limites de configurao que d a si mesma a sociedade. A norma

    jurdica gera, por isso, determinada expectativa, que um conceito contingente, pode ocorrer

    ou no. preciso que existam mecanismos nesse sistema capazes de reagir a essas

    defraudaes de expectativas5.

    A pena, por isso, ganha um contorno hegeliano de reafirmao da ordem jurdica,

    justificada a partir de uma perspectiva que tem como base a compreenso comunicativa do

    fato entendido como delito que contradiz as normas que configuram a identidade normativa,sendo a pena a resposta que reafirma a ordem jurdica. Jakobs diz que a sociedade mantm as

    normas e se nega a conceber-se a si mesma de outro modo. A pena no um meio de

    manuteno da ordem social; a prpria manuteno. Podem-se agregar esperanas em

    termos de psicologia social ou individual acerca da aplicao da pena, por exemplo, a

    fidelizao ao direito (preveno geral positiva), mas a pena, por si s, j significa algo

    independente disso: significa uma autocomprovao6.

    Dessa forma, a vigncia da norma o prprio bem jurdico 7. A funo do Direito Penal

    a manuteno da identidade normativa de uma sociedade, ou seja, as expectativas

    fundamentais para sua configurao. A norma um esquema simblico de orientao, de

    forma que o relevante no uma leso externa de uma situao valiosa, mas o significado

    da conduta, ao defraudar o infrator as expectativas sociais em torno da vigncia da norma 8. A

    leso ao bem jurdico, por isso, uma infrao de um papel9.

    Basicamente, duas crticas so feitas ao modelo funcionalista: o desprezo pelo papel do

    sujeito, dando contornos totalitrios teoria (em oposio ao tradicional modelo liberal-

    5 LYNETT, Eduardo Montealegre. Introduo Obra de Gnther Jakobs. In: Direito Penal e Funcionalismo.Org.: Andr Luis Callegari e Nereu Giacomolli. Trad. Andr Callegari et alii. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2005, pp. 13-14.6JAKOBS, Gnther. Sociedade, Pessoa e Norma,p. 04.7JAKOBS, Gnther. O que protege o Direito Penal: os bens jurdicos ou a vigncia da norma? In:Direito Penale Funcionalismo, p. 31ss.8LYNETT, Eduardo Montealegre. Introduo Obra de Gnther Jakobs. In: Direito Penal e Funcionalismo, p.16.9JAKOBS, Gnther. O que protege o Direito Penal: os bens jurdicos ou a vigncia da norma?, p. 36.

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    iluminista), e a possibilidade de legitimao de um Direito Penal do Terror. Jakobs entende

    que equivocado atribuir ao seu modelo funcionalista um contorno totalitrio. Segundo ele,

    tal inferncia possvel, embora isso corresponda a apenas uma hiptese de sociedade, tal

    como a escravagista. O ponto de partida da teoria neutro, dependendo das caractersticas

    individuais de cada sociedade. O Direito Penal funcional, alm disso, no hostil ao sujeito:

    as crticas em torno disso ocultam, fundamentalmente, a realidade do sujeito, que somente se

    forma a partir do meio social, predispondo uma idia abstrata que inexiste no mundo real.

    Isso ocorreria em razo da alegao de fundo totalitrio no modelo funcional, que, como j

    dito, restringe-o de forma equivocada, j que no est atado a qualquer modelo social.

    Segundo Jakobs, a histria demonstra que, ou a sociedade funcional, ou simplesmente

    desaparece10.

    A segunda crtica, que o acusa de possibilitar um Direito Penal do Terror, poderia ser

    contestada pelo fato de que o Direito Penal funcional no descreve um modelo estimado ideal,

    mas simplesmente um Direito Penal gerado por determinada sociedade. As decises sobre a

    criminalizao, assim, no so jurdico-penais, mas puramente polticas, inexistindo modelo

    capaz de resistir s alteraes polticas de valores11.

    A pena, segundo Jakobs, tem sentido simblico: portadora de um significado, de uma

    resposta ao fato. O autor, ao produzir um ato considerado ilcito, obtm a resposta enquanto

    agente racional, ou seja, considerado seriamente como pessoa, sendo por essa razo

    imperativa a resposta penal12. Mas a pena no tem apenas esse sentido. Ela tambm produz

    fisicamente algo. responsvel por um efeito de segurana, no mnimo o de garantir que o

    encarcerado, enquanto esteja na priso, no ir cometer delitos do lado de fora. Sem essa

    eficcia, a pena privativa de liberdade no teria se convertido em reao habitual aos delitos.

    Nessa medida, a coao no quer significar nada, mas apenas ser efetiva, produzir o desejado

    efeito de segurana. Sob esse ngulo, ela no se dirige contra a pessoa, e sim ao indivduo

    perigoso13.

    10JAKOBS, Gnther. Sociedade, Pessoa e Norma,pp. 13-20.11 JAKOBS, Gnther. Sociedade, Pessoa e Norma, pp. 20-24; MELI, Manuel Cancio. O estado atual dapoltica criminal e a cincia do Direito penal. In:Direito Penal e Funcionalismo,p. 113.12 JAKOBS, Gnther. Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo. In: Direito Penal do Inimigo:

    Noes e Crticas. JAKOBS, Gnther & MELI, Manuel Cancio. Traduo: Andr Callegari e NereuGiacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 22.13JAKOBS, Gnther.Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, p. 23.

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    nesse contexto que ele poder introduzir a noo de Direito Penal do Inimigo.

    1.2. Delimitao e Objeto do Direito Penal do Inimigo

    Jakobs proferiu sua primeira interveno sobre o tema em 1985 e o retomou em 199914.

    Se, na primeira manifestao, o termo parecia ter conotao nitidamente negativa, tratando

    das hipteses de criminalizao do estado prvio, a partir de uma crtica que visava a

    resguardar a esfera privada de liberdade15, na segunda, em Congresso realizado em Berlim,

    Gnther Jakobs considera o reconhecimento dessa esfera como inevitvel. O Direito Penal do

    Inimigo seria outro Direito Penal, que no o do cidado, que no teria os mesmos princpiosde funcionamento, dirigido quelas pessoas que se negam terminantemente a seguir a ordem

    jurdica, pondo em risco a integridade do sistema social.

    Jakobs busca a fundamentao jusfilosfica para o seu Direito Penal do Inimigo a

    partir do referencial contratualista16. Inicialmente, menciona Rousseau e Fichte para sinalar

    que, para esses autores, o criminoso seria um violador do contrato social, merecendo ser

    tratado como inimigo, pois deixa de ser membro da sociedade. A separao entre o cidado e

    seu Direito, de um lado, e o injusto do inimigo, por outro, seria demasiado abstrata. Por isso

    Jakobs apia-se em Thomas Hobbes para lembrar que, diante do contrato de submisso ao

    soberano, sobre o qual repousava a igualdade jurdica, o criminoso mantm-se na condio de

    cidado, pois este no pode eliminar, por si mesmo, seu status. No entanto, diante da situao

    de rebelio(ou alta traio), o prprio contrato de submisso que est em jogo, de sorte que

    14CARVALHO, Salo de.A Poltica de Guerra s Drogas na Amrica Latina entre o Direito Penal do Inimigo eo Estado de Exceo Permanente. In:Novos Rumos do Direito Penal Contemporneo. Org: SCHMIDT, AndreiZenkner. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; MELI, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo? In: DireitoPenal do Inimigo: Noes e Crticas. JAKOBS, Gnther e MELI, Manuel Cancio, p. 54, nota 1.15

    APONTE, Alejandro. Derecho Penal de enemigo vs. derecho penal del ciudadano. Gnther Jakobs y losavatares de un derecho penal de la enemistad. Revista Brasileira de Cincias Criminais, v. 51, So Paulo:Revista dos Tribunais, 2004, pp. 12-17.16JAKOBS, Gnther. Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo , p. 25. A maioria dos autores, noentanto, prefere aproximar Jakobs de Carl Schmitt: ABOSO, Gustavo Eduardo. El llamado Derecho Penal delEnemigo y el ocaso de la poltica criminal racional: el caso argentino. In:DPE, pp. 06-12, pp. 57-61; AMBOS,Kai. Derecho Penal del Enemigo. In: DPE, v. 1, p. 146; KALECK, Wolfgang. Sin llegar al fondo: la discusinsobre el derecho penal del enemigo. In: DPE, v. 2, pp. 127-132; PORTILLA CONTRERAS, Guillermo. Lalegitimacin doctrinal de la dicotomia schmittiana em el Derecho penal del enemigo. In:DPE, v. 2, pp. 668-672.Jakobs, no entanto, ir negar posteriormente essa relao: JAKOBS, Gnther. Derecho penal del enemigo? Umestudio acerca de los presupuestos de la juridicidad. In:DPE, v. 2, pp. 108-109.

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    o crime pe em risco uma recada no estado de natureza. Os que cometem esses delitos, por

    conseqncia, so tratados como inimigos, no cidados17.

    Da mesma forma teria se posicionado Immanuel Kant no seu tratado Paz Perptua, ao

    reconhecer que quem no participa da vida de um estado comunitrio-legal deve retirar-se,

    ou ser expelido, de forma que no tratado enquanto pessoa, mas como inimigo, pois priva da

    segurana necessria e lesiona quem est ao seu lado pela ausncia de legalidade no seu

    estado. Kant e Hobbes teriam, por isso, conhecido a diferena entre um Direito Penal do

    cidado contra pessoas que no delinqem de modo persistente por princpio e um Direito

    Penal do Inimigo, contra quem se desvia por princpio18-19.

    A teoria de Jakobs, como foi sinalado, parte do pressuposto da expectativa normativaprovocada pelas normas penais. A norma deve, provavelmente, viger para (quase todas) as

    pessoas, sob pena de o dficit de segurana cognitiva colocar em xeque a prpria vigncia

    da norma, que consistiria em uma promessa vazia e sem garantia. As pessoas no desejariam

    apenas direitos, mas tambm garantir a integridade do seu corpo. Da mesma forma, a

    personalidade do indivduo no se pode orientar de modo totalmente contraftico vigncia

    da norma, abstendo-se de avaliar o carter lcito/ilcito da sua conduta. Nesse caso, o agente

    pe em risco os prprios pilares da sociedade, na medida em que elimina a segurana

    cognitiva (expectativa) dos demais em relao vigncia da norma20.

    O legislador alemo, diz Jakobs, j estaria tomando medidas tpicas do Direito Penal do

    Inimigo, como no caso da criminalidade econmica, do terrorismo, crimes sexuais e crime

    17JAKOBS, Gnther.Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, pp. 26-27.18JAKOBS, Gnther.Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, pp. 28-29. Ver: HOBBES, Thomas.

    Leviat. Trad.: Joo Paulo Monteiro e Maria Nizza da Silva. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 265 e KANT,Immanuel. La Paz Perpetua. Buenos Aires: Editorial TOR, s/d., p. 30, nota 03. Essa remisso aos clssicos significativamente problemtica, tendo vrios autores contestado as interpretaes de Jakobs. Conferir, sobre otema, ABANTO VSQUEZ, Manuel. El llamado derecho penal del enemigo. Especial referencia ao derechopenal econmico. In: DPE, v.1, pp. 06-12; BASTIDA FREIXEDO, Xacobe. Los brbaros em el umbral.

    fundamentos filosficos del derecho penal del inimigo. In: DPE, v. 01, pp. 283-285; BUNG, Jochen. Direitopenal do inimigo como teoria da vigncia da norma e da pessoa.Revista Brasileira de Cincias Criminais, n. 62,So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 127-128; ZAFFARONI, Eugenio Ral. O Inimigo em Direito PenalTrad. Srgio Lamaro. Rio de Janeiro: Revan, 2007, pp. 124; SCHNEMANN, Bernd. Derecho penal delenemigo? Crtica a las insoportables tendencias erosivas e la realidad de la administracin de justicia penal y desu isoportable desatencin terica. In:DPE, v. 2, pp. 977-981. .19Aller ainda inclui Grcio, Pufendorf e Locke no rol dos contratualistas que teriam similitude com o DireitoPenal do Inimigo: ALLER, Germn. El Derecho penal del enemigo y la sociedad del conflicto. In: DPE, v. 1, pp.98-101, porm matizando que para eles est em jogo apenas a obedincia norma, sem levar em conta umainterao conflitiva entre as pessoas.20JAKOBS, Gnther.Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, p. 33.

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    organizado. Nesses casos, o criminoso no proporcionaria a garantia cognitiva mnima para o

    seu tratamento enquanto pessoa21. A reao do ordenamento, nesse caso, simplesmente a de

    eliminao de um perigo. Assim, o principal critrio regulador no ser a culpabilidade, mas a

    periculosidadedo agente. Direito Penal e Processo Penal tornar-se-iam, por isso, medidas de

    guerra22.

    O Direito Penal, portanto, na viso de Jakobs deveria se subdividir entre aquele

    destinado aos cidados e aquele destinado aos inimigos: o primeiro orientar-se-ia pela

    culpabilidade, atuando posteriormente ao fato cometido pelo cidado; o segundo, conforme a

    periculosidade, trataria de, o mais cedo possvel, eliminar o risco que pode ser causado pelo

    inimigo. Ele v, inclusive, maior funcionalidade: evitar-se-ia, com isso, que dispositivos

    relativos ao Direito Penal do Inimigo fizessem parte do Direito Penal do cidado23.

    Jakobs ainda contesta, por fim, possvel argumentao em torno dos direitos humanos

    dos inimigos. Segundo ele, nenhum pas implementou totalmente a vigncia dos direitos

    humanos, estando eles ainda em fase de consolidao. Como os inimigos seriam obstculos

    implementao de tais direitos, no poderiam deles usufruir, rememorando a idia contratual

    que antes havia lhe servido de suporte filosfico24.

    possvel resumir sua tese, portanto, com os seguintes pontos:

    A. A funo manifesta da pena no Direito penal do cidado a contradio, e noDireito penal do inimigo a eliminao de um perigo. Os correspondentes tiposideais praticamente nunca aparecero em uma configurao pura. Ambos os tipos

    podem ser legtimos.

    21 JAKOBS, Gnther. Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, pp. 34-35. Aqui se identifica oDireito Penal de terceira velocidade, segundo a classificao de Silva Sanchez. SILVA SNCHEZ, Jess-Maria. A Expanso do Direito Penal: aspectos da poltica criminal nas sociedades ps-industriais. Trad. LuizRocha. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp.148-151.22Aponte anota que, no conceito de Direito Penal do Inimigo, est includa a guerra, conquanto ela dependa doquanto se deve temer o inimigo. APONTE, Alejandro. Derecho Penal de enemigo vs. derecho penal del

    ciudadano. Gnther Jakobs y los avatares de un derecho penal de la enemistad, p. 21. A leitura de Cornacchia perfeita: En este contexto, se habla de Derecho penal del enemigo para indicar la idea de un verdadero y proprioinstrumento de lucha contra el fenmeno criminal: una mquina de guerra para neutralizar o, ms bien,prevenir otras mquinas de guerra (aparatos terroristas, organizaciones criminales). CORNACCHIA, Luigi.La Moderna Hostis Iudicatio entre norma y estado de excepcin. In:DPE, v. 1, p. 415.23 JAKOBS, Gnther. Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo. cit., p. 42. Como anota compreciso Aponte, se trata de um fato trgico, que deve se verbalizar, se tematizar. APONTE, Alejandro.

    Derecho Penal de enemigo vs. derecho penal del ciudadano. Gnther Jakobs y los avatares de un derecho penalde la enemistad, p. 24. Tambm Zaffaroni v o Direito Penal do Inimigo como proposta ttica de conteno.ZAFFARONI, Eugenio Ral. O Inimigo em Direito Penal, p. 155.24JAKOBS, Gnther.Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, pp. 45-48.

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    B. No Direito natural de argumentao contratual estrita, na realidade, tododelinqente um inimigo (Rousseau, Fichte). Para manter um destinatrio paraexpectativas normativas, entretanto, prefervel manter, por princpio, o status decidado para aqueles que no se desviam (Hobbes e Kant).

    C. Quem por princpio se conduz de modo desviado, no oferece garantia de umcomportamento pessoal. Por isso, no pode ser tratado como cidado, mas deve sercombatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legtimo direitos doscidados, em seu direito segurana; mas diferentemente da pena, no Direitotambm a respeito daquele que apenado; ao contrrio, o inimigo excludo.D. As tendncias contrrias presentes no Direito material contradio versusneutralizao de perigos encontram situaes paralelas no Direito processual.E. Um Direito Penal do Inimigo, claramente delimitado, menos perigoso, desde aperspectiva do Estado de Direito, que entrelaar todo o Direito penal comfragmentos de regulaes prprias do Direito penal do inimigo.F. A punio internacional ou nacional de vulneraes dos direitos humanos, depoisde uma troca poltica, mostra traos prprios do Direito Penal do inimigo, sem sers por isso ilegtima25.

    2. Estado de Exceo

    Ser que ele se teria declarado culpado se fosse acusado de cumplicidade noassassinato? Talvez, mas teria feito importantes qualificaes. O que ele fizera eracrime s retrospectivamente, e ele sempre fora um cidado respeitador das leis,

    porque as ordens de Hitler, que sem dvida executou o melhor que pde, possuamfora de lei no Terceiro Reich.(Hannah Arendt)26.

    2.1. A Emergncia inscrita no Corao da Normalidade

    2.1.1. Estado de Exceo e Fora de Lei

    A publicao de Giorgio Agamben, Estado de Exceo, tem gerado significativas e

    relevantes discusses, especialmente nos meios filosficos e jurdicos. Ao propor, na esteira

    25

    JAKOBS, Gnther.Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, pp. 49-50. Os penalistas costumamarrolar uma srie de caractersticas do Direito Penal do Inimigo, baseados na prpria interveno de Jakobs em1985, a exemplo da criminalizao do estado prvio, o aumento desproporcional de penas ou a eliminao degarantias processuais. Essa caracterizao, no entanto, suprflua, medida que, uma vez que Jakobs reconhecea guerra como parmetro, no h quaisquer limites ou traos prprios da dogmtica penal a orientar o DireitoPenal do Inimigo. Um defensor do Direito Penal do Inimigo tem, por exemplo, que enfrentar o problema datortura. KALECK, Wolfgang. Sin llegar al fondo: la discusin sobre el derecho penal del enemigo. In: DPE, v.2, pp. 134-135. Com uma interpretao distinta da ambgua formulao de Jakobs: PASTOR, Daniel R. ElDerecho penal del enemigo em el espejo del poder punitivo internacional. In:DPE, v. 2, pp. 478.26ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalm. Trad. Jos Rubens Siqueira. So Paulo: Companhia das Letras,1999, p. 35.

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    de Walter Benjamin, que o estado de exceo perdeu seu carter de emergncia e passou a se

    constituir, na realidade, a normalidade, Agamben problematiza uma srie de questes que

    ainda no foram tratadas no mbito jusfilosfico.

    A sistematizao do Direito Penal do Inimigo representa, de certa forma, sintoma de

    que as ponderaes de Agamben encontram eco na situao atual. A partir de uma ciso

    conceitual entre cidado e inimigo, Jakobs pretende a criao de dois Direitos Penais, um

    dirigido ao cidado com as devidas garantias e direitos constitucionalmente assegurados -,

    outro destinado aos inimigos, a quem seria conferido tratamento de guerra. Estes no

    disporiam do carter de pessoa, sem fazer jus, por isso, aos direitos e garantias assegurados

    nas legislaes.

    Ao propor a criao de um Direito Penal do Inimigo, Jakobs est a admitir a existncia

    de uma duplicidade permanente e imanente no ordenamento jurdico, permitindo que

    funcionem, simultaneamente, um Estado de Direito e um Estado de Exceo. O Direito Penal

    do Inimigo, assim, seria a emergncia instalada paradoxalmente, de forma contnua no

    corao da ordem jurdica.

    Como, no entanto, pode legitimar Jakobs um Direito Penal do Inimigo diante da

    imperatividade dos textos constitucionais no mundo ocidental, que garantem a universalidade

    dos direitos humanos? Ou, por outro lado, como instalar a exceo no corao de

    normalidade, tornando indistinguveis uma e outra? Por fim: ser que o discurso jurdico-

    constitucional suficiente para impedir o avano do Direito Penal do Inimigo? Essas so as

    perguntas que se pretende responder.

    Walter Benjamin, na sua Oitava Tese sobre a Histria, ao afirmar que o estado de

    exceo deixou de ser exceo e passou condio de regra, abriu, segundo Giorgio

    Agamben, a possibilidade de repensarmos o estado de exceo no apenas enquanto tcnica

    de governo, em contraposio idia de uma medida extrema, mas tambm enquantoelemento constitutivo da ordem jurdica27. A problemtica se torna atual e intensa se

    considerarmos medidas como, por exemplo, o USA Patriot Act, promulgado em 2001, que

    confere ao Executivo uma srie de poderes de forma a, inclusive, anular o estatuto jurdico

    27AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo. Trad. Iraci Poleti. So Paulo: Boitempo, 2004, p. 18.

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    dos combatentes inimigos, numa espcie de dominao fora da lei e do controle judicirio,

    puramente ftica, comparvel apenas ao estatuto dos judeus durante o nazismo28.

    O Estado de Exceo representa, assim, um ponto de desequilbrio entre o jurdico e o

    poltico, uma franja ambgua e incerta29, cujo problema central seria o significado jurdico

    de uma ao em si extrajurdica30. Consistindo em uma suspenso da norma, esta no se v

    abolida e a zona de anomia instaurada no destituda de conotao jurdica trata-se, em

    sntese, de uma zona de indiferena em que o dentro e fora no se excluem, mas se

    indeterminam31.

    A tentativa mais rigorosa de construir uma teoria do Estado de Exceo veio de Carl

    Schmitt. Seu objetivo fundamental era, segundo Agamben, a inscrio do estado de exceonum contexto jurdico. Tratar-se-ia de uma inscrio paradoxal, medida que se pretende

    inscrever no Direito algo externo a ele; algo que significa nada menos que a suspenso da

    prpria ordem jurdica32.

    O operador fundamental, em Politische Theologie, para efetivar a difcil ligao que

    Schmitt pretendia concretizar era a distino entre dois elementos: a norma (Norm) e a

    deciso (Entscheidung, Dezision). Mesmo suspendendo a norma, o estado de exceo

    manteria intacto, na mais absoluta pureza, um elemento formal jurdico: a deciso. Os dois

    elementos, norma e deciso, manteriam autonomia. O espao topolgico do estado de

    exceo, por isso, um estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer33.

    28AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 14. Ver, ainda: CARVALHO, Salo de. A Poltica Criminal deDrogas no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 63-77 e AGAMBEN, Giorgio. Bodies withoutwords: against the biopolitical tatoo. Disponvel em: .Acesso em 08.06.2007. No constitui nenhum exagero de Agamben comparar as situaes, uma vez que, comov Dworkin, o governo norte-americano no d sequer tratamento de guerra, com respeito s convenesinternacionais, aos prisioneiros. CALLEGARI, Andr Luiz & DUTRA, Fernanda Arruda. Derecho penal delenemigo y Derechos fundamentales. In: DPE, v. 1, p. 336. Ver ainda: DONINI, Massimo. El Derecho penalfrente al enemigo. In:DPE, v. 1, pp. 641-648.29AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 11.30

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 24.31 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 39. A exceo uma espcie de excluso. Ela um casosingular, que excludo da norma geral. Mas o que caracteriza a exceo que aquilo que excludo no est,por causa disto, absolutamente fora de relao com a norma; ao contrrio, esta se mantm em relao com aquelana forma de suspenso. A norma se aplica exceo desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceono , portanto, o caos que precede a ordem, mas a situao que resulta da sua suspenso. Neste sentido, aexceo verdadeiramente, segundo o timo, capturada fora (ex-capere) e no simplesmente excluda.AGAMBEN, G.Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 2002, p. 25. O livro Estado de Exceo o segundo volume da trilogiaHomo Sacer.32AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 54.33AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, pp. 56-7.

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    A partir dessa distino, possvel perceber uma fenda entre a norma e sua aplicao.

    Na leitura de Carl Schmitt, o estado de exceo expe o momento de maior oposio entre a

    vigncia formal e aplicao real. Nessa zona extrema, ou em virtude dela, os dois elementos

    mostrariam sua ntima coeso34.

    nesse momento que Agamben, com as ponderaes de Schmitt, pode referir as

    reflexes de Jacques Derrida no seu seminrio Force de loi: le fondement mystique de

    lautorit35. A fora de lei seria distinguida, tecnicamente, da mera eficcia. Enquanto esta

    revelaria apenas a produo de efeitos jurdicos, a fora de lei, ao contrrio, significaria a

    posio da lei em relao a outros atos do ordenamento jurdico, dotados de fora superior

    (p.ex., a Constituio) ou inferior (p.ex., Decretos) a ela. O determinante, no entanto, que aexpresso fora de lei, tecnicamente, refere-se no prpria lei, mas queles decretos que o

    Poder Executivo pode, em alguns casos, promulgar, com - como diz a prpria expresso -

    fora de lei. Ou seja: h uma separao entre a aplicabilidade da norma e sua essncia

    formal, medida que os decretos, embora formalmente no tenham partido do Poder

    Legislativo, ganham uma excepcional fora36.

    Assim, do ponto de vista tcnico, o essencial no estado de exceo no a confuso

    entre os Poderes, Legislativo e Executivo, porm especialmente a separao entre lei e fora

    de lei. Essa fora isolada, definindo um quadro em que a lei formal, embora ainda em

    vigor, no tem aplicabilidade; e, de outro lado, atos no-legislativos adquirem idntica

    fora37. Trata-se de um espao anmico: o que est em jogo uma fora de lei sem lei,

    ou, como grifa Agamben, fora de lei38. Utilizando as expresses aristotlicas, potncia e

    ato esto separados radicalmente, por uma espcie de elemento mstico, uma fico que na

    qual o direito atribui a si prprio sua anomia39.

    34AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 58.35Ver: DERRIDA, Jacques. Fora de Lei. Trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 24-28. Conferir, ainda: SOUZA, Ricardo Timm de. Razes Plurais: itinerrios da racionalidade tica no sculo

    XX. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, pp. 130-166.36 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 60. O particular vigor da lei consiste nessa capacidade demanter-se em relao com uma exterioridade. Chamemos de relao de exceo a esta forma extrema da relaoque inclui agora alguma coisa atravs de sua excluso. AGAMBEN, Homo Sacer, p. 26.37AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 61.38Tachado.39AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 61.

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    A distncia que separa, por isso, a norma da sua aplicao mediada pelo estado de

    exceo. Para aplicar uma norma, necessrio suspender sua aplicao, produzindo uma

    exceo. Cuida-se, por isso, de uma violncia sem logos40, produzida no interior da ordem

    jurdica sem que tenha se maculado a vigncia formal das normas emanadas do Poder

    Legislativo. nesse espao anmico que, por exemplo, nazismo e fascismo se construram,

    medida que Hitler e Mussolini no podem ser considerados ditadores, pois no romperam

    com as Constituies ento vigentes, apenas fazendo-as acompanhar uma estrutura dual, no

    formalizada juridicamente, mas justificada por meio do estado de exceo41.

    Enquanto a tese de Schmitt pretendia capturar a violncia para o interior do Direito, que

    se aplicaria na sua excluso, Walter Benjamin, em direo oposta, visava a perceber uma

    violncia (Gewalt) fora ou alm do Direito, quebrando a dialtica entre a violncia quefunda e a que o conserva42.

    O carter particular dessa violncia seria o de depor o Direito, inaugurando, assim, uma

    nova poca histrica. Enquanto Schmitt procurava inscrever a violncia na ordem jurdica,

    mediante o estado de exceo, Benjamin trata o fato como violncia pura, propugnando pela

    indecidibilidade geral dos problemas jurdicos. A funo do soberano, para Benjamin, no

    seria a de inscrever o estado de exceo na ordem jurdica; mas, sim, exclu-lo43.

    Dessa forma, a alterao de Benjamin resulta substancial em relao tese de Schmitt:

    na distncia entre a norma e sua aplicao, que antes dava lugar deciso, existe uma fratura

    que divide o corpo do Direito e o torna irrecupervel, situando-o no limiar da

    indecidibilidade. Com isso, o estado de exceo no se situa mais na articulao de um

    dentro e fora. Ele , ao contrrio, uma regio de absoluta indeterminao entre anomia e

    Direito, em que as esferas de criao e da ordem jurdica so arrastadas na mesma

    catstrofe44.

    40

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 63.41 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 76. Eichmann, muito menos inteligente e sem nenhumaformao, percebeu pelo menos vagamente que no era uma ordem, mas a prpria lei que os havia transformadotodos em criminosos. Uma ordem diferia da palavra do Fhrer porque a validade desta ltima no era limitada notempo e no espao a caracterstica mais notvel da primeira. Essa tambm a verdadeira razo pela qual aordem do Fhrer para a Soluo Final foi seguida por uma tempestade de regulamentos e diretivas, todoselaborados por advogados peritos e conselheiros legais, no por meros administradores; essa ordem, ao contrriode ordens comuns, foi tratada como uma lei. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalm, p. 167.42AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 84.43AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, pp. 86-7.44AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, pp. 88-89.

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    Finalmente, na Oitava Tese sobre a Histria, Benjamin afirma que a tradio dos

    oprimidos nos ensina que o estado de emergncia em que vivemos a regra, devendo-se

    chegar a um conceito de histria que corresponda a isso45. Isso seria algo que Schmitt no

    poderia admitir, pois, quando a exceo se torna a regra, a mquina no pode mais

    funcionar46. Exceo e regra, por isso, se tornam indiscernveis; no h seno uma zona de

    anomia em que age uma violncia sem roupagem jurdica. Nas palavras de Agamben, a

    tentativa do poder estatal de anexar-se anomia por meio do estado de exceo

    desmascarada por Benjamin por aquilo que ela : umafictio iuris por excelncia que pretende

    manter o direito em sua prpria suspenso com fora de lei47.

    2.1.2. O Direito Penal do Inimigo como Exceo Permanente

    Postas essas colocaes, podemos retornar indagao inicial: onde estar localizado o

    termo que permite a Jakobs propor apesar da estrutura constitucional em que est

    historicamente situado a (re)introduo do conceito de Inimigo? necessrio que haja um

    intervalo onde a distncia entre Inimigo e Cidado se inscreve no Direito, sem, com isso,

    abdicar da vigncia formal da Constituio. Onde se poderia identificar essa sada?

    precisamente o conceito de pessoa que permite a Jakobs propor esse intervalo entre

    Direito Penal do Inimigo e as normas constitucionais, deixando-as em suspenso48. A ficcional

    necessidade, que Agamben identifica no ser o trao determinante do estado de exceo,

    justificada na ausncia de pacificao interna. Mas essa digresso dever passar,

    exatamente, por como possvel esvaziar o significado do termo pessoa, previsto no texto

    45

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 90.46AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 91.47AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo, p. 92.48 Com concluso semelhante, entre outros: ABANTO VSQUEZ, Manuel. El llamado derecho penal delenemigo. Especial referencia al derecho penal econmico. In: DPE, v. 1, p. 10-11; ALLER, Germn. El Derechopenal del enemigo y la sociedad del conflicto. In: DPE, v. 1, pp. 81-82; AMBOS, Kai. Derecho Penal delEnemigo. In: DPE, v. 1, p. 151; FEIJOO SNCHEZ, Bernardo. El Derecho penal del enemigo y el Estadodemocrtico de Derecho. In: DPE, v. 1, pp. 810-817; GRACIA MARTN, Luis. Sobre la negacin de lacondicin de persona como paradigma del derecho penal del enemigo. In: DPE, vol. 1, pp. 1060-1080;MSSIG, Bernd. Derecho penal del enemigo: concepto y fatdico presagio. Algunas tesis. In: DPE, v. 2, pp.371-381.

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    constitucional, para, nesse espao entre norma e aplicao, fundar-se um Direito Penal do

    Inimigo.

    A pessoa, segundo Jakobs, passa a ser um conceito normativo49. A sociedade seria um

    arranjo configurado, construda a partir de um contexto comunicacional. A identidade desse

    contexto seria mantida, por isso, no como um estado, mas simplesmente por meios das

    regras de comunicao50. Rechaando as construes que oporiam subjetividade concreta e

    sociabilidade, Jakobs afirma que equivocado contrapor-se as condies de constituio de

    subjetividade s condies de constituio da sociabilidade (aqui liberdade versus aqui

    sociabilidade), pois sem uma sociedade em funcionamento no h condies empricas da

    subjetividade51. A perspectiva da sociedade funcional, por isso, seria neutra: no h como

    se objetar, a priori, que ela possa formar um Direito Penal do Terror; ela apenas d conta dofuncionamento da autoconservao do sistema social52.

    Nesse contexto, a pessoa entra enquanto um papel a ser desempenhado. Segundo ele,

    pessoa a mascara, vale dizer, precisamente no a expresso da subjetividade do seu

    portador, ao contrrio a representao de uma competncia socialmente compreensvel53.

    Assim, a pessoa no se identifica com a sua subjetividade; no arranjo de expectativas sociais

    institucionalizadas que ela se forma.

    Jakobs ainda argumenta que, na relao de comunicao pessoal, que supera a

    comunicao instrumental por pressupor a constituio formada em sociabilidade, o mundo

    se forma do eu ao outro com base em normas sociais em sentido estrito, que, se

    infringidas, representam a tomada de posio em uma configurao de mundo que exonera o

    49Um curioso paralelo da limitao do conceito normativo de pessoa na releitura kantiana de Jrgen Habermaspara dar conta dos problemas suscitados pela biopoltica contempornea encontra-se em PONTIN, Fabrcio.

    Biopoltica, Eugenia e tica: uma anlise dos limites da interveno gentica em Jonas, Habermas, Foucault eAgamben. 2006. 111f. Dissertao (Mestrado em Filosofia)- Faculdade de Filosofia. Pontifcia UniversidadeCatlica do RS. Porto Alegre, 2007, pp. 52-57. Ver, ainda: van WEELZEL, Alex. Persona como sujeto deimputacin y dignidad humana. In:DPE, v. 2, pp. 1057-1072..50

    JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e Pessoa. Trad. Maurcio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, pp.10-11.51JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e Pessoa, pp. 14-15. Do que, diga-se de passagem, no se discorda deJakobs. invivel retornar-se idia de sujeito em grau zero inaugurado, fundamentalmente, pelo Cogitocartesiano. O horizonte completamente distinto no Dasein heideggeriano, que se constitui a partir de mundo,est lanado (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Maria Schuback, Petrpolis: Vozes, 2006, pp. 106-109); ou, por exemplo, na reconstruo das relaes entre sociedade e indivduo demonstrada por Norbert Elias(ELIAS, Norbert.A Sociedade dos Indivduos. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar, 1994, pp. 13-59). O que nonos leva, contudo, a concordar com as concluses que Jakobs retira dessa premissa.52JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 20.53JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 30.

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    outro54. na relao de normas, por isso, que se constitui a relao entre sujeitos; elas, na

    realidade, so o mundo objetivo. Nesse e a partir desse cenrio, os sujeitos aparecem

    como portadores de funes, oupessoas. Do ponto de vista da sociedade, portanto, no so as

    pessoas que fundamentam a comunicao pessoal a partir de si mesmas, mas a comunicao

    pessoal que define os indivduos enquantopessoas55.

    A construo de Jakobs, por isso, chega sua sntese na seguinte frase: O

    correspondente complexo de normas o que constitui os critrios para definir o que se

    considera uma pessoa56.

    Ora, uma vez definida a pessoa enquanto complexo de normas, cujos critrios de

    definio deve o poder poltico definir, Jakobs est certamente abrindo umafenda por onde seinfiltra o estado de exceo. com base na idia de que o inimigo no pessoa, pois se

    orienta de forma totalmente contraftica, que recusa a aplicao de quaisquer direitos a ele57.

    Sua tese pode ser resumida seguinte passagem:

    Portanto, o Estado pode proceder de dois modos com os delinqentes: pode v-loscomo pessoas que delinqem, pessoas que tenham cometido um erro, ou indivduosque devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurdico, mediante coao.Ambas perspectivas tm, em determinados mbitos, seu lugar legtimo, o quesignifica, ao mesmo tempo, que tambm possam ser usadas em um lugarequivocado58.

    Jakobs, portanto, infiltra mediante um esvaziamento do conceito de pessoa,

    normatizado, a possibilidade de instaurao de um regime de exceo, no qual caber ao

    soberano distinguir entre quem deve e quem no deve ser tratado como pessoa. Com isso,

    visivelmente estamos diante da anteviso de Benjamin: o estado de exceo torna-se regra,

    medida que a distncia entra a lei (direitos fundamentais) e a aplicao (definio de quem

    inimigo) passa apenas por uma deciso com fora de lei do soberano que instaura, no

    corao da normalidade, a exceo. Mesmo a deciso que cataloga o indivduo como pessoa

    ou cidado igualmente passa pelo estado de exceo, que tem o efeito duplo e, com isso, se

    torna regra. Na medida em que existente a ciso entre Direito Penal do cidado e Direito

    Penal do Inimigo, inexoravelmente se instaura a exceo total, medida que toda e qualquer

    54JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 54.55JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e Pessoa, pp. 55-56.56JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 57.57JAKOBS, Gnther.Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, pp. 47-48.58JAKOBS, Gnther.Direito Penal do Cidado e Direito Penal do Inimigo, p. 42.

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    deciso em torna da aplicao de uma lei estatuda passar pelo crivo do soberano, a quem

    incumbe aplicar a lei. E, como mostrou Agamben, exatamente nessa distncia que se

    instaura o estado de exceo.

    2.2. OHomo Sacer

    2.2.1.Homo Sacer Vida Nua na Biopoltica

    O estado de exceo caminha junto com o homo sacer, a vida nua sobre a qual se exerceo poder biopoltico.

    Agamben sinala que no existia, entre os gregos, um termo nico que exprimisse a

    nossa idia de vida. Havia, ao contrrio, dois termos semntica e morfologicamente

    distintos:zo, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais,

    homens ou deuses) e bos, que indicava a forma de viver prpria de um indivduo ou de um

    grupo59. Essa simples vida natural excluda do mundo clssico, da plis, pertencendo ao

    domnio privado do okos60.

    Michel Foucault teria partido dessa distino para resumir o processo pelo qual, nos

    limiares de Idade Moderna, a vida natural comea a ser includa nos clculos do poder estatal,

    transformando a poltica em biopoltica. Na Modernidade, o indivduo passa a integrar as

    estratgias polticos a partir do seu simples corpo vivente, resultando numa espcie de

    animalizao do homem orientada por um controle disciplinar que formava os corpos

    dceis que necessitava. A partir disso, foi possvel tanto proteger a vida quanto produzir seu

    holocausto61. Trata-se, em sntese, do ingresso dazo napolis: politizao da vida nua62.

    Ao identificar essa estratgia biopoltica, Foucault teria abandonado a abordagem

    tradicional da questo do poder, baseada, em especial, nos modelos jurdico-institucionais na

    59AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 09.60AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 10.61AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 11.62AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 12.

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    direo de uma anlise sem preconceito das formas pelas quais o poder penetra no prprio

    corpo de seus sujeitos e das formas de vida63. Foucault, portanto, parte essencialmente do

    ponto em que os conceitos normativos de pessoa estancam: o poder biopoltico, que se

    dirige diretamente aos corpos qualificados no pela idia de pessoa, mas pura e

    simplesmente enquanto vida nua.

    O conceito de homem no ser mais um obstculo epistemolgico ou moral, assim,

    para que Foucault possa repensar o sujeito a partir da sua dimenso estrutural, ou seja,

    especialmente tematizando a funcionalizao do como viver que propagada a partir de

    tcnicas do poder que dominam os corpos. Visivelmente, em Foucault, estamos diante de uma

    ultrapassagem do horizonte jurdico-normativo da pessoa do Iluminismo para a direo de

    uma problematizao do poder atuando sobre os corpos dceis.

    Agamben, no entanto, v como lacuna na teoria de Foucault o ponto de interseco entre

    o conceito biopoltico de poder, por ele explorado, e os modelos jurdico-institucionais.

    nesse ponto de interseco que Agamben identifica, precisamente, o ncleo originrio ainda

    que encoberto do poder soberano. A produo de um corpo biopoltico a contribuio

    original do poder soberano. Por isso, a biopoltica to antiga quanto a exceo soberana64.

    H, por isso, um vnculo estreito entre o poder soberano o estado de exceo e a vida

    nua o homo sacer. somente a partir do desvelamento desse vnculo, que Agamben entende

    obscurecido, que se poder reequacionar as contradies surgidas no nazismo e no fascismo.

    A vida nua continua presa no estado de exceo, isto , de alguma coisa que includa

    somente a partir da sua excluso65.

    O termo homo sacer carrega um significado ambguo, medida que, enquanto sanciona

    a sacralidade de uma pessoa, torna impunvel seu homicdio. E, de forma ainda mais

    contraditria, aquele que qualquer um podia matar impunemente no devia, porm, ser

    levado morte nas formas sancionadas pelo rito66. A estrutura da sacratio consistia, assim,na conjuno de dois aspectos: a impunidade da matana e a excluso do sacrifcio67. No caso

    63AGAMBEN, G.Homo Sacer, pp. 12-13.64AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 14.65AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 18.66AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 79.67AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 89.

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    do homo sacer, uma pessoa simplesmente posta para fora da jurisdio humana sem atingir

    a divina.

    Agamben identifica, nesse caso, uma homologia estrutural entre o estado de exceo e o

    homo sacer: em ambos, a estrutura topolgica aquela da dplice excluso e da dplice

    captura. Assim como na exceo soberana a lei aplica-se ao caso desaplicando-se, do mesmo

    modo o homo sacer pertence a Deus na forma da insacrificabilidade e includo na

    comunidade na forma da matabilidade. A vida insacrificvel e, todavia, matvel, a vida

    sacra68.

    Dessa forma, Agamben delineia os traos fundamentais da condio do homo sacer:

    Aquilo que define a condio do homo sacer, ento, no tanto a pretensaambivalncia originria da sacralidade que lhe inerente, quanto, sobretudo, ocarter particular da dupla excluso em que se encontra preso e da violncia qualse encontra exposto. Esta violncia a morte insancionvel que qualquer um podecometer em relao a ele no classificvel nem como sacrifcio nem comohomicdio, nem como execuo de uma condenao e nem como sacrilgio.Subtraindo-se s formas sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre umaesfera do agir humano que no a do sacrum faceree nem a da ao profana69.

    A condio do homo sacer apresentaria a figura originria da vida presa no bando

    soberano e demonstraria a constituio fundamental da esfera do poltico. Esse seria,

    precisamente, o espao do poltico. O que pode ser sintetizado na seguinte considerao:Soberana a esfera na qual se pode matar sem cometer homicdio e sem celebrar um

    sacrifcio, e sacra, isto , matvel e insacrificvel, a vida que foi capturada nesta esfera70. A

    produo da vida nua vida exposta morte -, portanto, a contribuio fundamental do

    poder soberano, a pedra angular da poltica.

    Agamben, assim, identifica um vnculo poltico mais antigo que a prpria idia de

    contrato social ou uma norma positiva. na relao com o soberano que se d sob a forma de

    dissoluo ou exceo que identifica o trao fundamental que o elemento poltico originrio.

    A vida humana sepolitiza a partir do abandono a um poder incondicionado de morte71.

    68AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 90.69AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 90.70AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 91.71AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 98.

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    O judeu durante o perodo do nazismo seria o referente negativo privilegiado da nova

    soberania biopoltica e, como tal, um flagrante caso de homo sacer, no sentido de vida

    matvel e insacrificvel. O seu sacrifcio no constitua, na realidade, uma espcie de pena

    capital nem de sacrifcio, mas apenas a realizao de uma matabilidade inerente condio de

    hebreu como tal. Segundo Agamben, embora seja difcil s vtimas admitir isso, os hebreus

    no foram exterminados no curso de um gigantesco holocausto, mas, como Hitler

    anunciava, como piolhos, ou seja, como vida nua. A dimenso do extermnio

    biopoltica72.

    2.2.2. O Inimigo comoHomo Sacer

    O conceito normativo de pessoa de Jakobs igualmente capaz de proporcionar um

    horizonte para que a violncia da captura do homo sacer ocorra e se legitime, por meio do

    estado de exceo73.

    O Inimigo, na medida em que se v despojado dos seus direitos de cidadania, torna-se

    vida nua submissa ao poder do soberano. Ele deixa de pertencer esfera da plis (Direito

    Penal do cidado) e passa condio de homo sacer, medida que o Direito Penal do

    Inimigo, enquanto guerra pura e simples, no pressupe qualquer vnculo normativo.

    capturado apenas na sua matabilidade.

    V-se, portanto, que no se o pode sacrificar, apenas matar. O Direito Penal do

    Inimigo, ao desvincular-se de qualquer contedo ontolgico de pessoa, retira da esfera

    jurdica uma parcela do poder punitivo e, a critrio do soberano, multiplica o homo sacer.

    Trata-se no de propor um agravamento das sanes punitivas do Estado queles que

    representem um perigo excepcional comunidade como um todo, mas sim de exclu-los do

    ordenamento jurdico74, tornando-os matveis pela guerra pura e simples.

    72AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 121.73Salientando a estrutura paradoxal do Direito Penal do Inimigo: RESTA, Federica. Enemigos y criminales. Laslgicas del control. In:DPE, v. 2, p. 735.74 Essa observao, que difere o Direito Penal do Inimigo dos movimentos de Lei e Ordem em geral, serretomada ao longo de todo trabalho. Por Movimentos de Lei e Ordem entende-se os movimentostradicionalmente identificados com a direita punitiva, os MLO compreendem o crime como o (...) o lado

    patolgico do convvio social, a criminalidade de uma doena infecciosa e o criminoso como um ser daninho.

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    Ainda mais: ao proporcionarmos ao soberano o poder de definir, normativamente, quem

    e quem no pessoa, imediatamente todos os cidados ficam na condio de homo sacer. O

    mesmo raciocnio aplicado ao estado de exceo aqui se repete: quando o estado de exceo

    para alguns, para todos, pois sempre preceder o Estado de Direito. Da mesma forma,

    quando h alguns na condio de homo sacer, despidos da idia de pessoa e expostos, na

    sua vida nua, ao soberano, todos caem na mesma condio, pois no h segurana de que no

    possam virem a ser considerados Inimigos. A exposio, assim, embora possa ser

    inicialmente mascarada por uma condio originria de pessoa, que seria retirada em

    circunstncias especiais (segundo Jakobs, diante de uma personalidade contraftica), ocorre

    desde o incio, pois o cidado est permanentemente ao alcance do Direito Penal do Inimigo.

    Esse parece ser o elemento fundamental que invalida qualquer proposta que, em todo

    caso, seria inaceitvel de que o Direito Penal do Inimigo consistiria em reduo de danos.

    No h como separar, de antemo, inimigos e cidados. Portanto, todos esto ao alcance desse

    Direito sem limites. E, com isso, a proteo normativa de pessoa passa fico: todos esto

    expostos, de antemo, em sua vida nua.

    ainda a proteo normativa da pessoa os direitos fundamentais que elide ao Poder

    Punitivo a considerao de todos na sua vida nua75. Se, na pulsao da realidade concreta, eles

    so efetivamente violados, constituindo-se um estado de emergncia que repousa no corao

    da normalidade institucional (p.ex., no fato de a grande maioria das prises ser de natureza

    cautelar), a introduo no mbito normativo de uma abertura ao Poder Punitivo pode ter

    no o efeito de reduo de danos, mas provavelmente (arriscaramos dizer: inexoravelmente)

    o efeito de multiplicar o nmero de intervenes que reduzem o ser humano condio de

    homo sacer. Se como demonstra Agamben o Direito, por si s, sofre do problema do

    distanciamento entre lei e fora de lei, abrindo espao exceo que se dirige vida nua, criar

    um intervalo explcito normativamente significa chancelar a extenso ilimitada dessa

    Sua metas podem ser sintetizadas da seguinte forma: (a) justificar a pena como castigo e retribuio; (b)instaurar regimes de penalidades capitais e ergastulares ou impor severidade no regime de execuo da pena; (c)ampliar as possibilidades de prises provisrias; e (d) diminuir o poder judicial de individualizao da sano.CARVALHO, Salo de. Poltica Criminal de Drogas no Brasil (estudo criminolgico e dogmtico), pp. 34-35.75Falamos, nesse momento, de um ponto de vista jurdico. Como j colocamos na nota, o estado de exceopulsa na realidade concreta, em diversas brechas abertas pelo ordenamento jurdico. O Direito Penal doInimigo, contudo, consistiria em abrir a possibilidade ilimitada de expanso desse poder.

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    exposio, derrubando as poucas barreiras que o Estado de Direito oferece proteo do

    indivduo em relao ao poder soberano76.

    2.3. Um campo sem limites?

    2.3.1. Campo comoNmos da Biopoltica

    O terceiro eixo das investigaes de Agamben ao lado do estado de exceo e o homo

    sacer est na idia de campo como paradigma biopoltico do moderno.

    Agamben novamente menciona Foucault quando este procurou dar conta dos processos

    de subjetivao que, na passagem do mundo antigo ao moderno, levaram o indivduo a

    objetivar o prprio eu e constituir-se como sujeito, vinculando-se, num mesmo golpe, a um

    controle externo. No entanto, Foucault deixou de proceder s suas escavaes no que seria

    o local por excelncia da biopoltica moderna: a poltica dos Estados Totalitrios. Por outro

    lado, Hannah Arendt, embora tenha realizado significativas consideraes sobre o

    totalitarismo aps a Segunda Guerra Mundial, esbarrou no limite de no relevar uma

    perspectiva biopoltica. Ainda que tenha percebido o vnculo entre o totalitarismo e a

    condio de vida do campo, Arendt deixou escapar o processo inverso, ou seja, a radical

    transformao da poltica em espao da vida nua. Segundo Agamben, somente porque em

    76 nesse pequeno intervalo que o discurso garantista por ter efetividade. Diante do estado de exceo que seaplica no intervalo entre lei e fora de lei, h pouco espao para o discurso jurdico se efetivar enquanto proteoda vida nua, do qual, no entanto, no se deve abrir mo, sob pena de expanso ainda maior da exposio. Poressa razo, opta-se, como adiante se explicar, por um discurso em nvel metajurdico, a fim de enfrentar a

    problemtica da exceo a partir da excepcionalidade do concreto. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Por umaEsttica Antropolgica desde a tica da Alteridade: do estado de exceo da violncia sem memria aoestado de exceo da excepcionalidade do concreto. Veritas, vol. 51, n. 2, junho/2006. Por discurso garantistaentendemos: o direito um universo lingstico artificial que pode permitir, graas estipulao e observnciade tcnicas apropriadas de formulao e de aplicao de leis aos fatos jurdicos, a fundamentao dos juzos emdecises sobre a verdade, convalidveis ou invalidveis como tais, mediante controles lgicos e empricos e,portanto, o mais possvel subtradas ao erro e ao arbtrio. O problema do garantismo penal elaborar taistcnicas no plano terico, torn-las vinculantes no plano normativo e assegurar seu efetividade no plano prtico.FERRAJOLI, Luigi.Direito e Razo Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. So Paulo:Revista dos Tribunais, 2002, p. 57. Ver ainda: SCHEERER, Sebastian; BHM, Maria Laura & VQUEZ,Karolina. Seis preguntas y cinco respuestas sobre el Derecho penal del enemigo. In: DPE, v. 2, pp. 933-935.

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    nosso tempo a poltica se tornou integralmente biopoltica, ela pde constituir-se em uma

    proporo antes desconhecida como poltica totalitria77.

    Agamben identifica no rio da biopoltica uma espcie de dupla face: os espaos,

    liberdades e direitos que os indivduos adquirem em face do poder central preparam, contudo,

    uma tcita e crescente inscrio de suas vidas na ordem estatal, oferecendo, paradoxalmente,

    uma nova e mais temvel instncia ao poder soberano do qual pretendiam se libertar78. O

    paradoxo, de certa forma, pode consistir numa explicao interessante para o fato de que as

    estratgias emancipatrias geralmente acabam transformando-se em repressivas. A cada

    proteo concedida pelo Estado, o indivduo v ampliada a tutela e por isso a exposio

    ao poder soberano.

    Na vida moderna, as linhas que separam a deciso sobre a vida da deciso sobre a morte

    ou, em outros termos, a biopoltica da tanatopoltica no se apresenta mais com a fixidez

    que dividiria setores absolutamente distintos. Elas so constantemente deslocadas para zonas

    cada vez mais amplas da vida social, nas quais h uma simbiose do soberano no apenas com

    o jurista, mas tambm com o mdico, o sacerdote ou o cientista. O campo, nesse contexto,

    surgir como o paradigma oculto do espao biopoltico da modernidade79.

    Uma expresso desse mecanismo ambivalente que reconhece ao indivduo uma

    limitao do poder e, simultaneamente, amplia a exposio da vida nua o habeas corpus.

    Surgido em 1679, advm j do sculo XIII, quando, para assegurar a presena fsica de uma

    pessoa diante de uma corte judicial, seu centro no estava nem do sujeito das relaes feudais,

    nem no futuro cidado, mas no puro e simples corpus. O novo sujeito da poltica torna-se o

    corpus. A democracia moderna nasce como reivindicao e exposio desse corpo. Na sua

    luta com o absolutismo, coloca, portanto, no o bos a vida qualificada de cidado -, mas

    zo, vida nua em anonimato, apanhada pelo bando soberano80. Dessa tenso emerge o homo

    sacer novamente:

    77AGAMBEN, G.Homo Sacer, pp. 125-126.78AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 127.79AGAMBEN, G.Homo Sacer, pp. 128-129.80AGAMBEN, G.Homo Sacer, pp. 129-130.

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    Esta a fora e, ao mesmo tempo, a ntima contradio da democracia moderna: elano faz abolir a vida sacra, mas a despedaa e dissemina em cada corpo individual,fazendo dela a aposta em jogo do conflito poltico81.

    O corpus, por isso, torna-se bifronte: portador tanto da sujeio ao poder soberano

    quanto das liberdades individuais. Esse estranho paradoxo o que permitiu, por exemplo, a

    transio da democracia parlamentar ao estado nazista, e deste quela novamente. O

    reconhecimento das liberdades individuais carrega a dupla inscrio de esticar o domnio do

    poder soberano sobre a vida nua82.

    Alicerado nas afirmaes de Hannah Arendt, Agamben sublinha que os direitos

    fundamentais mostraram-se desprovidos de qualquer tutela quando se viram diante de

    situaes em que no era possvel os concretizar enquanto direitos do cidado de um Estado83

    ., por isso, a hora de estancarmos a concepo de que tais direitos constituiriam espcie de

    valores eternos metajurdicos, vinculando o legislador, para al-los sua condio histrica

    real na formao do Estado-nao moderno. A vida nua que, at a formao desses Estados,

    era indiferente, pois pertencia unicamente a Deus, agora vai inscrita na ordem jurdico-

    poltica, tornando-se fundamento da soberania. Eles constituem o momento de passagem da

    soberania de ordem divina soberania nacional. Agamben novamente confirma o paradoxo: o

    reconhecimento do status de cidado ao sdito significa que a vida nua se inscreve na ordem

    poltica como portadora da soberania. somente com a compreenso dos modelos estatais

    modernos dos sculos XIX e XX a partir da vida nua que tomamos a amplitude exata da

    controvrsia, abandonando, pois, que em seu fundamento estaria o sujeito poltico livre e

    consciente84.

    Uma das caractersticas essenciais da biopoltica moderna necessidade de redefinir os

    limiares entre a vida e aquilo que est fora dela. Essa linha permanentemente redesenhada,

    pois, na zo, que as declaraes de direitos politizaram, devem ser novamente definidos os

    limiares que permitem isolar a vida sacra85.

    81AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 130.82 E se, notas atrs, sublinhvamos o local onde o discurso garantista esboava limitao ao poder soberano,trata-se, nesse momento, de revelar as dificuldades que esse modelo no capaz de enfrentar.83AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 134.84AGAMBEN, G.Homo Sacer, pp. 134-135.85AGAMBEN, G.Homo Sacer, p. 138.

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    A condio de refugiado, trazida por Hannah Arendt, a primeira apario moderna do

    homem sem mscara, ou seja, do homo sacer. Diz Agamben:

    Exibindo luz o resduo entre nascimento e nao, o refugiado faz surgir no timona cena poltica aquela vida nua que constitui seu secreto pressuposto. Nestesentido, ele verdadeiramente, como sugere Hannah Arendt, o homem dosdireitos, a sua primeira e nica apario real fora da mscara do cidado queconstantemente o cobre. Mas, justamente por isso, a sua figura to difcil dedefinir politicamente86.

    uma constatao que se ergue veementemente ao longo de todo Eichmann em

    Jerusalm, quando torna ntido que a primeira providncia necessria para iniciar o processo

    de extermnio dos judeus foi eliminar sua cidadania. A condio de aptrida exps os judeus,

    de todo, na qualidade de vidas nuas. Essa qualidade pode ser detectada na separao entre o

    humanitrio e o poltico, que evidencia o descolamento entre os direitos do homem e os

    direitos do cidado. O humanitrio reflexo do reconhecimento da vida sacra e o campo o

    espao puro de exceo.

    O campo tornou-se, segundo Giorgio Agamben, a matriz oculta, o nmos do espao

    poltico em que ainda vivemos. Ele nasce no do direito ordinrio, como possivelmente uma

    transformao dos crceres, mas do estado de exceo e da lei marcial 87. o espao que se

    abre quando o estado de exceo torna-se regra, na medida em que este, ao adquirir o carter

    de normalidade, adquire dimenso espacial, embora inscrito estavelmente fora da ordemjurdica88.

    O campo tem estrutura paradoxal: espao de territrio que colocado fora da esfera

    jurdica normal, mas no , por causa disso, simplesmente externo. Diz Agamben:

    Aquilo que nele excludo , segundo o significado etimolgico do termo exceo,capturado fora, includo atravs da sua prpria excluso. Mas aquilo que, destemodo, antes de tudo capturado no ordenamento o prprio estado de exceo. Namedida em que o estado de exceo , de fato, desejado, ele inaugura um novoparadigma jurdico-po