11
  1031 PADRÕES HISTÓRICOS DO (NEO)LIBERALISMO BRASILEIRO E REFORMA EDUCACIONAL NOS ANOS 90: UM BALANÇO DA ERA FHC  Mara Rúbia Alv es Marques Universidade Federal de Uberlândia RESUMO Este trabalho é resultado de pesquisa sobre a reforma educacional implementada no Brasil a partir dos anos 90, com particular enfoque no estado de Minas Gerais, no contexto das tendências gestionárias neoliberais. O mesmo foi precedido pela síntese das especificidades do neoliberalismo brasileiro, com vistas à evitar uma indesejada abstração e generalização no uso do termo analítico “neoliberalismo”, por meio da recuperação da constituição histórica do pensamento e das práticas políticas liberais, de modo à identificar como a tradição e as transformações têm interagido em nosso padrão de modernização neoliberal, isto é, na natureza da relação entre mudança social e reforma educacional no Brasil. Como resultado, identificamos os elementos de continuidade e de ruptura nos diferentes âmbitos da reforma e da mudança, os quais se combinam em um padrão histórico de reformismo republicano , que articula reforma educacional e ajustes político-admin istrativos no âmbito do Estado em termos de uma modernização conserv adora, pautada em uma dialética da ( des)qualificação como mecan ismo de mobilização pública tanto para a construção como para a desconstrução histórica da educação pública e da profissão do docente público, em conformidade com o projeto de contratualização e descontratualização do moderno Estado brasileiro. Isto significa que, ainda que as atuais intenções das reformas do Estado e do sistema educacional se configurem em outras bases econômicas e político-culturais, ou seja, em bases neoliberais, depreendemos que os “padrões históricos estruturais” da modernização republicana se reproduzem em “novos conjuntos de padrões culturais”, os quais mantêm um continuísmo relativamente aos paradoxos históricos do (neo)liberalismo brasileiro, incorporados às reformas educacionais. Ao recuperar, no primeiro momento, os fundamentos político-culturais do contrato social liberal efetivado a partir da Era Vargas (  primeira modernização ), trata-se, agora, do objetivo de verificar o grau de recorrência dos “padrões históricos estruturais” da modernização brasileira, no processo de desconstrução do Estado moderno, em termos da  descontratualização neoliberal  ou segunda modernização, situada a partir da “Nova República”. Em sua versão mais recente, anterior ao recentíssimo paradigma do governo Lula da Silva, no Brasil a centralidade do Estado se expressou no “hiperpresidencialismo” do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002), no qual predominou uma forma de razão política motivada por um racionalismo econômico extremo, que via o mercado não apenas como um mecanismo de alocação para a distribuição de recursos públicos escassos, mas também como uma forma superior de economia política. A despeito das adjetivações para a fase de “crise do Estado-Providência” ou “crise do contrato social”, o sentido é a “desmodernização” ou descontratualização  no âmbito do paradigma de organização da sociabilidade da Modernidade. Suponho, entretanto, que as bases históricas do liberalismo brasileiro engendram particularidades da “crise” da moderna contratualização no Brasil, em função tanto da permanência como do aprofundamento da presença do Estado na gestão da crise, consoante o “paradoxo neoliberal”. O que indica ser a “crise” do Estado de caráter diferente do meramente administrativo, gerencial e quantitativo, como pretendeu a retórica pública oficial das últimas décadas, e o que justifica a vocação do capitalismo brasileiro por adotar soluções autoritárias e repressivas, bem como a “miséria do nosso liberalismo” que, impossibilitado de se afirmar como ideologia do mundo privado, ajuda a compor um sistema político tingido por um “hibridismo” liberal-autoritário. TRABALHO COMPLETO Este texto visa à analisar as características de nosso padrão de modernização neoliberal, isto é, da natureza da relação entre mudança social e reforma educacional no Brasil, na fase de desconstrução do moderno Estado brasileiro (Segunda Modernização ou descontratualização neoliberal - “Nova República”), cujo corolário foi o governo de FHC. Após situar aspectos da descontratualização neoliberal, trataremos das especificidades da “crise “ e da reforma do Estado no governo FHC, considerando, inclusive, o papel ativo dos intelectuais. O sentido é, em última instância, identificar os elementos de continuidade e de ruptura nos diferentes âmbitos da reforma e da mudança ou da modernização brasileira, com destaque para a reforma educacional conduzida pelo Esta do com vistas á (des)construção da educação pública e da profissão docente. Descontratualização Neoliberal e Especificidades da Crise e Reforma do Estado

CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 1/11

  1031

PADRÕES HISTÓRICOS DO (NEO)LIBERALISMO BRASILEIRO E REFORMA EDUCACIONAL NOS ANOS90: UM BALANÇO DA ERA FHC

 Mara Rúbia Alves Marques

Universidade Federal de Uberlândia

RESUMO

Este trabalho é resultado de pesquisa sobre a reforma educacional implementada no Brasil a partir dos anos 90,com particular enfoque no estado de Minas Gerais, no contexto das tendências gestionárias neoliberais. Omesmo foi precedido pela síntese das especificidades do neoliberalismo brasileiro, com vistas à evitar umaindesejada abstração e generalização no uso do termo analítico “neoliberalismo”, por meio da recuperação daconstituição histórica do pensamento e das práticas políticas liberais, de modo à identificar como a tradição e astransformações têm interagido em nosso padrão de modernização neoliberal, isto é, na natureza da relação entremudança social e reforma educacional no Brasil. Como resultado, identificamos os elementos de continuidade ede ruptura nos diferentes âmbitos da reforma e da mudança, os quais se combinam em um padrão histórico dereformismo republicano, que articula reforma educacional e ajustes político-administrativos no âmbito do Estadoem termos de uma modernização conservadora, pautada em uma dialética da (des)qualificação como mecanismode mobilização pública tanto para a construção como para a desconstrução histórica da educação pública e daprofissão do docente público, em conformidade com o projeto de contratualização e descontratualização domoderno Estado brasileiro. Isto significa que, ainda que as atuais intenções das reformas do Estado e do sistema

educacional se configurem em outras bases econômicas e político-culturais, ou seja, em bases neoliberais,depreendemos que os “padrões históricos estruturais” da modernização republicana se reproduzem em “novosconjuntos de padrões culturais”, os quais mantêm um continuísmo relativamente aos paradoxos históricos do(neo)liberalismo brasileiro, incorporados às reformas educacionais. Ao recuperar, no primeiro momento, osfundamentos político-culturais do contrato social liberal efetivado a partir da Era Vargas ( primeira

modernização), trata-se, agora, do objetivo de verificar o grau de recorrência dos “padrões históricos estruturais”da modernização brasileira, no processo de desconstrução do Estado moderno, em termos da  descontratualizaçãoneoliberal ou segunda modernização, situada a partir da “Nova República”. Em sua versão mais recente, anteriorao recentíssimo paradigma do governo Lula da Silva, no Brasil a centralidade do Estado se expressou no“hiperpresidencialismo” do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002), no qual predominouuma forma de razão política motivada por um racionalismo econômico extremo, que via o mercado não apenascomo um mecanismo de alocação para a distribuição de recursos públicos escassos, mas também como umaforma superior de economia política. A despeito das adjetivações para a fase de “crise do Estado-Providência”ou “crise do contrato social”, o sentido é a “desmodernização” ou descontratualização  no âmbito do paradigmade organização da sociabilidade da Modernidade. Suponho, entretanto, que as bases históricas do liberalismobrasileiro engendram particularidades da “crise” da moderna contratualização no Brasil, em função tanto dapermanência como do aprofundamento da presença do Estado na gestão da crise, consoante o “paradoxoneoliberal”. O que indica ser a “crise” do Estado de caráter diferente do meramente administrativo, gerencial equantitativo, como pretendeu a retórica pública oficial das últimas décadas, e o que justifica a vocação docapitalismo brasileiro por adotar soluções autoritárias e repressivas, bem como a “miséria do nosso liberalismo”que, impossibilitado de se afirmar como ideologia do mundo privado, ajuda a compor um sistema políticotingido por um “hibridismo” liberal-autoritário.

TRABALHO COMPLETO

Este texto visa à analisar as características de nosso padrão de modernizaçãoneoliberal, isto é, da natureza da relação entre mudança social e reforma educacional noBrasil, na fase de desconstrução do moderno Estado brasileiro (Segunda Modernização ou

descontratualização neoliberal - “Nova República”), cujo corolário foi o governo de FHC.Após situar aspectos da descontratualização neoliberal, trataremos das especificidades

da “crise “ e da reforma do Estado no governo FHC, considerando, inclusive, o papel ativodos intelectuais. O sentido é, em última instância, identificar os elementos de continuidade ede ruptura nos diferentes âmbitos da reforma e da mudança ou da modernização brasileira,com destaque para a reforma educacional conduzida pelo Estado com vistas á (des)construçãoda educação pública e da profissão docente.

Descontratualização Neoliberal e Especificidades da Crise e Reforma do Estado

Page 2: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 2/11

  1032

A despeito das adjetivações para a fase de “crise do Estado-Providência” ou “crise docontrato social”, o sentido é a “desmodernização”  ou descontratualização  no âmbito doparadigma de organização da sociabilidade da Modernidade, decorrente de  “(...) quatro consensos principais: o consenso econômico neoliberal (Consenso de Washington); oconsenso do Estado fraco; o consenso democrático liberal; e o consenso do primado do direito

e dos tribunais” (Santos, 1999: 97-99).Suponho que as bases históricas do liberalismo brasileiro engendram particularidadesda “crise” da moderna contatualização no Brasil, em função tanto da permanência como doaprofundamento da presença do Estado na gestão da crise, consoante o “paradoxo neoliberal”1 

Levando em conta a continuidade dos aspectos autoritários e antidemocráticos, váriasanálises acerca da condição do Estado brasileiro nos anos 90 remetem à questão do público noprocesso de desconstrução do Estado, de “desmonte do social”, sintetizados nas reformasadministrativas. Um processo que expressa uma ruptura histórica significativa, como sepercebe na afirmação de Lesbaupin (1999), na apresentação do livro por ele organizado, ODesmonte da Nação - balanço do governo FHC:

 No Brasil, entre os anos 30 e o final dos anos 80 houve um processo de construção

de um Estado Nacional. Foi Collor de Mello quem iniciou, em 1990, o seudesmonte, com a adoção do ideário neoliberal. Mas a iniciativa de Collor foiinterrompida pelo seu impeachment. Fernando Henrique Cardoso se encarregou

de levá-la a seu pleno desenvolvimento (Lesbaupin, 1999: 7).

O que as análises indicam, especialmente as interpretações de Oliveira (1988, 1998,1999), é que dos anos 30 aos 80 o Estado foi o grande condutor do desenvolvimentoeconômico e também da relação política da sociedade, seja como financiador da rentabilidadedas empresas na forma do aumento da dívida pública, através do fundo público; seja pelashistóricas práticas ditatoriais de conduzir a relação política com a sociedade. A partir de finaisda década de 70 até a década de 90 o Estado brasileiro estaria atravessando uma dupla “crise”:uma crise posta pelos setores populares pela ampliação das ações políticas ao nível da

sociedade civil e outra crise pelo esgotamento financeiro, devido à manutenção do capitalprodutivo nacional que entrou em crise nos anos 80. Para Oliveira (1999a) é nesse aspectoque se pode falar em “reforma do Estado”. Entretanto, não é essa a perspectiva dos setoresoficiais.

Por um lado, na década de 80 houve um diagnóstico da crise pautado na defasagem daquestão administrativa frente às demandas de desenvolvimento econômico e transformação dopaís, donde fixou-se um padrão de reforma administrativa atravessado pela busca de efeitosimediatos, assentados sobre supostos invariavelmente formalistas e quantitativos - excesso decargos, de órgãos, de pessoal, de gastos, de normas. Daí o programa de desestatizaçãoconcebido para fortalecer o mercado e a empresa privada, tendo em vista o crescimento daadministração indireta nos anos 70 e o programa de desburocratização orientado para ousuário do serviço público. Agenda que praticamente não saiu do papel diante da

multiplicidade de pressões do contexto de transição democrática. Por outro lado, na década de

1 Do ponto de vista político-econômico, conforme Michael Peters (1994), supõe-se a existência de um “paradoxodo Estado neoliberal”, pois, embora o neoliberalismo possa ser considerado como a doutrina que prega o Estadoautolimitador, esse tem-se tornado mais poderoso sob as políticas neoliberais de mercado através do retorno àsnarrativas mestras do liberalismo clássico. Os governos de caráter mais liberal posteriores à fase da crise dadécada de 70 foram, contraditoriamente, caracterizados por um Estado ainda mais presente, regulador eintervencionista, de modo que “o papel do Estado como credor ou operador de último recurso se tornou, é óbvio,muito mais crucial”, como confirma David Harvey (1993) em sua análise da “condição pós-moderna”.

Page 3: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 3/11

  1033

90, a questão da reforma volta com força e os temas dominantes na agenda pública serão oajuste externo e a estabilização econômica, em meio ao enfoque do Estado minimalistameramente subsidiário no plano econômico. A ênfase é no custo do Estado, ou seja, nofinanciamento do setor público, de modo que a reforma da administração torna-se inseparávelda reforma do Estado, que passa a ser uma questão política.

A centralidade do tema do Estado (sua crise, suas funções, sua reforma) é inaugurada

com a posse de Collor em 1990, com sua peculiar versão da crise do Estado e daadministração pública, favorecida pela crítica ao Estado centralizador/autoritário anterior e àadministração pública; pelas demandas de ajustamentos econômicos à nova ordem com basena ideologia neoliberal; pelo apoio da equipe econômica. A reforma do Estado foi posta comopré-requisito para as ações de governo e se pautava em estratégias de moralização,flexibilização e privatização.

Há uma clara distinção entre a reforma “real” de Oliveira e a reforma administrativaque veio a ser conduzida por Bresser Pereira no Brasil a partir dos anos 90, por meio doMinistério da Administração e Reforma do Estado - MARE.

Pereira explicita sua concepção gerencial-empresarial da Reforma do Estado numaconferência sobre a reforma constitucional, em janeiro de 1995, a partir da idéia central da“crise do Estado”, definida pela crise fiscal, pela crise do modo de intervenção na economia e

no social e pela crise do aparelho do Estado. Esta última foi enfatizada pelo então Ministropor estar diretamente ligada ao MARE e vai ser associada, de um lado, à tradição histórica doclientelismo e da profissionalização incompleta e, por outro lado, à situação atual oposta de“enrijecimento burocrático extremo” provocada pela Constituição de 1988. “A consequênciados dois males é a ineficiência e a má qualidade da administração pública central e dosserviços sociais do Estado”.

Reformar o Estado significa, então, “(...) rever a estrutura do aparelho estatal e do seupessoal a partir de uma crítica não apenas das velhas práticas patrimonialistas ou clientelistas,mas também do modelo burocrático clássico, com o objetivo de tornar os serviços maisbaratos e de melhor qualidade” (Pereira, 1995:1).

A despeito da “adequada resposta da sociedade” à crise política nos anos 80, Bresserassocia o novo regime instalado em 1985 - a Nova República - e a Constituição de 1988 aoagravamento da crise do Estado, por comparação ao nacionalismo e ao populismo dos anos50. Especificamente no plano da administração pública ter-se-ia retrocedido aos anos 30,época em que foi implantada a administração burocrática clássica no Brasil. Na esteira dessacrítica, Bresser justifica a necessidade da Reforma segundo “os princípios da novaadministração pública” e empresarial - flexibilização, descentralização, competição e controledos resultados - “orientada para o atendimento aos cidadãos”.

Estão lançadas as bases para os três projetos prioritários da reforma do aparelho doEstado: em primeiro lugar , a reforma da Constituição de 1988, “tornando-a mais flexível” -(...) o primeiro grande projeto da reforma do aparelho do Estado do Ministério daAdministração Federal e da Reforma do Estado” (Idem: 8), com ênfase em dois temasfundamentais: o da flexibilização da administração pública, com destaque para a

flexibilização da estabilidade do funcionalismo, e o da previdência do funcionalismo visandoisonomia com o setor privado para diminuir a crise fiscal do Estado.  Em segundo lugar , apartir de uma distinção fundamental entre o núcleo burocrático do Estado e o setor de serviçossociais e de infra-estrutura, “o Estado deverá distinguir com clareza a formulação de políticaspúblicas de caráter regulatório da execução dos serviços sociais” (Ibidem:8), fundamentandoo projeto das “organizações sociais” como síntese da descentralização, flexibilização eautonomia financeira e administrativa dos serviços sociais do Estado, transformando-os ementidades públicas não-estatais (“publicização”), visando um padrão de eficiência e qualidade

Page 4: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 4/11

  1034

correspondente ao dos setores privados e não-estatais. Como “organizações sociais”, osserviços serão institucionalmente configurados em

organizações públicas não-estatais - mais especificamente fundações de direito

  privado - que tem autorização legislativa para celebrar contato de gestão com o

  poder executivo, e, assim, poder, através do órgão do executivo correspondente,

  fazer parte do orçamento público federal, estadual ou municipal  (Pereira,1995:13).

Por fim. em terceiro lugar , o projeto de definição de um sistema de carreiras comvistas a avançar na profissionalização do núcleo burocrático do Estado.

A crítica de Oliveira (1999b) a essa perspectiva reformista destacou, para além de suasincoerências teórico-conceituais, três aspectos: a instituição da burocracia entendida apenascomo necessidade de se evitar a corrupção e o nepotismo no âmbito do funcionalismopúblico; a concepção gerencial do Estado por identificação com a racionalidade da empresaprivada, ou seja, a própria privatização; a opção por pensar a crise do Estado e do públicocomo inadaptações à economia, sem considerar a crise da economia e/ou do capitalismo e/oua globalização como fator explicativo das primeiras.

Exatamente o oposto do esforço teórico-crítico empreendido por Oliveira (1999a),para quem os fatores da reforma, derivados do processo de internacionalização produtiva efinanceira, seriam a abdicação da moeda nacional como pré-condição para a globalização, asprivatizações, os acordos da dívida externa e os cortes orçamentários para redução do déficitpúblico. De modo que o Estado abdica daquilo que distingue os estados modernos, ou seja,seu caráter autônomo e público. 

Essa abordagem sobre o sentido da “crise” do Estado brasileiro, associada à “crise” doEstado-Providência, a Crise do Estado-Providência é interpretada como o esgotamento de umpadrão de financiamento público da economia capitalista contemporânea - tanto para o capitalcomo para a reprodução da força de trabalho, através dos gastos sociais - caracterizado pelaabrangência, estabilidade e por regras consentidas pelos principais grupos sociais e políticos,e constituinte de uma esfera pública ou um mercado institucionalmente regulado. Em seu

lugar, estariam desenvolvendo-se novos padrões de relacionamento do fundo público com oscapitais particulares e com a reprodução da força de trabalho, de modo que o fundo públicotorna-se o pressuposto principal da formação da taxa de lucros do capital privado, adquirindoum “lugar estrutural e insubstituível (...) na articulação dos vetores da expansão econômica”(Oliveira, 1998: 23).

Para além das formas “normais” de financiamentos e subsídios públicos ao capital,essa relação entre o Estado e o capital através da mediação do fundo público se dá por meio:a) do crescimento da participação do fundo no salário indireto dos trabalhadores (despesassociais públicas com saúde, educação, pensões, etc.); b) da conseqüente “liberação” do saláriodireto favorável ao aumento do consumo de massa e, por conseguinte, ao crescimento dosmercados; c) da inovação tecnológica advinda do excedente possibilitado pelo salárioindireto; d) do excedente de valor em mãos dos capitalistas para alimentar a circulaçãomonetária.

Esse “padrão de financiamento público” seria o responsável pelo continuado déficitpúblico nos grandes países industrializados. É esse padrão que está em crise.

 A crise do Estado-Providência - e o termo é freqüentemente associado à produção

de bens sociais públicos e menos à presença dos fundos públicos na estruturação

da reprodução do capital, revelando pois um indisfarçável acento ideológico nacrítica à crise - tem levado à “crise fiscal do Estado” (...) devido à disputa entre

Page 5: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 5/11

  1035

  fundos públicos destinados à reprodução do capital e fundos que financiam a

 produção de bens e serviços sociais públicos (...) (Idem: 1998: 24). 

Tal padrão de financiamento é interpretado e divulgado publicamente pelos críticosconservadores como “estatização” ou “intervenção estatal”, ou seja, como gastos públicoscom políticas sociais que estariam subtraindo recursos ao investimento privado, levando à

estagnação econômica. Daí as demandas por, privatização, flexibilização, “desestatização” -“reforma do Estado”. Na verdade, porém, a “tendência estacionista” é “(...) expressão daabrangência da socialização da produção, num sistema que continua tendo como pedraangular a apropriação privada dos resultados da produção social” (Ibidem: 25-26).

Em síntese, o que estaria em jogo no neoliberalismo e na sua reforma do Estado é areversão das bases do contrato social moderno, dissolvendo as arenas específicas de confrontoe negociação dentro do espaço estatal e em torno do próprio financiamento público. Enfim, “oque é tentado é a manutenção do fundo público como pressuposto apenas para o capital”(Oliveira,1998: 44), o que tem mobilizado um considerável arsenal discursivo-ideológico eprático-institucional na sustentação e concretização de “regimes de verdade” pelasautoridades intelectuais e institucionais modernizadoras.

As interpretações conservadoras do papel do Estado no campo das relações sociais e a

conseqüente dificuldade de perceber criticamente a natureza das reformas administrativas noâmbito estatal, explicam-se, em parte, pelo que Oliveira sugeriu, após detalhar odesdobramento teórico de sua tese do surgimento do antivalor no campo marxista: no lugar dofetiche da mercadoria colocou-se o fetiche do Estado. 

O Intelectual Empresário e o Poder Executivo 

Por ocasião de seminários sobre reforma do Estado ocorridos em São Paulo e BeloHorizonte em 1998, o sociólogo alemão Claus Offe afirmou em entrevista à Revista Veja de 8de abril, respondendo a uma pergunta sobre um suposto tamanho certo para o Estado, que“uma coisa é certa: as atribuições do Estado, o seu poder na vida cotidiana, não devem serdecididos por cientistas sociais, economistas ou burocratas do governo. Quem deve decidir

isso são os cidadãos” (p.11). Ao final, questionado sobre sua impressão da visita ao Brasil,admitiu ter se impressionado com “a forte presença de intelectuais na elite do governo, acomeçar pelo próprio presidente da República” (Offe, 1998:13).

Na fase da “desmodernização” ou da descontratualização como superação do Estadoem “crise”, a inserção racional-pragmática do intelectual na vida pública para a produção domelhoramento social tem se justificado pela própria crise estatal.

Viu-se que “a crise do Estado (...) é uma consequência, objetivamente, de suadilapidação financeira, e, subjetivamente, da falsa consciência da desnecessidade do públicopela burguesia e seus afiliados” (Oliveira, 1999a: 73), uma vez que se opera uma inversão noimaginário social, para o qual a burguesia ou o capital privado é que sustenta o Estado,quando ocorre que é o Estado ou a riqueza pública, em forma de fundo, que sustenta o capitalprivado. Essa “aparência” cria um ideal de gestão do público segundo as premissasadministrativas do privado como suposto de superação da crise do Estado, o que leva à“promiscuidade” entre o público e o privado, isto é, à “constante troca de posições no Estadoe na empresa privada: ministros e altos escalões que são retirados das empresas, que voltam àsmesmas tão logo deixam seus cargos e funções estatais e/ou governamentais” (Idem: 69).

Para ficar nos principais mentores das reformas de que estamos especialmente tratando- do Estado e da Educação, transcrevemos de Oliveira (1998: 177) parte da nota selecionadado próprio anúncio do ministério da primeira gestão de FHC: em primeiro lugar, o próprioBresser, misto de intelectual (com mais de 30 livros publicados) e empresário, tendo atuado

Page 6: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 6/11

  1036

por mais de 30 anos no Grupo Pão de Açúcar, um dos maiores do ramo da alimentação noBrasil. Em segundo lugar, Paulo Renato de Souza, o condutor do Ministério da Educação, queconverteu-se de especialista em emprego em Reitor da Unicamp, passando pelo secretariadode Franco Montoro (SP) até encaixar-se na gerência geral de operações do BID, o segundocargo mais importante na estrutura de decisões do Banco. 

No caso das políticas de educação, portanto, ocorrem processos de transferências de

idéias produzidas no interior de instituições tipicamente acadêmicas para projetos de gestãopública, na medida em que grupos de intelectuais ou seus representantes vinculam-se aogoverno, numa mediação que inclui mesmo os mecanismos legislativos democráticos, umavez que “os interlocutores do governo são seus próprios policymakers” (Silva Jr., 1998: 87).

Como diz Cunha, ao se referir mais precisamente ao processo legislativo para o ensinosuperior, “tudo (...) sugere um projeto ‘fragmentado no miúdo’. E o pior é que essafragmentação está articulada - e não estou supondo que haja um grande cérebro por trás disso(...) mas reconheço que a tentação é grande” (apud Silva Jr., 1998: 86).

Especificamente em relação aos ajustamentos que envolvem a universidade e o ensinosuperior encontramos referências a pelo menos duas instituições com autoridade intelectualpropositiva: o Cebrap e o Nupes (Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior - da USP).Quanto à primeira instituição, trata-se de uma das mais antigas e bem sucedidas organizações

não governamentais com ampla influência na política do País (Romano, 1997; Silva Jr.,1998). Quanto à segunda, como “matriz teórico-ideológico-doutrinária”, “não acidentalmente,alguns dos principais pesquisadores do NUPES ocupam postos-chaves em setores para aformulação e implementação das políticas educacionais no aparelho do Estado (...)” (Oliveira,1999b: 7).

A vantagem dessas análises é relativizar o tom de “novidade substancial” (Romano,1997: 5) e a idéia de estrita dependência das políticas nacionais em relação às tendências doneoliberalismo e de seus intelectuais globais, mesmo considerando o caso dos documentos doNUPES, em que “praticamente inexistem referências bibliográficas de autores nacionais”(Palharini, 1998: 108). Assim, “ao contrário (...) do que se pensa, o governo FHC não éprisioneiro de concepções que lhe são impostas: é um de seus principais formuladores nocampo próprio da educação superior” (Oliveira, 1999b: 7). Numa formulação mais radical,“FHC é um ‘intelectual orgânico’ das reformas burguesas” no Brasil contemporâneo(Oliveira, 1998: 176).

Especialmente quanto ao Cebrap, Romano (1997) afirma que, a partir de 1982, houveuma preparação de gente destinada ao mando político estatal, de modo que o autor identificanessa instituição e similares um plano político articulado, pelo menos desde os finais dos anos70, no sentido de “uma política geral, e comum, uma ideologia bem orquestrada” dedepreciação da universidade e de comprometimento do “que resta de espírito coletivo nauniversidade brasileira” (Romano, 1997: 12-13).

Há uma especial referência à “ligação perigosa entre universidade pública euniversidade privada”, relacionada à insistência oficial nas “parcerias com a iniciativaprivada” como saída para o financiamento das universidades públicas. “Parcerias” em que “os

campi oficiais entram com o saber e os recursos investidos nos seus professores [e] osprivados, entram com a produção do lucro para eles mesmos” (Idem: 13-15). Além da saídapara os acadêmicos de “apegar-se como ventosas” nos órgãos governamentais, através das“assessorias”, como meio de ascensão social e prestígio político.

Uma tendência que envolve também o NUPES - “o novo protagonista na formulaçãoteórica da política para o ensino superior” durante, praticamente, três governos sucessivos(Palhariani, 1998). O Núcleo foi criado no ano de 1988 no contexto da promulgação daConstituição, paradoxalmente “(...) um ano de conquistas significativas para o lobby doensino privado, que também inscreve, nessa mesma Constituição, um dispositivo estratégico:

Page 7: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 7/11

  1037

o ensino regido pelas leis de mercado, por oposição ao ensino por concessão (Palharini, 1998:97), provocando uma “ruptura”  com os padrões vigentes desde a revolução de 30 (Cury,1992).

A criação do NUPES se deu por decisão do então Reitor da Universidade de SãoPaulo, professor José Goldemberg, que em 1990 assume o Ministério da Educação nogoverno Fernando Collor de Mello. Vão ocupar cargos, comissões ou acessorias junto ao

MEC vários pesquisadores associados ao NUPES, inclusive Eunice Durhan e SimonSchwartzman - principais autores de publicações do Núcleo no período 1989-19952 (Palharini, 1998: 105).

Quando, em março de 1990, o conselho consultivo do NUPES se reúne, pela primeiravez, para avaliar o desempenho do Núcleo e fazer recomendações sobre futurosencaminhamentos., concluiu-se “que o NUPES vem desenvolvendo, na prática, duas missõesimportantes, uma mais acadêmica, de pesquisa, e outra mais aplicada, de participação nasquestões políticas do país”, sendo que o problema, na visão do conselho, é “como combinarestas duas atitudes, sem que o tempo e a dedicação à pesquisa fiquem prejudicados peloenvolvimento em questões práticas (Palharini, 1998: 101). 

Com base na resenha da linha de pensamento constituinte do “eixo norteador daprodução geral” do NUPES, feita por Palharini (1998), foi possível identificar e sintetizar

categorias, que articulam história, epistemologia e pedagogia, recorrentes no atual padrãomodernizador.

a) História: inserção internacional - modernização econômica - qualificação social.

Parte da compreensão de que, em função dos acelerados processos de mudança

que se verificam no cenário econômico internacional, o grau de desenvolvimentoeconômico tende a definir a posição que cada país, nesse cenário, vai ocupar. (...)

 Dessa modernização econômica derivar-se-ia, então, a melhoria das condições de

vida da população.

b) Epistemologia: modernização do conhecimento científico - qualificação tecnológica

(...)considera imprescindível a constituição de modernas estruturas científicas quecontribuam para modernizar a economia brasileira. (...) Nesse sentido, enfatiza a

importância de um projeto de desenvolvimento econômico que leve em

consideração a necessidade de se buscar autonomia tecnológica, especialmentenas áreas de ponta. Considera, ainda, que os significativos avanços nas maisdiferentes áreas do conhecimento tendem a tornar cada vez mais tênues as

  fronteiras entre as ciências básicas e aplicadas, as quais tenderiam também aalimentar-se reciprocamente. E, que, mesmo nas ciências sociais, as fronteiras que

tradicionalmente as separam das exatas perdem nitidez.

c) Pedagogia: qualificação docente

 Em função dessas modificações que se operam sobre a produção do conhecimento,ressalta a importância da qualificação docente como forma de melhorar aqualidade do ensino e da pesquisa produzida, devendo esta última, especialmente,

2 Conforme levantamento de Palharini (1998: 103) da produção anual de publicações do NUPES de 1989 a 1995,esta sofreu um sensível declínio nos anos de 92 a 93, quando seus membros foram afastados das instânciasgovernamentais e da formulação de políticas públicas devido ao impeachment  do presidente Collor; quandoassume Itamar Franco e, à frente do MEC, Murílio Hingel. Produção recuperada, entretanto, na conjunturafavorável da fase FHC.

Page 8: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 8/11

  1038

ser orientada para a solução de problemas. Considera, ainda, que a qualidadeestá altamente relacionada à produtividade, mas, principalmente, quando

sincronizada com o desenvolvimento do conhecimento e da tecnologia de ponta,

uma vez que o conhecimento é cada vez mais produzido em redes de pesquisa.(...) verificamos ser dedicado um pequeno espaço às ciências ditas sociais ou

humanas, o mesmo ocorrendo em relação ao papel de promotor ou difusor dacultura, ou à idéia de nação.

Para a perspectiva adotada pelos autores (...) o modelo humbolditiano deuniversidade [que associa ensino, pesquisa e extensão] perde consistência na

atualidade. 

d) Instituições: qualificação institucional - racionalização administrativa

(...) enfatiza a significativa expansão dos sistemas de ensino, e postula que atendência atual é, cada vez mais, de ampliação da demanda pelo ensino superior.Entretanto, em decorrência da crise do Estado, verifica-se um forte contração nosinvestimentos no ensino superior e em pesquisa, além de existirem limitaçõesconstitucionais para os gastos com educação.Apesar dessa tendência geral, (...) considera não estar ocorrendo uma contração no

financiamento da rede pública por parte do Estado brasileiro, especialmente no quetange às Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), dado que, além doorçamento previsto, estariam sendo repassados recursos públicos por outras vias,visando a induzir o incremento de atividades em áreas determinadas.(...) tratar-se-ia, na concepção do NUPES, de se buscar uma maior eficiência nautilização dos recursos que estão disponíveis. Para tal, procura estimular aconstituição de uma universidade racional.(...) propõe-se um modelo centrado fundamentalmente na autonomia da gestãofinanceira, administrativa e pedagógica, a exemplo das estaduais paulistas. Aautonomia universitária, portanto, é tratada como subordinada aos resultados doprocesso de avaliação.

Considerações Finais: continuidades e rupturas na modernização

Considerando a temporalidade dessa análise político-cultural da mudança social e dareforma, expressa nas duas referências do processo histórico modernizador brasileiro, ou seja,a Primeira Modernização (construção do Estado) e a Segunda Modernização (desconstruçãodo Estado), com ênfase nessa última, é possível identificar tanto elementos de continuidade

como elementos de ruptura.

Um suposto básico é que a reforma administrativa do Estado é uma peça fundamentalda dinâmica do moderno contrato social brasileiro, constituindo um dos aspectos depermanência na configuração de novos arcabouços institucionais do Estado. Esse é um dado

relevante, na medida em que se trata de um processo inacabado, evidenciado no pleno cicloreformista nos anos 90, de modo que “a reforma da administração pública continuaria sendo,como nos Anos 30, ‘o máximo problema do Brasil’” (Nogueira, 1998: 117-118). Porém, hápeculiaridades próprias às respectivas vias reformistas: 

  No início da era de Vargas, vivia-se um momento de construção do Estado, noqual se buscava aparelhar o Estado para fundar um novo País, após quatro

décadas de exclusivismo agrário e república oligárquica. Para tanto, devia-seconstituir o cerne de um verdadeiro e moderno aparato administrativo: novasregras e normas, novas organizações e estruturas, e sobretudo funcionários em

Page 9: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 9/11

  1039

número e com qualidades suficientes para vertebralizar uma efetiva burocracia pública. Era preciso, claro, moralizar o serviço público, conter gastos excessivos,

disciplinar os servidores. Porém, bem mais do que isso, era preciso enquadrá-los

em algum plano de carreiras, universalizar o mérito, dignificar e profissionalizar a função pública, tratando ao mesmo tempo de protegê-la das ingerências espúrias

da vida política e partidária (Idem:117-118). 

  Nos anos 90, o ambiente seria cortado por outra dinâmica: de muitas partes doespectro político-ideológico contemporâneo seria possível ouvir que não se tratava

mais de construir, mas de “desconstruir” o Estado. Não se trataria sequer deajustar o Estado ao padrão de desenvolvimento econômico alcançado pelo País,

mas de submetê-lo aos ditames de uma nova era histórico-universal, aglobalização, com suas desregulamentações que desresponsabilizam o Estado,

com sua revolução tecnológica que dispensa mão-de-obra e com sua idéia de  flexibilidade que muitas vezes desestrutura as organizações. Nesse ambiente

haveria pouco espaço para o aparato público, até mesmo porque não se teria tanta

certeza de que seria preciso agregar formalmente recursos e pessoas para que o  Estado funcionasse: tudo poderia ser feito “por fora” do Estado, por meio de

organizações não-governamentais, do terceiro setor, de empresas privadas, de

nichos sociais. A construção do Estado ficaria comprometida porque não sesaberia bem se se desejava um Estado no futuro, nem para que ele serviria(Ibidem: 118).

Temos, por um lado, o “legítimo” processo de edificação nacional de Vargas fundadona estruturação de direitos e, portanto, na socialização da economia e na publicização  oupolitização do Estado - mesmo que na forma do Estado desenvolvimentista. Por outro lado,temos o “legítimo” processo de desmonte da nação de Fernando Henrique fundado na

 flexibilização de direitos e, portanto, na dessocialização da economia e na despublicização oudespolitização do Estado. Sendo que a flexibilização constitui a variação históricasuperestrutural do “padrão histórico estrutural” da modernização, na medida que expressa aruptura entre a gênese e a crise do moderno contrato social brasileiro.

A questão da legitimidade se constitui como fator de permanência porque tanto Vargascomo FHC articulam em torno de si um forte projeto hegemônico, em termos de aglutinaçãopolítico-partidária e legitimidade social. Se desde a Revolução de 30 não havia surgido umnovo grupo hegemônico mas apenas “dominação”, FHC volta a representar uma “hegemonia”possibilitada pela estabilidade monetária do Real (Oliveira, 1998).

No caso da contratualização, no entanto, mesmo considerando os aspectos distintosentre os cidadãos “com carteira assinada” os cidadãos “sem carteira assinada”, o trabalho foi avia de acesso à cidadania, no âmbito da socialização do trabalho identificada por Santos:

a regulação do tempo de trabalho, das condições de trabalho e do salário, acriação de seguros sociais obrigatórios e de segurança social, o reconhecimento

da greve, dos sindicatos e da negociação e contratação coletiva são momentosdecisivos do longo percurso histórico da socialização da economia. Por ele se foi

reconhecendo que a economia capitalista não era apenas constituída por capital, fatores de produção e mercado, mas também por trabalhadores, pessoas e classes

com necessidades básicas, interesses próprios e legítimos e, em suma, direitos de

cidadania. Neste percurso, os sindicatos tiveram um papel decisivo, o de reduzir aconcorrência entre os trabalhadores, fonte primacial da sobre exploração a que

estavam inicialmente sujeitos (Santos, 1999: 88).

No segundo caso, o da descontratualização, prevalecem mecanismos desestruturantesatuando “por meio das reformas constitucionais, da flexibilização do contrato de trabalho, da

Page 10: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 10/11

  1040

desregulamentação, da mudança na Previdência, tirando o chão social das entidades que umdia desafiaram as elites” (Oliveira, 1998: 161). A erosão crescente desses direitos combinadacom o aumento do desemprego estrutural conduz à passagem dos trabalhadores de umestatuto de cidadania para um estatuto de “lumpencidadania”, aprofundando a lógica daexclusão. Nesse sentido, “(...) o trabalho deixa de sustentar cada vez mais a cidadania e, vice-versa, esta deixa cada vez mais de sustentar o trabalho (Santos, 1999: 101).

No âmbito das tradições que podem ser traduzidas como continuidades, como parte deum campo político-cultural comum, destaco tanto a natureza da gênese quanto a natureza dalegitimidade ou da hegemonia da (des)contratualização social moderna no Brasil.

Quanto a natureza da gênese, a “politização do Estado” ocorreu pela expansão dacapacidade reguladora do Estado devido a sua centralidade no processo de normatização einstitucionalização resultante da “socialização da economia”, já que ”à medida que estatizou aregulação, o Estado fez dela um campo de luta política e nessa medida ele próprio sepolitizou” (Idem: 89). “Politizar” é tomado aqui no sentido de tornar-se o locus da tensãoentre capitalismo e democracia, cujos modos de solução determinam o grau de modernidadeou arcaísmo, isto é, de democracia ou autoritarismo político da contratualização e do próprioEstado.

O contrato conviveu sempre com o status; os compromissos foram sempremomentos evanescentes entre pré-compromissos e pós-compromissos; a economia  foi socializada em pequenas ilhas de inclusão que passaram a existir em vastos

arquipélagos de exclusão; a politização do Estado cedeu frequentemente à

 privatização do Estado e à patrimonialização da dominação política; a identidade

cultural nacionalizou muitas vezes a caricatura de si mesma (Santos, 1999: 90-91).

Quanto a natureza da legitimidade, essa “nacionalização da identidade cultural”ocorreu com base no suposto de que “pode-se dominar politicamente, economicamente, massó há hegemonia quando você faz o dominado pensar como você” (Oliveira, 1998: 162). Demodo que “conhecimentos, memórias, universos simbólicos e tradições diferentes daqueles

que foram eleitos para ser incluídos e convertidos em nacionais foram suprimidos,marginalizados ou descaracterizados, e com eles os grupos sociais que os sustentavam”(Santos, 1999: 90). Daí que, como fator fundamental de continuidade, tanto na expropriaçãocomo na apropriação ressignificada de saberes, destaca-se a presença funcional dosintelectuais e de suas instituições nos processos de modernização.

Juntamente com a reforma administrativa do Estado, a reforma educacional pelo

 Estado é o outro aspecto fundamental de continuidade na moderna (des)contratualizaçãosocial brasileira, por se inscrever no âmbito político-cultural da “nacionalização dos valores”.Há um padrão de relação política entre o Estado e as massas - padrão de hegemonia - comomodalidade de institucionalização do moderno ou de interpenetração entre o público e oprivado que impulsiona o processo de modernizador que, em última instância, engendra o“Estado como educador” pela mediação necessária à conquista de consensos. Aí está incluída

a relação do Estado com os intelectuais bem como a atitude bonapartista, tendencialmente“soft”, do Estado para com as massas.

À guisa de conclusão, entendemos que o quadro delineado acima deva contribuir paranortear análises das reformas educacionais da década de 1990, sobretudo às voltadas para ohistórico enquadramento regulador e disciplinar, pelo Estado, do educador e da profissãodocente, mediado pelas Ciências Humanas e da Educação, no âmbito da funcionarização/ profissionalização que, aliás, em tempos das atuais reformas vem se convertendo emprocessos e práticas de desfuncionarização/desprofissionalização.

Page 11: CRISE DO ESTADO DA PROVIDÊNCIA

5/9/2018 CRISE DO ESTADO DA PROVID NCIA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/crise-do-estado-da-providencia 11/11

  1041

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 2 ed. São Paulo: Loyola, 1993.

LESBAUPIN, Ivo (Org.). O desmonte da nação - balanço do governo FHC.  Petrópolis:

Vozes, 1999.NOGUEIRA, Marco A. As possibilidades de política: idéias para a reforma democrática doEstado. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

OFFE, Claus. O novo poder.   Revista Veja, São Paulo, n. 1.541, p. 11-13, 8 abr.1998.Entrevista concedida a Thomas Traumann.

OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política:o totalitarismo neoliberal. In: _____ et al. (Org.). Os sentidos da democracia - políticas dodissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes; Brasília: NEDIC, 1999a. p. 55-81.

_____. Prefácio: a face do horror. In: SILVA JR. João dos Reis; SGUISSARDI, Valdemar. Novas faces da educação superior no Brasil  - reforma do estado e mudança na produção.Bragança Paulista: EDUSF, 1999b. p.7-13.

_____. O Surgimento do Antivalor - capital, força de trabalho e fundo público. Novos Estudos

CEBRAP, São Paulo, n. 22, p. 8-28, out.1988. Publicação da Editora Brasileira de Ciências.

_____. Os direitos do antivalor  - a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis:Vozes, 1998.

PALHARINI, Francisco de Assis. Cadernos NUPES: o novo protagonista na formulaçãoteórica para o ensino superior. In: MOROSINI, M.; SGUISSARDI, V. (Org.).   A educação

superior em periódicos nacionais. Vitória: FCAA/UFES, 1998. p. 96-112.

PEREIRA, Luiz C. B. A reforma do aparelho do Estado e a Constituição Brasileira. 1995. 14

p. Conferência proferida em janeiro de 1995 no Seminário sobre Reforma Constitucional,patrocinado pela Presidência da República.

PETERS, Michael. Governamentalidade liberal e educação. In: SILVA, T. T. O sujeito da

educação - estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 211-224.

ROMANO, Roberto.   A política de ciência e tecnologia no Brasil. Uberlândia: ADUFU,nov.1997.

SANTOS, Boaventura de S. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. Os sentidos da democracia - políticas dodissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes; Brasília: NEDIC, 1999. p. 83-129.

SILVA JR, João dos Reis. Reformas do Estado e da educação superior no Brasil: as ações dosatores em cena e o processo de privatização. In: CATANI, A. M. (Org.). Novas Perspectivasnas políticas de educação superior na América Latina no limiar do século XXI. Campinas:Autores Associados, 1998. p. 83-101. (Coleção Educação Contemporânea).