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Como citar este artículo: REGO, Ana Regina (2019): “Crises e impermanências do jornalismo em um cenário digital-expectativas no horizonte”, en Revista Internacional de Historia de la Comunicación (13), pp. 29-52. © Universidad de Sevilla 29 CRISES E IMPERMANÊNCIAS DO JORNALISMO EM UM CENÁRIO DIGITAL- EXPECTATIVAS NO HORIZONTE Crisis and impermanences of journalism in a digital scenario- expectations on the horizon DOI: http://dx.doi.org/10.12795/RiHC.2019.i13.03 Enviado: 21/10/2019 Aceptado: 15/12/2019 Publicado: 15/12/2019 Ana Regina Rego ORCID 0000-0002-0915-8715 Universidade Federal do Piauí, Brasil [email protected]

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Como citar este artículo: REGO, Ana Regina (2019): “Crises e impermanências do jornalismo em umcenáriodigital-expectativasnohorizonte”,enRevistaInternacionaldeHistoriadelaComunicación(13),pp.29-52. ©UniversidaddeSevilla 29

CRISESEIMPERMANÊNCIASDOJORNALISMOEMUMCENÁRIODIGITAL-EXPECTATIVASNOHORIZONTECrisisandimpermanencesofjournalisminadigitalscenario-expectationsonthehorizon

DOI:http://dx.doi.org/10.12795/RiHC.2019.i13.03Enviado:21/10/2019

Aceptado:15/12/2019Publicado:15/12/2019

AnaReginaRego ORCID 0000-0002-0915-8715UniversidadeFederaldoPiauí,Brasil [email protected]

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RevistainternacionaldeHistoriadelaComunicación,Nº13,año2019,ISSN2255-5129,pp.29-52 30

Resumo: Este texto apresenta dois polos de observação do ambiente jornalísticocontemporâneo.Deumlado,nossoolharsevoltaparaainegávelcrisequesealastrapelos meios de comunicação tradicionais já há alguns anos. Este primeiro olhar éembasadoporumreferencialteóricoemtornodosconceitosdecrise,acontecimentoeverdade que transportamos ao jornalismo. De outro, novas práticas, processos elinguagens informacionais que surgem diacronicamente no campo da comunicação,propondomutações ao ethos jornalísticomoderno que vigorou durante o século XX.Nesse segundo momento, nossa observação e interpretação tem como foco umhorizonte de expectativas em que as mídias livres ganham espaço no cenário dedisputasnarrativasdoséculoXXI.Palavras-chave:Crises;Jornalismo;Comunicação;MídiasLivres Resumen: Este texto presenta dos polos de observación del entorno periodísticocontemporáneo.Porun lado,nuestramiradasedirigea lacrisis innegablequesehaextendido a través de los medios tradicionales durante algunos años. Este primervistazosebasaenunmarcoteóricoentornoalosconceptosdecrisis,eventoyverdadeque llevamos al periodismo. Por otro lado, nuevas prácticas, procesos y lenguajesinformativos que surgen diacrónicamente en el campo de la comunicación,proponiendomutacionesalethosperiodíscitomodernoqueprevalecióduranteelsigloXX.Enestesegundomomento,nuestraobservaciónyinterpretaciónseconvierteenunhorizontedeexpectativasenelquelosmedioslibresgananespacioenelescenariodelasdisputasnarrativasdelsigloXXI.Palabrasclave:Crisis;Periodismo;Comunicación;MidiasLibresAbstract: This text presents two observation poles of the contemporary journalisticenvironment.Ontheonehand,ourgaze turns to theundeniablecrisis thathasbeenspreading through the traditionalmedia for years now. The first look is based on atheoretical frameworkaroundtheconceptsofcrisis,eventandtruththatwecarrytojournalism.On theother, new informational practices, processesand languages thatemerge diachronically in the field of communication, proposing mutations to themodern journalistic ethos that prevailed durgin the twentieth century. In this secondmoment,ourobservationturnstoahorizonofexpectations inwhichfreemediagainspaceinthescenarioof21stcenturynarrivedisputes.

Keywords:Crisis;Journalism;Communication;FreeMedia

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Criseseimpermanênciasdojornalismoemumcenáriodigital-expectativasnohorizonte

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1 IntroduçãoInstigadosafalarsobreaHistóriadosnovosmeiosnocenáriodigital,nosvimosdiantedeparadoxosqueseentrecruzamentreoscamposdahistoriografiadacomunicaçãoedo jornalismo e que nos suscitam inquietações. ¿O primeiro questionamento quepoderíamos lançar à temática a ser abordada diz respeito à história, ou, a quehistoriografia poderíamos nos referir? Efetivamente, não seria uma história naconcepçãodeCerteau(2011),ouseja,comoumcorpomorto,umapresençadeumaausência entre presentes, muito embora, tanto quanto na proposição destehistoriador francês, nos exigiria uma operação historiográfica, considerada em seutripédeconstituiçãoe,portanto,comoumlugarsocial,umapráticaeumaescrita.Asegunda inquietação posta refere-se ao conceito de novo enquanto novidadetecnológicainseridanocampocomunicacional.Onovoconcebidoenaturalizadocomotudooqueserefereaoambientedigital.Masoqueseriaessenovo,jáquehámaisdeduasdécadasocampocomunicacional,amídiaeastecnologiasdacomunicaçãoedainformaçãonoambientevirtualestãotrabalhandodeformaintrínsecaepossuemumaincontestávelcentralidadenavidadaspessoasemsociedade?

O paradoxo inserido no título, portanto, se localiza na interseção entre o passadoenquantohistóricoeofuturoenquantotempodanovidade,opassadoenquantoumaexperiênciainacabada,masquereclamaparasercontadanosanaisdahistoriografiaeo futuro passado, cuja expectativa se narra como novo. Em verdade, a história dosnovosmeiosquerseimporcomoahistóriadeumpresenteemruptura,naspalavrasde Arendt (apud Hartog, 2015:22), localizado em um estranho entremeio, “entre ascoisasquenãosãoeascoisasqueaindanãosão”.

Diantedoparadoxo,optamosporabordarascriseseimpermanênciasdojornalismonocenáriodigital,quenospermitetrabalhar tantoumahistória inicialdocampo,comosuahistoricidadetransformadora.

Poroutro lado, desenvolver este texto tendo como foco as crisesdo jornalismonospermite deixar claro o nosso lugar social (CERTEAU, 2011), intrínseco às ciênciashumanasesociais,etendocomocertooataquegeneralizadoqueocampocientíficosofrenoBrasil,emquesepraticaumanarrativaholísticadecombateàsciênciasequedescredenciaashumanidadescomocamposcientíficos.

Oobjetivodopresenteartigoéexporapartirdeumprocessohermenêutico,ascrisese impermanências que acontecem no campo comunicacional e jornalístico e queextrapolam a jurisdição destes campos e se estabelecem de forma reticular com osdiversos cruzamentos narrativos que disputam a atenção dos públicos, tanto nomercado, como nos cenários mais íntimos. Para tanto, procuramos interpretar asaçõesdasmídiaslivresnocenáriobrasileirocontemporâneo.

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Por outro lado, mas no mesmo caminho, vale destacar que, tendo em vista nossaobservação focadanoambiente jornalísticobrasileirocontemporâneo,nãopodemosdeixardeconsiderarcontextualidadee temporalidade imbricadasemuma leituradotempoquenosfornecenarrativasatuaissobreumcenáriosombrioemqueopapeldacomunicação tem sido de grande relevância para o sucesso das narrativas políticasconservadorase,emalgunscasos,devastadoras,noBrasil.

Contextualidadeentendidaaqui,conformeBarbosaeRêgo(2017:10),enquantoum“[...]ambienteemqueseconstituiaessênciadasmutações,dosacontecimentosedeconstituição dos próprios campos”. Logo, considerando que a nossa relaçãocontextual/temporal contemporânea tem imposto ao campo da comunicação, dojornalismo e da informação, reações às práticasmidiáticas concentradoras emuitasvezesmanipuladorasdosmeiosjátradicionais1e,principalmente,àspráticascadavezmaiscomunsdoquesedenominapós-verdade2e“fakesnews”,queproliferampelasmídiassociaisdigitais;propomosumolharsobreasmídias livres,ouomidialivrismo,comoumhorizontequeseimpõeeimpõetransformaçõesnaspráticas,nosprocessoseformasdenarrarainformação.

Este texto se estrutura e se desenvolve em torno de alguns pontos principais deobservação.Emumprimeiromomento,destacamosacrise,trazendooconceitoparaocampodacomunicação.Posteriormente,trabalhamosoacontecimento,averdadeea não verdade. Em seguida, trazemos críticas e proposições epistemológicas, paradepois nos debruçarmos sobre as potencialidades dasmídias livres comohorizontesalternativosaocenáriodecrisevivenciadopelo jornalismo tradicionalequenascemexatamentecomoresultantesdoprocessodecríticaaomercadoda informaçãoedojornalismo.

O processo metodológico é pautado na hermenêutica da consciência históricapropostaporRicoeur(2010)emqueacompreensãoeinterpretaçãodasnarrativassãomediadaspelosconceitosdetradição,tradicionalidadeetradições,observandoaindaas entradas temporais para interpretação da narrativa, dentro do círculohermenêutico, em que primeira mímese ( pré-figuração), segunda mímese(configuração)eterceiramímese(refiguração)daaçãonarrativaseapresentamcomoportascíclicasdoprocessointerpretativo.

1CompreendidonoterceirosentidopropostoporRicoeur(2010)ouseja,tradiçãoenquantoportadoradeumaverdadedopassado.2 OxfordDictionariesconceituamapós-verdadecomo“[...]circunstânciasemqueosfatosobjetivossãomenosinfluentesemformaraopiniãopúblicadoqueosapelosàemoçãoeàcrençapessoal”(OxfordDictionaries,2016).

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2 Crise:doconceitohistóricopolíticoaocampojornalístico

Nossa abordagem temcomoguia inicial opensamentodeReinhart Koselleck (2009)queafirmaqueacrisenascedadissociaçãoeperdadovínculocomopassado,que,porsuavez,convocadistintosvínculoscomofuturo.Poroutrolado,acrisetambémseinstaura, na visão deste autor, pela atuação do pensamento crítico numa esferapolítica.Acrisetem,dentreoutrosprocessosdeacionamento,acríticaaumpassadorejeitadoemumaconjunturadeumdeterminadopresentequelogosetransformaemumfuturopassado,emqueacrisesearrasta,àsvezes,deformacontumaz.

Para François Hartog (2015), o processo de crise tem como ponto nevrálgico umaassimetria exposta entre a experiência e a expectativa. Logo, quanto menos seconheceopassado,quantomenosseconfianahistória,maissetemmedodofuturo,mais a expectativa se transforma em angústia, provocando dúvidas e lutaspermanentesquesãomotivadorasemantenedorasdacrise.

Naatualidade,tantoquantoemmomentosanterioresdahistória,ascrisesseagravame se estendem entre os campos político e comunicacional. Nesse sentido é que aspalavras que Koselleck (2009:138) destina ao tempo das luzes, da crítica e doprogresso podem também ser aplicadas ao momento presente, sobretudo quandodestacaque“[...]arealidadedacriseéatransferência,paraapolítica,deumalutadeforças supostamente polares. A jurisdição moral determinava a consciência políticanascente”. Nesse ponto, o autor já nos fala sobre a instauração de umdesentendimentonoseiodasociedade,emqueodualismodeterminaavidapolítica,considerandoqueadecisãopolíticapassaaseroresultadodeumprocessomoraldejulgamento.

Oconceitodecrise,portanto,compreendeumaunidadedoseventosenãodeixaespaço para divisões dualistas que deixam um domínio extra-estatal intocado.Masoconceitodecrise,vinculadoporRousseauaosentidodeanarquiapolítica,acrisecomorupturadetodaordem,comodesmoronamentodetodooregimede propriedade, ligada a convulsões e agitações imprevisíveis, ou seja, a crisecomocrisepolíticadoEstadocomoumtodo,nãorepresentavademodoalgumaformacomoseexprimiaaconsciênciaburguesadessamesmacrise.Aocontrário,a consciência pré-revolucionária da crise se alimenta da forma específica decríticapolíticafeitapelaburguesiaaoEstadoabsolutista(KOSELLECK,2009:145-146).

A crise potencializada caminha para rupturas do status quo então vigente. Nessesentido é que Koselleck destaca que o resultado de uma crise política pode ser aliberdadeouaescravidão,comopontosculminantesdeumavisãoquecadasociedadetemsimesmaemseutempo.“Defato,elaésomenteofimdoprocessocríticoquea

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sociedade,separadadoEstado,moveucontraesteEstado”Acríticasetransformaemum tribunal moral, cujas leis estão escritas nos corações dos críticos burgueses”(KOSELLECK,2009:150).

Dopontodevistahistórico,asrupturassempreforampontosde interesseparaumanarrativahistoriográfica,portanto,opresentehistóricosobreoqualnosdebruçamoscarrega em si a potência de sua historicidade. Não falamos, como dito, em históriaenquanto corpo completamente morto, na concepção de Certeau (2011), mas nossituamosnomomentode sua construção social, emquememória e história,mãe efilha,MnemosyneeClioseconstroem,seestruturamesealimentam.

Nesseponto,valeponderarqueascrisesatuaisnoambiente jornalísticopartemnãosomentedeumadissociaçãocomopassado,masdeumarevelaçãodaíntimaligaçãoque o ethos jornalístico (LEAL, 2018), forjado na modernidade, manteve e aindamantémcomomercadoda informação,comotambémdavisibilidadedoscaminhosqueojornalismoconstruiuparadotarasuanarrativadeumacredibilidadevendável.Nesse mesmo lugar, as práticas predatórias de um jornalismo que se autolegitimacomo credor da verdade se tornaram transparentes, trazendo consequências aomercadoeaocampo.

Poroutrolado,oempoderamentosocialpossibilitadopelastecnologiase,sobretudo,pela comunicação reticular e em rede tem abalado as estruturas tradicionais deproduçãoecirculaçãodenotícias,comproduçãoefruiçãodefalsasinformações.Alémdisso, em um cenário virtual, o nascimento de novos modelos de negócio temimpactadonomercadotradicional.

Todoesse cenário temacarretadoemcrises no ambiente jornalístico, e falamosemcrisesnopluralporquesãoprocessoscríticosquecolocamemchequeopróprioethosjornalístico e tem abalado as estruturas mais seguras do campo, questionando osvaloreseaimportânciadojornalismoemumambienteemqueasociedadenãomaisse enxerga como da informação, visto que o excesso se transformou emdesinformação,massimsesituaemumcontextoemqueocontroleeadisputapelaatençãosesobressaem.

A crise no jornalismo, portanto, parte da consciência que a sociedade adquire daspráticas do campo, como também do uso abusivo de práticas manipulatórias eintrínsecasao jornalismonomercadoda informação,dentreoutros fatores acima járelacionados. Emxeque:acontecimento,notíciaeverdadeemconfrontocomanãoverdade.

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2.1 Oacontecimento,averdadeeanãoverdadeNesse sentido, há que se considerar que, dentre as inúmeras abordagens possíveisparaseadentrarecompreenderascrisesporquepassaojornalismoeseumercado,éimportante perceber que a compreensão que a sociedade tem sobre osacontecimentos nos dias atuais passou a ser, em larga escala, tensionada pornarrativasemocionaisenãofactuais,pautadaemvaloresindividuaisecoletivos,oquenoslevaaumadasquestõescentraisdoethosjornalísticomoderno(LEAL,2018),qualseja:seuatrelamentoaofatoeseureconhecimentosocialcomoumlugardestacadodeondeseemanaumadeterminada“verdade”aceitae reconhecidasocialmente.Onovo posicionamento do público rompe de certa forma com o contrato de leitura3propostoporVeron(2004)eimpõeaojornalismoreformulaçõesenovasposições.

Nesse caminho, é importante pensar o acontecimento por diversas perspectivas,sobretudo as que tem procurado não somente desconstruir,mas apresentar outrosprismaspossíveisdecompreensãodosfatosedeseuatrelamentoaumainterpretaçãodorealedeumapossívelverdade.AvisãodeSlavojZizek(2017),polêmicopsicanalistaefilósofoeslovenodaatualidade,porexemplo,desconstróioconceitoatravésdeumaviagemfilosófica.Umdoseixosdepartidaéaquestãosobreanaturezadoconceito:seria o acontecimento uma mudança na realidade ou nossa compreensão darealidade? O autor apresenta, assim, uma oposição conceitual em que umaabordagem ontológica contrapõe uma abordagem transcendental, podendo oacontecimento ser uma propriedade do real ou uma apreensão desse real. Cominspiração hegeliana e lacaniana, sobretudo, Zizek elabora os acontecimentos dafilosofiaeosacontecimentosdapsicanálise,destacandoafluideznoscamposeentreoscampos.

JáJacquesRancière(1995)ébempreciso.Paraestefilósofo,oacontecimentoé

[...] a conjunçãodeumconjuntode fatosedeuma interpretaçãoquedesignaesse conjunto de fatos como acontecimento singular. Em outras palavras, é aconjunçãodeumconjuntodefatoseumasubjetivação.Nãoháacontecimentosem sentido de acontecimento, sem subjetivação de acontecimento. Paraempregar uma palavra má reputada, não há acontecimento sem “ideologia”,sem um alguém por quem e para quem ele tem sentido de acontecimento(RANCIÈRE,1995:239).

3Oconceitodecontratoéumaespéciedeespaçoimaginárioondepercursosmúltiplossãopropostosaoleitor,paisagensondeoleitorpodeescolherumcaminhomaisoumenosdeliberdade,ondezonasnasquais ele possa se perder, ou seja, perfeitamente balizado. Ao longo da estrada o leitor encontrapersonagensdiversosquelhepropõematividadesvárias,atravésdasquaissevêempossíveistraçosderelações,segundoasimagensqueesteslhespassam.Umdiscursoéumespaçohabitadodeatores,deobjetoselerécolocaremmovimentoesteuniverso,aceitandoourecusando,indomaisalémàdireitaouàesquerda,investindomaisesforços[...](VERÓN,2004:216).

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Adriano Rodrigues (1993), ao tratar do acontecimento jornalístico, lembra que esteseria algo que irrompe na superfície da história se destacando em meio a umainfinidadedefatos.Oacontecimentojornalísticoterminasendoconstruídoapartirdeum processo de produção noticiosa que dota o fato de argumentos do campojornalístico/midiáticoparaqueestesetornevendávelecapazdechamaremanteraatenção do público. Não falaremos aqui do processo de construção/produção dasnotícias, nem tampouco de sua complexidade, todavia, vale chamar atenção para ofato de que historicamente, tanto no ambiente da historiografia, quanto dojornalismo, o acontecimento mantém íntima ligação com a “verdade”, ou com apolítica de verdade (Foucault, 2008) da sociedade em que surge/irrompe,temporalmenteecontextualmente.

Acontecimentoeverdadeestiveramatreladosnoscamposdoconhecimento,durantea vigência damodernidade e suas narrativas científicas objetivas. Por outro lado, e,segundoFoucault,averdadenãoestáforadopoder.Averdademundanaéconstruídagraçasacoerçõesmúltiplaseseusefeitosnomundosãoregradospelopoder.

Cadasociedadetemseuregimedeverdade,sua“políticageral”daverdade,istoé, os tipos de discursos que ela aceita e faz funcionar como verdadeiros; osmecanismoseas instânciasquepermitemdistinguirosenunciadosverdadeirosou falsos, a maneira como se sancionam uns e outros, as técnicas e osprocedimentos que são valorizados para obtenção da verdade, o estatutodaqueles que têm a função de dizer o que funciona como verdadeiro(FOUCAULT,DitoseEscritosIII:112).

Énesseescopo,enquantouma instituiçãoconstrutora,verbalizadora,projetora,mastambém reguladora de uma verdade, que o jornalismo enquanto fenômenocontemporâneoseprojetousocialmentecomoumafalacredível,apartirdolugarqueocupava como um dos lócusdetentor do estatuto de verdade. Lugar este que vemperdendo velozmente, tanto pelo empoderamento da sociedade nas redes sociais,como pela implosão interna provocada pela visibilidade de seus reais processos econdutas.Ojornalismovive,portanto,empermanentecrise,nostermosqueKoselleck(2009) argumenta, visto que a crítica encontrou terreno fértil para crescer e a criseterrenoabertoparaseinstalar.

Em meio à crise de credibilidade das instituições que antes eram suportes para“emissão”de“verdades”,e,sobretudo,noqueconcerneaomundopolíticoatual,nosinquieta a proliferação de narrativas no ambiente político midiático que possuemcomo foco central não o acontecimento, ou, construção do fato, ou mesmo umarepresentaçãodeste,masnarrativasquesecentramnaemoçãoenosvaloresequemuitasvezes sãopautadasemdiscursosquenãopossuemnenhumfundode real,oquenoslevanovamenteaArendt(2011:288)paraquem

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[...]emboraasverdadesdemaiorimportânciapolíticasejamfactuais,oconflitoentre verdade e política foi descoberto e articulado pela primeira vez comrespeito à verdade racional. O contrário de uma asserção racionalmenteverdadeiraéouerroeignorância,comonasCiências,ouilusãoeopinião,comonaFilosofia.Afalsidadedeliberada,amentiracabal,somenteentraemcenanodomíniodasafirmaçõesfactuais;eparecesignificativo.

Esseembateentreofatoesualigaçãocomaverdadeeasnarrativasemocionaisenãoverdadeiras,quesãoobjetodasobservaçõeseponderaçõesdeArendt (2009,2011),quandosedebruçasobreoholocaustoeosextremismosdasegundaguerra,emquecrise,catástrofeetraumasemergememnívelmundial,retornanosdiasatuaisapartirdo avanço conservador na esfera política no ocidente. Para Kukatani (2018:11), odeclíniodaverdaderevelaoenfraquecimentodopapeldosfatosnavidapública,

E não são só notícias falsas: também existe a ciência falsa (produzida pornegacionistasdasmudançasclimáticaseanti-vaxxers,osativistasdomovimentoantivacina), a história falsa (promovida por revisionistas do Holocausto esupremacistas brancos) , os perfis falsos de norte-americanos no Facebook (criados por trolls russos ) e os seguidores de “likes” falsos nas redes sociais (geradosporbots).

D’Ancona (2018), por sua vez, em análise similar, nos alerta para o que chama detendênciaglobalqueseriaodesmoronamentodovalordeverdade,queelecomparaaocolapsodeumamoeda.Paraesteautor,nãoexistemaisfépúblicaeminstituiçõeseatoressociaisqueantesrepresentavamlugaresconsagradosdeconstruçãoeemissãodenarrativasdeverdade,taiscomoojornalismo,aacademia,aciênciaetc.

Umaquestãointeressanteéqueambososautoresmencionadosporúltimo-asaber:KukatanieD’Ancona-elencamque,naesteiraecomoinfluênciadoafastamentodofatodasnarrativasmidiáticasehistóricas,estariaadesconstruçãodorealedaverdadetrabalhadospelos filósofos, sociológose teóricospós-modernos, cujosensinamentosde algummodo teriam chegado de forma equivocada ao establisment político e aohomem comum, ou, como prefere Foer (2018), ao mundo que não pensa,influenciandoelevandoaumdescréditodasnarrativasmidiáticas/jornalísticas,comotambém,dasnarrativascientíficasehistóricas.

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2.2 Embuscadecaminhosepistemológicos,denovaspráticas,novosprocessosenovoshorizontes

A contextualidade exposta é, portanto, complexa e pressupõe novas posturas aosprofissionais e cientistas que trabalham com proximidade ao factual e precisamreforçar seus lugares de produção de narrativas credíveis, sejam elas científicas,históricas ou jornalísticas, uma vez que a crença se destaca nos dias atuais,impulsionadaporvalorespessoaise,emgrandemedida,porumanarrativa religiosaconservadoradegrandealcanceerepercussão.

NessesentidoéqueMunizSodré(2014),imbuídodeumaintencionalidadecrítica,mastambémdefortalecimentodaepistemologiadocampodacomunicação,propõeumaciência/docomumquecomporteasociedadeatual.

[...] O que muda na sociedade contemporânea é a profunda afetação daexperiência atual pela acessibilidade imediata das novas tecnologias dacomunicação, que acaba transformando a “ferramenta” (o dispositivo técnico)numaespéciedemoradapermanentedaconsciência.Otempodaexistênciaseinscreve na causalidade maquinal da eletrônica. Assim, a temporalidade seacelera, criando efeitos de simultaneidade e sensações do imediatismo dosacontecimentos.O“efeitoSIG”(simultaneidade,instanteneidadeeglobalidade)já está definitivamente inscrito na temporalidade cotidiana, abolindo todas asdistânciasespaciaispelaprevalênciadotempo(SODRÉ,2014:115).

Nessecenário,seseguirmoscomSodréeWolton,porexemplo,vamosperceber,pelomenos de imediato, um dos lados do processo de crítica que culmina com a criseholísticaqueseestabelecenosmeiosjornalísticosnocenáriodigital.Vistoqueos

[...]mediadores, para se protegeremdas pressões que sofremdo exterior, seautolegitimam e consideram suas escolhas como objetivas e justas. Eles estãoconvencidos – e isto é, sobretudo, verdadeiro para a elite jornalística - dedesempenharumpapelessencial.Oenormesistemadecomunicaçãodenossassociedades chega assim ao resultado paradoxal de só iluminar um númerolimitadodeproblemasedeinterlocutores(SODRÉ,2014:116).

Nessediagnósticoinicial,oautorapontaparavertentesproblemáticaseconcernentesaocampodacomunicaçãoedojornalismo.Deumlado,aautolegitimaçãoacarretaemcontraefeitos epistemológicos, uma vez que, “[...] o discurso produzido pela mídiasobre a mesma perturba o princípio epistemológico da não consciência, segundo oqualsãoinadequadasasmotivaçõesdosagentessociaisparaseestabelecerosentidode suas ações” (idem). O que por sua vez acarreta em um conflito no campo dasrepresentaçõesqueacomunicaçãoconstróisobresimesma.

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Imersonumainsólitacontinuidadeentreosujeitoeoobjeto,omeioprofissionalconstróiumanarrativasobreasuaprópriaatividade,comumfundopedagógico,mascertamentediferentedareflexãoescolarizada(aeducaçãosistemática)quea disciplina científica favorece, embora o jornalismo dito “de qualidade”, paripassucomodeclíniogeneralizadodaformaescolar,tenhaassumidoaospoucosodiscursodasciênciassociais(SODRÉ,2014:118).

Em outro prisma, os meios jornalísticos de “referência” comumente, como afirmaSodréacima,limitamosatoressociaisquepodemtersuasfalasvisibilizadasatravésdagrandemídia,deixandograndepartedasociedadesemacessoaumavozquetenhaalcance nacional. O monopólio da fala reduz a diversidade narrativa, deixando quepoucasversõesdiscursivasprevalesçam,muitasvezes forjandoumconsensoapartirdaagendadamídia.

O fatoéque,analisandoaspráticasenãoasconstruçõesepistemológicas,comofazSodré, nós nos deparamos com a mesma tensionalidade, uma vez que“[...]mergulhados na onipresença da informação e das redes, na qual cada um épotencialmentecapazdeseexprimir,ospúblicosnãosedeixamconstituirfacilmentecomoobjetosdeanálise[...]”(SODRÉ,2014:118).Comobemdestacaoautor,háumhibridismo entre os atores da produção e do consumo, ou melhor, entre oconhecimentoeoconsumoque“[...]manifestadamenteseconfundem,estreitandooespaço para a emergência de um campo autônomo do saber comunicacional quedeveria funcionar como um novo tipo de mediação crítica entre os atores sociaisafetadospeladimensãotecnomercadológica”(idem).

Poroutrolado,asociedadedadesinformação,aoladodasestratégiasdeummercadoque disputa nossa atenção o tempo todo, nos leva, em diversas vertentes, a umaimpotência do agir comunicativo, o que, por sua vez, converge para questõescomplexas e provoca pontos de ruptura, como dito, entre os contratos de leituraanteriormentevigentesentreosmeios jornalísticosea sociedade, sobavigênciadodesentendimento4decaráterpolítico,nosentidodeRancière(2018).Naeconomiadaatenção,

4Pordesentendimentoentendemosumtipodeterminadodesituaçãodefala:aquelaemqueumdosinterlocutoresaomesmotempoentendeenãoentendeoqueooutrodiz.Odesentendimentonãoéoconflitoentreaquelequedizbrancoeaquelequedizpreto.Éoconflitoentreaquelequedizbrancoeaquelequedizbranco,masnãoentendeamesmacoisa,ounãoentendeoqueooutrodizamesmacoisa comonomedebrancura.A generalidadeda fórmulaexigeevidentementealgumasprecisõeseobriga a fazer distinções. O desentendimento não é o desconhecimento. O conceito dedesconhecimentopressupõequeumoutrodos interlocutoresouosdois-peloefeitodeumasimplesignorância,deumadissimulaçãoconcertadaoudeumailusãoconstitutiva-nãosaibamoqueumdizouque diz o outro. Tampouco é o mal-entendido produzido pela imprecisão das palavras (RANCIÈRE,2018:10).

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[...] em um mundo rico de informações, a riqueza de informações significa aescassez de algo mais: a escassez do que quer que seja que a informaçãoconsume.Oqueelaconsumeébemóbvio:aatençãodeseusrecipientes.Assim,uma riqueza de informação cria uma pobreza de atenção e a necessidade dealocar a atenção eficientemente entre uma super-abundância de fontes deinformaçãoquepodeconsumi-la(SIMON,1979).

Poroutrolado,comodito,impõe-seumaimpotênciadoagircomunicativo5enquantogerador de racionalidade, criticidade e razoabilidade e proposto enquanto umaalternativapraumaaçãoestratégicaintencionalemanipuladora(HABERMAS,2019).O agir comunicativo seria omotivador para o diálogo, objetivando o entendimentopautadoemdecisõesconsensuais.

Todavia, tomando como base os atuais processos comunicativos, degenera-se acapacidade para o diálogo e as bolhas se estabelecem intencionalmente pelasestratégiasdemarketingpautadasemumapsicologiabehaviorista,queseestruturamesedisseminam,emgrandemedida,pormeiodebotsealgoritmos,comonocasodascampanhas políticas desenvolvidas pela Cambridge Analytic na Europa, África eAmérica do Norte que tem como mote estratégias intencionais de construção daignorância.

Nojornalismoéinteressanteacompanharoprocessodeimplosãodosvaloresdeumasociedadeedesuasconstruçõesbasilareseconstituídasnoregimedehistoricidadedamodernidade(HARTOG,2015),cujospilaresestãosofrendoembatesecríticasdiárias.

O fato é que o ethos jornalístico constituído em um ambientemoderno, sobretudocomo uma prática social mercadológica e vendável por sua proximidade com afactualidade,atravésdemétodoscriadosparamanteressaproximidademinimamentevisível aos olhos do público; tem sido contestado e apropriado pelo mainstreampolítico de vários países, mas também, pela sociedade e pelo mercado dadesinformação que, empoderados, produzem conteúdos sem ter a factualidade ouumaproximidadepossívelcomaverdade,comopreocupação.

Acredibilidadedeumjornalismoqueseconstituiumercadologicamentecomolugardefala respeitável está sendo contestada e novos métodos, ou a prática de tornarmétodosantigosvisíveis,estãosendotestados,através,porexemplo,dasagênciasdechecagem. Todavia, tais práticas, a nosso ver, não são suficientes para queestabeleçamos um novo pacto social em torno da importância da factualidade nasociedadecontemporânea.

5Habermas (2019) define algumas normas universais características do agir comunicativo, como odiálogoimparcial,a inclusãocompletadaoposição,a liberdadedeopiniãoeafacilidadedeinteração,dentreoutros.

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Velhosmeiosem“novos”suportestrazemvelhase“novas”práticas,objetivandofazê-las conviver emuma sociedadequenãomais faz partedo contrato estabelecidonopassado. Nossa sociedade já estabeleceu novos processos de construção de cadeiasinformativasquemuitasvezesnãopassamsequerpelo jornalismo,mesmoenquantolugardechecagem.

Asrupturasestãovisíveis.Aestruturaestáexposta.Quaiscaminhosháparaseguir?

Mesmo assim, ainda vivemos no Brasil uma grande concentração de empresas decomunicaçãoemmãosdepoucosgruposfamiliareseempresariais.SegundooMediaOwernshipMonitor6,os50maioresveículosdecomunicaçãodoBrasil,considerandoaaudiênciacomoprincipalparâmetrodorankingrealizadopeloMOM,sãocontroladosporpoucosgrupose26delesestãoligadosaapenas5famílias.

Todavia, desde o início da atual década, tem surgido no Brasil práticas de umjornalismo híbrido que tanto carrega um lastro do passado enquanto prática social,como um encontro com um horizonte de expectativas (KOSELLECK, 2015). Essaspráticas podem ser visualizadas no que se está denominando de mídia livre, comotambémemsitesdejornalismointerpretativoeexplicativo,masque,emsi,serevelamcomoumjornalismoqueapontaseuladoesepropõeaserresistênciaemumcenáriopolíticoextremamentecomplicado.

EssessiteseplataformasseguemospassosdoIndymedia(2000),CMI(2001),dentreinúmerosoutros,doentãodenominadojornalismocidadão,quesedestacaramcomowebjornalismoentreosséculosXXeXXI.

3 UmolharinicialparaasmídiaslivresnoBrasil

No começo deste texto, deixamos claro o seu caráter híbrido, portanto teórico-empírico, ensaístico e interpretativo, cujo processo de análise e interpretação temcomoguiaahermenêuticadaconsciênciahistóricadeRicoeur(2010).Ointuitoinicialfoiproporcionarumencontroentreepistemologias,teoriaseconceitosemtransiçãoeapráticajornalística,emumexercíciodapraxe.

Todavia, não há aqui uma intencionalidade de análise profunda e resultadosdefinitivos, mas tão somente um processo de interpretação ainda inicial queesperamos,possalevarapesquisasmaisaprofundadas.6 O Media Ownership Monitor é uma iniciativa do Ministério de Cooperação Econômica da Alemanha em parceria com a Organização Repórteres sem Fronteiras.

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Noambientedasmídiaslivres,portanto,voltamosnossoolharparadoisdosprincipaiscoletivosquetemsedenoBrasil,asaber:MídiaNinjaeJornalistaslivres.

3.1 MídiaNinjaAMídiaNinja(NarrativasIndependentes,JornalismoeAção),nascidaem2011apartirdeumaarticulaçãodarededecoletivosdenominadaForadoEixo,seconfiguracomouma rede demídia declaradamente de inclinação ideológica de esquerda, comumaatuaçãosociopolítica,esedeclaracomoumaalternativaàimprensamercadológica.Aredeencontra-sepresenteemmaisde250cidadesbrasileiras.

AMídiaNinja,alémdeserumarededejornalistas,colunistasecolaboradoresqueseespalhampelopaís,trabalhaapartirdaintegraçãodasmídiasedasredessociaiscomcanais no Facebook, Twitter, Flickr, Tumblr e Instagram, para alémdo seuportal denotícias.AspráticasdaMídiaNinjaseestruturam,sobretudo,apartirdeumfluxodevídeosemtemporeal,aosquaisseseguemnotascurtasounotíciasmaisexplicativas.

Figura1-PortalMídiaNinja(http://midianinja.org/)

Emseuportal,localizamosumarelaçãodeperguntassobreosprincipaispontosdeseumodelodetrabalhonocampodacomunicação,ou,comodenominam,deseuarranjo.A primeira das perguntas se refere ao jornalismo: A Mídia Ninja é jornalismo?Resposta:“Sim.OJornalismoéumadasferramentaselinguagensqueutilizamosparalevantartemasedebates,fortalecendonarrativasquenãotêmvisibilidadenosmeiosconvencionais de comunicação”. Ainda no campo das características do ethosjornalístico moderno, a segunda pergunta enfoca a questão da imparcialidade. E arespostaéenfática:aMídiaNinjanãoéimparcial.

Defendemos abertamente a parcialidade enquanto um princípio de nossotrabalho, por acreditar que nenhuma construção humana é capaz de serimparcial, já que resulta da soma e do acúmulo de todas as suas experiênciasanterioresedenossasvisõesdemundo.

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OJornalismo–assimcomoaciência–apoiaram-sehistoricamentenanoçãodeimparcialidade como forma de ter credibilidade e legitimidade. Contudo, comumanovalógicadetrocadeconteúdoecomnovaspossibilidadesdeaudiência,mais do que buscar uma única “verdade” para os fatos, temos hoje umamultiplicidadedeleiturasepossibilidades,eissoéoquequalificaatualmenteoconteúdoeéabasedatrocadeinformaçãoecredibilidade.

Valorizamosamultiplicidadedeparcialidadesebuscamosalinhara informaçãocomumconjuntodevaloresedireitossociais,comosquaistemoscompromissoequeparanóssãofundamentais.Nossaspautassãonossascausas.Acreditamosnomovimentoenatransformaçãosocial,apartirdeumaexperiênciaradicaldemídialivreedistribuída,aserviçodeumanovanarrativasocial,maiscomunitáriaemaisafetiva(MÍDIANINJA,2019).

Aindasobreaatuaçãonocampodacomunicação,aredeesclareceoquepensasobreasmídiastradicionais.ParaaMídiaNinja,

Asgrandescorporaçõesdemídiavivemumaintensacrise.Essemomentopodeserentendidoemdoisaspectosprincipais:noâmbitoeconômico,deummodelopautado pela venda de anúncios e a circulação física de publicações que nãoconseguemseadaptaraosnovostemposdigitais,edecredibilidade,poranoseanosdeomissãoemanipulaçãodeinformaçõesemproldopodereconômicoedegrupospolíticosdeseuinteresse.

A velhamídia está amarrada a uma linguagem e a um padrão de qualidade que sãoparadigmas do jornalismo comercial, com pouca abertura para experimentação eadaptaçãoàsnovasformasdeproduçãoeinteraçãocomainformaçãopermitidaspelaexplosãodasredessociais(MÍDIANINJA,2019).

Em grande medida, as mídias livres estão conseguindo pautar os meios decomunicaçãotradicionais,empartepelagranderedequepossuemcomtentáculosemtodoopaíse,emtodososeventos,manifestaçõesenasmaislongínquascidades.Osjornalistas e cidadãos vinculados ou não àsmídias livres, ao transmitir os eventos edenunciar situaçõespolíticas, sociais, culturais, etc., se comunicamdiretamente comcada mídia, pelas redes sociais, marcando as hastags do momento, retirandocomunidades inteiras do silêncio imposto pelas mídias tradicionais. A visibilidadeproporcionadapelas redesestápautandoemgrandemedidaosgrandesveículosdejornalismotradicional.Inúmerosexemplospodemseracompanhadosdiariamenteemtemáticas que surgemnaMídiaNinja e que a noite se colocam comodestaquesnotelejornalismo. Todavia, há também pautas muito divulgadas pelas mídias livres eatravés das redes sociais sobre as quais a mídia de “referência” se cala e tentasilenciar, visto que são pautas sociais que não fazem parte de seu interessemercadológicoe/oupolítico.

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O site ainda esclarece como se relaciona com outras mídias livres e com a mídiatradicional.Sobreoutrasmídias independentes,aMídiaNinjaadotaumaposturadepositividade.

Acreditamosnacolaboraçãoecooperaçãocomoprincípiosbásicosparacriaçãode novas formas de sociabilidade na sociedade contemporânea. Além disso,entendemos que neste novo contexto global, a descentralização e ademocratizaçãodacomunicaçãosão fundamentaisparadarcontadosdesafiosde consciência dos cidadãos do mundo. Defendemos e acreditamos que éfundamental o surgimento e o desenvolvimento das mídias independentes ebuscamos fomentar essa perspectiva a partir de nossas ações. Apenas com auniãoecolaboraçãoentreasmídiasindependenteséquepoderemosapresentarnovasalternativasdejornalismoecomunicaçãoefazercontrapontoaumamídiatradicional altamente verticalizada pelos interesses econômicos e politicosestabelecidos. Sendo assim, colocamos este portal à disposição de coletivos eveículos midiativistas para divulgação de seus conteúdos e trocas deexperiências.Vidalongaaomidialivrismo!(MÍDIANINJA,2019).

Jánoqueconcerneàsmídiaseveícujos jornalísticosmercadológicosetradicionais,aMídia Ninja se coloca como sendo um fator de transformação no campocomunicacionalejornalístico.

AExperiênciadaMídiaNINJAcausouumgrandeabaloetrouxenovosenfoquesaodebatedecomunicaçãonoBrasil.Oquegarantiuessapotênciafoiumasomade fatores:maisdeumadécadadeacúmulodas reflexõesepráticasdeMídiaLivre, o surgimento constante de novas tecnologias que barateiam edemocratizamoacessoàproduçãoeàdistribuiçãodeconteúdo,umacrisenosistema de comunicação que entende a informação como commodity e,principalmente,aexistênciadeumaarquiteturaderede,construídaapartirdaexperiência do Fora do Eixo, que foi capaz de difundir commuita eficiência oconteúdoproduzidopelaMídiaNINJA.

NocontextodasJornadasdeJunho,noqualassistimosaumsaltodeconsciênciapolíticadoPaís,oregistroeatransmissãodosprotestosfeitosdedentroecommúltiplos pontos de vista, apresentou um material que ao mesmo tempoganhava muita credibilidade e era viralizado pelo público, que não se viarepresentado pela cobertura da velhamídia. Esse quadro instigava os veículostradicionaisatrataremopróprioprojetodaMídiaNINJAcomonotícia.

Todo esse arranjo gerou ampla visibilidade e ajudou a mudar as ideias decomunicação,apartirdeumexemplopráticodecobertura independente feitaemrede(MÍDIANINJA,2019).

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Consideramos, portanto, aMídiaNinja, parcialmente, dentrodeumescopodeumapós-modernidadee intencionalmentee conscientemente foradeuma concepçãodejornalismopautadoemumethosconstruídodentrodeumregimedehistoricidadedamodernidade e cuja credibilidade e reputação foram construídas a partir de umpretenso lugar social de verdade, em que um método, pautado em práticas deapuração, pretensas objetividade e fidelidade ao fato, imparcialidade conferida pelaoportunidadedefaladaspartesenvolvidasnoacontecimento,regiatantoaformadeatuaçãodos jornalistasqueusavamumóculosespecialepossuíamumdeterminadohabitusqueosrelacionavadiretamenteaovaloresdocampo(BOURDIEU,1989,1997).

Consideramos aMídiaNinja parcialmente imersa na pós-modernidade, porque esta,mesmo se afastando dos métodos “antigos” de construção de narrativasinformativas/jornalistas procura trabalhar em prol de uma verdade, trazendo aautoridade jornalística do passado, enquanto tradição do campo, reforçando que averdadesobreaverdadepassapornós,jornalistas.Poroutrolado,seutilizatantodalinguagem jornalísticaconfigurandoa formaçãodas tradições instituídasnopassado,como trabalha como uma correia de transição para as novas verdades anunciadas,conformandoumprocessodetradicionalidades,conformeRicoeur(2010).

AMídia Ninja é clara ao explicitar o seu modo de trabalho e de compreensão dojornalismo e anuncia, assim, um horizonte que se interliga a uma experiência, vistoque,atéofinaldoséculoXIX,ojornalismosemanifestavadeformaparcialatravésdasfolhaspolíticaseopinativas.AMídiaNinja inovacomumposicionamentosubjetivoeparcial,mas, tantoquantonopassadodo jornalismopolítico,deixaclarooseu lugarsocial(CERTEAU,2011).

O horizonte anunciado nos faz recorrer a Gadamer (2015), para quem nem todaverdadenecessita,primordialmente,deummétodomoderno,elapodeestarpautadaemuma visão clara demundoque contemple os valores de uma sociedade em suacontemporaneidade. Toda objetividade passa antes por um processo de escolhasubjetivo,logo,emquepesequetodojornalismoéumanarrativafeitadeescolhas,háqueseconferirolugarprimordialqueasubjetividadepossuinesseprocesso.Poroutrolado,oreconhecimentodaparcialidadecomoalgoinerenteàcondiçãohumanadotaaprática jornalística de uma flexibilidade narrativa; todavia, não reduz aresponsabilidadedonarrador,aocontrário,seimpõeumimperativoéticoqueinterligaoprofissional,oacontecimentoeanarrativaexpostaaopúblico.Novamente,tradição,tradições e tradicionalidades se fazem presentes como marcas da experiência docampo jornalístico e comunicativo que embora mutante, não se desprendecompletamente do passado, reforçando a necessidade de manutenção de vínculoscomaexperiência.

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3.2 JornalistasLivresOs Jornalistas Livres se autodenominam uma rede de coletivos cuja característicaprimordialéadiversidade.“Existimosemcontrapontoàfalsaunidadedepensamentoeaçãodojornalismopraticadopelamídiatradicionalcentralizadaecentralizadora”.

A rede de coletivos se coloca em oposição ao mercado jornalístico midiático e fazquestãodecolocarsuaindependênciaemrelaçãoaomercado,patrõesouempresas,destacandocomoprimordialprincípioaliberdadeeadefesadesta.

Figura2-JornalistasLivres(https://jornalistaslivres.org/)

No que concerne aomodelo narrativo adotado pela rede, destacam que produzemreportagenselamentam

[...] o confinamento a que a indústria midiática relegou ao mais nobre dosgêneros jornalísticos e trabalhamos para reduzir o abismo de desequilíbrio. Amatéria-prima de nossas reportagens é HUMANA. Almejamos um jornalismohumano,humanizadoehumanizador,ancoradoprincipalmenteempersonagensdavidareal(nãosóemestatísticas),nafrondosadiversidadedavidadentrodafloresta(nãoàdistânciarobocopdastomadasaéreaspanorâmicas),nafortunadashistórias(nãodoscifrões)(JORNALISTASLIVRES,2019).

Alutapelademocratizaçãodainformaçãoedacomunicação,assimcomoalutacontraamídiatradicionalqueimpõeummododepensaredeproduzirjornalismo,encontra-senapautacentraldosJornalistasLivres.

Agimos por espírito público, jamais por interesses privados. Produzimosreportagem,crônica,análise,crítica,nuncapublicidadeoulobbyprivado.Somosjornalistas-cidadãse jornalistas-cidadãos,comprometidosa informar sobaégideda cidadania e do combate às desigualdades. Trazemos notíciasdosfracoseoprimidos, sabendo que individualmente tambémsomosfracoseoprimidos[...](JORNALISTASLIVRES,2019).

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Noqueconcerneàimparcialidade,tantoquantoaMídiaNinja,osJornalistasLivressãoenfáticos:

[...]nãoobservamosos fatoscomoseestivéssemosdelesdistantesealienados.Sabemos que a mídia, o jornalismo eosjornalistas interferem diretamentenaquilo que documentamos, reportamos e interpretamos. Não nos anulamos,não nos apagamos das fotografias, não nos escondemos atrás dos fatos paramanipulá-los. Nos assumimos como participantesativosdos fatos quereportamos. Participamos da realidade como cidadãos e cidadãsmovidospelointeresse coletivo: transparentes,francos,abertos,democráticos (JORNALISTASLIVRES,2019).

Destacamque,enquantorede,nãocompetementresi,equecadaumtemseuprópriolado, sendo que, individualmente, não são neutros, não são imparciais. “Nossapluralidade é resultado do agrupamento de todos nós, não da ruptura interna denossoscorposementesindividuais(JORNALISTASLIVRES,2019).

Os Jornalistas Livres ressaltam que acreditam no jornalismo como potencialconhecimento transformador e formador de opinião, capaz de dar visibilidade etranspor desigualdades em prol de um mundo menos “[...] autoritário e menosconcentrado”. Por outro lado, destacam não tolerar manipulações midiáticas oupolíticas.

OsJornalistasLivresafirmampraticarumaobservaçãodocotidianoeaplicarosensocríticosobumprismapositivo.

Nosso jornalismo é afirmativo, jamais reativo ou reacionário. Não somosjornalistas contra (tudo e todos), somos jornalistas a favor (da justiça, doaprimoramentohumano,daconvivênciaemsociedade,datroca,daalegria,dafelicidade, da sexualidade, da paixão, do amor, da luta por um planeta maislimpoparaasgeraçõesquevirão)(JORNALISTALIVRES,2019).

Dopontodevistadeumethosjornalísticomoderno,osJornalistasLivrescontestamaimparcialidade e, de certa forma, a objetividade, ao se reconhecerem dentro doacontecimento observado, mas reforçam a importância da instituição e das suasformasdenarrar. Reforçam seuatrelamentodevidoao fatoe a versõesde verdadequedevemseaproximardeumreal,obviamente,considerandoqueosprocessosdeprodução da notícia, desde o gatekeeping até publicação no portal e nas diversasredes sociais, são hoje pautados pela sociedade e atravessados pelas possibilidadestecnológicas.

Para os Jornalistas Livres, o jornalismo em mutação deve manter seus principaispilares,que,emseumododevisão,nãoseencontramnomercadomidiático,masnapotencialidadedocampoedeseusatores,aosquaisse incorporamoscidadãosque

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podemcontribuircomanotíciadeboaqualidade.Aquiapresençadaexperiênciasemanifesta pela necessidade de uma tradição enquanto verdade do passado, vínculoprincipal com uma construção da reputação do campo jornalístico. Por outro lado,tambémseestruturaatravésdamanutençãodeuma linguagem jornalística,mesmocom as inovações tecnológicas acidentais e intencionais, assim, as tradicionalidadesenquantolinksqueestruturamnovoscontratosentrepúblicoeveículo,seanunciamecorrempelaredeformadaemtornodosJornalistasLivres.

4 IlaçãoEmgrandemedida,omidialivrismoencontra-serelacionadoaumaproduçãomidiáticaa partir das comunidades, coletivos e, em muitos pontos, se confunde com umativismo midiático, ambos correndo pelas vias alternativas e buscando umademocratizaçãodoacessoàinformação.

Deumpontodevistahistórico,lembramosquedesdeadécadade1990jáhaviaumablogosfera alternativa com jornalistas e cidadãos “nadando” na contracorrente domercado de comunicação centralizador que, no Brasil, como visto, é dominado porpoucos grupos. No final do século XX, nasceu o webjornalismo cidadão, com sitesarticuladosemrede,comoo IndymediaeoCMI-CentrodeMídia Independente,com“filiais”emtodoomundo,dentreoutros.Elesseestruturarameganharamaadesãode colaboradores em várias partes do globo. O Overmundo7, site que destacaatividades culturais do Brasil, possui colaboradores de todos os estados e ainda seencontraematividade.

Desse cenário inicial, proliferaram inúmeros meios e as formas e as práticasjornalísticas foram se transformando. Mais recentemente, creio ser necessáriodestacar, de um lado, a proliferação das mídias alternativas que ganham a redemundial de computadores se apropriando das possibilidades tecnológicas e daconvergência,modificandooprocessode filtragemdas informaçõesedeconstruçãodo processo noticioso e, de outro, o fato de que os veículos de comunicaçãocorporativos tradicionais se apropriam tanto das possiblidades tecnológicas quantodas novas linguagens e modos livres de produzir e fazer fruir a informação criadasdentrodeumarededemidialivrismoe/oudeativismo.Então,se,porum lado,háainserçãoinegáveldenovasfalasnocampocomunicacionalenainteraçãodestecomasociedade,poroutro,háumaapropriaçãodocampotradicionaldoquehádenovoeuma tentativa do mercado de manter o controle dos fluxos de comunicação e da

7http://www.overmundo.com.br/

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possibilidadedeatuarcomoformadordeopinião,emmuitoscasoscomodetentordeummonopóliodafala.

Contudo,éválidoobservarqueacomunicaçãosegmentadaquefluiviaredessociaisdigitaiseembasadaembasesnãofactuaise,portanto,emgrandemedidafomentadapor narrativas mentirosas, vai em certa medida ultrapassar negativamente osprocessoscomunicacionaistantodomidialivrismoquantodasmídiastradicionais,vistoque ambos, pelo imperativo da instituição jornalística na qual se inserem, sãofundamentadosnofactual.

Os“canais”demidialivrismonostrazemapossibilidadedeacompanharoutrosângulosdos acontecimentos, além de possibilitar a participação comunitária sob diversasformas e fazer fruir a informação, se utilizando positivamente do arcabouçodisponibilizadopelasgrandesempresasdoambientevirtual,mastambémprocurandomanter em grande medida a tradição do campo jornalístico, se utilizando daslinguagensenquantotradiçõesecriandovínculosdetradicionalidadesqueinterligamopassadodocampoàsnovasexperiênciasqueseanunciam.

Do ponto de vista da centralidademidiática, na sociedade brasileira temos algumascaracterísticas a serem consideradas, pois ao tempo em que as mídias eletrônicaschegam a todos os lares brasileiros, somos a sociedade com o maior número deusuáriosdemídiassociaisdigitaisnomundo(REUTERSINSTITUTE,2019).Aformaçãodas“almas”(CARVALHO,1996),portanto,aparentemente,deumlado,aindaestánasmãos domercadomidiático/jornalístico tradicional. Entretanto, temos noBrasil, porexemplo,cercade120milhõesdecontasdeWhatsApp,aplicativoqueemnossopaíssetransformouemredesocial,apartirdosusosgrupaisqueforamfeitosnoperíododo pleito eleitoral de 2018. A mesma pesquisa do Reuters Institute revela que umgrandenúmerodebrasileirosseinformapelasredessociais,oqueabreespaçotantoparaaproliferaçãodasfalsasinformações,comoparanarrativasdeproximidadequenãotêmofatocomoguia.

Nesse contexto, portanto, as mídias livres manifestam sua importância comonarradores de pontos de vista sobre acontecimentos que não se coadunam com osveículos de comunicação domercado tradicional, nem tampouco se assemelhamaotrabalho do mercado da desinformação. A importância dos veículos livres estájustamente na possibilidade de não se situar acima, abaixo ou ao lado de qualquermídia tradicional, mas em traspassar essas e se colocar no momento necessário,tensionandoo campo.O lócusdessasmídiaséo tensionamento social, comversõesfactuaisdistintasdasveiculadaspelastradicionalidadesmidiáticas.

Anãosubmissãoàsregrasdeummercadodainformação,nemtampoucoaumethosjornalístico completamente pautado na objetividade e imparcialidade, possibilitatransformaçõestransgressorase,aomesmotempo,portadorasdeumahistoricidade

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que revela os anseios de uma sociedade emque a isenção não émais aceita comonatural.Asmídias livres,comodito,possibilitamoacessoaversõesfactuaisdistintasdas veiculadas comumente nos meios tradicionais. Trazem, em outro prisma, apossibilidadedeproduçãodeconteúdoeinformaçãoemcomunidadesforadoeixo,aotempoemquereforçamoativismoculturaleomídiaativismo.

No que concerne a uma participação e formação política do cidadão comum, asarticulaçõesreticularesdasmídias livreschegamaenvolver jornalistasecidadãosdetodoomundo.Ousoque fazemdas redes sociais edaspossibilidadesde caminhosparapotencializaravisibilidadedeformapositivaédemáxima importânciaparadarvoz aos que não têm voz e para projetar o que comumente seria silenciado pelomercadodainformação.

Outro ponto de destaque é que as mídias livres assumem suas posições políticaspartidárias e ideológicas sem abandonar a base factual de produção da informação,mantendoovínculocomatradição8docampo.

Dentro de uma historicidade da comunicação, percebemos que em cadatemporalidadeascomunidadescriammeiosalternativosdecontradiscursosoficiaisoutradicionais.SenoséculoXIXtínhamosospanfletáriosdoprimeiroesegundoreinado,senaditaduracivil-militartínhamososjornaisalternativos,hojetemosumamídialivreque ocupa linhas de tensão entre os campos político, midiático e cultural. Logo, aexistênciadomidialivrismoéumanecessidadedenossotempo.

Por fim, vale destacar que as mídias livres aqui relacionadas e que compõem omovimentodenominadomidialivrismo,noqueconcerneaocampojornalístico,trazemimportantescontribuiçõesqueapontamhorizontesemquea informaçãopermanececomo um necessário bem público. Apontam também para rupturas do fazerjornalístico de um passado recente. Talvez o que o futuro nos reserva nemmesmovenha a se denominar jornalismo, visto que as formas de filtragem, apuração eprodução,tantoquantoasformasdenarrareosprocessosdefruiçãodainformação,já são bemdiferentes do que se praticava e, em certamedida, ainda se pratica emgrande parte dos meios jornalísticos tradicionais. Todavia, para além dastransformações que estamos vivenciando, há no horizonte uma esperança parasociedadeeestapassapelaqualidadeda informaçãoaqueapopulaçãotemacesso.Isto se refere tanto à informação jornalística quanto à científica, histórica, política,concernenteàsaúdeetc.

Encerro,assim,comoiniciei,comKoselleck(2009),paraquemtodoprocessodecríticae de crise, embora se estabeleça em grandes períodos, traz avanços para associedades. Esperamos que tragam formas promissoras para o campo jornalístico,8Na Hermenêutica da Consciência Histórica de Ricoeur (2010) os conceitos de tradição, tradições etradicionalidadestambémapresentamaspectospositivos.

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cujas crises e impermanências nos levam a um novo pensar para o ambienteprofissional.

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