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Cristologias Plurais De IVONE GEBARA Quem é Jesus de Nazaré? As respostas a essa pergunta foram sempre plurais desde os primeiros seguidores de Jesus. Os textos do Novo Testamento são as primeiras testemunhas do pluralismo fundante do Cristianismo. É na tentativa de reforçar o pluralismo cristológico no interior das comunidades cristãs que explicito as idéias que seguem. Acolher o pluralismo cristológico no interior das comunidades cristãs é a meu ver um passo importante para acolher o pluralismo das crenças e buscas religiosas dos diferentes grupos culturais sem pretender que nenhuma delas seja a mais importante e a mais verdadeira e absoluta experiência do divino. Na tentativa de explicitar algo do pluralismo cristológico para as comunidades cristãs uma sugestiva frase de São Paulo me veio ao espírito: « Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gál 2,20). O que Paulo teria experimentado quando a formulou? Da vida de qual «eu» se referia ele? Creio que Paulo com sua lucidez característica não tinha a pretensão de reproduzir em sua vida, a vida individual de Jesus de Nazaré. E, na mesma linha não julgava que todos os «eu» poderiam se reduzir ao seu próprio «eu». Assumir a partir de sua vida os valores que segundo sua compreensão de Jesus, davam sentido à sua vida, fazia dele um outro Cristo. Já estamos dentro do pluralismo cristológico. Por isso, podemos nos perguntar como poderá esta frase fruto de uma experiência pessoal ser verdadeira para nós hoje? Como podemos seguir Cristo se não ouvirmos quem somos e se não nos dispormos a modificar nossos comportamentos a partir do lugar onde estamos? Como posso seguir Cristo se não descubro seu rosto estampado em meu coração através de minha história e da história de meus próximos? Acaso 1

Cristologias Ivone Gebara

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Cristologias PluraisDe IVONE GEBARAQuem é Jesus de Nazaré? As respostas a essa pergunta foram sempre plurais desde os primeiros seguidores de Jesus. Os textos do Novo Testamento são as primeiras testemunhas do pluralismo fundante do Cristianismo. É na tentativa de reforçar o pluralismo cristológico no interior das comunidades cristãs que explicito as idéias que seguem. Acolher o pluralismo cristológico no interior das comunidades cristãs é a meu ver um passo importante para acolher o pluralismo das crenças e buscas religiosas dos diferentes grupos culturais sem pretender que nenhuma delas seja a mais importante e a mais verdadeira e absoluta experiência do divino. Na tentativa de explicitar algo do pluralismo cristológico para as comunidades cristãs uma sugestiva frase de São Paulo me veio ao espírito: « Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gál 2,20). O que Paulo teria experimentado quando a formulou? Da vida de qual «eu» se referia ele? Assim começa este importante texto de Ivone Gebara - Cristologias Plurais. Prossiga a leitura...

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Cristologias Plurais

De IVONE GEBARA

Quem é Jesus de Nazaré? As respostas a essa pergunta foram sempre plurais desde

os primeiros seguidores de Jesus. Os textos do Novo Testamento são as primeiras

testemunhas do pluralismo fundante do Cristianismo. É na tentativa de reforçar o

pluralismo cristológico no interior das comunidades cristãs que explicito as idéias que

seguem. Acolher o pluralismo cristológico no interior das comunidades cristãs é a meu

ver um passo importante para acolher o pluralismo das crenças e buscas religiosas

dos diferentes grupos culturais sem pretender que nenhuma delas seja a mais

importante e a mais verdadeira e absoluta experiência do divino. Na tentativa de

explicitar algo do pluralismo cristológico para as comunidades cristãs uma sugestiva

frase de São Paulo me veio ao espírito: « Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive

em mim» (Gál 2,20). O que Paulo teria experimentado quando a formulou? Da vida de

qual «eu» se referia ele? Creio que Paulo com sua lucidez característica não tinha a

pretensão de reproduzir em sua vida, a vida individual de Jesus de Nazaré. E, na

mesma linha não julgava que todos os «eu» poderiam se reduzir ao seu próprio «eu».

Assumir a partir de sua vida os valores que segundo sua compreensão de Jesus,

davam sentido à sua vida, fazia dele um outro Cristo. Já estamos dentro do pluralismo

cristológico. Por isso, podemos nos perguntar como poderá esta frase fruto de uma

experiência pessoal ser verdadeira para nós hoje? Como podemos seguir Cristo se

não ouvirmos quem somos e se não nos dispormos a modificar nossos

comportamentos a partir do lugar onde estamos? Como posso seguir Cristo se não

descubro seu rosto estampado em meu coração através de minha história e da história

de meus próximos? Acaso tenho que negar esta experiência fundamental para seguir

um Cristo ensinado a partir fora e a partir do alto dos poderes eclesiásticos? Acaso

para seguir Cristo tenho que trair o rosto do Cristo que vive em mim? Acaso tenho que

renunciar a minha cultura, a meu contexto de vida, aos gritos de dor particulares a

meu povo, gritos que ressoam em mim e ressoam em meus contemporâneos? Estas

perguntas que podem parecer pura retórica, não nascem de um pensamento

eclesiástico oficial que pretende ensinar a verdade universal válida em todos os

lugares e em todos os tempos, mas nasce da observação da vida ordinária das

pessoas comuns. Por isso, todo controle cristológico vindo dos poderes religiosos que

se auto-outorgam a posse da verdadeira doutrina sobre Jesus Cristo ou todo controle

que nós mesmos queiramos exercer uns sobre os outros, correm o risco de negar a

vida plural e diversa do Cristo em nós. Não se pode reduzir Cristo a uma fórmula, a um

dogma delimitado no tempo, a um comportamento único, a uma ação única como se

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pudéssemos policiar as diferentes formas de amor e afirmar então que todos nós só

podemos amar desta maneira afirmada como única maneira possível e verdadeira de

se viver o amor. Mas, quem é o Cristo que vive em mim? Como posso entendê-lo e

viver em mim sua verdade? Como posso ser fiel a uma tradição religiosa que é

reconhecida como cristã? Cristo, palavra de origem grega, significa o ungido, o

designado para uma missão especial. Por muito tempo se entendeu que Cristo era

apenas Jesus de Nazaré, trazendo através de sua pessoa, a salvação para toda a

humanidade. Hoje, na comunidade cristã, dizemos que Cristo é uma palavra que

significa que, cada uma e cada um de nós têm como Jesus de Nazaré a capacidade

de descobrir-se ungida e ungido para estar a serviço uns dos outros, para buscar com

os outros a justiça e o bem comum. É nesse sentido que todos nós somos Cristos, isto

é, responsáveis por acolher nossa humanidade e permitir que ela se desenvolva com

o respeito e a dignidade que merecemos. Se a tradição atribui a Jesus esta palavra de

maneira especial, foi para permitir que a partir de um homem concreto, Jesus de

Nazaré, pudéssemos perceber como se pode num determinado contexto e a partir de

nossa humanidade ser de fato Cristo. Em outras palavras a questão é de em cada

contexto criar «relações crísticas», isto é, relações de justiça, de amor, de ternura, de

verdade, de solidariedade uns com os outros assumindo nossa condição e

responsabilidade humana. Então, o mais importante em Cristo não é os atributos

divinos abstratos que lhe outorgamos. Não é a sua filiação divina num sentido religioso

hierárquico. Não é igualmente os atributos tirados das divindades do Olimpo grego ou

do mundo egípcio que acrescentamos à sua história ao longo dos séculos. O fato é

que, um de nós e cada um de nós, dentro de nossa própria humanidade pode tornar-

se Cristo. E quando nos tornamos Cristo acolhemos no mais profundo de nossa

humanidade aquela experiência simples que nos leva a reconhecermo-nos uns com os

outros, uns para os outros, como um mesmo corpo. Um corpo que só vive uma vida

plena se cuidarmos respeitosamente uns dos outros, se instaurarmos cada dia de

forma renovada relações de respeito, de justiça e ternura entre nós. A Cristologia

plural é simplesmente a acolhida dessa intuição das primeiras seguidoras e

seguidores de Jesus. Pode ser vivida como experiênciahumana de relação com as

pessoas próximas ou distantes de nós de forma sempre renovável. Nesse sentido,

determinar dogmaticamente as formas dessa relação e empregar palavras únicas para

expressá-la não parece fazer parte da tradição que herdamos dos Evangelhos. É

nesse sentido que nos lembramos de São João quando nos diz que «o vento sopra

onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai.

Assim acontece com todo aquele que nasce do Espírito» (Jo 3,8). Este vento sopra

em nós ou respira em nós ou respiramos nele, quando sentimos o quanto a dor do

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outro nos move as entranhas e se torna de certa forma nossa dor. Por isso, buscamos

com ele ou com ela saídas para aliviar seu sofrimento e nutrir suas esperanças. É o

vento, brisa suave ou tempestade que nos aproxima dos nossos semelhantes e nos

faz descobrir que somos da mesma carne, um mesmo corpo com a Terra. Este corpo

embora dividido pelo sofrimento e pela ganância que estão em nós é a única realidade

que somos. E, é ele mesmo o corpo de Cristo simbolizado de diferentes maneiras.

Sabemos por experiência que o vento que sopra nele não é sempre o mesmo nos

diferentes lugares e nos diferentes tempos. Como então exigir que seu ruído seja

conforme a uma lei ou a uma regra única? E como proibir ao vento seus diferentes

ruídos e intensidades querendo controlá-lo como o fazem os senhores do mundo?

Para eles as riquezas do mundo têm que correr para seus cofres, o saber do mundo

para seus computadores para que o controlem e acumulem riquezas sem pensar que

«a ferrugem e a traça irão corroê-los» (Mt 6,19). Mas, «entre irmãs e irmãos não

pode ser assim» (Lc 22, 26), dizia Jesus em um dos encontros com suas amigas e

amigos. Na mesma mesa senta-se a prostituta, o leproso, a hemoroíssa, o homem da

mão seca, o cobrador de impostos, o velho, a criança e cada um afirma o Cristo que

vive e busca para que «o amor seja tudo em todos». A diversidade de vidas expressa

a diversidade das formas de amor e das formas poéticas para expressá-lo na

fidelidade ao que somos e ao bem querer que cultivamos uns para com os outros.

Cristologias plurais 132 · Cristologias plurais respondem ao pluralismo da vida, à sua

complexidade, à diversidade de situações em que o amor e a justiça acontecem no

meio de nós. Como se pode ousar reduzir a criatividade do amor? E, no entanto,

estamos sempre fazendo isso como se ao controlar o amor e o pensamento sobre ele

pudéssemos ter a posse dos outros e até a posse do poder divino. Não nos

convencemos que nossa Cristologia, aquela que está presente em nossa comunidade

de fé, é apenas uma das muitas que existem no interior da tradição cristã e no interior

de nossa própria Igreja. E quando digo isso, é para afirmar que a partir de nossa

cristologia não podemos julgar as outras e nos tornar juizes da ortodoxia do amor e da

prática da justiça. Na vida ordinária o amor não se submete às formas pré-

estabelecidas e por isso assume várias cores e expressões como o vento que sopra

onde quer. É este vento de ruídos diferentes, que faz nascer as cristologias diferentes

como formas diferentes de amor e libertação. Cristologias negras que buscam ouvir o

clamor dos negros em nosso continente e afirmar a unção que têm no interior mesmo

de sua vocação humana para buscar os caminhos de afirmação de sua dignidade e de

respeito às suas tradições culturais. Cristologias feministas que sentem a dor dos

corpos femininos excluídos e julgados inferiores. Dominação real na forma de

dominação simbólica, de dominação econômica, social, familiar e religiosa. Não

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teríamos nós mulheres direito a uma cristologia que levasse em conta a afirmação de

nossa dignidade a partir de nossas próprias dores, a partir das formas de cruz que a

sociedade patriarcal nos impôs? Não seria este um caminho de ressurreição dentro

dos limites da história presente? Cristologias índias que vivem até hoje o extermínio

dos povos nativos e buscam através da luta por sua dignidade afirmarem-se como

povos com direito a ter suas terras e tradições respeitadas. E como não se sentir

ungidos, chamados a responder à vocação humana de liberdade diante da injustiça de

ver suas terras tomadas, suas culturas assassinadas e reduzidas a folclore a serviço

de uma elite? Como não tentarmos ser mil Cristos e cada um tentando respeitar o

Cristo irmão, o Cristo irmã com suas dores particulares imersas na dor humana

coletiva? Muitas vezes os impérios religiosos pregam e exigem a Cristologia da Torre

de Babel. Constroem torres e do alto supervisionam as ações e os pensamentos dos

trabalhadores exigindo que falem a mesma língua, mesmo sabendo que são

originários de povos diferentes. Ameaçam os que falam sua própria língua com

castigos diversos visto que a diversidade de línguas pode ser ameaça à hegemonia

política e religiosa dos que detêm o poder. Tornam-se intolerantes e exclusivistas

afirmando a superioridade cristã como pura escolha e decisão divina. Agem como se

precisassem resguardar a ortodoxia e a pureza do Cristo afastando dele os mendigos,

as prostitutas, as viúvas, os estrangeiros, os camponeses, os pensadores críticos que

se sentam à mesma mesa e podem comer iguarias variadas. Os detentores do poder

político e religioso vivem na maioria das vezes de equívocos e nos ameaçam a partir

deles. Fazemnos crer que o fazem por responsabilidade eclesial, por amor a Cristo e à

Verdade. Mas qual é o seu Cristo na diversidade de cristologias? Creio que, apesar da

boa vontade de alguns, afirmam sua imagem de Cristo a partir de categorias imperiais

e dualistas que garantiram por séculos, a superioridade do cristianismo em relação às

outras aproximações religiosas. Esquecem, talvez, que a grandeza do cristianismo

começou na manjedoura, na acolhida de uma criança, nascida de uma mulher, na

noite escura do povo explorado. Uma criança frágil, vulnerável, desarmada,

dependente como todos nós. Mas nela como em todas as crianças do mundo nasce a

esperança de um mundo melhor hoje e amanhã. A criança, Jesus, em seguida se

tornou adulta e aos 30 anos, por seu compromisso com os marginalizados de seu

lugar, é crucificada e morta pelos poderes políticos e religiosos. Essa morte injusta foi

transformada em memória de vida e de amor que fez renascer para muitos a

esperança da vida. Nada de glória imperial, nem fausto, nenhuma riqueza, nenhum

controle ideológico! Mas é justamente aqui que situamos a originalidade do

cristianismo. Não precisamos ser como o Deus todo poderoso, com imagem

masculina, sentado em seu dourado trono celeste. Basta que sejamos seres humanos

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– mulheres e homens - e saber que Deus é em nós desde o começo. Por isso, cada

um e cada uma de nós somos convidados a partir de nossas entranhas humanas, a

nos aproximarmos do outro, a plantarmos nossa tenda perto dele, a tornarmo-nos

sempre de novo o próximo, a fazer caminho em conjunto, a repartir o pão e o vinho e a

dar graças à VIDA. E isto se chama ser Cristo. Por isso, falar de cristologias plurais

não é uma grande novidade. Não é de hoje que elas são plurais. Nós é que tentamos

matar o pluralismo. É importante que não nos esqueçamos disso, pois habituados a

viver uma vida em que sempre o plano considerado superior é melhor, temos

dificuldade de acolher a diversidade terrena e a riqueza de nossas diferenças. Talvez,

como nos ensina a lenda dos reis magos, ousemos nos guiar pela estrela que os

conduziu a Jesus menino. Acolhamos nossa estrela, aquela que nos conduz às

crianças, aos adolescentes, à mulher que deu à luz, aos pastores e camponeses sem

terra, aos desprezados deste mundo, aos aflitos e lá encontraremos o menino ou a

menina que somos, Cristos nascidos para nos ajudarmos mutuamente no mistério

infinito da VIDA.

Ivone GEBARA

Camaragibe, Pernambuco, Brasil

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