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Critica Da Filosofia Do Direito - Karl Marx

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  • Karl Marx

    1843-1844

    Escrito: 1843-1844

    Transcrito por Eduardo Velhinho;

    Fonte: TheMarxistsInternetArchive

    Introduo Crtica da Filosofia do Direito de Hegel

    Na Alemanha, a crtica da religio chegou, no essencial, ao fim. A crtica dareligio a premissa de toda crtica.

    A existncia profana do erro ficou comprometida, uma vez refutada sua celestialoratio pro aris et focis [orao pelo lar e pelo cio].

    O homem que s encontrou o reflexo de si mesmo na realidade fantstica docu, onde buscava um super- homem, j no se sentir inclinado a encontrarsomente a aparncia de si prprio, o no-homem, j que aquilo que busca e devenecessariamente buscar a sua verdadeira realidade.

    A religio no faz o homem, mas, ao contrrio, o homem faz a religio: este ofundamento da crtica irreligiosa. A religio a autoconscincia e oautosentimento do homem que ainda no se encontrou ou que j se perdeu. Maso homem no um ser abstrato, isolado do mundo. O homem o mundo doshomens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram areligio, criam uma conscincia invertida do mundo, porque eles so um mundoinvertido. A religio a teoria geral deste mundo, seu compndio enciclopdico,sua lgica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sano moral,seu complemento solene, sua razo geral de consolo e de justificao. arealizao fantstica da essncia humana por que a essncia humana carece derealidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religio , indiretamente, aluta contra aquele mundo que tem na religio seu aroma espiritual.

    A misria religiosa , de um lado, a expresso da misria real e, de outro, oprotesto contra ela. A religio o soluo da criatura oprimida, o corao de ummundo sem corao, o esprito de uma situao carente de espirito. o pio dopovo.

  • A verdadeira felicidade do povo implica que a religio seja suprimida, enquantofelicidade ilusria do povo. A exigncia de abandonar as iluses sobre suacondio a exigncia de abandonar uma condio que necessita de iluses. Porconseguinte, a crtica da religio o germe da critica do vale de lgrimas que areligio envolve numa aurola de santidade.

    A crtica arrancou as flores imaginrias que enfeitavam as cadeias, no para queo homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolao, mas para que seliberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crtica da religio desengana o homempara que este pense, aja e organize sua realidade como um homem desenganadoque recobrou a razo a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seuverdadeiro sol. A religio apenas um sol fictcio que se desloca em torno dohomem enquanto este no se move em torno de si mesmo.

    Assim, superada a crena no que est alm da verdade, a misso da histriaconsiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiroobjetivo, uma vez que se desmascarou a forma de santidade da autoalienaohumana, a misso da filosofia, que est servio da histria, consiste nodesmascaramento da autoalienao em suas formas no santificadas. Com isto, acrtica do cu se converte na crtica da terra, a critica da religio na critica dodireito, a crtica da teologia na crtica da Poltica.

    A exposio seguinte - uma abordagem a este trabalho - no se prendediretamente ao original, seno a uma cpia deste, filosofia alem do direito edo Estado, pelo simples fato de se ater Alemanha.

    Se nos quisssemos ater ao status quo alemo, ainda que da nica maneiraadequada, isto , de modo negativo, o resultado continuaria a ser anacrnico. Amesma negao de nosso presente poltico j se acha coberta de p no sto detrastes velhos dos povos modernos. Ainda que nos recusemos a recolher estesmateriais empoeirados, continuaremos conservando os materiais sem poeira.Ainda que neguemos as situaes existentes na Alemanha de 1843, apenas nossituaremos, segundo a cronologia francesa, em 1789, e ainda menos no pontofocal dos dias atuais.

    E o caso da histria alem gabar-se de um movimento ao qual nenhum povo dofirmamento histrico se adiantou a ela nem a seguir. Com efeito, os alemescompartem as restauraes dos povos modernos, sem haver participado de suasrevolues. Passamos por uma restaurao, em primeiro lugar, porque outrospovos se atreveram a fazer uma revoluo e, em segundo lugar, porque outrospovos sofreram uma contra-revoluo; a primeira vez porque nossos senhorestiveram medo e a segunda porque no o tiveram. Tendo frente nossos pastores,s uma vez nos encontramos em companhia da liberdade: no dia de seu enterro.

    Uma escola que legitima a infmia de hoje com a infmia de ontem; uma escolaque declara ato de rebeldia todo grito do servo contra o knut, da mesma maneira

  • que este um knut pesado de anos, tradicional, histrico; uma escola a que ahistria s mostre seu a posteriori, como o Deus de Israel a seu servo Moiss,numa palavra, a Escola histrica do Direito teria sido inventada pela histriaalem se j no fosse por si uma inveno desta. Shy lock, mas o criadoShy lock, que por cada libra de carne cortada do corao do povo, jura e perjurapor sua escritura, por seus ttulos histricos, por seus ttulos cristo- germnicos.

    Em troca, certos entusiastas bondosos, germanistas pelo sangue e liberais pelareflexo, vo buscar alm da histria, nas selvas teutnicas virgens, a histria danossa liberdade. Mas, se s se encontra na selva, em que se distingue a histria danossa liberdade da histria da liberdade do javali? Alm disso, fato sabido quequanto mais algum se interna no bosque, tanto mais ressoa sua voz fora deste.Por conseguinte, deixemos em paz a selva virgem teutnica.

    Guerra aos estados de coisas alemes! certo que se encontram abaixo do nvelda histria, abaixo de toda critica, mas continuam a ser, apesar disto, objeto decrtica, assim como o criminoso, por no se achar abaixo do nvel dahumanidade, no deixa de ser objeto do verdugo. Na luta contra eles, a crticano uma paixo do crebro, mas o crebro da paixo. No o bisturianatmico, mas uma arma. Seu objeto o adversrio, que no procura refutar,mas destruir. O esprito daquelas situaes j foi refutado. No so dignas de serlembradas; devem ser desprezadas como existncias proscritas. No hnecessidade da crtica esclarecer este objeto frente a si mesma, pois dele j nose ocupa. Esta crtica no se conduz como um fim em si, mas, simplesmente,como um meio. Seu sentimento essencial a indignao; sua tarefa essencial, adenncia.

    Trata-se de descrever a surda presso mtua de todas as esferas sociais, umassobre as outras, a alterao geral e imprudente, a limitao que tanto sereconhece quanto se desconhece, enquadrada dentro do modelo de um sistemade governo, que, vivendo da conservao de tudo aquilo que lamentvel, no outra coisa seno o que h de lamentvel no governo. Espetculo lamentvel! Adiviso da sociedade at o infinito nas raas mais diversas, que se enfrentamumas s outras com pequenas antipatias, ms intenes e brutal mediocridade eque, precisamente em razo de sua mtua posio cautelosa so tratadas por seussenhores, Sem exceo e com algumas diferenas, como existncias sujeitas asuas concesses. At isto, at o fato de se verem dominadas, governadas epossudas tem que ser reconhecido e confessado por elas como uma concessodo cu! E, por outro lado, aqueles senhores, cuja grandeza se encontra emrelao inversa ao numero delas!

    A crtica que se ocupa deste contedo a crtica da competio. Durante acompetio no interessa saber se o adversrio nobre, da mesma categoria, se um adversrio interessante; trata-se de venc-lo. Tratase de no conceder aosalemes nem um s instante de iluso e de resignao. H que tornar a opressoreal ainda mais opressiva, acrescentando quela a conscincia da opresso; h

  • que tornar a infmia ainda mais infamante, ao proclam-la. H que pintar atodas e a cada uma das esferas da sociedade alem como a partie honteuse[partes pudendas] da sociedade alem; h que obrigar estas relaesescravizadas a danar, cantando-lhes sua prpria melodia. H que ensinar o povoa ter pavor de si mesmo, para infundir- lhe nimo. Com isto, se satisfaz umaindisfarvel necessidade do povo alemo; as necessidades dos povos so, emsua prpria pessoa, os ltimos fundamentos de sua satisfao.

    Esta luta contra o status quo alemo tampouco carece de interesse para os povosmodernos, pois o status quo alemo a consagrao franca e sincera do antigoregime, e o antigo regime, a debilidade oculta do Estado moderno. A luta contrao presente poltico alemo a luta contra o passado dos povos modernos; asreminiscncias deste passado continuam a pesar ainda sobre eles e a oprimi-los. instrutivo para estes povos ver como o antigo regime, que neles conheceu suatragdia, representa agora sua comdia; instrutivo para estes povos v-lo comoo espectro alemo. Sua histria foi trgica enquanto encarnou o poderpreexistente do mundo e a liberdade como uma ocorrncia pessoal; numapalavra, enquanto acreditou e devia acreditar na sua legitimidade. Enquanto oantigo regime e a ordem existente no mundo lutavam contra um mundo emestado de gestao, traziam de sua parte um erro histrico-universal e no decarter pessoal. Portanto, sua catstrofe foi trgica.

    Pelo contrrio, o atual regime alemo, que um anacronismo, uma contradioflagrante com todos os axiomas geralmente reconhecidos, a nulidade do antigoregime posta em evidncia frente ao mundo inteiro, s imagina crer em siprprio e exige do inundo a mesma f ilusria. Se acreditasse em seu prprio ser,acaso iria escond-lo sob a aparncia de um ser estranho e procurar sua salvaona hipocrisia e no sofisma? No, o moderno regime antigo j no mais do que ocomediante de uma ordem social cujos heris reais j morreram. A histria conscienciosa e passa por muitas fases antes de enterrar as velhas formas. Acomdia a ltima fase de uma forma histrico-universal. Os deuses da Grcia,j tragicamente feridos no Prometeu acorrentado de Esquilo, morreram aindaoutra vez, comicamente, nos colquios de Luciano. Por que esta trajetriahistrica? Para que a humanidade possa separar-se alegremente de seu passado.Este alegre destino histrico que ns reivindicamos para as potncias polticasda Alemanha.

    No obstante, to logo a moderna realidade poltico-social se veja submetida crtica, isto , to logo a critica ascende ao plano dos problemas verdadeiramentehumanos que se encontra fora do status quo alemo, pois de outro modoabordaria seu objeto por baixo de si mesma. Um exemplo: a relao entre aindstria, o inundo da riqueza em geral e o mundo poltico um problemafundamental da poca moderna. De que forma este problema comeapreocupar os alemes? Sob a forma de normas protetoras, de sistema proibitivo,da economia nacional. O germanismo passou dos homens a matria e, um belodia, nossos donos do algodo e nossos heris do ferro viram-se convertidos em

  • patriotas. Assim, pois, na Alemanha comea-se pelo reconhecimento dasoberania do monoplio rumo ao interior, conferindo-lhe a soberania rumo aoexterior. Isto significa que na Alemanha se comea por onde terminam a Franae a Inglaterra. A velha situao insustentvel contra a qual se levantamteoricamente estes pases e que s so suportveis como so suportados osgrilhes, saudada na Alemanha como a primeira luz do amanhecer de um belofuturo, que apenas se atreve a passar de uma ladina teoria mais implacvelprtica. Enquanto na Frana e na Inglaterra o problema colocado em termos deeconomia poltica ou imprio da sociedade sobre a riqueza, na Alemanha ostermos so outros: economia nacional ou imprio da propriedade privada sobre anacionalidade. Portanto, na Frana e na Inglaterra trata-se de abolir o monoplio,que chegou a suas ltimas conseqncias; na Alemanha, trata-se de levar omonoplio a suas ltimas conseqncias, No primeiro caso, trata-se da soluo;no segundo, simplesmente da contradio. Exemplo suficiente da forma alemque ali adotam os problemas modernos, de como nossa histria, tal qual o recrutaimbecil, no teve at agora outra misso seno a de praticar a repetir exercciosj feitos.

    Por conseguinte, se todo o desenvolvimento da Alemanha no sasse dos marcosdo desenvolvimento poltico alemo, um alemo apenas poderia, muito bem,participar dos problemas do presente, do mesmo modo como um russo delespode participar. Mas, se um indivduo livre no se acha vinculado s cadeias danao, ainda menos livre se v a nao inteira diante da libertao de umindivduo. Os citas no investiram um s passo contra a cultura grega porque aGrcia contasse um deles entre seus filsofos.

    Por sorte, ns, alemes, no somos citas.

    Assim como os povos antigos viveram sua pr-histria na imaginao, namitologia, ns, alemes, vivemos nossa ps-histria no pensamento, na filosofia.Somos contemporneos filosficos do presente, sem ser seus contemporneoshistricos. A filosofia alem o prolongamento ideal da histria da Alemanha.Portanto, se ao invs das oeuvres incompletes [Obras incompletas] de nossahistria real, criticamos as oeuvres posthumes [Obras pstumas] de nossa histriaideal, a filosofia, nossa crtica figura no centro dos problemas dos quais diz opresente: That is the question [Eis a questo].

    O que para os povos progressistas a ruptura prtico com as situaes do Estadomoderno, na Alemanha, onde estas situaes nem sequer existem, isto significa,antes de mais nada, a ruptura critica com o reflexo filosfico destas situaes.

    A filosofia alem do Direito e do Estado a nica histria alem que se acha apar com o presente oficial moderno. Por isto, o povo alemo no tem outroremdio seno incluir tambm esta sua histria feita de sonhos entre suassituaes existentes e submeter crtica no s estas mesmas situaes mas,tambm e ao mesmo tempo, seu prolongamento abstrato. O futuro deste povo

  • no pode limitar-se nem negao de suas condies estatais e jurdicas reais,nem execuo indireta das condies ideais de seu Estado e de seu direito, jque a negao direta de suas condies reais j est envolvida em suas condiesideais e a execuo indireta de suas condies ideais quase a fez sobreviver aocontempl-las nos povos vizinhos. Assim, ao reclamar a negao da filosofia, opartido poltico prtico da Alemanha tem toda razo. Seu erro no reside naexigncia, mas em deter-se na simples exigncia, que no coloca nem podecolocar seriamente em prtica. Acredita colocar em prtica aquela negao pelofato de voltar as costas filosofia e de resmungar, olhando para o lado oposto,umas tantas frases banais e mal-humoradas. A limitao de seu horizonte visualno inclui tambm a filosofia da realidade alem no Estreito de Bering, nemchega a imagin-la quimericamente, inclusive, entre a prtica alem e as teoriasque a servem. Exige-se uma conexo com os germes reais da vida, masesquece-se que o germe real da vida do povo alemo s brotou, at agora, de suacaixa craniana. Numa palavra, no podereis superar a filosofia sem realiz-la.

    A mesma injustia, s que com fatores inversos, cometeu o partido polticoterico, que partia da filosofia.

    Este partido s via na luta atual a luta critica da filosofia com o mundo alemo,sem imaginar sequer que a filosofia anterior pertencia ela mesma a este mundoe era um complemento, ainda que apenas seu complemento ideal. Assumia umaatitude crtica frente parte contrria, mas no adotava um comportamentocrtico para consigo mesmo, j que partia das premissas da filosofia e, ou sedetinha em seus resultados adquiridos ou apresentava como postulados eresultados diretos da filosofia, os postulados e resultados de outra origem, emboraestes supondo que sejam legtimos - s podem manter-se de p, pelo contrrio,mediante a negao da filosofia anterior, da filosofia como tal. Propomo-nos atratar mais a fundo deste partido. Seu erro fundamental pode resumir-se assim:acreditava poder realizar a filosofia sem super-la.

    A crtica da filosofia alem do direito e do Estado, que encontra em Hegel suaexpresso mxima, a mais conseqente e a mais rica, simultaneamente as duascoisas, tanto a anlise crtica do Estado moderno e da realidade a ele relacionadacomo a negao decisiva de todo o modo anterior de conscincia poltica ejurdica alem, cuja expresso mais nobre, mais universal, elevada cincia, precisamente a mesma filosofia especulativa do direito. Assim como a filosofiaespeculativa do direito - este pensamento abstrato e superabundante do Estadomoderno cuja realidade continua a ser o alm, apesar deste alm se encontrar dooutro lado do Reno - s poderia processar-se na Alemanha, assim tambm, porsua vez e inversamente, a imagem alem, conceitual, do Estado moderno -abstrada do homem real - s se tornou uma possibilidade porque e enquanto omesmo Estado moderno se abstrai do homem real ou satisfaz o homem total demodo puramente imaginrio. Em poltica, os alemes pensam o que os outrospovos fazem. A Alemanha era sua conscincia terica. A abstrao e aarrogncia de seu pensamento corria sempre em parelha com a limitao e a

  • mesquinhez de sua realidade. Por conseguinte, se o status quo do Estado alemoexprime a perfeio do antigo regime, o acabamento da lana cravada no Estadomoderno, o status quo da conscincia do Estado alemo expressa a imperfeiodo Estado moderno, a falta de consistncia de seu prprio corpo

    Enquanto adversrio decidido do modo anterior de conscincia poltica alem, oEstado orienta a crtica da filosofia especulativa do direito no para si mesma,mas para tarefas cuja soluo exige apenas um meio: a prtica.

    Indagamo-nos: pode a Alemanha chegar a uma prtica Ia hauter ds prncipes[ altura dos princpios], isto , a uma revoluo que a eleve no s ao nveloficial dos povos modernos mas, tambm, ao nvel humano que ser o futuroimediato destes povos!

    As armas da crtica no podem, de fato, substituir a crtica das armas; a foramaterial tem de ser deposta por fora material, mas a teoria tambm se converteem fora material uma vez que se apossa dos homens. A teoria capaz deprender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde quese torne radical. Ser radical atacar o problema em suas razes. Para o homem,porm, a raiz o prprio homem. A prova evidente do radicalismo da teoriaalem e, portanto, de sua energia prtica, consiste em saber partir decididamenteda superao positiva da religio. A crtica da religio derruba a idia do homemcama essncia suprema para si prprio. Por conseguinte, com o imperativocategrico mudam todas as relaes em que o homem um ser humilhado,subjugado, abandonado e desprezvel, relaes que nada poderia ilustrar melhordo que aquela exclamao de um francs ao tomar conhecimento da existnciade um projeto de criao do imposto sobre ces: Pobres ces! Querem trat-loscomo se fossem pessoas!

    At historicamente a emancipao terica tem um interesse especificamenteprtico para a Alemanha. O passado revolucionrio da Alemanha , de fato, umpassado histrico: a Reforma. Como ento no crebro do frade, a revoluocomea agora no crebro do filsofo.

    Lutero venceu efetivamente a servido pela devoo porque a substituiu pelaservido da convico. Acabou com a f na autoridade porque restaurou aautoridade da f. Converteu sacerdotes em leigos porque tinha convertido leigosem sacerdotes. Libertou o homem da religiosidade externa porque erigiu areligiosidade no interior do homem. Emancipou o corpo das cadeias porquesujeitou de cadeias o corao.

    Mas, se o protestantismo no foi a verdadeira soluo, representou a verdadeiracolocao do problema. J no se tratava da luta do leigo com o sacerdote queexiste fora dele, mas da luta com o sacerdote que existe dentro de si prprio, comsua natureza sacerdotal. E, se a transformao protestante do leigo alemo emsacerdote emancipou os papas leigos, os prncipes, com toda sua clerezia, se

  • emancipou privilegiados e filisteus, a transformao filosfica dos alemes comesprito sacerdotal em homens emancipar o povo. Mas, do mesmo modo que aemancipao no se deteve nos prncipes, tampouco a secularizao dos bens sedeter no despojo da igreja, realizada sobretudo pela hipcrita Prssia. A guerrados camponeses, fato mais radical da histria alem, lanou-se contra a teologia.Hoje, com o fracasso da prpria teologia, o fato mais servil da histria alem,nosso status quo, se lanar contra a filosofia. As vsperas da Reforma, aAlemanha oficial era o servo mais submisso de Roma. As vsperas de suarevoluo, o servo submisso de algo menos que Roma, Prssia e ustria, defidalguetos rurais e filisteus,

    No obstante, uma dificuldade fundamental parece opor-se a uma revoluoalem radical.

    Com efeito, as revolues necessitam de um elemento passivo, de uma basematerial. A teoria s se realiza numa nao na medida que a realizao de suasnecessidades. Ora, ao imenso divrcio existente entre os postulados dopensamento alemo e as respostas da realidade alem corresponder o mesmodivrcio existente entre a sociedade alem e o Estado e consigo mesma! Nobasta que o pensamento estimule sua realizao; necessrio que esta mesmarealidade estimule o pensamento -

    Todavia, a Alemanha no escalou simultaneamente com os povos modernos asfases intermedirias da emancipao poltica. Praticamente,. no chegou sequers fases que superou teoricamente. Como poderia, de um salto mortal, remontar-se no s sobre seus prprios limites, como tambm e ao mesmo tempo, sobre oslimites dos povos modernos, sobre limites que na realidade devia sentir e aosquais devia aspirar como a emancipao de seus limites reais! Uma revoluoradical s pode ser a revoluo de necessidades radicais, cujas premissas elugares de origem parecem faltar completamente.

    No obstante, se a Alemanha s abstratamente acompanhou o desenvolvimentodos povos modernos, sem chegar a participar ativamente das lutas reais deste,no menos verdade que, de outro lado, partilhou os sofrimentos deste mesmodesenvolvimento, sem usufruir seus benefcios e satisfaes parciais. A atividadeabstrata de um lado, corresponde o sofrimento abstrato do outro. Assim, numabela manh, a Alemanha se encontrar em nvel idntico decadncia europiaantes mesmo de haver atingido o nvel da emancipao europia. Poderamoscompar-la a um idlatra que agonizasse, vtima do cristianismo.

    Fixemo-nos, antes de mais nada, nos governos alemes, e os veremos de talmodo impulsionados pelas condies da poca, pela situao da Alemanha, peloponto de vista da cultura alem e, finalmente, por seu prprio instinto certeiro, acombinar os defeitos civilizados do mundo dos Estados modernos, cujasvantagens no possumos, com os defeitos brbaros do antigo regime, de que nospodemos jactar at a saciedade, que a Alemanha, seno por prudncia, pelo

  • menos falta desta tem que participar cada vez mais da constituio de Estadosque esto muito alm de seu status quo. Acaso, por exemplo, h no mundo algumpas que partilhe to simplesmente como a chamada Alemanha constitucionaltodas as iluses do Estado constitucional sem partilhar de suas realidades. Ou noteria que ser necessariamente uma ocorrncia do governo alemo o fato deassociar os tormentos da censura aos tormentos das leis de setembro na Frana,que pressupem a liberdade de imprensa. Assim como no panteo romano sereuniam os deuses de todas as naes, no sacro imprio romano germnico serenem os pecados de todas as formas de estado. Que este ecletismo chegar aalcanar um nvel at hoje inimaginado, o garante, de fato, o enfado esttico-poltico de um monarca alemo que aspira desempenhar, se no atravs dapessoa do povo, pelo menos em sua prpria, se no para o povo, pelo menos parasi mesmo, todos os papis da monarquia: a feudal e a burocrtica, a absoluta e aconstitucional, a autocrtica e a democrtica. A Alemanha, como a ausncia dopresente poltico constitudo num mundo prprio, no poder derrubar asbarreiras especificamente alemes sem derrubar a barreira geral do presentepoltico.

    Para a Alemanha, o sonho utpico no a revoluo radical, no aemancipao humana geral, mas, ao contrrio, a revoluo parcial, a revoluomeramente poltica, a revoluo que deixa de p os pilares do edifcio. Sobre oque repousa uma revoluo parcial, uma revoluo meramente poltica? No fatode emancipar uma parte da sociedade burguesa e de instaurar sua dominaogeral, no fato de uma determinada classe empreender a emancipao geral dasociedade a partir de sua situao especial. Esta classe emancipa toda asociedade, mas apenas sob a hiptese de que toda a sociedade se encontre nasituao desta classe, isto , que possua, por exemplo, dinheiro e cultura ou quepossa adquiri-los.

    Nenhuma classe da sociedade burguesa pode desempenhar este papel semprovocar um momento de entusiasmo em si e na massa, momento durante o qualconfraterniza e se funde com a sociedade em geral, com ela se confunde e sentida e reconhecida como seu representante geral, que suas pretenses edireitos so, na verdade, os direitos e ai pretenses da prpria sociedade, que estaclasse realmente o crebro e o corao da sociedade. Somente em nome dosdireitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si adominao geral. E, para atingir esta posio emancipadora e poder, portanto,explorar politicamente todas as esferas da sociedade em benefcio da prpriaesfera, no bastam por si ss a energia revolucionria e o amor prprio espiritual.Para que coincidam a revoluo de um povo e a emancipao de uma classeespecial da sociedade burguesa, para que uma classe valha por toda a sociedade, necessrio, pelo contrrio, que todos os defeitos da sociedade se condensemnuma classe, que uma determinada classe resuma em si a repulsa geral, que sejaa incorporao do obstculo geral; necessrio, para isto, que uma determinadaesfera social seja considerada como crime notrio de toda a sociedade, de talmodo que a emancipao desta esfera surja como autoemancipao geral. Para

  • que um estado seja par excellenee o estado de libertao, necessrio que outroseja o estado de sujeio por antonomsia. O significado negativo geral danobreza e do clero franceses condicionou a significao positiva geral da classeinicialmente delimitadora e contraposta, da burguesia.

    Todavia, todas as classes especiais da Alemanha carecem de conseqncia,rigor, arrojo e intransigncia capazes de convert-las no representante negativoda sociedade. Alm do mais, todas carecem da grandeza de esprito que pudesseidentificar uma delas, ainda que momentaneamente, com o esprito do povo;todas carecem da genialidade que infunde o entusiasmo do poder poltico aopoder material, da intrepidez revolucionria que lana o desafio ao inimigo: NadaSOU e tudo deveria ser. Esse modesto egosmo que faz valer e permite queoutros tambm faam valer suas prprias limitaes o fundo bsico da moral eda honradez de indivduos e classes na Alemanha. Por isto, a relao existenteentre as diversas esferas da sociedade alem no dramtica, mas pica. Cadauma delas comea a sentir e a fazer chegar s outras suas pretenses, no ao sever oprimida, mas quando as circunstncias do momento, sem interveno sua,criam uma base social sobre a qual, por sua vez, possa exercer presso. Atmesmo o amor prprio moral da classe mdia alem repousa sobre aconscincia de ser o representante geral da mediocridade filistia de todas asdemais classes. Portanto, no so apenas os reis alemes que ascendem ao tronomal propor [Inoportunamente], mas todas as esferas da sociedade burguesa,que sofrem sua derrota antes de terem festejado a vitria, que desenvolvem seusprprios limites antes de terem ultrapassado os limites que se opem a estes, quefazem valer sua pusilanimidade antes de fazer valer sua arrogncia, de tal modoque at mesmo a oportunidade de desempenhar um grande papel desapareceantes de existir e que cada classe, to logo comea a lutar com aquela que lheest acima, v-se envolvida na luta com aquela que lhe est abaixo. Da porqueos prncipes esto em luta contra a burguesia, os burocratas contra a nobreza e osburgueses contra todos eles, enquanto o proletrio comea a lutar contra oburgus. A classe mdia nem sequer se atreve a conceber o pensamento daemancipao de seu ponto de vista, j que o desenvolvimento das condiessociais, do mesmo modo que o progresso da teoria poltica, se encarregam derevelar este mesmo ponto de vista como algo antiquado ou, pelo menos,problemtico.

    Na Frana, basta que algum seja alguma coisa para querer ser todas as coisas.Na Alemanha, ningum pode ser nada se no quiser renunciar a tudo. Na Frana,a emancipao parcial o fundamento da emancipao universal. NaAlemanha, a emancipao universal a conditio nine que non de todaemancipao parcial. Enquanto na Frana a realidade da emancipao gradualque tem de engendrar a liberdade total, na Alemanha, ao contrrio, justamentea sua impossibilidade. Na Frana, toda classe um poltico idealista que se sentecomo representante das necessidades sociais em geral, ao invs de sentir-secomo representante de uma classe especial. Por isto, o papel emancipador passapor turnos, em movimento dramtico, entre as distintas classes do povo francs

  • at atingir, finalmente, a classe que j no realiza a liberdade social sob ahiptese de certas condies que se encontram margem do homem e que, noobstante, foram criadas pela sociedade humana, mas que organiza todas ascondies de existncia a partir da hiptese da liberdade social. Pelo contrrio, naAlemanha, onde a vida prtica to pouco tem de espiritual assim como a vidaespiritual de prtico, nenhuma classe da sociedade burguesa sente a necessidadenem a capacidade de emancipao geral at ver-se obrigada a isto por suasituao imediata, pela necessidade material, pelas suas prprias cadeias.

    Onde reside, pois, a possibilidade positiva da emancipao alem?

    Resposta: na formao de uma classe com cadeias radicais, de uma classe dasociedade burguesa que no uma classe da sociedade burguesa; de um estadoque a dissoluo de. todos os estados; de uma esfera que possui um carteruniversal por seus sofrimentos universais e que no reclama nenhum direitoespecial para si, porque no se comete contra ela nenhuma violncia especial,seno a violncia pura e simples; que j no pode apelar a um ttulo histrico,mas simplesmente ao ttulo humano; que no se encontra em nenhuma espciede contraposio particular com as conseqncias, seno numa contraposiouniversal com as premissas do Estado alemo; de uma esfera, finalmente, queno pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas dasociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que , numa palavra, aperda total do homem e que, por conseguinte, s pode atingir seu objetivomediante a recuperao total do homem. Esta dissoluo da sociedade comouma classe especial o proletariado.

    O proletariado s comea a surgir na Alemanha, mediante o movimentoindustrial que desponta, pois o que forma o proletariado no a pobreza quenasce naturalmente, mas a pobreza que se produz artificialmente; no a massahumana oprimida mecanicamente pelo peso da sociedade, mas aquela que brotada aguda dissoluo desta e, em especial, da dissoluo da classe mdia, aindaque gradualmente, como se compreende, venham a incorporar-se tambm asuas fileiras a pobreza natural e os servos cristos-germnicos da gleba

    Ao proclamar a dissoluo da ordem universal anterior, o proletariado nada maisfaz do que proclamar o segredo de sua prpria existncia, j que ele adissoluo de fato desta ordem universal. Ao reclamar a negao da propriedadeprivada, o proletariado no faz outra coisa seno erigir a princpio de sociedadeaquilo que a sociedade erigiu em princpio seu, o que j se personifica nele, seminterveno de sua parte, como resultado negativo da sociedade. O proletariadoest amparado, ento, em relao ao mundo que nasce, da mesma razo queassiste o rei alemo em relao ao mundo existente, ao denominar o povo seupovo, como ao cavalo seu cavalo. Ao declarar o povo sua propriedade privada, orei se limita a expressar que o proprietrio privado o rei.

    Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o

  • proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. Com a mesma rapidezque o raio do pensamento penetra a fundo neste puro solo popular, se efetuar aemancipao dos alemes como homens.

    Resumindo e concluindo:

    A nica emancipao praticamente possvel da Alemanha a emancipao doponto de vista da teoria, que declara o homem essncia suprema do homem. NaAlemanha, a emancipao da Idade Mdia s possvel como emancipaoparalela das superaes parciais da Idade Mdia. Na Alemanha, no se podederrubar nenhum tipo de servido sem derrubar todo tipo de servido em geral.A meticulosa Alemanha no pode revolucionar sem revolucionar seu prpriofundamento. A emancipao do alemo a e emancipao do homem. Ocrebro desta emancipao a filosofia; seu corao, o proletariado. A filosofiano pode se realizar sem a extino do proletariado nem o proletariado pode serabolido sem a realizao da filosofia.

    Quando se cumprirem todas as condies interiores, o canto do galo gaulsanunciar o dia da ressurreio da Alemanha.