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CRITICA DA RAZÃO TUPINIQUEM

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Livro de filosofia

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CRÍTICA DA RAZÃO TÜPINIQÜIM Roberto Gomes

lOt EDIÇÃO

i l i FTD

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Copyright ( c ) Roberto Gomes, 1990 Todos os direitos de edição reservados à

EDITORA FTD S.A. MATRIZ Rua Rui Barbosa 156 (Bela Vista) São Paulo

CEP 01326-010 Tel. 253.5011 FAX (011)288 0132

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gomes, Roberto, 1944-Crítica da razão tupiniquim / Roberto Gomes. — 11. ed.

— São Paulo : FTD, 1994. — (Coleção prazer em conhe­cer)

ISBN 85-322-0333-7 1. Filosofia - Brasil 2. Filosofia brasileira I. Título. II.

Série.

94-0590 CDD-199.81 índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Filosofia 199.81 2. Filosofia brasileira 199.81

Editor: Jorge Cláudio Ribeiro Coordenador de revisão: Adolfo José Facchini Editor de arte: Cláudio Cuellar Capa: Criação - Roberto Soeiro

Execução - Chromo Digital, Design Gráfico Ilustrador: L u i z Carneiro Produção e Diagramação: Reginae Crema Editoração eletrônica: Paulo Lopes da S i l v a

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índice Capitulo 1 - Um título 4 Capitulo 2 - A sério: a seriedade 9 Capitulo 3 - Uma Razão que se expressa 17 Capitulo 4 - Filosofia e negação 26 Capitulo 5 - O mito da imparcialidade: o ecletismo 32 Capitulo 6 - O mito da concórdia: o jeito 41 Capitulo 7- Originalidade e jeito 48 Capitulo 8 - A Filosofia entre-nós 55 Capitulo 9 - A Razão Ornamental 69 Capitulo 10- A Razão Afirmativa 82 Capitulo 11 - Razão Dependente e negação 95 Sugestões de atividades didáticas 111 O autor 117 Bibliografia 117

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Capítulo 1 Um título

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Um título 5

POESIA COM LAMENTAÇÃO DO LOCAL DE NASCIMENTO

Tudo o que eu digo, acreditem, teria mais solidez se em vez de carioquinha eu fosse um velho chinês.

MUXÔR FERNANDES (Papáverum Millõc)

Oque pode significar isso: Razão Tupiniquim? Tratando-se de título de um livro, supõe-se que denuncie um te­ma. Ocorre que este tema jamais foi explicitado, não existindo. Fácil constatar que entre nós esta Razão esta­rá adormecida ou pulverizada em mil manifestações que

seria problemático reunir num único nó com a virtude da síntese. Talvez seja impossível o tema deste livro, embora seu título

possa ser até sugestivo. Não é fácil escrever sobre algo que só exis­tirá caso seja inventado. Uma Razão Brasileira, não existindo atual­mente, precisaria antes do mais ser providenciada, vindo à tona. Então, das duas uma: ou este livro não pode ser escrito ou será uma tentativa de "inventar" esta Razão, seguindo vestígios espar­sos no romance, na poesia, na música popular e até - pois é ca­paz de que mesmo aí transpareça - nalguns livros de Filosofia.

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6 Um título

Mas estas alternativas devem ser rejeitadas. Primeiro, me é impossível não escrever este livro. Segundo, é absurda a pretensão de "inventar", aqui, seu tema. Outra será sua pretensão.

Partamos de algo pacífico: mal sabemos o que seja uma Ra­zão Tupiniquim. Uma piada, talvez. Hipótese que nos causaria gran­de prazer. Gostamos muito de piadas. Há todo um espírito brasi­leiro que se delicia com a própria agilidade mental, esta capacida­de de ver o avesso das coisas revelado numa palavra, frase, fato. Somos, os brasileiros, muito bem-humorados. Conseguimos rir de tudo. Do governo que cai e do governo que sobe. Das instituições que deveriam estar a nosso serviço, dos dirigentes que deveriam representar nossos interesses. E não é só. Chegamos a fazer pia­das sobre nossa capacidade de fazer piadas. Nada mais ilustrativo do que a série de piadas onde representantes de outros países são ridicularizados pelo desconcertante "jeitinho" de um brasileiro. Neste plano, seja dito, nos movemos com facilidade gritante.

Desta atitude seria útil extrair o avesso. Embora tenhamos uma imensa mitologia construída em cima de nosso jeito piadísti-co, no momento de pensar não admitimos piada. Queremos a coi­sa séria. Frases na ordem inversa, palavras raras, citações latinas -e é impossível qualquer piada em latim, creio. Isto criou situações constrangedoras, como as fúteis críticas sérias a Oswald de Andra­de, acusado de mero piadista. Estranha gente, esta. Gaba seu ini­mitável jeito piadístico, mas na hora das coisas "culturais" mergu­lha num escafandro greco-romano. j Creio que a existência de uma piada tipicamente brasileira deveria ser objeto de estudo mais aprofundado. Possuirá caracte­rísticas específicas? Que atitudes básicas revela? Uma saudável maneira de suportar um existir humilhado? Um modo de estar aci­ma daquilo que amesquinha nosso dia a dia? Talvez sim. Certa­mente sim. Uns reagem com dramaticidade, tragédia e muito san­gue - ocorreu-nos reagir com o riso.

Talvez uma posição existencial muito nossa. O riso - um cer­to tipo de riso, o nosso - nos salva, tiraniza o tirano, amesquinha quem nos tortura, exorciza nossas angústias. Não creio, aqui de

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Um título 7

meu ponto de vista brasileiro - e que outro ponto de vista poderia me importar? - que pudéssemos ter feito melhor.

Há um perigo, porém. Sempre há um perigo. A mesma pia­da que salva pode mascarar-se em alienação. Como qualquer cria­ção humana, também a piada deve ser essencialmente crítica, já que é de sua pretensão ser isso: uma forma de conhecimento. Ora, quando o riso se perde em pura facilidade, em distração, morre a atitude crítica. E o "jeito piadístico" estará a serviço de nossa inau-tenticidade. Há indícios, entre nós, de tal coisa: deixar como está pra ver como é que fica; não esquentar a cabeça; analisa não; dá-se um jeito.

O conformismo brasileiro encontra aí seu terreno de eleição. Justificar, por exemplo, sua própria condição - dependência, insol­vência política, jogos de privilégios - através de um simples "o bra­sileiro é assim mesmo", eis o que impede seja criada entre nós uma atitude tipicamente brasileira ao nível da reflexão crítica, pro­posta e assumida como nossa. Desconhecendo-se, mal sabendo de uma Razão Tupiniquim, o brasileiro aliena-se de dois modos: rindo de sua sem-importância ou delirando em torno do "país do futuro", em variados "anauês". Na verdade, conformismo e ausên­cia de poder crítico, pois nos dois casos há um abandono - "dei­xa como está para ver como é que fica" - e uma esperança mági­ca - "dá-se um jeito".

Mergulhado num escafandro greco-romano - embora não se­ja nem grego nem romano - , o brasileiro foge de sua identidade. Tem sido na Filosofia que o espírito humano tem buscado sua au-to-revelação. Porém, autocomplacente e conformista, sujeito sério, o brasileiro ainda não produziu Filosofia. Assim, é necessário ad­vertir que um pensamento brasileiro jamais esteve lá onde tem si­do procurado: teses universitárias, cursos de graduação e pós-gra­duação, revistas especializadas - e logo se verá por quê. No bolor de nosso "pensamento oficial" não se encontra qualquer sinal de uma atitude que assuma o Brasil e pretenda pensá-lo em nossos termos. Além do palavrório aridamente técnico e estéril, das idéias

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8 Um título

gerais, das teses que antecipadamente sabemos como vão concluir, das idéias bem pensantes, nada encontramos que possa denunciar a presença de um pensamento brasileiro entre nossos "filósofos oficiais", vítimas de um discurso que não pensa, delira.

Este livro inviável começa, pois, com uma série de advertên­cias. A questão de um pensamento brasileiro deverá brotar de uma realidade brasileira - não do "pensamento" e da "realidade" oficiais. Deve inventar seus temas, ritmo, linguagem. E inventar seus pontos de vista. Obras como as de Mário de Andrade, Os-wald de Andrade, Machado de Assis, Lima Barreto, Sérgio Buar-que de Holanda, Noel, Chico Buarque, além daquilo que se tem feito no campo das ciências humanas nos últimos anos, têm mais a nos dizer do que as maçantes teses universitárias nas quais a Filo­sofia se mascara no Brasil. O mesmo se diga do torcedor de fute­bol, da porta-estandarte e do homem da rua em geral

Mas não será apenas isso que irá tornar viável este livro. Uma Razão não se faz com um livro. Provisoriamente, permaneça­mos em nossos limites. Não se trata de "inventar" uma Razão Tu-piniquim, mas de propor um projeto, um certo tipo de pretensão certamente quixotesca e evidentemente absurda: pensar o que se é, como se é.

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Capítulo 2 A sério: a seriedade

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10 A séno: a seriedade

Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague onde principia a seriedade. Nem eu sei.

MÁRIO DE ANDRADE (Prefácio Interessantíssimo)

No capítulo anterior levantou-se um tema para um título. É necessário não desperdiçar título tão sugestivo. Cabe agora perguntar: trata-se de tema "sério"?

Pelo que ficou dito, propõe-se ser sério, não uma piada. Quero que me entendam: não uma piada em seu

sentido alienante. É tema que deverá ser "seriamente" considera­do. Mas: conseguiremos pensar "a sério"? Razão Tupiniquim? Não é coisa no que se pense - e sobretudo nestes termos. Só po­de ser brincadeira, jamais um tema "sério". Quer dizer: não cons­ta de nenhuma tese defendida na Sorbonne ou em Freiberg.

Prestando atenção, vemos que há vários empregos possíveis para a palavra "sério" e, conseqüentemente, vários sentidos para a "seriedade". Creio que isso fique claro se considerarmos estas duas ocorrências: "Fulano de Tal é um homem sério" e "Fulano de Tal leva a sério seu trabalho".

Entre os dois empregos não há apenas o acréscimo de uma letra, mas uma mudança de perspectiva e de acentuação. Mudou o caráter da seriedade em questão. No primeiro caso queremos dizer que Fulano de Tal é um homem que zela pela seriedade das japarências. É respeitador das normas e convenções sociais. Seria incapaz de "sair da linha". Dele não se esperam coisas que fujam

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ao normal estatístico. Isto vale dizer: Fulano de Tal é um homem respeitador e respeitável.

Na segunda ocorrência, a seriedade em questão remete-se a outra gama de significações. Levar a sério, seja um trabalho, um lugar ou um amor, não consiste no zelo pela vigência de normas sociais. Ao contrário. O acento faz com que toda carga significati­va recaia sobre o aspecto interno e virtualmente negador do social­mente admitido. Se levo a sério, isto é algo que sai de mim em di­reção ao objeto da seriedade. Se sou sério, me coisifico como obje­to de seriedade. Aí está a diferença entre o que é dinâmico - eter­namente em questão - , encontrado no a sério, e o caráter de coi­sa acabada e estéril da seriedade do sujeito objetificado. A sério, revigoro o mundo com uma quantidade imensa de significações. Sério, reduzo-me a objeto morto, caricato, de existir centrado no externo.

Ao levar a sério, estou profundamente interessado em algu­ma coisa, a ponto de voltar todas as minhas energias no sentido de sua realização - outro não sendo o princípio de erotização do agir. Mesmo quando isso exige "sair da linha". Só aqui poderemos encontrar o germe revolucionário indispensável à criatividade.

Fixemos, por exemplo, o caso do artista. O protótipo do artis­ta, se quiserem. E óbvio que aí encontramos uma figura muito dis­tante daquilo que se considera sério. Valores não convencionais, palavras e frases talvez extravagantes, um modo de vida que tor­ce o nariz aos bem pensantes. O artista - e o filósofo, quando fiel à sua vocação igualmente marginal - tem recebido ao longo da história o rótulo de louco. E sua "loucura" consiste nisto: não é um homem sério.

Por oposição, nada parece ser levado tão a sério quanto o tra­balho artístico. Atividade desinteressada - não no sentido de alie­nação das questões de sua época, mas em oposição à seriedade daquilo que é vigente. Não é sem motivo que hoje se busca no ar­tista um modelo de ação não repressiva e de reerotização do agir. O critério segundo o qual se orienta não é o lucro ou a dominação do outro, sendo flagrante que o artista realiza um conjunto de valo­res que se chocam frontalmente com aqueles que são vigentes.

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No homem sério, ao contrário, encontramos a perfeita encar­nação do "interessado" - palavra agora utilizada em sua conota­ção menor: eu como objeto da seriedade. É ambicioso, calculista, visa lucro, poder, organiza suas relações em termos de futuro pro­veito etc. Curioso notar que nada poderia estar tão distante dos valores idealmente apregoados pela tradição do pensamento oci­dental do que o homem sério. No entanto, é o artista que, ao con­cretizar estes valores, acaba recebendo toda a carga de agressão sob o rótulo de "louco".

O artista, este marginal, é objeto de tabu, suportando a mes­ma agressiva ambivalência por parte do homem sério: amor e ódio. Aliás, duas são as coisas que o homem sério faz ao chegar ao po­der: instaura a censura e constrói suntuosos museus e teatros. E distribui prêmios literários. Isso só parecerá contraditório se deixar­mos de considerar que existem duas maneiras de aniquilar com o artista: censurando-o ou promovendo-o a uma espécie de ornamen­to social. E é assim que o homem sério exorciza aquilo que teme. I Algumas conclusões são possíveis. Antes de mais nada, é ób­vio que o sério está a serviço de uma máscara social - é uma per-isona que assumo. Ou: que me assume. Casca normativa que nos vem do exterior e que nos dita o que convém, esta a essência de tal seriedade. A partir disso, pouco ou nada importam as intuições que procedam do interior, ficando nossa expressão mais pessoal e crítica eliminada. Eis como existem coisas que um professor faz -e outras que não faz. Usar óculos, ser carrancudo e empertigado.

Afogar-se e suar desesperadamente num terno e gravata. Falar num jargão convencional e altamente "erudito" - coisas que cabem, que convêm. Outras, nem tanto.

O mesmo se dá com aqueles que praticam a Filosofia entre­nós, a imensa maioria composta por professores. Existem coisas sérias, consagradas pelo uso acadêmico, de bom tom e alta ilustra­ção. São coisas que vêm sendo discutidas na Sorbonne, em Oxford, publicadas em Paris ou Berlim, apresentadas em congressos. Cons­tituiu a Filosofia, desta forma, seus próprios temas e maneiras de tratá-los - aqueles que convêm. Quer dizer, seus sufocantes ternos e gravatas. E o triunfo do homem sério é atingido quando se che-

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ga à completa ritualização. Quando já não importa o dito, mas a maneira de dizer dentro de padrões previamente consagrados. As­sim, uma comunicação a um congresso pode ser absolutamente vazia e soberbamente tola - mas, cumprido o ritual, o aspecto "sa­crossanto" da cultura é preservado. Eis aí coisas convenientes, per­feitamente sérias.

Quero com isto dizer - não principalmente e não só - que o tema providenciado para este título exigiria sair do sério. Pare­ce evidente que Filosofia brasileira só existirá a partir do momen­to que vier a ser, como a piada, uma investigação do avesso da se­riedade vigente. Obras sérias são feitas com arquivos, notas ao pé da página e num jargão que me aborrece. É esta máscara séria que vem sufocando o pensamento brasileiro, onde ela mais profun­damente aderiu ao rosto. A ritualização, triunfo do sério, consiste exatamente nisto: fala-se agora sobre temas adequados, pouco im­portando se importam. Vale dizer: mesmo que se trate de especu­lações sem qualquer raiz na realidade que nos circunda. Assim, perdeu-se a ligação e a referência crítica à realidade, que sempre foi a pretensão básica da Filosofia quando soube ser fiel à sua mis­são marginal.

Faz algum tempo. l i uma entrevista de Nelson Rodrigues -exemplo de típica inteligência brasileira cujos descaminhos só nos resta lamentar - em que dizia que o mais grave defeito dos perso­nagens de romance brasileiro é serem incapazes de cobrar um es­canteio. Por detrás do efeito de espírito, uma intuição radical: en-tre-nós perdeu-se o contato com a realidade em torno.

Isso tudo vem a ser ainda mais espantoso se observarmos que nossa atitude corriqueira - a do brasileiro, vale dizer - é de profunda aversão ao formal. Temos horror à pompa. Um traço básico do humor brasileiro, e, portanto, da sabedoria do brasilei­ro, é desestruturar qualquer pomposidade, desarmando as tentati-

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vas de empostação. Já as expressões da língua revelam isto. Um francês qualquer pode dizer: "Je vous en prie" ou "Je suis enchan-té de faire votre connaissance". Isto, ao pé da letra, é ridículo em português. Um escritor alemão pode, por exemplo, semear genero­sos pontos de exclamação ao longo do que escreve. Em termos brasileiros, nada mais chocante do que uma exclamação. Não con­fere com nosso natural ceticismo, nossa oblíqua maneira de olhar. Em nós é espontânea a tendência a ver o avesso das coisas. Se diz que qualquer personalidade mundial, com dois dias de Brasil, já não seria mais levada a sério.

Entretanto, é no Brasil onde o falar, o escrever e o pensar vieram a ser as coisas mais formalizadas e rígidas que se conhece. Todo sujeito que sobe numa tribuna julga essencial, antes do mais, colocar-se na ponta dos pés e no alto de seus tamancos. Essencial trocar todas as palavras usuais por palavras que estranham nosso modo. Construir frases numa ordem que jamais usaria para pedir um cafezinho. E falar sobre coisas para as quais nos custa encon­trar referência na realidade em volta. No intelectual brasileiro que discursa, triunfa o sério - expressão de uma classe privilegiada dian­te da multidão analfabeta. No homem sério, triunfa a Razão Orna­mental.

O melhor exemplo disto talvez seja o terno e gravata. Este uso revela entre-nós muito mais do que se poderia supor. Além da natural aversão ao formalismo, as razões de clima: este é um país onde, na maior extensão, o calor é brutal. Apesar disto, sem­pre que se trata de realizar uma atividade "cultural" - apresentar uma aula, discursar, escrever um livro ou pensar - , o brasileiro sé­rio mergulha num terno e gravata.

Este triunfo do externo não significa apenas a submissão ao vigente. Significa mais. A bem dizer, determina que o discurso, em terno e gravata, fuja da realidade brasileira. E óbvio que nin­guém saberá cobrar um escanteio nestes trajes. Pelo mesmo moti­vo, nada poderá dizer de importante, que importe. A roupa deter­mina, no caso, um ato de seletividade que procede do vigente: a partir do momento em que a assumo, uma série de coisas deixam de ser urgentes. Não as vejo. Não são suficientemente sérias. En-

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tão, a fuga para um universo adequado ao traje: a fria Europa. Assim, o filósofo brasileiro, capaz de vôos tão mirabolantes

no tempo e no espaço, capaz de pensar o século XIII ou as cosmo-visões européias, não é capaz, pela armadura na qual se encontra, de enxergar um palmo diante do nariz. Este mesmo "pensador" não é capaz de cobrar um escanteio ou dançar um samba. O que levanta a questão fundamental sobre as condições de possibilida­de de um juízo filosófico brasileiro: a Filosofia, de terno e gravata, pensa?

Eis o que desejaria mostrar: nossa aversão à pompa acaba convertendo-se em seu oposto - o triunfo da cultura formalistica. E, pois, urgente que assumamos a capacidade a séno do humor como forma de conhecimento. Só no momento em que, abandona­da a tirania do sério, percebermos que nossa atitude mais profun­da encontra-se em ver o avesso das coisas é que poderemos reti­rar de nossas costas o peso de séculos de academismo. E só então pensar por conta própria. Se deslocarmos a acentuação do exter­no para o interno, encontraremos condições de pensar o que está diante de nosso nariz. E o que é Filosofia? É a tentativa, penso, de enxergar um palmo diante do nariz - o que não é tão fácil nem tão inútil quanto muitos pensam. Afinal, o peixe é quem menos sabe da água.

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Creio ser isto suficiente para denunciar nossa inautenticida-de intelectual. Quando, com um mínimo de consciência crítica, in­vestimos contra nossos deuses e fantasmas, nossos sagrados precon­ceitos? Sempre damos um jeito? E o que quer dizer isto? Uma vir­tude, uma maleabilidade maior? Este é o país das "revoluções sem sangue"? De fato e historicamente? E o que significa isto? Um humanismo superior? Falta de caráter? Um deixar como está pa­ra ver como é que fica? Mito da conciliação? Fuga do a sério?

Vejamos bem: se este é o país do futebol, por que nossos personagens de romance não sabem cobrar um escanteio? Ou se­rá o país do eterno carnaval, da praia, do cafezinho, do papo des­contraído, do funcionário público, do herói sem nenhum caráter, do chope gelado, ou, antes e acima de tudo, o país do jogo do bi­cho e da loteria esportiva, revivência dos mitos do bandeirante? Mas qual a Razão - se há - implícita nisto? Qual o pensar que daí decorre? Qual o projeto existencial que a tudo isso informa? Em suma: o que significa isto?

Não sabemos. Estes temas ainda não adquiriram o status de assunto sério, pois o intelectual brasileiro só leva a sério o que é sério, óbvia inversão. Onde o hábito faz o monge.

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Capítub 3 Uma Razão que se expressa

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18 Uma Sazão que se expressa

For muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora nâo me digam que ando à procura da originalidade, por­que já descobri onde estava, pertence-me, é minha.

MARIO DE ANDRADE (Prefácio Interessantíssimo)

Sempre que uma Razão se expressa, inventa Filosofia. O que chamamos de Filosofia grega nada mais é do que o síreap-íease cultural que a Razão grega realizou de si mesma. É deste ato - mais simples do que gostariam de supor os pensadores tupiniquins - , no qual uma Ra­

zão se descobre em sua originalidade e conhece seus mais íntimos projetos, que emerge a possibilidade de Filosofia.

Mas no que consiste descobrir-se em sua originalidade? Te­mos aqui duas questões: sobre o que seja descobrir-se e sobre a natureza da originalidade. E algo anterior: as condições desta des­coberta.

Se parto do suposto que descobrir-se é, de algum modo, des­cobrir alguma coisa, desde logo me coloco em oposição a isto que deverei descobrir. No momento em que encontrasse tal objeto, te­ria concluído minha tarefa. Mas não existe de fato nada com o que, ou com quem, eu deva me encontrar para descobrir-me. Os encontros com são externos e superficiais.

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De fato, descobrir-se é encontrar-se em, pelo simples fato de não haver um "outro" que eu deva descobrir - desde o início sou eu quem está em questão. A descoberta é, pois, fenômeno pri­mário: um re-conhecimento.

Se nos despimos de todas as artificialidades que providencia­mos para nossa instalação no real, verificamos que a questão so­bre o esíar permanece além de todas. Assim, desde o início a ques­tão a respeito do que eu sou remete-se à pergunta: "Onde es tou?" E onde estou? Num tempo, num lugar, entre coisas qu< me rodeiam, pessoas com quem falo. A consciência é primariamen­te este contato com a proximidade, com os contornos que imedia­tamente me chocam, exigem e perturbam. Estou em determina­do lugar e, a partir dele, principio a ser. Antes estou, depois sou.

A Filosofia, onde uma Razão se expressa, sempre se revelou pela fidelidade a este dado. Súbito, uma Razão descobre-se em. Em Mileto, por exemplo. Por mais abstrato que possa parecer um pensamento, sempre traz em si a marca de seu tempo e lugar.

Ao inverso do comumente suposto, não é a desvinculação do lugar e do tempo que confere profundidade a um pensamento, como, por exemplo, o de Platão. Seu grande mérito é ser a expres­são realizada do espírito grego num dado momento - pois este ho­mem foi, sem dúvida, um grego. Compreendemos mal o que dis­se se quisermos conservar de sua obra aquilo que não se "mistu­ra" impuramente com as atribulações de sua época. A consciência aguda, altamente diferenciada da Razão grega naquele momento, eis a raiz de sua profundidade e a natureza de sua lição. Seu pen­samento torna-se incompreensível se não levarmos em conta a ínti­ma conexão que aí existe entre Política e Filosofia, sendo esta es­clarecida por aquela, na medida em que reflete a seu respeito. O fracasso político na Sicília, as condições políticas perturbadoras, a morte de Sócrates o levaram ao postulado fundamental de seu idea­lismo: o mundo material deve ser modificado - quer dizer: nega­do - a partir das verdades obtidas na intuição das idéias. Assim, ao postular a reforma da cidade, o "mundo das idéias" mostra-se como o não-ser negador do vigente, a síntese de sua crítica a seu tempo. E só assim, visto em sua essência inegavelmente política,

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faz pleno sentido. Fora disso, parecerá construção vazia e "platô­nica" - o que de fato nunca foi.

Quanto a Tomás de Aquino - um dos autores, aliás, pelo qual devemos ter o máximo de piedade, pois foi vítima do pior dos preconceitos, o preconceito a favor -, devemos notar que, "his­toricamente, o tomismo não surgiu como o sistema intemporal e 'sabe-tudo' que nos apresentam (...) era a resposta patente a um problema inadiável do momento".1 Encontrava-se em dada posi­ção e dela buscava a resposta àquilo que era urgente questionar. Assim, tentar eternizá-lo, colocando-o acima do tempo, é desservi-lo - donde se conclui que, em matéria de desserviços, os tomistas conseguiram mais do que os mais severos críticos de Tomás de Aquino. "Isolada do contexto histórico que a viu nascer, a síntese tomista aparece como anacrônica."2

Os exemplos poderiam continuar e toda uma história da Filo­sofia poderia ser escrita a partir daí. Fiquemos apenas com o es­sencial. Como entender Hegel sem a Revolução Francesa, sem re­ferência à necessidade de reorganização do Estado e da socieda­de em bases racionais? "Os esforços históricos concretos para o estabelecimento de um tipo de sociedade racional haviam sido transpostos, na Alemanha, para o plano filosófico e transpareciam nos esforços para elaborar o conceito de Razão. Tal conceito es­tá no cerne da Filosofia de Hegel. Este sustenta que o pensamen­to filosófico nada pressupõe além da Razão, que a história trata da Razão, e somente da Razão, e que o Estado é a realização da Razão. Estas afirmações não são compreensíveis, porém, se a Ra­zão for tomada como um puro conceito metafísico, pois a idéia que Hegel fazia da Razão preservava, ainda que sob forma idealís-tica, os esforços materiais no sentido de uma vida livre e racional. (...) A não ser que se apreenda com clareza o sentido de tais con­ceitos, e sua intrínseca correlação, o sistema de Hegel aparecerá

1. SCHOOYANS, Michel. Tarefas e vocação da filosofia no BrasiL Revista Brasüeira de FúosoBa, São Paulo, 21(41):61-69, jan./fev./mar., 1961, p. 65.

2 Idem, ibidem.

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Uma Sazio que se expressa 21

como a obscura metafísica que de fato nunca foi."3 Fora, portanto, das urgências de seu tempo, os pensadores

não chegam a fazer pleno sentido. Mas não basta ressaltar que to­do pensamento traz a marca de seu lugar e tempo - isto, de um modo ou de outro, muitos aceitam. O vital é reconhecermos que um pensamento é original não por superar sua posição - o que é impossível - , mas precisamente por dar forma e consistência a es­te tempo e apresentar uma revisão crítica das questões de sua épo­ca, aí tendo origem. O pensamento é superior não a despeito de ser situado, mas justamente por situar-se.

Desta forma, embora entre as pretensões da Filosofia - e tam­bém da ciência, no caso - encontremos a de querer ultrapassar o espaço e o tempo, esta mesma possibilidade de superação radica-se no ato de assumir sua posição específica. Isto equivale a dizer que é justo esta pretensão que se encontra em jogo. Entre-nós, por exemplo, encontramos o apego extremo ao pensamento de outros por julgarmos que só os outros poderão nos dar qualquer chave do saber. Assim, queremos nos descobrir num encontro com um pensamento qualquer, seja medieval ou grego, de hoje ou de ontem. Aguardamos uma solução estrangeta sem nos darmos con­ta de que, sendo estrangeta, será precisamente isto: estranha. E o pensamento, antes da pretensão de ser atemporal, deve ter a pretensão primária de não ser jamais estranho, o saber de um outro.

Se exigirmos da Filosofia não ser apenas algo entre-nós, mas Filosofia brasileira, é claro que estamos supondo uma originalida­de, a nossa. Um erro seria, portanto, apegar-se a uma resposta es­tranha, que aqui não tenha nascido. Outro, confundir originalida­de com novidade. O novo é apenas um acidente do original. Que­ro dizer: dele decorre em alguns casos. Uma formulação qualquer é original não pelo fato acidental de ser nova ou inédita, mas pe­lo fato de esíar vinculada a determinadas origens. Produto de um

3. MARCUSE, Herbert Razão e Revolução. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969, p : 17.

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22 Uma Razão que se expressa

ato do espírito que se enraíza em. Criar um automóvel sem motor, direção e lugares e - suprema novidade - que não transporte, se­ria algo absolutamente novo, rigorosamente inédito. Creio, no en­tanto, que sem nenhuma originalidade. O delírio novidadeiro e for-malístico na arte, por exemplo, tem produzido resultados deste ti­po - uma arte que se recusa a qualquer compromisso para bastar-se num auto-envolvimento aos limites do narcisismo. De fato isto revela tão-somente o vazio existencial, a ausência de qualquer pro­jeto criador. Surge, de resto, num momento em que a arte perdeu a noção de qualquer papel histórico.

O original, em suma, é o avesso do estranho e do novo: tem raízes aqui e de longa data.

Coisas simples decorrem daí. Se não assumo minha posição, carecerei de um ponto de vista e, conseqüentemente, nada verei. E condição de visão estar em dada posição e dela vislumbrar os objetos. Ver é, ou envolve, um ato de seletividade. E só vejo de minha posição. Qualquer verdade é minha verdade - e só o será se vier a ser minha. Não pretendo, como uma acusação ligeira e superficial poderia supor, qualquer inexistência da verdade. Viso insistir em que é preciso ver, ou estar-vendo, da única maneira possível: historicamente. O suposto da verdade, de resto, é postula­do intencionalmente na própria natureza do ato de pensar. Ocor­re que a verdade não se encontra onde muitos julgam que esteja. Se quisermos ser fiéis à verdade, devemos supor que resida não em nossos juízos (históricos, situados, mutáveis, refutáveis), mas no limite projetivo destes juízos. A verdade, sendo criação históri­ca, encontra-se no limite da direção para o qual apontam os juízos. Daí a refutabilidade indefinida do conhecimento, seja científico, seja filosófico. Daí a ilusão de esgotá-lo no juízo, uma vez que, his­toricamente - quer dizer: de fato e efetivamente - , a verdade não reside no juízo, mas em sua projeção.

A originalidade da Filosofia consiste em descobrir-se em de­terminada posição, assumindo-a reflexivamente. Além disso: se sua pretensão básica é a verdade, vale lembrar que esta só faz senti-

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Vaia Sazão que se expressa 23

do quando é minha. Mesmo a verdade de um outro só poderá ser verdade para mim se dela me apropriar, antropofagicamente. E não se poderia objetar, do ponto de vista de um pensamento rudi­mentar, que a verdade em si já se encontrava lá. Por um motivo simples: verdade em si não faz sentido algum.

Eis por que uma Filosofia brasileira só terá condições de ori­ginalidade e existência quando se descobrir no Brasil. Estar no Bra­sil para poder ser brasileira. E isto não tem ocorrido. Desde sem­pre nosso pensar tem sido estranho, providenciado no estrangeiro.

É imprescindível, portanto, a clara consciência de que um pro­blema para um alemão do século XX ou um grego do século V a.C. pode, perfeitamente, não ser um problema para mim. Ou: só o será se eu o fizer meu. E só poderei legitimamente fazê-lo meu se corresponder às importâncias e urgências diante das quais me encontro. Esta, a condição de possibilidade anterior a toda e qualquer Filosofia. Não há aqui um elenco de coisas anteriormen­te fixadas - "estranhamente" - que eu possa utilizar como um ro­teiro ou espécie de índice, de tal maneira que, ao tratar de cada um destes assuntos, eu esteja inevitavelmente fazendo Filosofia. Fazer Filosofia é fazer a Filosofia. O que envolve: seus temas e seu modo de abordagem. Jamais posso dá-la como pressuposta, como se bastasse manuseá-la à maneira de um arquivo.

Urge, pois, com relação aos temas e instrumentos "estranha­mente" providenciados, que eu verifique se me-importam. Só en­tão terei condições de aproximar-me deles a sério, fazendo com que sejam efetivamente meus. Condição para que meu conheci­mento seja um estar-vendo de minha posição - e não um abstra­to ver fora do tempo e do espaço.

Motivo pelo qual uma Razão só se expressa ao providenciar seus temas, sua linguagem, decorrência de encontrar-se em sua posição. A grande dificuldade, no sentido de fazer explodir toda uma construção séria da Filosofia que entre-nós se instalou, é rea­lizar a consciência de que o pensamento e seus objetos são pura

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24 Uma Sazão que se expressa invenção. Com efeito, não havia um "problema" para a Filosofia grega antes que os gregos o inventassem, assim como a IX? Sinfo­nia não estava em parte alguma antes que Beethoven a criasse. Não havia um "problema hegeliano" esperando por Hegel anterior­mente a Hegel. Assim, não há um "problema" para a Razão Bra­sileira que nos esteja esperando. Urge, isto sim, inventá-lo no pró­prio ato de inventar um Filosofia brasileira. Nosso streap-tease cultural.

Invenção, porém, que não se dá no vazio. Hegel, Tales ou Marcuse não injetaram um problema na consciência de seu tem­po, assim como um médico implanta - "estranhamente" - um ór­gão ou tecido no corpo do paciente. Ao contrário, de Tales a Mar­cuse a Filosofia fez vir à consciência reflexiva da época coisas que urgiam ser providenciadas. Não que, ao modo do em si acima refe­rido, tais elementos lá estivessem em estado latente à espera de uma espécie de sucção reflexiva. Insista-se que os filósofos, ao in­ventarem Filosofia, inventaram igualmente o que importava e des­tacaram o que era urgente, o que se veio a perceber depois de ter sido inventado. Daí a intuição original que gerou dado conjunto de idéias. A noção de que o pensamento é uma espécie de ápice reflexivo da consciência de seu tempo pode ser excessivamente ro­mântica - mas é inevitável. E uma história da Filosofia que se re­cuse a ser um amontoado de dados terá por tarefa recuperar aque­las intuições que, ao longo da história, geraram pensamento.

Assim, Filosofia é uma Razão que se expressa - fórmula on­de a palavra Razão comparece carregada de historicidade. E uma Filosofia brasileira precisaria ser o desnudamento desta Razão que viemos a ser. Seja por excesso de pudor, por medo, o fato é que até hoje não nos despimos. Talvez temendo nada encontrar por debaixo de nossos trajes europeus, nosso infatigável terno e grava­ta. Ou talvez fosse para nós excessivamente doloroso descobrir-se em, enfrentando a radical solidão da nudez. Tiraríamos as roupas para descobrir, absurdamente, que estamos nus. Sem máscaras de aplausos ou punições, sem nossa imagem de homens sérios, cheios de certezas. O que, afinal, fazer de uma nudez que não acei­tamos como nossa?

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Uma Sazão que se expressa 25

A questão se reduz a algo simples: não existe uma "problemá-tica"brasileira à nossa espera. Urge ser inventada. Inventada e pos­ta em questão - este, o esforço da Filosofia, desde sempre. Cabe perguntar se entre-nós encontramos sinais de tal esforço. Em resu­mo e didaticamente: há uma Filosofia brasileira?

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Capítulo 4 Filosofia e negação

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Filosofia e negação 27

O passado é lição para se medi­tar, não para reproduzir.

MARIO DE ANDRADE (Prefácio Interessantíssimo)

AFilosofia goza de um destino certamente trágico: deve justificar-se. Não no sentido em que as ciências devem justificar-se. Quanto à ciência, urge saber de sua valida­de, das condições de construção de seus objetos e deter­minar, no conjunto da cultura, o lugar do conhecimen­

to que propõe. Não é o que ocorre com a Filosofia. A ciência e seu saber procedem de um movimento do espíri­

to em direção ao real que nos circunda, real suposto independen­te de mim. Em nossos dias isto assumiu um caráter pragmático: seu valor é o de seus resultados em termos de técnica. Antes mes­mo de determinado o lugar e a validade da ciência, já damos por suposta sua importância. A ciência nos importa, sendo úteis os seus resultados. Antes mesmo de questionarmos a respeito de seus supostos e conseqüências, damos por admitido que os resultados do saber científico são desejáveis, gerando progresso. É claro que mal sabemos o que seja progresso, mas não importa: o cientista é, do ponto de vista do vigente, dispensado de defender a cidadania da ciência. Ela já a tem, admitida.

As coisas mudam quando tratamos da Filosofia. Torna-se ago­ra urgente justificar e assumir a Filosofia. Justificá-la não é ainda a defesa de sua cidadania, mas algo anterior. Antes do mais, impli-

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28 Filosofia e negação

ca certa atitude geral diante do Universo - atitude muito diversa daquela adotada pela ciência. Nesta lidamos com determinados objetos munidos de determinados instrumentos, sendo que antes convencionamos os limites e o valor de sua utilização. Na Filosofia, deparamos com um modo de colocar a existência em questão. Sen­do que este modo gera seus próprios objetos. Não há, já foi visto, objetos que aí estejam - "filosoficamente" - à espera de um trata­mento adequado. Tais objetos são criados pelo espírito, isolados num ato de intuição. Não ocorre a simples seleção de um objeto, mas sua invenção. Por Sm, sua projeção existencial no plano de nossas importâncias e urgências.

Estes momentos - atitude, invenção, projeção e determina­ção das urgências - descrevem um único processo. No entanto, não é tudo. Ocorre um momento paralelo: urge assumir a Filoso­fia. Talvez isto signifique algo simples: pergunta-se aqui se a Filoso­fia é, para nós, importante. Será que, além do bolor acadêmico do qual se reveste e da busca de sucesso intelectual, a Filosofia re­almente nos importa? Responder a tal questão implica determinar a distância que vai da justificação da atitude filosófica (crítica) ao uso da Filosofia para justificar atitudes (ideologia).

Não basta estabelecermos os vícios de nossa costumeira posi­ção intelectual, ainda que isso seja decisivo. E preciso perguntar além, na origem. Ou seja: precisamos mesmo de Filosofia? Propor esta questão não é um mero perguntar-se acadêmico - e "brilhan­te", num jogo de palavras. É levar o questionamento a seu limite: o limite de sua importância.

É verdade que qualquer executivo esbarra ao longo da vida com questões que constam entre aquelas problematizadas pelos filósofos. Mas só isto não concede importância a tais questões. E preciso que eu esteja envolvido num processo no qual tais ques­tões emerjam como decisivas, vindo a ser urgentes, quando as le­vo a sério.

Descobrimos para lá da importância da Filosofia dada pelo homem sério - erudição, brilho, status, justificação ideológica do vigente - a importância da Filosofia quando levada a sério - a emergência da consciência negadora.

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Filosofia e negação 29

As questões decorrentes são as seguintes. Onde, entre-nós, esta importância a sério do filosofar? Onde, o objeto de nossas preocupações referido ao que nos rodeia e inventado por ato de uma consciência crítica brasileira? Onde, a autenticidade e a cida­dania de uma Filosofia nossa?

Estas, as questões que entre-nós foram extraviadas. Isto por­que a grande tentação da Filosofia - algo que compartilha com a arte - é apresentar-se como "respeitável", quer dizer, com preten­sões sérias.

O conceito de responsabilidade é, assim visto, essencialmen­te acrítico; e já sabemos que o homem respeitável é o homem sé­rio. Tal homem está definitivamente comprometido com dado siste­ma, molde e fim de seus atos. A partir do momento em que a Filo­sofia adquire respeitabilidade, pode conseguir tudo - verbas, diplo­mas, honrarias, imortalidades acadêmicas - , menos o essencial: es­pírito crítico.

Em livro de introdução à Filosofia, por exemplo, é comum encontrarmos a insistência com relação à "utilidade" da Filosofia - versão séria da importância. É apresentada como conhecimen­to desinteressado (o que, de resto, ou é equívoco ou não existe, sendo todo conhecimento interessado, já que é assumido como ur­gente), embora fosse melhor dizer inofensivo. E assim busca-se mostrar os benefícios informativos e formativos - "espirituais" -da Filosofia. Esta atitude dos manuais equivale a pedir um lugar ao sol para um pobre mendigo, o filósofo. Jura que é inofensivo, sério, e que cuida apenas das coisas do espírito - e pede um pou­co de sol. Desconfio que tal sujeito mendiga errado, já que não sa­be do que precisa.

Ao se ressaltar a utilidade da Filosofia - e é uma importância séria que lhe será dada - estaremos de imediato liquidando com esta Filosofia. Poderá a partir de então reproduzir ideologicamen­te o que é vigente, só. "Pense" o que quiser, será sempre ideológica.

Tal Filosofia ficará impossibilitada de, antes de mais nada, criar um mundo - o que equivale a dizer: destruir um mundo, aque­le que impede o próximo. Visará manter o mundo dado com to­da a sua seriedade. Assim, as duas características anteriormente

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exigidas, autenticidade e cidadania, ficam prejudicadas. E a Filoso­fia permanecerá entre-nós como aquele agregado de Machado de Assis, o José Dias, que aplaude e concede para sobreviver.

A Filosofia não pode prescindir de sua missão primeira: des­truir um mundo. Efetivamente, o que é Filosofia? A mim parece ser isto: dizer o contrário.

Esta, a lição primária que uma história do pensamento deve­ria sempre ressaltar. Os grandes momentos do pensamento surgem no auge de uma curva, dando consistência e definição a um mo­mento do processo histórico. E condensam isto numa intuição po­tencialmente criadora. Imediatamente após o período de criação, surge a cristalização e a esterilidade - e aí encontramos os preten­sos seguidores. É quando aquela intuição originária se perde nalgu­ma escolástica. Só mais tarde surgirá o verdadeiro sucessor: aquele que disser o contrário, respondendo à intuição envelhecida em con­ceito com uma nova intuição. E o processo segue.

Antes de mais nada, Sócrates diz não a tudo que o precede, como Tales havia dito não às cosmogonias e como Platão dirá não a Sócrates - encontrando em Aristóteles aquele que lhe diz o con­trário. Os verdadeiros seguidores de Platão não são os neoplatôni-cos, pois estes festejam um cadáver. Poderíamos construir toda uma história da Filosofia, que se recusasse a ser mero arsenal ilus­trativo de dados históricos, mostrando que qualquer momento cria­dor foi, na origem, uma negação. Isto não envolve, advirto, a idéia de uma necessária sucessão linear que conduzisse a um "progres­so" contínuo para algo melhor - apenas envolve momentos legíti­mos de um processo que, embora produto humano, nos escapa em seu sentido globaL

Oswald de Andrade, que entre-nós representou um momen­to de devastadora destruição e, portanto, de máxima criação, fez bem em notar com relação à arte: "Essa necessidade de moderni­zar é de todos os tempos (...) Giorgio Vasari, o grande crítico do Renascimento, fala sempre e insistindo em exaltar, na 'maneira moderna' de Leonardo da Vinci, de Rafaelo Sanzio de Urbino, esses que são hoje os clarins supremos do classicismo. E o são jus­tamente porque foram 'modernistas'. Se não o fossem, aguavam

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repetindo Giotto e Cimabue, em vez de produzir a Língua nova da Renascença."4

Qualquer conhecimento inicia sendo negação, ou seja, como essencialmente crítico. O que não é, está visto, exclusividade da Filosofia. Das artes plásticas à ciência, assistimos à sucessão de in­tuições criadoras degradando-se em estereótipos até serem recupe­rados por nova intuição.

Há, no entanto, uma condição para este não. A crítica é al­go a ser assumido, é uma posição do espírito. E não a assumo do ponto de vista da eternidade. Por um motivo simples: não estou na eternidade. Estou no tempo, num lugar. Ao assumir a postura crítica a partir deste tempo e lugar, deixa de haver distância entre o que digo e o que sou - inexistindo qualquer diferença entre es­tar e ser. Digo o que sou. Isto é Filosofia. Meu streap-tease cultural.

Entre-nós, porém, encontramos atitude oposta, que chamarei de "mito da imparcialidade". Queremos estar acima das oposições. Não no sentido de assumi-las e então resolvê-las. Mas no sentido de evitá-las e então dissolvê-las. Aguando, como diria Oswald de Andrade.

E fato constante nossa tendência a evitar o choque de idéias e as tomadas de posição. Encontramos sempre um meio-termo en­tre, digamos, idealismo e realismo, subjetivismo e objetivismo, e houve mesmo quem entre-nós encontrasse um meio-termo entre positivismo e marxismo, disparate que me intriga. Tudo isto pode­ria consistir em empresa louvável, mas não do modo como a con­duzimos: dissolvendo oposições. Cabe, a propósito, alertar que no meio não está a virtude, como muitos pensam. No meio está o medíocre.

Eis por que, não assumindo uma posição nossa, um pensar brasileiro torna-se impossível - impossibilitado de criar por não aceitar destruir o passado que nos impuseram - , recusando assu­mir sua condição básica: que seja nosso, negador do alheio.

4. ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lança. 3? ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasilei­ra, 1972, p. 12.

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CapüubS O mito da impar­cialidade: o ecletismo

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O mito da imparcialidade: o ecletismo

Trazendo em seu espírito o re­flexo das faces mercantil e feudal do domínio, ceve a intel-Ugentsia nacional que conci­liar também o liberalismo eco­nômico e o instituto da escra­vatura, procurando ajustá-lo à realidade do país. Ademais, tudo a levava a uma ideologia da me­diação.

PAULO MERCADANTE (A Consciência Conservadora no Brasil)

Brasil aconteceu ser o paraíso de algumas outras coisas, além do futebol e do jogo do bicho. Entre elas, o ecletis­mo e o jeito.

"A corrente eclética representa o primeiro movi­mento filosófico plenamente estruturado no Brasil (...).

No meio século transcorrido entre as décadas de 30 e 70 inserem-se a formação, o apogeu e o declínio do ecletismo no BrasiL As sementes lançadas sob o manto da autoridade de Cousin, filósofo oficial na França de Luís Filipe (1831/1848), encontraram terreno fértil Se não chega a estruturar-se numa autêntica corrente filosó­fica, a doutrina configura plenamente o espírito da elite dirigente constituída durante este período. Sinônimo de simples justaposição de idéias, perde, no Brasü, toda e qualquer conotação negativa e é adotado, quase universalmente, com a denominação de esclare­cido, qualificativo que visa sem dúvida enobrecê-lo. Mais que isto, a própria vitória da conciliação no plano político, durante o Segun­do Reinado, é atribuída ao estado de espírito que se identificava com o ecletismo."5

5. PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil 1? ed., São Paulo, Grijalbo, 1967, pp. 75 e 104.

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As idéias deste filósofo menor, Cousin, espécie de hegelianis-mo dissolvido aos limites da inconsistência, vieram a ser não ape­nas aquilo em que o espírito das elites dominantes se viram retrata­das, mas, sobretudo, as frouxas bases sobre as quais se fundou uma autêntica ideologia da conciliação. Seus traços mais marcan­tes seriam: 1? - a desconfiança com os "sistemas", que seriam ca­misas-de-força do espírito; 2? - a crença de que a "verdade" pode­ria ser o resultado de um mosaico montado a partir de inúmeros pensadores, o que, além de livrar-nos dos perigos dos sistemas, permitiria um enriquecimento indefinido, aproveitando-se de ca­da sistema o "melhor" - daí a qualificação de "esclarecido"; dizia Cousin: "O que recomendo é um ecletismo ilustrado que, julgan­do com eqüidade e inclusive com benevolência todas as escolas, peça-lhes por empréstimo o que têm de verdadeiro e elimine o que têm de falso"; 3? - finalmente, a crença tipicamente narcisis­ta e imatura de que, assim agindo, estaríamos dando mostras de "espírito aberto", "esclarecido", não-dogmático - mito que seria notável relacionar com aquele da natural "bondade" do brasileiro, ou com os mitos da "cordialidade", da "democracia racial", das "re­voluções sem sangue".

Não é minha pretensão desenvolver aqui as peripécias históri­cas descritas pelo ecletismo entre-nós.6 Quero outra coisa. Me pa­rece que o ecletismo não foi entre-nós apenas um movimento, o primeiro a se estruturar, ou o simples reflexo de uma determina­da situação política e social. Produto direto da indiferenciação inte­lectual brasileira, que por sua vez é produto da dependência cultu­ral que até hoje perdura, creio que no ecletismo tenhamos revela­do muito mais do que normalmente se supõe. É manifestação de alguns traços básicos de nosso caráter intelectual e de nossa condi­ção política, e continua vivo, ainda encontradiço, prezado e vigen­te entre-nós. Saber como se manifesta, porque optamos por ele,

6. Sobre o tema, além da obra de Antônio Paim acima referida, o livro de José Honó­rio Rodrigues: Conciliação e Reforma no Brasil, um desafio histórico-cultural. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965, onde se faz uma análise de nossa característica "politica de conciliação" e a obra A Consciência Conservadora no Brasil, de Paulo Mercadante, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2? ed., 1972

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onde se encontra, eis algumas coisas que urgiriam ser respondidas. Compõe o que chamo de um mito brasileiro: o espírito da impar­cialidade.

Fica claro neste mito que, se ainda não criamos qualquer po­sição filosófica nossa, demos variadas mostras de imaturidade inte­lectual, e, no ecletismo, retratamos nossa hesitação em assumir um ponto de vista que nos permitisse uma síntese original De res­to, reflexo da dependência cultural que desde sempre nos acompanha.

Gostaria de começar por uma afirmação óbvia e altamente "ingênua": a de que o Brasil é um "país jovem". Esta expressão, que circulou com sucesso durante anos, ressalta nossa pujança vir­tual e grandeza ainda não realizada. Com a transformação históri­ca operada pela consciência da dependência, caiu em desuso. E a noção de "país subdesenvolvido" ganhou cidadania.7

Mas peço licença para usar a expressão num sentido mais sim­ples e elementar, prescindindo por ora das implicações da depen­dência para a devida compreensão da despersonalização em que nos encontramos. Viso ressaltar tão-somente que este país foi des­coberto em 1500 - há 476 anos - mas que apenas em 1808, vin­do a Corte para o Brasil, ganhou alguns favores mínimos, sem os quais um país não pode (sequer) pretender existir. E só em 1822 tornamo-nos formalmente independentes. Estes dados poderiam ser complicados para ganhar em consistência, mas pretendo me li­mitar a isto: de.país colonizado passamos a fazer parte dos satéli­tes dos impérios que emergiam e, de fato e materialmente, nossa dependência prolongou-se, assumindo diferentes formas, às vezes tão sutis que chegamos a pensar, sem brincadeiras, que éramos li­vres. Resta, portanto, a constatação de que este país tem uns cen­to e poucos anos, num critério fraco e condescendente - e que te­ria ainda menos, caso o critério viesse a ser mais severo.

7. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Reviste Argumento, São Pau­lo, 1:6-24, out, 1973.

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O jovem leva uma vantagem: ainda não se cristalizou em po­sições rígidas e defensivas. Há, no jovem, a disponibilidade indis­pensável ao trabalho criador: o gosto pelo novo, o risco do incer­to. Em oposição, o passar do tempo se acumula sob forma de rigi­dez e fracasso na criação. Mas cuidemos da conclusão apressada: a de que o jovem seja por si mais criador do que o idoso. E cuide­mos da facilidade oposta: a de que só o homem "experiente" se­ja capaz de criar. Não. O tempo não é experiência. Pode ser esclerose.

Numa visão ligeira, envelhecer seria um caminhar no senti­do do futuro - o que não corresponde à verdade. Caminhar em direção ao futuro é a característica do jovem, ocorrendo envelheci­mento quando se inicia o processo inverso: a volta ao passado, sua preservação, dele se fazendo sempre mais dependente. No que en­velhece, o risco é o hábito - a infindável repetição daquilo que foi antes uma resposta criadora. O perigo é a tensão, inerente ao pas­sado, de buscar perpetuar-se, oferecendo as mesmas respostas a questões que agora são outras.

Esta, a ameaça do passado. Mas há outro ângulo. O passa­do não se acumula somente sob a forma de hábito, mas, virtual­mente, introduz a possibilidade da memória. E se o hábito faz com que se repitam mecanicamente respostas caducas, a memória é o potencial criador sempre disponível com o qual a história pode contar.

O jovem está, num certo limite, livre de um passado que ame­ace escravizá-lo - simplesmente por não existir ou por não ter atin­gido a intensidade necessária. Na aparência - como se isso não dependesse de uma posição do espírito - , sendo o Brasil um país jovem, estaríamos menos próximos dos perigos da esclerose. Mas com o que podemos contar? Já foi dito, de resto, ser o Brasil um país sem memória. Nosso ceticismo destruiria esta consideração -no sentido de levar em conta - com relação ao passado. Parece que estamos condenados a sempre partir do zero.

Desta forma, um país jovem pode ser apenas infantil. Se não corre o risco da esclerose, não conta com o potencial criador da memória.

É neste contexto contraditório - na verdade apenas vital -que se dá (ou não) o ato de assumir-se uma personalidade defini-

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da, propondo uma Filosofia. Foi concretizando esta personalida­de assumida que ao longo da história o espírito criou a si mesmo. Por isso, a questão de uma Filosofia brasileira encontra-se com a urgência de ter que assumir uma Razão Brasileira.

Para que isso ocorra, precisamos atinar que o passado, o pre­sente e o futuro não são coisas dadas, mas criadas - primeira con­dição de pensamento original. O passado, na aparência, é dado -do ponto de vista em que nos encontramos. Mas ele mesmo é uma questão em aberto: foi feito e poderá ser recriado em inúme­ros sentidos se encarado como memória. Só na medida em que assumirmos a essencial temporalidade e contingência inerente ao processo de criação de um espírito brasileiro, assumindo ao mes­mo tempo nossas contradições e alienações, tomaremos posse de uma das condições do pensar brasileiro: nossa posição.

Algumas constatações de fato. Não há, em Filosofia, algo que seja uma posição brasileira. Há uma ilusão: a de que possamos, im­parcialmente, usufruir benefícios das mais diversas reflexões estran­geiras, delas retirando o "melhor". Desde sempre visamos extrair do pensado por outros aquilo que poderá nos ser útil - e isto cons­titui o mito da imparcialidade. Entre-nós, é atitude freqüente bus­car dissolver oposições, justapondo subjetivismo e objetivismo, ma­terialismo e idealismo, racionalismo e empirismo - como se tal ati­tude pudesse, impunemente, ser adotada. Sem nos cobrar o pre­ço daquilo que poderíamos ser. Assim, nos falseamos, nada sendo. E nada assimilamos. A condição mínima de assimilação é a existên­cia prévia de uma estrutura que assimile. Não existe assimilação neutra, na qual só a objetividade bruta do conhecido importe. Exi­ge-se a presença do fator originante do conhecimento: a posição do sujeito.

E pretensão ingênua querer tudo assimilar, dissolvendo oposi­ções, extraindo de cada um o "melhor". Para extrair o "melhor", é necessário seletividade - e esta envolve um critério. Logo, uma

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posição. O vazio nada assimila. E o que determinaria o "melhor"? Fator originante do conhecimento, a posição do sujeito é

quem organiza a seletividade. A distinção entre um conhecimento crítico e um conhecimento ingênuo como o praticado no Brasil é esta: a consciência clara dos critérios adotados. Só a partir da cons­ciência de um critério é que deixo de me encontrar diante de um universo neutro, fazendo surgir um universo cognoscíveL Só assim haverá assimilação, não havendo apenas coisas a serem assimila­das, mas uma atividade criadora do sujeito que assimila.

Se no ecletismo se fizer presente algum critério, deixa de ser ecletismo, passando a ser uma posição caracterizada pelo critério existente. Além de ingênuo, o ecletismo é impossível. Como sem­pre haverá, por mais obscuro, algum critério, o ecletismo determi­na um tipo de Filosofia enlouquecida, que não sabe de si. Pois fa­zer Filosofia é colocar em questão os critérios, os pressupostos com os quais trabalho. Uma Filosofia não filosofada, eis a estranha coi­sa - numa estranha expressão - que se tem praticado no Brasil. Nosso sono dogmático consiste em assumirmos uma posição que é, ao mesmo tempo, ingênua e contraditória.

Ausência de critérios críticos, além de absurda e caótica, não pode ser confundida com abertura intelectual e menos ainda com "esclarecimento". E despersonalização intelectual e produz o mais baixo dos produtos culturais: o ecletismo e seu pragmatismo cego. Essa indiferenciação intelectual gerou um monstrengo em termos de atitude filosófica: evitar oposições e dissolvê-las, ao invés de en­frentá-las e resolvê-las. Sérgio Buarque de Holanda deu expressão a este fenômeno: "E freqüente, entre os brasileiros que se presu­mem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que susten­tam, simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma rou­pagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. A con­tradição que porventura possa existir entre elas parece-lhes tão pouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam sincera­mente quando não achássemos legítima sua capacidade de aceitá-las com o mesmo entusiasmo. Não há, talvez, nenhum exagero

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em dizer-se que quase todos os nossos homens de grande talento são um pouco dessa espécie".8

O que não quer dizer, sendo impossível, que não tenhamos critérios seletivos. Mas são da pior espécie, sem consciência de si, sem reflexão ao nível crítico. Não usamos nossos critérios, somos suas vítimas. São formados por algo próximo do meio-termo (on­de, já foi visto, não está a virtude, mas o medíocre), qualquer coi­sa que gostamos de chamar de bom senso, ponderação, sensatez, e que eu prefiro chamar de "senso impensado".

Um país sem memória não pode ficar esperando que um pas­sado caia do céu: precisa construí-lo, pois mesmo um passado se constrói - quando o faço para mim. E o paradoxo se dissolve: cons-tniímos um passado voltando-nos para o futuro, escolhendo um projeto, um ponto de vista. Nossa posição.

Este gesto nos faltou: apostar. Lembremos que assumir uma posição não é fechar-se ao real, mas condição de realidade. Assu­mir uma posição não significa embotamento. É, ao contrário, con­dição de existência, o momento em que passamos a conviver com a dúvida. O contrário é a despersonalização na qual nos encontra­mos, atados a nosso dogma peculiar: a ingênua imparcialidade.

Todo pensamento é parciaL A partir do momento em que se põe. É delírio pretender um conhecimento absoluto, imutável. E aqui emerge outra de nossas contradições: de célicos, nos revela­mos dogmáticos. Nosso ecletismo surgiu por não admitirmos limita­ções - querendo de tudo o "melhor", o saber completo - , pelo fa­to de sonharmos com a ilimitação. Ora, Platão é o ponto de vista de Platão - nem poderia ser de modo diverso. Esta, a tragédia e a força de todo pensamento criador.

O dilema não é assumirmos ou não uma posição, mas àssu-mi-la com espírito crítico. O espírito da dúvida, que sempre foi, quando a Filosofia soube ser fiel a si mesma, a essência do pensa-

8. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do BrasíL 7? ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1973, p. 113.

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40 O mito da imparcialidade: o ecletismo

mento. Daí o "mito da imparcialidade" revelar, por detrás da más­cara de isenção e objetividade, uma fraqueza primária: a ausência de risco. A incapacidade de ver no conhecimento um empreendi­mento a mais, uma invenção a ser levada a termo. A tentativa de dissolver oposições. Dar um jeito. Não radicalizar.

Isso revela um dos elementos de nosso ceticismo: a autocríti­ca impiedosa e castradora de um personagem que ainda não se li­bertou do imprímatur europeu. Nosso folclore cultural está cheio, na música e no romance, no esporte e no teatro, de momentos em que, aplaudidos na Europa, nos sentimos altamente satisfeitos, pois a Europa novamente se curva diante do Brasil Na verdade isso não revela, na cifração do inconsciente - ou da má-fé, se qui­serem - , a submissão da Europa ao Brasil, mas nossa imatura ale­gria por termos sido reconhecidos e aceitos pela Grande Mãe. No fundo, medo de assumir nossa posição. Medo de desligar-se da cultura européia, dela suplicando reconhecimento.

Entre-nós, portanto, a pobreza filosófica de um país não ape­nas jovem, mas sobretudo imaturo. Que ainda não conseguiu levar-se a sério, preso a modelos de seriedade providenciados estranha­mente. No "mito da imparcialidade", recusamos estar no Brasil. E só deste estar poderíamos extrair um critério seletivo nosso, rei­vindicando nosso ser.

Se nada fizermos, corremos o risco de continuar sendo ape­nas um país jovem que não sabe a que veio, nem o que tem a di­zer. Por medo, omissão, covardia. E jamais inventaremos nossa posição, nada vindo a ser. Sem termos providenciado nossa exclu­siva problematicidade.

E Filosofia, entre-nós, não será feita.

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Capítulo 6 O mito da concórdia: o jeito

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42 O mito da concórdia: o jeito

A gente dá um jeito. (Do povo)

0ufanismo brasileiro privilegia um objeto: o jeito. É voz corrente que damos um jeito em tudo, do existencial ao político, do físico ao metafísico. E não paramos aí: ficamos muito satisfeitos em ser, pelo que nos parece, o único povo capaz de tão saudável atitude.

Creio que o elemento constitutivo do jeito seja a não-radicali-zação Um distanciamento das posições a serem tomadas, o que combina com nosso modo oblíquo de olhar as coisas e nosso pecu­liar ceticismo. Um homem que se exalta perde a capacidade de "dar um jeito". Um país que entra num processo revolucionário não soube descobrir o "jeito" de evitar coisa tão desagradável É saber ver: para o brasileiro - futebol posto de lado - , o máximo ridículo é ser apanhado "crendo". Seja em política, Filosofia ou re­ligião. Nunca nos sentimos mais estúpidos do que no momento em que alguém aponta a nossa radicalização, nosso empenho num projeto. Envolver-se determina a perda daquilo que confundimos com espírito crítico: a imparcialidade da Razão Tupiniquim. Nu­ma atitude dissolvente que sempre nos acompanha, ao modo de manter um pé atrás, nos afastamos das posições a assumir. Daí, o jeito.

Nasce o espírito conciliador. Afinal, as coisas da existência, seja pessoal ou social, não estão aí para serem levadas tão a sério. Conciliador e obediente, cordial, o brasileiro jamais conduz as ten­sões àquele nível em que geram um limite sem retorno.

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O que fazer diante de uma condição, a existência, que conti­nuamente se apresenta como urgente, exigindo que se assuma uma posição? Existir é radicalizar. Radicalização que será posterior­mente negada, num processo indefinido. Posição é estar e preten­der. Necessariamente uma escolha e uma radicalização. Não pos­so ver a vida como espetáculo, como não a posso ver do "ponto de vista da eternidade".

Resta saber: a gente dá um jeito?

Justificamos nosso abandono ao ecletismo como antídoto ao fanatismo, já que abominamos soluções radicais. Louvável intenção, se supusermos que soluções possam ser não-radicais. Jeitosamen­te buscamos a conciliação, esquecendo e dissolvendo oposições.

Um exemplo: a burocracia. Esta lamentável coisa, exigida pe­la máquina que hoje nos utiliza, exerce uma tirania quase comple­ta. O princípio da burocracia, no entanto, não é apenas a mecani­zação - fator inerente a seu processo - , mas algo ainda anterior: a desconfiança. Ou: a falência do humano diante do mecânico. O fator alienado na burocracia é minha veracidade, mesmo a mais primitiva, quando digo: eu sou eu. Burocraticamente, só sou este "eu" que afirmo se o nego através de uma identidade. O reconhe­cimento da burocracia recai sobre o eu que não sou. Aquele 3 por 4.

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44 O mito da concórdia: o jeito

Diante disso, o jeito. O extremo formalismo, que encontra­mos no social, recebe como resposta o jeito. O ascensorista dá um jeito e não vê o cigarro que acendi O guarda rodoviário dá um jeito se meu exame de vista está vencido. Faço matrículas con­dicionais, a própria institucionalização burocrática do jeito.

Nosso ceticismo guarda a noção essencial de que por detrás das formalidades se encontram valores mais respeitáveis do que um "eu" 3 por 4. O jeito é, portanto, uma maneira marota de des­respeitar a extrema formalidade em respeito a valores maiores.

Associado, porém, ao muito nosso "deixa como está para ver como é que fica", o jeito nos tem conduzido a um vazio existen­cial dos mais estéreis. À custa de sempre dissolvermos oposições, acabamos sem qualquer posição, vítimas disto que já identificamos: o senso impensado. Esta indiferenciação existencial na qual nos encontramos talvez explique o tipo de vítimas dóceis que nos habi­tuamos a ser dos colonizadores, dos senhores de engenho, dos co­ronéis, das potências estrangeiras, dos politiqueiros e dos regimes ditatoriais.

A indiferenciação do senso impensado é tanto intelectual quan­to política. Afinal, coisas indissociáveis. Sérgio Buarque de Holan­da mostrou, citando Holanda Cavalcânti - "Nada há mais pareci­do com um saquarema do que um luzia no poder" - , que nada distinguia realmente os dois grandes partidos do tempo da Monar­quia, salvo rótulos. "Na tão malsinada primazia das conveniências particulares sobre os interesses de ordem coletiva revela-se nitida­mente o predomínio do elemento emotivo sobre o racional"9

Embora a observação seja precisa, não me parece suficien­te. Embora a constatação esteja correta, o fundamento desta críti­ca parece fraco. Analisar a partir do pressuposto de que "somos um povo pouco especulativo" é coisa perigosa e, de resto, falsa. Representa, em última análise, introjetar a dependência. Todos sa-

9. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Op. ciL, p. 137.

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bemos que não é o povo o encarregado da direção política, assim como não é o povo que, por consenso, escreve obras de Filosofia. São elites. As elites políticas.e intelectuais. O que precisaria ser ressaltado é o estado de alienação destas mesmas elites - do que, seja dito, Sérgio Buarque de Holanda não esquece. O desapego da realidade em volta, a falta de identidade com o povo e a preo­cupação incestuosa com uma distinta e idealizada Europa fizeram com que as elites políticas, através de seus representantes intelec­tuais e cuidando de seus interesses, ficassem inteiramente alheias a uma realidade brasileira. Pois a elite brasileira sempre teve hor­ror ao que a circundava. Preferiram esquecer isso, que era feio e chocante, e voltaram-se para as questiúnculas metafísicas, refugian-do-se "nó mundo ideal de onde lhes acenavam os doutrinadores do tempo. Criaram asas para não ver o espetáculo detestável que o país lhes oferecia".10

O resultado concreto foi a importação, pelas elites dominan­tes, de modelos políticos, econômicos e educacionais inteiramente estranhos às nossas condições e àquilo que somos e viemos a ser. Não tão estranhos, porém, aos interesses destas elites.

Envolvidas em lutar por interesses internos e/ou externos, as elites mostram uma desvinculação tão mais sensível quanto maior a teorização "ornamental" utilizada para justificar sua ação e po­der. Daí a enxurrada verbalística que sempre envolveu, entre-nós, a discussão política e de idéias. O discurso brasileiro não apresen­tou nunca aquela característica de buscar um desvelamento de nossas urgências e importâncias, antes pelo contrário.

Se um saquarema é idêntico a um luzia, a indiferenciação de­nuncia a inconsistência de nosso ecletismo, produto de senso im­pensado. Os partidos políticos têm apresentado entre-nós a oposi­ção mais estranha: nenhuma. Somemos a isso a "jeitosidade", a hábil conciliação de uma teoria grandiloqüente com uma realida­de simplesmente esquecida. Nesta alienação, as origens da Razão Ornamental, da teorização barroca e sem compromisso com o real - exceto quando se trata de legitimar o vigente.

10. Idem, p. 140.

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Obra de uma elite desvinculada das urgências históricas do pais, os partidos políticos em nada se diferenciam, exceto pelos in­teresses dos grupos que representam. "No Império de D. Pedro II foi o ecletismo recebido com aplausos gerais, graças à inércia polí­tica daquela sociedade escravocrata e semipatriarcal, onde a luta pelo poder não passava de intrigas palacianas, onde os partidos não representavam nada de substancial, sendo manejados displicen­temente por um monarca bocejante e onde, finalmente, por essa época, o Marquês do Paraná formava o mais heterogêneo e amor­fo dos governos, a que a história batizou precisamente com o pre­dicado próprio da Filosofia eclética, como o Gabinete da Concilia­ção."11

Inconsistente e indiferenciada, nossa posição política geraria um novo fanatismo: o da concórdia. Não comportando em si o choque de idéias, buscando antes dissolvê-lo, as divergências devem ser excluídas. Oliveira Viana acerta ao dizer que entre-nós "o ad­versário político é considerado pelo vencedor um verdadeiro ou-tlaw". Não estando prevista a oposição real - posto que o ecletis­mo suprime a noção de oposição - , os que se atrevem a radicali­zar passam a ser olhados com hostilidade. Se por um lado o brasi­leiro atura de tudo - chegando, no carnaval, a aturar o próprio avesso da realidade séria - , por outro lado hostiliza, de modo pri­mário, aquilo que questiona seus comodismos de instalação. E nós, pretensamente tolerantes e esclarecidos, os ecléticos de espírito aberto, mostramos nossa verdadeira face: a intolerância. Uma into­lerância séria. Aquela que constitui, por indiferenciação intelectual, as igrejinhas de políticos, artistas, filósofos de academia, grupos ri­vais, com suas trocas de favores, elogios, influências e idéias inevi­tavelmente vazias. Isso casa perfeitamente com a intolerância polí­tica. As igrejinhas de intelectuais são os PSDs lítero-musicais.

Esta, a expressão máxima de nosso pretenso espírito ecléti­co e conciliador: o fanatismo do mesmo. Os grupos são lugares de privilégio das elites na partilha do poder. Nesta prisão primária

11. VITA, Luís Washington. Escorço de Filosofia no Brasil Coimbra, Atlântida, 1964, p. 51.

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que é o grupo fanatizado, a visão mágica emerge. Divergir é cri­me. Discordar é subversão. Perguntar já é um ato de desobediên­cia. Isso no país do jeitinho, do homem cordial, do carnaval eter­no. Com efeito, o real não apresenta a linearidade das distinções lógicas. Nele, o indiferenciado, o inconsciente, é o que mais atua e sob a forma mais arcaica.

Urgente, pois, que se faça a leitura além das aparências dos mitos com os quais gostamos de nos revestir de modo narcisista. Além da cordialidade, do espírito aberto e conciliador; são mitos e apresentam algo comum aos mitos: estruturam uma visão de mundo e pretendem ser inquestionáveis. Gerados pela ausência de uma posição crítica, são produto da indiferenciação intelectual Eis por que, ausente a crítica, seu contrário emerge sob a forma de intolerância, sectarismo, partidarismo estéril, repressão, censu­ra - um campo fértil para a atuação da autoridade irracional e pa­ra os regimes que dela façam uso.

Quanto à Filosofia, é grave que entre-nós tenha se recusado a cumprir a missão que lhe seria própria: ser o centro da consciên­cia crítica, da negação de nossas falsificações existenciais. A inex-pressividade da Filosofia no Brasil se deve ao fato de ocorrer, sem revolta, ao nível de repressão difusa no todo social. E esta desper­sonalização, ainda não pensada entre-nós, que destrói a possibilida­de de um pensamento nosso. Se esse pensamento quiser existir, deverá traçar para si um caminho marginal, ousar, sair do sério -coisas que vão contra predisposições assumidas ao longo de tan­

to tempo que, hábito arraigado, nos aprisionam. Assim, não um país jovem, mas apenas infantil - e isso não se refere ao povo, mas àqueles que dizem falar em seu nome. E país ameaçado de envelhecimento precoce, já que vítima de uma história dependen­te, devedor do passado.

Se quiser sair do bolor universitário e acadêmico, a Filosofia precisa realizar entre-nós a conquista de cidadania crítica, radicali­zando nossa posição.

Quanto a isso, não há como dar jeito.

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Captiub 7 Originalidade e jeito

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Originalidade e jeito 49

Sempre enfezei ser eu mesmo. Mau mas eu. OSWALD DE ANDRADE

(Ponta de lança)

Se nos limitarmos à superfície, o jeito é promotor de uma atitude de tolerância e de abertura intelectual Como expressão da Razão Conciliadora, um dos produtos mais lamentáveis, de potencial despótico e conservador.

Há um retrato possível, cruel mas verdadeiro, do praticante de Filosofia no Brasil - a imensa maioria composta de professores, tipos entre os quais predomina, a despeito das alegóri­cas pretensões reformistas (idealizadas, de resto), o espírito mais retrógrado e legitimador do vigente. Neste retrato vemos alguém sempre disposto a encontrar analogias - as quais pretende brilhan­tes - entre as teorias mais opostas e irreconciliáveis, fazendo sua tradicional salada filosofante, onde, em proporções idênticas ou não, entra algo de tomismo e de Comte, de Comte e de Marx, de Marx e de estruturalismo, de estruturalismo e Marcuse.

Ocorre, porém, uma coisa estranha: o mesmo homem que rea­liza a mais dissolvente conciliação, urra de ódio contra os oposito­res. A maldosa crítica fora de propósito, dirigida contra pessoas e não contra idéias, passa a ser então a arma de que se vale este cu­rioso arrivista, o intelectual tupiniquim. Somos incapazes de convi­ver e dialogar com alguém que discorde de nosso modo de ver -embora sejamos capazes de conviver com autores e obras mutua-

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mente excludentes, adotando a todas com igual entusiasmo. No que se percebe pouca razão.

Há razão, porém. Mesmo o irracional tem uma Razão atra­vés da qual podemos dele nos dar conta. A atitude conciliadora é ausente de critérios, de intuições geradoras de pensamento. Pen­sar é unificar. O esforço secular da Filosofia tem sido a tentativa, continuamente renovada, de apreender o real num único ato de saber. Comumente - e isto é ostensivo entre-nós - confundimos o filósofo com aquele sujeito que sabe muitas coisas e que discur­sa sobre tudo. Em suma: o filósofo é tido como o homem de mui­tas idéias. Equívoco total. O filósofo é o homem de uma idéia só. Idéia que, por sua virtualidade criadora, é capaz de desenvolver no espírito uma visão unificada do mundo.

A razão desse nosso despotismo intelectual tavez seja esta: se um objeto qualquer é submetido à Razão Conciliadora apresen­tando contradições, a única coisa a fazer é suprimir a oposição. Explica-se: se a Razão Conciliadora não dispõe de critérios explíci-

j tos para pôr em questão situações que lhe escapam, se não sabe dar razões de suas alternativas, só lhe resta se dirigir ao portador da idéia e não à idéia ela mesma. Impossível enfrentá-la.

Daí a ocorrência de variados modismos entre-nós. Indiferen-I ciada e personalista, nossa "Razão" saltita de galho em galho, re-

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Originalidade e jeito 51

produzindo posições que, como na recente moda estruturalista, nada têm a ver com qualquer urgência brasileira. Há muitos anos calada, a "inteligência" brasileira voltou-se para um formalismo delirante, novidadeiro e pernóstico, e "esqueceu" o que a fazia ca­lar. Esquecimento que ocorre diretamente ligado ao fato de que, não dispondo de critérios assumidos criticamente, a problemática filosófica no Brasil não se gera por uma problematização interna e vinculada às urgências do país, tese já defendida por Sylvio Ro­mero em 1878. "Na história do desenvolvimento espiritual no Bra­sil há uma lacuna a considerar: a falta de seriação nas idéias, a au­sência de uma genética. Por outros termos: entre nós um autor não procede de outro; um sistema não é uma conseqüência de al­gum que o precedeu. (...) A leitura de um escritor estrangeiro, a predileção por um livro de fora vem decidir a natureza das opi­niões de um autor entre nós. As idéias dos filósofos, que vou estu­dando, não descendem umas das outras pela força lógica dos acon­tecimentos. (...) É que a fonte onde nutriam suas idéias é extrana-cionaL"12

É bem verdade que, desastradamente, após fazer esta consta­tação de grande valia, Sylvio Romero acrescenta: "Não é um prejuí­zo; antes equivale a uma vantagem".13 E passa a fantasiar em tor­no de um "cosmopolitismo" que o impediu de determinar, já em 1878, a origem real da constatação que fizera. Mas seria pedir de­mais, talvez.

Estas observações - conciliação ou supressão do pensamen­to alheio - nos conduzem à seguinte característica da Razão Orna­mental: a vigência entre-nós de coisas que, em dados momentos, são de bom tom ler, comentar ou pensar. Tendo se furtado a res­ponder a urgências históricas nossas, a grande crise do intelectual tupiniquim é viver mendigando consideração e reconhecimento. Mas busca este reconhecimento numa possível identificação com pensadores de nações "mais cultas", equívoco através do qual bus-

12. ROMERO, Sylvio. A Filosofia no Brasil: ensaio crítico. In: Obra Filosófica. Rio de Janeiro, José Otympio, 1969, p. 32

13. Idem, ibidem.

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ca aceitação. Quer ser aceito sem perceber que ser aceito é mor­rer para a Razão. Querendo ser sério - para então ser levado a sério -, policia-se: o que pensar, o que ler, o que escrever. Seu es­quecimento consiste nisto: esqueceu-se de que pretende ser reco­nhecido pelo que não-é. Seu pensamento, portanto, será puro or­namento.

Duas são as possibilidades de defesa desta Razão alienada: ou conciliar ou suprimir. Expressões de seu abandono do real, a conciliação e a supressão não se realizam com relação às coisas circundantes, mas com as teorias que versam sobre o real. A Ra­zão Conciliadora lida com razões anteriormente dadas do real -não com o real enquanto taL O pólo que centraliza nossa Razão são teorias enquanto verbalizações, posto que o real sobre o qual versam é o estrangeiro.

Esta, a razão pela qual, em matéria de Filosofia, viríamos a ser fazedores de misturas ideológicas. Por exemplo: "A tarefa de conciliar Marx e Comte seria daquelas a que Leônidas de Rezen­de se entregaria de modo permanente e persistente".14 Despreza­da a desagradável realidade que nos circunda, restou ao intelec­tual brasileiro fazer Filosofia como quem, monta um quebra-cabe­ça: buscando o melhor ajuste (conciliação) possível e rejeitando (supressão) as peças mais rebeldes. Dando um jeito. Consideran­do tão-somente os "verbos" e suas possíveis ajeitações. Tomadas em lugar da realidade, as idéias filosóficas no Brasil passaram a viver, dentro da pirotecnia carnavalesca daquilo que chamo de Razão Ornamental, como seres em si. Ou, como teria dito José Maria Alkmim - aliás, concretização quase perfeita da Razão Or­namental - "importam as versões, não os fatos".

Havendo conclusão, esta é simples. Se não assumo com clare­za posições vinculadas à situação em que me encontro, só me res­ta reagir primitivamente diante do que escapa à minha possibilida-

14. PAIM, Antônio. Op. cit, p. 22R

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de de conciliação: suprimindo. Só levando isso em conta podere­mos utilizar a oposição entre o "emocional" e o "racional" para compreendermos o caráter brasileiro. A supressão é carregada de emoção na medida em que representa o retorno de um conflito que foi esquecido pela Razão Ornamental.

Reconheço que seja irritante aceitar o jeito - objeto de nosso deslumbrado ufanismo - como retrato de uma alienação in­telectual e política. Mas, para além de qualquer envolvimento emo­cional, devemos reconhecer que o jeito, se pode dar origem a um tipo de humanismo tipicamente brasileiro - ainda não precisado, de resto - , é também responsável pela rudimentaridade de nossas posições. O que se revela em nossa busca de semelhanças, na ten­tativa de ver em tudo o "mesmo", quando é da essência do espíri­to apreender em tudo as oposições no interior de um processo. Ou seja: o diverso. Nesta paixão pela "mesmidade", a falta de con­sistência do pensar entre-nós. Eis por que qualquer Razão, para vir a ser expressão brasileira, precisará dar-se conta desta ingenui­dade: ver em tudo o "mesmo". Deixada no esquecimento, esta ati­tude nos impede de chegar ao irredutível das coisas. Aquilo que elas têm delas próprias.

Por aí se percebe que não será com o acúmulo de dados, te­ses, argumentos que se chegará à Filosofia. Urge buscarmos suas raízes noutra parte. De fato, chegamos à Filosofia através de algo mais simples e primitivo, uma originalidade anterior a qualquer eru­dição: a tragédia. É através da tragédia que chegamos às urgên­cias de nossa posição.

Se as origens da Filosofia se encontram na tragédia, é fácil perceber por que tantas pessoas fogem dela. Fuga que procede pela supressão. Existindo duas formas de supressão, uma delas pe­la simples afirmação. Me explico. Ou abandono a Filosofia como algo metafísico e me dispenso de fazê-la, ou a afirmo sem mais, como se seu existir fosse óbvio, o que também me dispensa de fa­zê-la, pois já a encontro feita. Estas duas posições têm isto em co­mum: ambas exigem da Filosofia uma importância em si.

Ora, filosofar é dar-se conta da Filosofia. Dando razões de sua existência e assumindo os riscos seguintes. Ela não tem qual-

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quer importância que possa se impor a mim antes do momento em que eu me importe. Ao darmos a existência da Filosofia co­mo óbvia, ela se vê transformada em sistema acabado, ao modo de um arquivo de primeiros socorros existenciais. Se dou sua im­portância por suposta, a tarefa do pensamento se empobrece, re-duzindo-se à busca de um bom ajuste entre fórmulas e modelos, estruturas e conceitos, mais ou menos como me comporto diante da necessidade de cumprir à risca uma receita de bolo. Irei julgar que ao menos virtualmente - como o bolo da receita - ela já se encontra lá, acabada. Mas não se esgota aí a falência desta atitu­de. Se a pressuponho feita, jamais a faço minha. E seria justamen­te nisso que consistiria dar-lhe existência.

A supressão da questão a respeito da Filosofia ou a supres­são da própria Filosofia, como, por exemplo, encontramos no to-mismo e no neopositivismo, explicariam por que, conciliando, ja­mais tenhamos chegado à originalidade.

Conciliação é sempre do prévio, jamais do original - não ha­vendo sentido na aplicação da palavra conciliação no último caso. Conciliar exige admitir algo como pressuposto; por exemplo: uma importância em si, que existirá ou não. Daí a incompatibilidade to­tal entre uma originação da Filosofia brasileira e a atitude de con­ciliação. Tida como prévia, jamais será original.

Uma Filosofia condenada a não ser original está condenada a não ir às origens, pois é isso que a palavra originalidade signifi­ca. Não o novo, mas aquilo que lida com as origens. Nada, portan­to, poderá ser dado como prévio. Tudo deve estar em questão. Esta, a tragédia.

E inteiramente estranha à Filosofia uma atitude de concilia­ção que tome idéias como coisas dadas em si mesmas. Sem a críti­ca desta questão, qualquer esforço de pensamento estará, entre­nós, a serviço da Razão Ornamental. Mais simplesmente: enquan­to a Filosofia no Brasil não encontrar suas condições de originalida­de, não poderá, está visto, ter origem.

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Caputilo 8 A Filosofia entre-nós

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56 A FUosoãa entre-nos

Babei 'Filosofia latinoamericana' en el momento y en la medida en que el pensar laánoamerícano logre articular su propio discurso de lo universal situado, encontrar d lenguaje inhérente a su propia situation histórica.

MARIO CASALLA (Razón y liberation)

Creio que possamos admitir pacificamente a existência de Filosofia no Brasil, clarificado o sentido deste termo. Há Filosofia no Brasil porque ela aqui se encontra entre­nós, manifestando sua presença. Talvez um corpo estra­nho, mas presente. Não só contamos com documentos

a respeito, documentos com data marcada, como encontramos re­vistas e livros que versam sobre seus temas. Aqui realizam-se con­gressos, encontros, debates, e nos currículos universitários a Filoso­fia consta obviamente - cada vez menos, mas consta. Tudo isso in­dica que a Filosofia está entre-nós. Como um parente distante, uma tia talvez, que chega e vai ficando -mas, seja como for, entre-nós.

Esta presença e seu caráter se evidenciam se procurarmos extrair o negativo das seguintes palavras de Luís Washington Vita: "De fato, cumprindo seu destino e sua vocação, o pensamento bra­sileiro, mais do que criativo, é assimilativo das idéias alheias, e, ao invés de abrir rumos novos, limita-se a assimilar e a incorporar o que vem de fora. Daí a história da Filosofia no Brasil ser, em geral, uma história da penetração do pensamento alheio nos reces­sos de nossa vida especulativa, ser, em suma, a narrativa do grau

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A Filosofia entre-nós 57

de compreensão, da nossa capacidade de assimilação nas diferen­tes épocas e do nosso quociente de sensibilidade espiritual".15

Em termos de retrato, perfeito. Mas creio que Luís Washing­ton Vita não conseguiu extrair do negativo que tinha nas mãos a revelação verdadeiramente significativa. Afirma que "cumprindo seu destino e sua vocação" - o que equivale a dizer que existe ins­crito em algum céu transcendental algo que seja o "destino" e a "vocação" do pensamento brasileiro. Ao contrário, vejo aí a confir­mação de que, manifestação de um país dependente, nossos inte­lectuais assumiram ao limite o papel que lhes reservou a condição de colonizados: serem assimflativos. Introjetou-se aqui a função do dependente: compreender as idéias alheias e, curiosamente, re­duzir a história da Filosofia no Brasil à narrativa de nossa "capaci­dade de assimilação" e de nosso "quociente de sensibilidade espiri­tual", quando, numa adequada compreensão histórica, caberia, is­to sim, extrair desta constatação o significado mais profundo: os modos de falsificação dos quais temos sido vítimas e co-autores. "O simples fato da questão (como ser original) - nota Antonio Candi­do - nunca ter sido proposta revela que, nas camadas profundas da criação (as que envolvem a escolha dos instrumentos expressi­vos) sempre reconhecemos como natural a nossa inevitável depen­dência."16

Com a naturalidade com que esquecemos de ser originais, deixamos de observar que um pensamento alheio se enraíza e tem em mira uma situação histórica diversa daquela na qual nos encon­tramos. O que se envidencia pela preocupação de Luís W. Vita com nosso "grau de compreensão" do pensamento alheio. Esque­cemos igualmente que idéias vitais para um europeu ou norte-ame­ricano poderão ser aqui meros ornamentos intelectuais, desfibra­dos e mambembes.

Seja como for, há Filosofia entre-nós. Lembro, no entanto, que isso não esgota a problemática a respeito de uma Filosofia brasileira, propondo, no mais das vezes, seu avesso: os sinais de

15. VITA, Luís Washington. Op. à t , p. 9. 16. CANDIDO, Antonio. Op. cit, p. 8.

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seu esquecimento. Carentes de melhor distinção entre estas duas questões - Filosofìa entre-nós e Filosofìa nossa - , encontramos em nossos historiadores de idéias uma marca constante: a quase totalidade do que se escreveu sobre o tema baseia-se num equívo­co primário. Este: confundir o valor ou existência de livros de Filo­sofia escritos por brasileiros com o valor ou existência de uma Filo­sofia brasileira. Eis o que permitiu a Lufe W. Vita a estarrecedo-ra afirmação: "Há Filosofia num pafe quando existem nele filóso­fos".17 O autor obscurece e embaralha a questão, confundindo os dois problemas. Assim, chega a concluir que "por isso podemos afirmar que há Filosofìa brasileira"16 sem o menor sobressalto.

Este, o equívoco básico sobre o qual elaborou toda espécie de ufanismo embandeirado ou pessimismo diluidor - conforme se julgue estarem as obras entre-nós produzidas à altura ou não das estrangeiras. Pretendeu-se que a constatação de uma Filosofia en­tre-nós fosse critério suficiente para a inferência de que existe uma Filosofia brasileira. Que existam autores de obras filosóficas entre­nós não pode ser objeto de dúvida. Basta consultar alguns catálo­gos. Que tais autores sejam, em alguns casos, do melhor nível, tam­bém não pode ser contestado. Ocorre que isso não diz respeito à essência da questão aqui levantada. Na verdade nunca se pergun­tou, a sério, quais as condições de uma Filosofia brasileira, limitan­do-se a sondar, de modo vicioso, o valor de autores que aqui escre­vem ou escreveram.

Elaborando em cima de equívocos desta ordem, ocorreu nas páginas da Revista Brasileira de Filosofìa19 um curioso debate en­tre Vilém Flusser e Nelson Nogueira Saldanha que tem o valor

17. VITA, Lufe Washington. Op. cit, p. 14. 18. Idem, ibidem. 19. FLUSSER, Vilém. Há filosofia no Brasil? Demonstração em três pensadores expres­

sivos. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, í7(65):5-9, jan./fev./mar., 1967 e Há Filoso­fia no Brasil? Diálogo de Nelson Nogueira Saldanha e Vilém Flusser. Revista Brasileira de FÉosofia, São Paulo, 27(67):3004, juL/ago./set, 1967.

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de sintoma. É significativo do plano em que se costuma colocar a questão de um pensamento brasileiro. Vilém Flusser publicou um artigo intitulado "Há Filosofia no Brasil? - Demonstração em três pensadores expressivos". Começa emitindo conceitos que, no míni­mo, exigiriam longas justificativas - "é absurdo falar na Filosofia de um país", por exemplo - e chega ao disparate total: "é isto que distingue a Filosofia da maioria das outras disciplinas: essencial­mente, ela não possui geografia nem história". Absurdo, é claro. Mas deixemos passar. Me importam coisas mais próximas.

O sr. Flusser levanta em seguida alguns traços que poderiam caracterizar o esforço filosófico entre-nós. Diz ser a Filosofia uma rebelião "independente do tempo e do espaço". O que complica as coisas: se independente do tempo e do espaço, rebelar-se con­tra o quê? Bom. Há Filosofia entre-nós, voltando ao autor, porque, sendo seres humanos, filosofamos. E haveria entre-nós a presen­ça de um duvidar e um distanciar-se "indisciplinados", o que seria "uma herança de Portugal e é, talvez, um caráter latino em geral". Isso teria conduzido nossos trabalhos num sentido "desordenada­mente eclético".

Mas, ao invés de tentar a revelação do negativo que tinha em mãos, já de si impreciso, preferiu apresentar o que seriam "três pensadores expressivos". E nos sumaria a obra de Vicente Ferrei­ra da Silva, Leônidas Hegenberg e Miguel Reale. Sequer preten­do me ocupar em saber se estes são ou deixam de ser pensadores brasileiros. Nem me importa o valor do que escreveram. Por um motivo simples: colocada nestes termos, a questão está viciada. Nada do que possa ser caracterizado como brasileiro foi precisa­do pelo autor, o que não permite a conclusão de que estejamos diante de representantes, respectivamente, da estética, da teoria do conhecimento e da ética brasileira. De resto, juntar um possí­vel existencialista com um neopositivista e um culturalista, como representantes de uma mesma coisa, me parece bastante proble­mático. Se na obra de Vicente Ferreira da Silva podemos encon­trar uns lampejos de preocupação brasileira, um mínimo de esfor­ço de memória nos mostra que pelo menos um destes autores, o sr. Leônidas Hegenberg, houvesse escrito em inglês, ninguém nota-

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60 A Filosoãa entre-nos ria diferença. Ficaria até mais adequado.

Na resposta de Flusser, o sr. Nelson Nogueira Saldanha mos­tra-se desastrosamente provinciano. Julga uma ofensa não constar do rol dos "expressivos" nenhum representante de outros Estados, onde, segundo diz, "há também grandes pensadores; o país tem outros metafísicos. A estética brasileira tem outros lados, sr. profes­sor!" É o equívoco no auge do delírio.

O que salva - no que é possível - é Vilém Flusser perguntar em sua réplica: "Bastam filósofos exemplares para que se possa responder afirmativamente à pergunta? Ou não seria necessário, para tanto, um determinado clima filosófico que nos falta?

Eis uma observação que importava levar adiante. No entan­to, no atropelo geral, o sr. Flusser acaba jogando tudo por terra -no fundo numa atitude de conciliação - ao afirmar: "Não nos preo­cupemos demais com a brasilidade desse pensamento. Preocupe-mo-nos com o pensamento". Quer dizer: continuemos assimilado-res e ornamentais, acima do tempo e do espaço, no sétimo céu metafísico.

E o desastre se consuma no desfecho, quando percebemos que, indiferenciada, a questão não poderia conduzir senão a um brilhareco palavroso: "Portanto: há Filosofia no Brasil? Há, e have­rá, se quisermos e se pudermos".

Mas precisamente sobre isso esperávamos que houvesse es­crito, sendo estas as questões que urgiam ser esclarecidas: onde há Filosofia? por que haverá Filosofia entre-nós? será que quere­mos, sendo a Filosofia importante para nós? sob quais condições poderemos fazer Filosofia?

Extraviadas as questões que. eram urgentes, estes senhores conseguiram apenas nos dar uma amostra de que não há Filosofia brasileira, em cinco pensadores expressivos.

Desta questão fogem nossos filósofos oficiais: saber se a Filo­sofia é para nós importante. Fogem igualmente das questões seguin­tes: quais os objetos, a metodologia, a linguagem de uma Filosofia nossa?; quais as condições desta Filosofia e as condições de nosso querer? Englobadas, formam o elenco a ser respondido se quiser-

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mos realizar não apenas uma Filosofia entre-nós. Só saberemos questionar uma Filosofia brasileira se formos capazes de saber co­mo, por que, de que modo tal coisa nos importa. O que só se tor­nará possível a partir de uma posição de dentro da qual, ou a par­tir da qual, isto se ponha para nós. E vem o drama: fugimos de uma personalidade que seja nossa. Mal sabemos dela.

Precisamos remontar a algo mais primitivo e elementar que os sinais de uma presença da Filosofia entre-nós. Só a partir de uma reflexão crítica a respeito de nosso modo de existir, de nossa linguagem, de nossas falsificações existenciais e históricas é que poderemos chegar aos limites de uma Filosofia nossa. Para tanto, colocar em questão nosso particular modo de estar e ser, os valo­res que constituem nosso horizonte intelectual. E traçar as peripé­cias do trajeto histórico que nos levou a ser o que somos. Em su­ma: descobrir nossa alienação específica.

Diante dessas exigências, o ufanismo isolacionista ou a mórbi­da dependência com relação ao passado se mostram mais cômo­dos. Nos permitem dissolver oposições e realizar a concórdia. Ne­ga-se, por exemplo, qualquer significado e importância ao passa­do europeu e delira-se num verde-amarelismo de bananeiras e ja­cas. Como um feto, nos apegamos à Mãe-Europa - o que nos li­vra de nossas angústias, servindo-nos um prato feito, os talheres postos, as regras do jogo previamente determinadas. A vantagem dessas atitudes que temos preferido ao longo da história são ób­vias: dispensam-nos de pensar. Pensar é incômodo. Chato. Desco­brir nossas alienações dói e mutila. E a tragédia. Súbito, somos fi­lhos abandonados, obrigados a vencer por conta própria. Uma sig­nificação que venha do exterior para conferir dignidade a nossas tarefas é como uma receita - impede-nos todos os riscos e nos concede a paz reconfortante de uma mãe onipresente. Ou, noutro extremo, somos bugres. Pelados e verde-amarelos a correr pelo mato. "Tupi or not tupi", já notou Oswald de Andrade.

O que poderiam parecer duas opções são dois modos de alie­nação. Tanto é infantil o filho que necessita da asa protetora da mãe quanto aquele que a hostiliza - possuem em comum a patolo­gia de um mesmo traço: a dependência.

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62 A Filosofia entre-nos Além do ufanismo e da submissão, há um outro equívoco

que cabe analisar. Me refiro à afirmação de que não é próprio ao espírito brasileiro o filosofar. Esta questão pode ser desdobra­da em duas outras. A primeira nega ao brasileiro espírito capaz de Filosofia. A segunda afirma não ser a língua portuguesa capaz de adequada expressão filosófica. Careceríamos, no primeiro caso, de melhor aptidão intelectual, talvez comum aos latinos, e, no se­gundo, de uma língua adequada, herança especificamente portuguesa.

A primeira destas atitudes creio encontrar, se bem que vela­da, em Álvaro Lins.20 Julga esse autor que "nunca se explicará com suficiente exatidão o que determina a ausência de um verdadeiro filósofo no Brasil".21 Isso já é discutível. No mínimo, um tema. No entanto, ao invés de se propor esse tema, Álvaro Lins prefere su­por a impossibilidade de uma explicação. Me parece que assim procedendo perde a chance de ressaltar o único que interessava investigar: o sentido de nossa fuga à Filosofia.

Faz, em seguida, uma afirmação ainda mais grave: "Talvez que se possa encontrar assim, na herança portuguesa, a causa da ausência de um filósofo no Brasil. As faculdades especulativas e críticas, a capacidade de tratar os problemas abstratos, o dom do estudo paciente, desinteressado e introspectivo - não parecem muito habituais nos homens luso-brasileiros".22

Creio ser coisa errônea supor o conhecimento filosófico co­mo "desinteressado". Todo conhecer é interessado, versando sobre o que importa. Caberia apenas distinguir, como já foi feito aqui, entre um interesse sério e um interesse a sério. Por outro lado, ser introspectivo não me parece ser condição para a reflexão - Aristó­teles e Marx, por exemplo, são extrovertidos quase em estado pu­ro. Quanto ao que seja um estudo paciente, o mesmo: o que é pa­ciência, ordem, para mim, pode ser um aborrecimento para um alemão - e vice-versa.

20. LINS, Álvaro. Os Mortos de Sobrecasaca. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, [Cap. 25].

21. Idem, ibidem, p. 355. 22. Idem, ibidem.

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De fato, a "herança filosófica" que nos deixou Portugal não foi das mais ricas. Acontece que "herança filosófica" é coisa que não existe. Não se herda uma Filosofia, cumpre apropriar-se dela, fazendo-a nossa. O pensamento alemão , por exemplo, não "her­dou" passado algum; apropriou-se de um passado filosófico. Assim, ou muito me engano, ou Álvaro Lins é vítima aqui de uma análi­se abstrata, meramente conceituai e idealista, desconhecendo a verdadeira dinâmica da história. É problemático "reduzir" a histó­ria. Nem sempre se encontra, mesmo porque nem sempre existe, aquele elemento externo, alheio, que possa explicar as criações de um povo. Ainda mais se notarmos que a criação não é jamais do "prévio", mas do original - aquilo que cada um tem de si. Sabe­mos das dificuldades de se encontrar, anteriormente ao advento da Filosofia na Grécia, algo que pudesse explicar por que aí se deu tal acontecimento. Nada parece poder explicar retroativamen­te esta "invenção" do espírito grego. Creio que o simples reconhe­cimento de tal fato nos livraria de uma multidão de equívocos e falsos problemas que vimos acumulando. Trata-se de reconhecer, para além de qualquer recurso ao que é prévio, que na Grécia a Filosofia é um fenômeno original, pois aí encontra suas origens.

Pretender sempre encontrar no passado a razão de atos do presente me parece mau modelo: esquecemos o que há de ato cria­dor em cada nova situação histórica. Não se trata de propor um esquecimento do passado, mas de evitar um abandono no passa­do. A história é o fenômeno da originalidade e a ciência correspon­dente deverá lhe ser fiel. Isso quer dizer que não podemos, meca­nicamente, justificar a ausência de Filosofia no Brasil pelo fato de não termos contado com uma boa influência de Portugal. Antes do mais, porque esta influência deve ser entendida em termos de relação de dependência. Dependência que foi menos de Portugal do que de outros países europeus, os centros efetivos do projeto expansionista dos impérios ibéricos - e, desses centros, influências, exemplos, modelos, foi o que não faltou. Fosse a história coisa me­cânica, fora de relações determinadas, tais influências teriam con­duzido a uma Filosofia brasileira - mas isso não se deu. Por quê? Porque nos foi negada, nas relações de dependência, a originalida-

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de: fazer desse passado uma diferença nossa. Não chegamos a nos apropriar desse passado - e as condições, externas e internas, que nos impediram a realização dessa apropriação, eis o tema esqueci­do da Filosofia brasileira.

A mais pobre das argumentações é esquecer-se num fatalismo qualquer: o brasileiro não possuiria pendor para a Filosofia, por exem­plo.23 Como se isso fosse uma pesada e gorducha "coisa em si". Co­mo se isso não fosse algo a ser inventado, a ser feito historicamente. Investigar o que nos levou às comodidades de tal esquecimento, eis o que talvez possa responder à questão que Álvaro Lins crê irrespon­dível: o que determina a ausência de um verdadeiro filósofo no Brasil.

É inevitável que o autor - que aqui tomo aleatoriamente, sem pretender que sua escolha signifique mais do que outra - venha a se contradizer continuamente. Diz mais adiante que Filosofia e poesia são afins, e que no caso da poesia contamos com grandes representantes e dom de originalidade. À vista disso, creio proble­mática'a afirmação de que carecemos de espírito especulativo, de investigação do sentido do mundo, se poesia e Filosofia têm raízes comuns. Aconteceu não nos apropriarmos de uma "forma" de es­peculação, a filosófica. Por quê? Que fique sugerido: talvez por­que a poesia sempre guardou seu potencial de rebeldia, seu cará­ter marginal, enquanto a Filosofia concedeu em servir de apoio ideológico ao estabelecido. O que fez com que entre-nós a Razão Dependente e a Ornamental se tenham transformado em Razão Afirmativa do vigente. Ideólogos na colônia, nossos pensadores não puderam ir além "das chinelas", como diria Machado de Assis.

23. Encontramos esta forma equívoca de colocar a questão em autores de orientações as mais diversas: João Ribeiro, Tobias Barreto, Luís W. Vita. O dito de Tobias Barreto tem sido repetido à exaustão. "O Brasil não tem cabeça filosófica". A Lufe W. Vita já fizemos referência no início deste capítulo. João Ribeiro (A Filosofia no Brasil Revista Brasileira de Filosofia, ed. Instituto Brasileiro de Filosofia, São Paulo 4(3):413-6), numa crítica arrasa­dora a Farias Brito e Tobias Barreto, chega aos limites da convulsão emocional ao escre­ver. "Não está no temperamento nem nas virtudes de nossa raça o culto da filosofia (...) Seja curteza de vista ou repugnância natural, não há raça mais retrataria à metafísica que a nossa." (p. 413) A análise de todos fracassa na medida em que, não dispondo de instru­mentos para a compreensão do que viam, coisificavam para além do espaço e do tempo o que deveria ser analisado no ceme de um processo histórico.

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E diria mais: "Decida o leitor entre o militar e o cónego; eu volto ao emplasto".

A questão da língua. O português que praticamos seria um entrave a nos afastar dos temas "elevados" que são objeto da refle­xão. Haveria uma debilidade inerente ao português - língua ade­quada no máximo às piadas de botequim - que explicaria por que não chegamos ainda (e talvez não cheguemos jamais) à Filosofia. Tal argumento, cristalização perfeita do esquecimento em que nos encontramos, é mais uma das manifestações de nosso tipo particu­lar de alienação.

Me explico. O grande drama de nossos professores de Filoso­fia - e nisso Álvaro Lins acerta: contamos com professores de Filo­sofia e não com filósofos - é conseguir traduzir para o português expressões alemãs, francesas ou latinas. Daí a avalanche de cita­ções e de notas ao pé da página que dão a certos livros aquele cli­ma de hermeticidade imbecil O esquecido por nossos filósofos pro­fissionais é que as expressões alemãs ou latinas são justamente is­to: originais. Nasceram lá, lá foram criadas, e trazem a marca de um momento, suas importâncias e urgências. De fato jamais serão traduzidas - cumpriria transplantar situações de lugar e tempo, coisa impossível.

• Diante disso, nossa atitude é lamentar a insuficiência da lín­gua. Como o português não traduz uma expressão de Hegel, Kant ou Aristóteles - mais recentemente, ao delírio, Heidegger - o por­tuguês seria língua inferior quanto às possibilidades de filosofar. Ocorre aí um imenso equívoco: o de que o único filosofar possível consista em ser "assimilativo" e ter "sensibilidade espiritual" para com os problemas dos outros. Esquecemos que a situação dos ou­tros é isto: deles. Se nossa língua não é capaz de exprimir o alheio, isso em nada a desmerece, uma vez que uma língua tem por fun­ção exprimir o próprio, não o alheio. Se as inteligências que lidam com a Filosofia entre-nós pudessem se alçar a este modesto grau de flexibilidade, encontrariam uma multidão de coisas que, ditas

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em português, não poderão ser traduzidas para inúmeras línguas. O que, de resto, não as desmerece.

Trata-se de questão mal colocada. Mário de Andrade já a respondeu de modo definitivo: ao invés de imaginarmos que não temos pensamento por falta de linguagem, por que não supomos que não temos linguagem por falta de pensamento?

É alienada a busca obsessiva de termos que pudessem tradu­zir coisas estrangeiras. Seria como transplantar o termo sem trans­plantar a intuição - e na intuição está a realidade, sua importância e urgência. Precisamos entender que os termos alemães, por exem­plo, designam realidades que passaram a existir para os alemães em determinado momento, sendo para eles importantes numa po­sição. Cabe a nós descobrir o que nos importa. Descoberto isso, teremos a palavra adequada. Adequada ao que é nosso. Dita à nossa maneira, com nossa preocupação específica. E percebere­mos, então, que serão coisas talvez intraduzíveis para o alemão, o grego, o francês. O que, novamente, não debilita tais línguas e as importâncias e urgências de seus falantes. Apenas mostra que os problemas dos usuários dessas línguas são outros. São outras as coisas que importam.

O problema de uma linguagem filosófica nossa não se dá em abstrato nem se reduz a uma simples questão de técnica de tra­dução. Na palavra isolamos, concretizando, um conceito. A totali­dade dos conceitos possíveis, bem como a totalidade das coisas, não são indiferentemente iguais para mim. Há conceitos que me importam mais que outros e há os que são absolutamente urgen­tes, ou seja: aqueles que urge isolar e concretizar numa palavra para que me permita o domínio do reaL O ato de pensar é este movimento em direção à ordenação dos conceitos e das coisas, or­denação exigida pela posição em que estou.

Me explico. Ao existir, preciso providenciar esta existência o que envolve: dar conta de acontecimentos inúmeros, mais ou me­nos significativos. O que vier a ser para mim de alta significação é algo importante. O que me exigir, devido à sua alta importân­cia, uma prontidão imediata é urgente. Para tais situações se vol­tam nossos atos de intelecção. Busco apreender o importante e,

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mais imediatamente, o urgente. Eis como a questão da linguagem filosófica entre-nós envol­

ve uma revisão crítica de nossas importâncias e urgências. As pala­vras não estão aí desde sempre a "significar" - e nenhuma língua possui desde sempre uma estrutura "filosófica", coisa que não exis­te. É historicamente que as palavras adquirem significados e uma língua reflete em sua organização a atitude existencial de seus fa­lantes. A cada língua pertencerá um determinado tipo de ordena­ção que lhe vem da visão de mundo para a qual foi historicamen­te providenciada. Assim, na língua, ocorre a materialização das im­portâncias e urgências de seus portadores.

Podemos agora precisar como não deveria ser colocada a questão da linguagem filosófica. Não se trata de opor, confrontan­do, o que existe agora em português e o que existe em qualquer outra língua. Por motivos simples: 1? - o critério seria externo e 2? - em nada acrescentaria o saber próprio de nossa língua. Sen­do externo o critério, o metro estará errado. Se meço o português pelo inglês, estou fazendo algo como operar com centímetros re­correndo a polegadas. Já estarei dando como suposto o valor da­quilo que é usado como metro. Pode ser importante para uma tri­bo qualquer distinguir "árvore grossa" de "árvore fina", sem que isso seja igualmente importante para nós, não representando qual­quer deficiência. Apenas mostra que aquilo que ali se encontra em questão não nos importa.

Uma coisa talvez seja certa: poderemos enriquecer nosso ins­trumental lingüístico desde que partamos de nossas importâncias e urgências para as palavras e a língua - e não o contrário. Se questiono da urgência de se dar existência a um conceito, isolan-do-o numa palavra, estou transformando o sistema de dentro pa­ra fora, fazendo-o criador. Se me limito a transplantar palavras, nada acrescento, nada crio. Veja-se, por exemplo, a que conduzi­ram as infindáveis citações: a infindáveis itálicos.

É necessário levar em conta que cada língua realiza um mo­do de existência, uma determinada criação do humano. Supor que uma seja superior à outra é supor um critério que paire acima de­las e que as julgue - o que parece absurdo.

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Toda investigação neste sentido deveria ser interna, de dentro para fora, das importâncias e urgências para as palavras e a língua. Caso contrário, condena-se à esterilidade, à erudição dos itálicos bem pensantes, mas que não nos pensam - e através dos quais não podemos pensar. E a tarefa mínima da Filosofia é pensar o que somos, como somos. Consiste na descoberta a ser realizada daquilo que temos a dizer, que só nós poderemos dizer e que, se não o dissermos, ninguém o dirá. Teríamos então a condição bási­ca da apropriação de uma forma, a filosófica: nossa originalidade.

Aí se encontra o esquecimento do pensar brasileiro. Não ter­mos percebido que estamos sempre partindo de teorias alheias, palavras alheias, problemas alheios, buscando aprisionar nossa ex­pressão dentro desses moldes. Com efeito, parecemos ter pavor do que nos circunda, pois não se ajusta aos moldes europeus que transplantamos. É urgente, ao contrário, partir de importâncias que evidenciarmos e de nosso particular esquecimento. E a pala­vra adequada surgirá irredutível.

Esse, em suma, o apanhado de alguns problemas gerados pe­la falsa perspectiva em que nos colocamos quanto a uma Filosofia brasileira. Confundir autores entre-nós com Filosofia nossa; buscar dissolver a oposição entre o isolamento e o alheamento; negar que tenhamos capacidade de pensar por conta própria; projetar nossa falta de pensamento numa possível insuficiência da língua portu­guesa. Nada disso diz respeito à essência possível de um pensar brasileiro: são, ao contrário, tantos outros sinais de nosso esqueci­mento. Destruir esses equívocos é a condição indispensável da pos­sibilidade de um juízo filosófico brasileiro.

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Caputilo 9 A Razão Ornamental

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70 A Razão Ornamenta/

Para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de ação e conhecimento.

SÉRGIO BUARQUE" DE HOLANDA (Raízes do Brasil)

á algo de que gostamos: do homem brilhante. Ser algum dia chamado de brilhante é a glória à qual aspira o inte­lectual tupiniquim. Não nos causa admiração alguém que seja organizado no trabalho intelectual, constante, dedicado. Costumamos empregar, nestas ocasiões, frases

assim: "Fulano não é muito inteligente, mas é esforçado". Quer dizer: falta-lhe o brilho, a rapidez mental, o dito charmoso e des­concertante, o jogo de palavras - mas é esforçado. O esforçado é, entre-nós, uma das figuras mais depreciadas; por mais que produ­za, por melhores que sejam suas contribuições, se não chega ao brilho, não merecerá mais do que uma morna aceitação. Como se permitíssemos que continuasse existindo, embora, coitado, seja apenas um esforçado.

O tipo de inteligência que nos agrada é aquele que sabe bri­lhar através das palavras. Nunca ter feito uma frase de efeito, eis a falta que intelectual brasileiro jamais cometerá. Agrada-nos, so­bretudo, a rapidez mental e o uso desenvolto da linguagem. Quem de nós suporta um orador que se plante com não sei quantas lau­das à nossa frente? Se é pra ler, leio em casa. Do orador quere-

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mos algo distinto da importânica ou da consistência do que tem a dizer. Queremos o improviso. Esta fascinação pelo cidadão bem falante conduziu à desgraça (e à graça) algumas carreiras de políti­cos e professores - e gerou o triunfo do bacharel. Ah, as delícias da Razão Ornamental! Jamais em parte alguma o bacharel contou com uma platéia tão entusiasticamente dominada.

Mas o brilhantismo da Razão Ornamental não envolve ape­nas aquelas ocorrências em que alguém é capaz de manipular pala­vras com especial esmero. Na verdade, mais nos deliciamos quan­do esta capacidade é dosada com pitadas de sábia malandragem. O herói brasileiro é o esperto. E o esperto ludibria de maneira es­pecial. Quase leva o ludibriado a agradecer ter sido vítima. E na­da faz que choque moralmente. Ao contrário, sustenta uma ação inocente. Um brinquedo. O dito bem bolado, a artimanha esper­ta, a frase marota, eis o que nos fascina - e que a tudo pode per­doar. Alguém que reunisse todas estas qualidades seria estrondosa­mente eleito presidente desta República - e, sei não, chego a pen­sar que isso já aconteceu.

Poderíamos ilustrar estas observações com dois mortos ilus­tres: José Maria Alkmim e Eurico Gaspar Dutra. Do segundo se diz que não sabia falar e corre a anedota segundo a qual se elegeu porque jamais abriu a boca. Do primeiro ficou uma magnífica cole­ção de frases que apresentam, na máxima realização, os ideais do homem brilhante. O fenômeno analisado sob o nome de populis­mo mereceria entre-nós uma abordagem a partir deste ângulo: um povo fascinado pela Razão Ornamental e em busca de seus mais prezados arquétipos.

Outra nota da Razão Ornamental é a adesão aos "ismos". Intelectual brasileiro que se preze adere a um "ismo" qualquer, o que lhe concede cidadania no universo do pensamento, sobretu­do se for o último "ismo" aparecido. Tanto é assim que vários au­tores, da maneira mais disparatada, passam em certos momentos a conferir status entre-nós. Num passado recente, tivemos a seguin­te sucessão de modas: Sartre, Mounier, Teilhard de Chardin, Le­vi Strauss, Marcuse, McLuhan, Althusser, entre outros menos votados.

Isso revela uma de nossas alienações básicas: o deslumbris-

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mo dos colonizados. Enquanto não se alcança uma linguagem her­mética, acessível só a iniciados, algo cifrado e misterioso, não se acredita ter atingido um nível de pensamento aceitável. Trata-se de uma radical imaturidade. A adesão frenética a uma corrente, a um rótulo ou chavão constitui a morte do pensamento. Na ori­gem, todo pensamento é crítica e negação, e o limite de sua vitali­dade encontra-se identificado com o limite de sua sistematização e vigência. Eis no que é preciso cuidar: um pensamento deve ter validade, não necessariamente vigência, pois esta costuma lhe ser conferida a partir do momento em que começa a morrer.

Confundimos, por outro lado, pensamento original com pensa­mento novidadeiro. E preciso insistir: ser novo é um acidente do original. Original é o que lida com as origens, não o último no tem­po. Eis por que o rótulo de "ultrapassado" é puro equívoco. Fal-tando-nos originalidade verdadeira, agarramo-nos à novidade na ilusão de que nela se encontre a verdade. Mas não é nada disso. O que constrói uma verdade é sua perspectiva. O dito por último pode ser perfeitamente repetitivo. Este equívoco assume entre-nós um caráter particularmente grave. A uma estrutura mental e so­cial fechada e conservadora, superpomos uma ornamentalidade de novidadeiros, como se a verdade fosse, num leilão, algo a ser arrebatado por quem desse o último lance.

Álvaro Lins fez um diagnóstico exato desta condição do inte­lectual brasileiro num capítulo chamado "Ah, logrados indígenas!".24 Que cito e vou comentando.

Inicia dizendo ser espantoso que "tantas pessoas ainda prati­quem a literatura neste país como se fôssemos um subúrbio Literá­rio da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos da América. Desejamos ser cultos, sobretudo em cultura estrangeira; somos eli­tes lidas e corridas, em literatura francesa, inglesa, norte-america­na... Apurando bem, no entanto, eis o resultado: não somos real-

24. LINS, Álvaro. Op. ciL, pp. 431 e segs.

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mente cultos em nossa literatura porque a desdenhamos, estudan-do-a aos pedaços, em restos de tempo; e não somos cultos em lite­raturas estrangeiras, porque um francês, ou um inglês, ou um nor­te-americano, de média cultura na respectiva língua, sabe muito mais do que nós destas literaturas, para as quais, entretanto, vive­mos tão ansiosamente, tão parvamente voltados. E às vezes para elas voltados por intermédio de escritores e livros que são apenas produtos de exportação, sem valor e significado na opinião literá­ria dos seus próprios países, sem nada que corresponda ao trata­mento de autores incomuns ou singulares que recebem nos países de tolo colonialismo, vivendo de 'transplantes literários' e 'enxer­tias culturais'... Com efeito, não há autorzinho estrangeiro de se­gunda ordem com algum sucesso, não há movimentozinho de Saint-Germain-des-Prés ou do Boulevard Saint-Michel, não há peque­no ensaio de crítico inglês ou insignificante exercício para estudan­tes de qualquer crítico universitário norte-americano - , não há na­da, de tudo isso, que deixe de receber aqui amplo noticiário, em nossas revistas e jornais, enquanto tantos trabalhos de autores na­cionais, às vezes de valor equivalente ou mesmo de melhor catego­ria, ficam na sombra, sem publicidade e sem repercussão".

Comentando. Primeiro: a posição de colonizado não se esgo­ta em mera dependência econômica, generalizando-se para todas as áreas; e o brasileiro é o colonizado por excelência, aquele que vive fazendo o europeu como o personagem de Machado fazia o Alferes.

Segundo: ser culto, no Brasil, é avolumar erudição sobre um outro, o não-brasileiro. Julgamos apenas exótico, ou até de mau gosto, quem se dedique a coisas nossas - mas julgamos de alta eru­dição saber alemão ou latim. Temos uma visão tipicamente arrivis­ta da cultura: é chegar aonde outros estão. As delícias de citar Proust ou Goethe! "Ah - diz Álvaro Lins - a fascinação desses brasileiros letrados pelas últimas 'novidades' estrangeiras!"

Terceiro: a Razão Ornamental pressupõe uma supressão. E preciso esquecer o que está à nossa volta, voltando-nos para "a" cultura: aquilo que ocorre em Paris, Berlim ou Nova Iorque. Assim, não somos conhecedores de nós mesmos e nem dos outros, pois

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74 A Razão Ornamental

é certo que os outros levam sobre nós uma vantagem decisiva: são eles próprios.

Quarto: Álvaro Lins refere-se à prática da literatura. Mas o panorama quanto à prática da Filosofia é, de longe, muito mais alienado. Basta que se procure ler - que seja o índice - de algu­ma revista brasileira dedicada à Filosofia.

A Razão Ornamental nos leva a abandonar tudo, esquecer aqui e fora daqui obras que importam, para correr atrás das últi­mas novidades. Nos conduz a querer aplicar aqui "escolas" estran­geiras - portanto estranhas - como se isso fosse possível sem nos cobrar um preço: o esquecimento do que somos.

"Por outro lado - voltando a Álvaro Lins - afigura-se um fe­nômeno diferente ou oposto, mas, de fato, é tão-só a segunda fa­ce do mesmo 'complexo' de inferioridade, colonialismo e provincia­nismo - isto que se pode observar a olho nu: a revolta, a mágoa, a lamentação por não sermos bastante lidos, conhecidos, traduzi­dos no estrangeiro. Um estado de alma, aliás, freqüentemente ex­presso em livro, artigos, entrevistas, em toda sorte de pronuncia­mento de autores brasileiros."

Desejamos ser reconhecidos pela Mãe-Europa, em nossa edi-piana e mórbida dependência afetiva e intelectual. Com isso perde­mos a oportunidade de ser alguma coisa qualquer, não necessaria­mente melhor ou pior do que a Europa, mas apenas isto: nossa. Em conseqüência, o intelectual tupiniquim vive num estado de dis­sociação: voltado para fora e de fora esperando reconhecimento. Fechando os olhos à realidade que o circunda. Descentrados, ja­mais encontraremos o núcleo em torno do qual possamos dar coe­rência a nós mesmos, condição de originalidade. Evidente que o pensamento brasileiro não poderia apresentar senão duas marcas das mais pobres: o ecletismo - que não é, entre-nós, um simples movimento do passado, mas um clima geral que a tudo envolve, conseqüência de nossa incapacidade de romper o cordão umbili­cal e "ser gaúche na vida"; e o positivismo, o pensamento afirmati­vo, legitimador do vigente, que vai do tomismo ao estruturalismo, passando pelo neopositivismo.

"E natural que desejemos ser projetados e valorizados para

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A Razão Ornamental 75

além das nossas fronteiras; não obstante, essa ânsia pelo brilho no estrangeiro, tamanha lamentação por não nos conhecerem e admirarem bastante pelo mundo afora - isto significa, afinal, algo pueril; e revela carência de segurança e estabilidade, ausência de confiança em si mesmo, deficiência de amor-próprio."

"Bem, devemos ser o que somos, devemos procurar fazer as nossas obras o melhor possível, e o resto (...) já não é problema nosso. Atingiremos a universalidade quando chegar, ou se chegar, o momento próprio, isto é: quando estivermos para isto maduros e acabados, não tanto em qualidades formais ou habilidades técni­cas, mas em força interior, genuína e dominadora."

A primeira tarefa na existência é chegarmos a ser o que so­mos, fazendo de si o que se visa ser, partindo de nossa posição. Depois, seremos reconhecidos - se formos reconhecidos. Sem is­so, a interiorização necessária ao surgir da Filosofia jamais ocorre­rá entre-nós e a Filosofia continuará sendo apenas aquela tia dis­tante que veio e foi ficando. E a possível Filosofia brasileira perma­necerá vítima da Razão Ornamental.

É dito e repetido que à Filosofia importa a verdade. Aliás, a Verdade. Aí a Filosofia já começa a ser problemática, pois seria necessário antes do mais determinar o que se entende por verda­de - o que não é imediatamente claro ou evidente. A solução pré­via desta questão envolve a possibilidade de seu desenvolvimento posterior. No entanto, por mais importante que possa ser essa ques­tão, ela aqui não se encontra em jogo; aqui não é urgente. Num questionamento da Razão Tupiniquim como aqui se realiza, impor­ta saber se, entre as pretensões de uma Razão Ornamental, encon­tramos a preocupação prioritária com a verdade, condição de Filosofia.

Me explico. A Razão Brasileira já foi aqui caracterizada com algumas notas: o ecletismo, o jeito, o deslumbrismo dos coloniza­dos, a fascinação pelo brilho. A essência da Razão Ornamental consiste numa espécie de véu superposto ao real. O discurso inte­lectual brasileiro se dá num nível de manifestação clara: o de uma

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Razão comprometida. Não com a verdade. Com efeito, quem a exerce? O pretendido intelectual Entre-nós, porém, encontramos alguns fenômenos que devem ser levados em conta. Se o brasilei­ro comum apresenta uma certa "saudade" e um pavor/temor totê-mico com relação à Europa, o intelectual brasileiro leva tal condi­ção a seu extremo. Atemorizado com a realidade em volta, o teci­do de sonoridade palavrosa que nosso intelectual cria envolve a Razão Nacional - seja na literatura, na critica literária, na crítica de arte, na Filosofia, na política, no direito e na economia - com um véu suposto em si mesmo significativo. Em outros termos, po­deríamos dizer que a Razão Ornamental se caracteriza pela supres­são da intencionalidade. Os objetos aos quais se refere estão enco­bertos e esquecidos, não mais se encontrando em questão, deixan­do de importar. Sabemos que uma das pretensões da Filosofia, quando interessada na verdade, é erguer o véu que encobre o re­al - e concluímos que entre a Razão Ornamental e a Filosofia não há possibilidade de conciliação.

Penso que a raiz da alienação da Razão Brasileira numa Ra­zão Ornamental se encontra na recusa, desde sempre manifesta­da pelo intelectual brasileiro, em assumir sua própria identidade. E claro que isso envolve uma longa história, a do mazombo que em nós habita. Mazombo infeliz, o brasileiro colonizado jamais se libertou de sua fascinação pela "estranja". "Flutuavam (os intelec­tuais brasileiros) - diz Antonio Candido - com ou sem consciência de culpa, acima da incultura e do atraso, certos de que estes não os poderiam contaminar nem afetar a qualidade do que faziam. Como o ambiente não os podia acolher intelectualmente, senão em proporções reduzidas, e como seus valores radicavam na Euro­pa, para lá se projetavam, tomando-a inconscientemente como ponto de referência a escala de valores, considerando-se equivalen­tes ao que havia lá de melhor. (...) A penúria cultural fazia o escri­tor voltar-se necessariamente para os padrões metropolitanos e europeus em geral, formando um agrupamento de certo modo aris-

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tocrático em relação ao homem inculto. Com efeito, na medida em que não existia público local suficiente, ele escrevia como se na Europa estivesse o seu público ideal, e assim se dissociava mui­tas vezes de sua terra. Isto dava nascimento a obras que os auto­res e leitores consideravam requintadas, porque assimilavam as for­mas e valores da moda européia. Mas, pela falta de pontos locais de referência, podiam não passar de exercícios de mera alienação cultural."25

Essa dependência conduziu ao aparecimento, ao nível da re­flexão, de uma atrofia escandalosa. Passou-se a discursar sobre uma realidade querida, a européia, sobre problemas europeus, uti­lizando termos e linguagem adequados àqueles problemas que es­tranham inteiramente nossa circunstância. A realidade querida é coisa diversa daquela na qual nos encontramos. Coisas problemáti­cas para um europeu podem ser, para nós, falsos problemas que somente à custa de verdadeira violência mental e grande alienação conseguimos revestir de "importância". Se outra é a realidade, ou­tros são os problemas virtualmente existentes, outros devendo ser os termos e métodos. No entanto, nada disso foi providenciado. Nossa realidade desde sempre foi suprimida. O intelectual brasilei­ro refugia-se numa constelação de conceitos esvaziados e de sono­ras palavras que visam exorcizar isto de que tem tanto pavor e que julga de tão pouca classe: nossa brasilidade.

Eis como, consagrados métodos e termos europeus, muitos equívocos se tornam possíveis. Entre eles, o que desabou sobre Oswald de Andrade. Não há filosofante brasileiro que não se colo­que superiormente diante de Oswald. Por quê? Fácil: não passaria de um fazedor de piadas, sujeito pouco séno. Que brincava com coisas sérias. O próprio Oswald, que não era de deixar bobagem sem respostas, escrevia em 1943: "Segundo o sr. Antonio Candi­do eu seria o inventor do sarcasmo pelo sarcasmo. Meio século de sarcasmo! Contra quê? (Olavo Büac e Coelho Neto no auge da glória; Graça Aranha; o verbalismo de Rui Barbosa, a 'italiani­tà' de Carlos Gomes; o apogeu do verdismo e o sr. Plínio Salga-

25. CANDIDO, Antonio. Op. ciL, pp. 13 e 14.

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78 A Razão Ornamenta/ do.) Tudo isso não passou de sarcasmo e pilhéria! Porque a vigilan­te construção de minha crítica revisora nunca usou a maquilagem da sisudez nem o guarda-roupa da profundidade. O sr. Antonio Candido e com ele muita gente simples confunde 'sério' com 'cace­te'. Basta propedeuticamente chatear, alinhar coisas que ninguém suporta, utilizar uma terminologia de 'in-folio' para nesta terra, on­de o bacharel de Cananéia é um símbolo fecundo, abrir-se em tor­no do novo Sumé a bocarra primitiva do homem da caverna e o caminho florido das posições".26

A questão vem a ser esta: e se Oswald estivesse tentando inau­gurar outra Razão, como é fácil confirmar pela leitura de A crise da filosofia messiânica? Necessariamente diversa da européia, uma vez que, propondo outra posição, exigiria outros termos e novos critérios. Esta nova Razão - não-linear, não-silogística, não-séria -seria talvez uma tentativa de construir um discurso adequado ao que somos.

Embora estivesse apontando alguma realidade brasileira, Os­wald o fazia de forma "desrespeitosa" do ponto de vista da Razão Ornamental, contra os clássicos padrões acadêmicos - as coisas sé­rias. Em função disso, a piada de Oswald foi "esquecida" e se trans­formou uma inteligência claramente brasileira em mera fazedora de anedotas. Ninguém se perguntou: um filósofo que fosse verda­deira e visceralmente brasileiro - não sugiro que Oswald tenha si­do; tinha o estofo e a intuição, apenas isso - poderia deixar de ser, ao mesmo tempo, um humorista? E mais: por que, ao chamar de humorista, pretendemos sempre diminuir alguém? Onde está dito que o filósofo é "superior" ou "mais profundo" do que o hu­morista? Não representaria o humor, ao contrário, a visão do aves­so das coisas, aquela consciência desperta, crítica, que o filósofo com freqüência teme assumir, esquecendo-se nalguma ideologia? E desde quando o humor é antagônico ao filosofar? Não será, con­trariamente, a mais alta expressão do espírito crítico?

No homem sério verificamos o triunfo da certeza - do vigen­te, da ordem, dos sistemas. Em termos brasileiros, é no humor que

26. ANDRADE, Oswald de. Op. cit, p. 43.

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temos encontrado a forma mais genuína de assumirmos nossas in­certezas, fonte de qualquer pensamento a sério e criador.

A Razão Ornamental não só cria uma realidade à parte e que lhe convém como enaltece ao delírio seu universo palavroso. Daí a freqüência de ressentimento nos intelectuais. Julgam-se infe­lizes, adorando posar, numa anacrônica mística romântica, de se­res etéreos e destinados, não a uma morte prematura, que os anti­bióticos fizeram cair de moda, mas ao sofrimento de não serem compreendidos. O que lhes permite assumir ares de superiorida­de face à massa inculta. Num país onde o analfabetismo sempre ganhou de goleada, não me parece grande vantagem.

Esta pose de vítima não significa mais do que um lamentoso pedido de aceitação ao sistema vigente. Ao invés de crítico, o inte­lectual brasileiro é apenas um cidadão sensível a seus próprios calos - embandeira-se em rebeldia até onde ela pode ser um instrumen­to de afirmação. A crítica que move ao sistema atua apenas enquan­to este o rejeita, não lhe parecendo estranho que o sistema exclua de seus beneficiários um imenso contingente de brasileiros que se encontram a quilômetros da "intelectualidade". O intelectual é, entre-nós, um individualista - a versão palavrosa de Pedro Mala-sarte. Do ponto de vista de uma Razão Ornamental, dada a im­portância do "caminho florido das posições", tudo pode ser coloca­do em questão, menos o principal e o que importaria: o vigente, os comodismos de nossa instalação. A não-criticidade da Razão Ornamental não é, portanto, algo que uma dada circunstância lhe tenha acrescentado, mas algo que lhe é inerente.

"O trabalho mental - diz Sérgio Buarque de Holanda - que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efei­to, ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo - a verdade é que, embo­ra presumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca esti­ma às especulações intelectuais - , mas amor à frase sonora, ao

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80 A Sazão Ornamentai

verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de ação."27

I Na medida de sua positividade, o pensamento produzido pe­la Razão Ornamental é essencialmente servil Curioso que isso ocor­ra precisamente num pais que tem no humor satírico uma de suas maiores manifestações - o que, de resto, evidencia a alienação da elite intelectual. Transformada em instrumento de afirmação social - como, em outros momentos, um título de nobreza, a pos­se das terras, um diploma universitário - , era preciso que toda a ênfase fosse transportada para o brilho, a erudição balofa, os esté­reis malabarismos estilísticos. Sem o que dizer, só restava brilhar.

Ser conciliador, cordial, jeitoso, servil, tudo isso não passa de reflexo de uma doença maior, o esquecimento da Razão entre-nós. O que Sérgio Buarque de Holanda diz dos políticos cabe perfeita­mente para descrever o clima em que se viu envolvido o pensa­mento brasileiro: "Preferiram esquecer a realidade, feia e descon­certante, para se refugiarem num mundo ideal de onde lhes acena­vam os doutrinadores do tempo. Criaram asas para não ver o espe­táculo detestável que o país lhes oferecia".28

Cumprindo seu processo ao limite, só poderia acontecer o acontecido: o ecletismo como jeitosidade geral a contaminar uma autêntica posição intelectual; a predominância do positivismo e de­rivados; o apego obsessivo ao tomismo - três das mais flagrantes derrotas da Filosofia, pois ausentes de criticidade. "A persistência do positivismo e a hegemonia neotomista sobre o ensino da disci­plina constituem a nota dominante de nosso acanhado universo fi­losófico."29 Paralelamente à constituição da mitologia brasileira: o jeito, a conciliação, a concórdia, o homem cordial, as revoluções sem sangue.

27. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Op. cit, pp. 50 e 51. 28. Idem, p. 140. 29. PAIM, Antônio. Op. cit, p. 253.

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Incapaz de pensar, exigindo brilhar, a Razão Ornamental con­duz à fuga nos modismos, no último grito cultural, o leilão de idéias. Compreende-se assim o recente suicídio que foi representado pe­la moda estruturalista, refúgio de uma intelectualidade que busca um lugar qualquer no mundo da tecnoburocracia. E compreende­mos também o sucesso absurdo e fora de propósito do neopositi­vismo e de seus cursos obtusos de estudos de lógica e teoria do conhecimento a contaminarem as universidades brasileiras - dian­te dos quais, de resto, todos se deslumbram. Ah, logrados indígenas!

Além de cômodas - afinal, estas colocações simplistas e for-malizantes nos oferecem um arsenal de certezas - , tais atitudes são perfeitamente inofensivas e servis. A ninguém incomodam. Representam o aspecto sério e útil da Filosofia - e ê imenso o seu sucesso. Seria impossível, portanto, compreender o sentido destas modas se as isolássemos do contexto político onde ocorrem. Des­ta forma, ou a Filosofia se reduziu a um arquivo de respostas fei­tas, pronto-socorro para qualquer dúvida, ou se fez estudo prelimi­nar, suntuosa propedêutica à ciência - onde, de resto, somos igual­mente dependentes.

Atado à camisa-de-força que vem a ser o espírito afirmativo, o pensamento pode exercer-se entre-nós desde que se comprome­ta a nada dizer, a não negar. Que seja apenas afirmativo. Ou seja: o pensamento pode existir entre-nós sob a condição de não pen­sar. Ou: de não existir.

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Capítulo 10 A Razão Afirmativa

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A Bazio Afirmativa

Nem por isto compra a briga olha bem para mim. Vence na vida quem diz sim. Vence na vida quem diz sim.

CHICO BUARQUE/ RUY GUERRA. (Calabar)

Na aparência, o ecletismo é o oposto do positivismo. Em­bora superficialmente tal oposição possa ser justificada, a verdade é que o aparecimento - e o triunfo - do po­sitivismo nada mais fez do que desdobrar um componen­te já implícito no ecletismo anterior: a Razão Afirmati­

va. A Razão que diz sim. Indiferenciada e dependente, precisando legitimar idéias e

modelos providenciados estranhamente, a Razão Afirmativa encon­trou em nosso ambiente intelectual um campo de fácil penetração. "Nas condições peculiares do pais - ausência de tradição filosófi­ca, fragmentação e dispersão do único grupo, a Escola de Recife, que reivindicava a metafísica ao mesmo tempo em que recusava a volta à antiga Filosofia já superada etc. - , a ação antífilosófica dos positivistas estava fadada a alcançar resultados desproporcio­nais não só à sua força efetiva como à consistência mesma da dou­trina." 30 Com efeito, olhando criticamente e face às urgências histó­ricas que se apresentavam ao Brasil, o positivismo só poderia ter sido aceito em função dos interesses vigentes e da reprodução da hegemonia das classes dominantes.

30. Idem, p. 195.

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84 A Razão Afirmativa

Aliás, a resenha das idéias filosóficas no Brasil marcaria a in­fluência de duas correntes - o ecletismo e o positivismo - que po­deríamos tranqüilamente considerar como o que de pior se produ­ziu em termos de alternativa filosófica no Ocidente. Apesar dessa debilidade intrínseca, sua influência foi tão decisiva - envolvendo condições de dependência sócio-econômica - que formaram não apenas correntes mas visões de mundo. Plasmaram modos de ver. De sorte que outras manifestações de pensamento que aqui chega­ram foram, mais cedo ou mais tarde, absorvidas e deturpadas por esse clima. Ninguém poderia negar, em aparentes extremos, a afir-matividade dos neotomistas e neopositivistas, o quê chegou a en­volver mesmo o marxismo caboclo. Sempre com a marca do orto­doxo, do modelo estrangeiro a seguir, constituindo-se em modos de retenção histórica. De resto, esse clima afirmativo casa bem com o caráter tirânico e impositivo do ecletismo - que, na ausên­cia de critérios ou posições criticamente assumidas, deve optar pe­la simples afirmação. Está igualmente ligado ao vício conciliador da Razão Eclética: ao invés de gerar um confronto criador, gerou entre-nós o pensar anestésico. Dissolvendo oposições, antagonis­mos ou choques. Reconciliando ao nível verbal as mais desencon­tradas alternativas, gerou o pensamento esterilizado, muito útil porque não contamina ninguém.

Acerta Antônio Paim ao dizer que esta "forma mentis", o po­sitivismo - que aqui, ampliando seu significado e extensão, cha­mo de Razão Afirmativa - , "acabou impondo-se entre-nós mais em função do vazio cultural aqui havido do que por qualquer virtu­de específica desta atitude. Quem fosse uma organização, conse­qüente e forte, acabaria fatalmente por atuar neste meio sem con­sistência, nem resistência. Foi o que sucedeu ao positivismo aqui".31

Talvez a melhor explicação do sucesso do positivismo entre­nós, em função de sua consciência política, ainda pertença a Sylvio Romero. Pelo simples fato de não dissociar, em momento algum, o pensamento positivista do contexto político no qual ocorre. Es­ta Filosofia dos pobres ou este neojesuitismo, como Sylvio Rome-

31. Idem, p. 196.

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A Razão Afirmativa 85

ro se refere ao positivismo, jamais teria condições de continuida­de e vigência se não viesse, no processo histórico nacional, a se unir a grupos que passaram a exercer o poder a partir da década de noventa do século passado. Na verdade, o papel desempenha­do pelo positivismo no estabelecimento da República tem sido exal­tado em demasia e talvez deva ser considerado mais modesto. Quando se tramava o 15 de novembro, diz Sylvio Romero, os che­fes do Centro Positivista, segundo informações correntes na épo­ca, foram avisados e, no entanto, se recusaram a participar do pla­no de derrubada da Monarquia por meio de revolta. Tão logo po­rém o movimento saiu vitorioso, os positivistas aproximaram-se de Benjamim Constant, com o qual tinham tantas divergências, e acercaram-se do poder.

Tenha ou não participado imediatamente do movimento repu­blicano em seus momentos decisivos, a verdade é que o positivis­mo serviu de apoio ideológico ao grupo de militares que trama­va a queda da Monarquia e foi o positivismo, afinal, quem se bene­ficiou com esta queda. "Graças à influência militar no primeiro go­verno da República e principalmente do governo Benjamim Cons­tant, que com razão ou sem ela passava por decidido sectário de Augusto Comte, o positivismo foi quase uma religião do Estado, a qual não era porventura desvantajoso praticar" - diz José Verís­simo.32

Essa associação entre positivismo e militarismo já havia sido estabelecida por Sylvio Romero em 1894 nas páginas de Doutri­na contra doutrina: "Um estudo perfeito da ação do positivismo, em nossa malsinada República, para ser perfeito, deveria associar aos feitos desse partido (os positivistas não negam que constituem um partido político), os feitos do partido militar."33 Esses dois "partidos" teriam exercido a maior influência no início da Repú­blica como dois braços de um mesmo organismo: os militares pas­saram a deter o poder, enquanto os positivistas providenciaram o

32 PAIM, Antônio. Op. cit., p. 208. 33. ROMERO, Sylvio. Doutrina contra doutrina: o evolucionismo e o positivismo no

Brasil In: Obra Filosófica, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, p. 291.

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arcabouço ideológico de justificação desse poder. "Qualquer que pudesse ser a influência do militarismo em nossa política - conti­nuemos com Sylvio Romero - nos dias que correm, essa influência, esse valor não teria chegado para fazer, entre nós, dos militares um verdadeiro partido preponderante, se ao militarismo, por uma singular aberração, por uma esquisitice de nossa educação desorien­tada, não se tivesse vindo juntar, em íntima aliança, o positivis­mo. E, por outro lado, os positivistas, a despeito de suas preten-, soes e ousadias, não passariam, não teriam passado até hoje de um grupo insignificantíssimo, sem a mínima preponderância, se não contassem entre seus adeptos os moços estudantes e os mo­cos oficiais, há pouco saídos da Escola Militar e da Escola Supe­rior de Guerra."34

Sylvio Romero lamenta ter havido esta associação entre-nós, porque "essa hibridação extravagante tem feito mal ao Exército e vai fazendo dano a este país".35 Tais malefícios seriam devidos ao fato de o positivismo ter revestido o movimento republicano com idéias conservadoras, retrógradas, transplantando para terras tupi-niquins os modelos da sociocracia imaginada por Augusto Comte, sob a forma de uma "ditadura republicana". "Note-se - diz Sylvio Romero - esta diferença: até 15 de novembro a força armada apa­recia a propósito, intervinha em prol do mundo civil e retirava-se da cena política, dando as mais inequívocas provas de abnega­ção."3*

Nas concepções que trouxeram prejuízo ao país, e que podem ser atribuídas "à má orientação positivista"37, encontramos o regi­me totalitário de inspiração comtiana, cujo melhor exemplo, o mais direto, seria o de Júlio de Castilhos, no Rio Grande do Sul, onde governou autocraticamente de 1893 a 1898, sob a inspiração do Sistema de Política Positiva de Comte. Sistema totalmente cen­tralizado, esse regime ditatorial trazia ainda outras marcas. A des-

34. Idem, ibidem. 35. Idem, p. 292. 36. Idem, ibidem. 37. Idem, ibidem.

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A Razão Afirmativa 87

confiança com relação ao voto - "o voto não é nem pode ser o verdadeiro instrumento capaz de determinar precisamente o pro­fundo trabalho de formação das opiniões", dizia Júlio de CastUhos - e a personalização do poder, pois era suposto que o governo ca­beria a um "ditador institucional", enquanto o poder Executivo ab­sorveria o Legislativo, podendo o chefe de governo demitir os ocu­pantes dos executivos municipais. Todos estes poderes acumulados nas mãos de um só homem marcavam desde já o caráter antiparla-mentar e antipartidário que, mais tarde, estaria presente em ou­tros movimentos militares como, por exemplo, o tenentismo. Essas concepções totalitárias eram de todo coerentes com o que dizia Augusto Comte no Catecismo a respeito dos direitos humanos: "A noção de direito deve desaparecer do domínio político, como a noção de causa do domínio filosófico. Todo direito humano é tão absurdo quanto imoraL"

É fácil perceber, e os exemplos não faltariam, que esta visão política se perpetuou no país a partir da República, assumindo for­mas as mais variadas, mas trazendo sempre a marca de uma Ra­zão Afirmativa que se impunha sem admitir contestação. A isso o positivismo desde sempre esteve ligado, uma vez que, mesmo ho­je, como diz Antônio Paim, "é difícil supor que exista na atual so­ciedade brasileira um grupo social onde a mentalidade positivista esteja mais arraigada que naquele constituído pela oficialidade".38

O caminho descrito pelas idéias totalitárias do positivismo, a "ditadura republicana", vem de Júlio de Castilhos, no Rio Gran­de, passando por Borges de Medeiros que, por sua vez, cedeu o posto a Getúlio Vargas, "ao qual incumbiria transplantar o castilhis-mo para o plano nacional".39 Eis como um pensamento retrógra­do e débü, de uma insuficiência crítica total, na medida em que poderia servir de instrumento nas mãos de grupos dominantes, con­seguiu se impor ao país, vindo a ser o traço mais marcante em nossa formação política e filosófica, constituindo-se no fenômeno

38. PAIM, Antônia Op. cit, p. 186. 39. Idem, p. 183.

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88 A Razão Afirmativa

onde mais significativamente podemos encontrar as raízes de nos­sas alienações atuais.

Procuremos agora encarar a Razão Afirmativa de um outro ângulo, ou seja, a partir das ilusões com que nos acena sua positividade.

De fato, é muito mais cômodo - refira-se isto ao positivismo, ao tomismo ou ao marxismo - acatar globalmente um conjunto de "verdades" resumidas em alguns poucos livros, manual ou cate­cismo do que se fazer capaz de enfrentar um longo e penoso pro­cesso de reconstrução histórica da Filosofia. Mais fácil, e até mais fascinante pelo conjunto de certezas que nos oferece, embrenhar-se em piruetas verbaüsticas e conciliar o inconciliável do que, num processo de revisão crítica, reconsiderar integralmente o ato de espirito que gerou esta atitude que chamamos de filosófica. Não se trata, porém, como erradamente muitos viriam a supor, de me­ra preguiça mental - do que temos sido acusados, às vezes na brin­cadeira, por amigos e inimigos. Pondo de lado a questão de saber­mos se a preguiça não seria um dos valores com o qual podería­mos brindar uma humanidade desesperada (a Divina Preguiça, de Mário de Andrade), gostaria de ressaltar que o afastamento, a fuga de uma revisão crítica da Filosofia que a Europa nos envia­va, não pode ser dissociada do processo paralelo que nos envolve: a circunstância de sermos um pais dependente. Sendo um prolon­gamento da cultura ocidental, a Filosofia entre-nós, ausente de cri-ticidade, acabou por optar pela simples afirmação desse prolonga­mento. E o intelectual brasileiro - que tem conseguido ser o protó­tipo de nossos defeitos mais chocantes - assumiu, na fascinação pelo passado europeu, o papel de ser-dependente. Não deve revi­sar criticamente. Deve, como na ingênua posição de Luís W. Vita, ser um "assimilador", um continuador ou repetidor de idéias gera­das em outras terras. Deve dizer sim - reproduzindo - àquilo que

Uma Razão que dissesse não seria algo estranho ao papei que o país deveria desempenhar face ao passado europeu. Negar

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A Razão Afirmativa 89 coroistiria, no caso, colocar-se à margem, fora da visão (e da posi­ção) de mundo européia que nos havia sido legada. Pois é isto que significa negação: para ser global e significativa - não apenas trans­formista como gostamos de ser, quando brincamos de revolucioná­rios - , deve descentrar integralmente as razões do pensamento an­terior. Como isso seria realizável se o país, econômica, política e socialmente, era um apêndice da Europa e tão bem se adaptara ao papel de filho edipianamente submisso? Como negar, se todo o conjunto tupiniquim era dependente e se às produções intelec­tuais, vítimas da Razão Ornamental, reservávamos o simples pa­pel de refletoras - não de reflexão - do que se passava em torno? No entanto, era exatamente isso que precisaria ter sido feito. Des­sa maneira, todo pensamento entre-nós tem sido prisioneiro de modelos e fins europeus, desligado de nosso contorno. Os cami­nhos de alienação da Razão Tupiniquim encaminham-se então no sentido de uma dependência ainda mais acentuada. Agora ao nfvel das justificações ideológicas providenciadas para a manuten­ção do vigente através da Razão Afirmativa.

Da indiferenciação do ecletismo ao espírito dogmático do po­sitivismo, a distância era mínima e foi percorrida festivamente pe­la inteligência nacional. Fascinados por um modelo de pensamen­to e de ciência atado ao espírito oitocentista, caímos em alguns mitos e novas falsificações. O mito da certeza em geral e da certe­za científica em particular. Qualquer positivista elimina a criticida-de da Razão com quatro ou cinco argumentos, onde a fé na afir-matividade é tão presente quanto o fanatismo nos santos guerrei­ros. Ao invés de favorecer o verdadeiro desenvolvimento do espíri­to científico, a Razão Afirmativa só fez bloqueá-lo, atado à cami­sa-de-força sumariada por Comte e seguidores em mui fáceis li­ções. Apresentando-se como irrefutável, a Razão Afirmativa impe­diu o aparecimento da única coisa que poderia gerar pensamento: a dúvida.

Com a vitória da afirmatividade, o espírito da negação, sem o qual não existe Filosofia, deixa de existir. A conseqüência é fu-

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nesta: ausência de capacidade criadora, pois esa é antes do mais destruição e dúvida. A afirmatividade fez apenas acentuar quadros mentais que se impuseram acima do direito e da urgência de pro­videnciarmos nossos próprios modos de ver e viver. Uma Filosofia brasileira passou a ser impossível a partir do momento em que, co­mo fenômeno geral, se deu entre-nós a opção pela certeza. Se a verdade é patrimônio de um outro, não nos resta senão ser "assi-miladores". O que equivale a morrer para o pensamento.

Já no pensamento eclético encontrávamos a tendência a dis­solver oposições e a desconfiança com qualquer posição que conti­vesse traços de marginalidade: do ponto de vista eclético, aquele que discorda é um criminoso, pois o ecletismo gera o fanatismo da mesmidade. É essencialmente tirânico e antidemocrático, aves­so ao livre circuito de posições que se questionem radicalmente. Para termos como definitivo que o positivismo só fez acentuar pres­supostos ecléticos, não sendo com relação ao ecletismo uma supe­ração mas um desdobramento, "basta indicar que é solidário des­sa mentalidade positivista o pressuposto antidemocrático de que na sociedade não deve ter lugar o livre jogo dos grupos e das fac­ções, mas a tutela de agrupamentos que se atribuem semelhante privilégio a diversos pressupostos. Nisso talvez a particularidade distintiva mais característica entre a mentalidade positivista e o cien-tificismo contemporâneo, este último visceralmente ligado à tradi­ção do liberalismo anglo-saxão, expresso na incapacidade de acei­tar o diálogo e o debate em qualquer plano".40

Não houve salto entre o ecletismo e o positivismo, mas pura continuidade, desdobramento, uma afinidade que explica como o segundo - movimento filosoficamente inconsistente - foi capaz de encontrar entre-nós uma terra de promissão, arada e adubada pelo ecletismo. As duas atitudes prolongam a condição de depen­dência, ausentes de qualquer posição negadora.

40. Idem, p. 208.

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A Razão Afirmativa 91 Tudo parece preparar o que entre-nós aconteceria quando,

levada a desconfiança com relação à democracia a seu limite, pas­sou-se a uma declarada hostilidade contra qualquer coisa que pu­desse representar debate político - onde, de resto, nossas urgên­cias terminariam por surgir - e optou-se por uma franca tecnobu-rocracia, onde o que menos conta é esta caótica, vulgar e tropical "opinião do povo". Sylvio Romero já advertira quanto ao positivis­mo: "tal é o sistema que se propõe enfaticamente a acabar com os males da opinião democrática e liberal, que domina no país!..."41 Aliás, foi a Real Mesa Censória, criada por Pombal em 1776, que proibiu a tradução e difusão de Descartes, "porquanto o povo por­tuguês ainda não está acostumado a ler no seu próprio idioma es­te gênero de escritos". Simples, portanto: o povo sempre tem cul­pa. Não é sem motivo que ainda se discute se estaremos "prepara­dos" para a democracia. Um precursor, este Pombal

Que os poderes constituídos adotassem tal posição, nada a estranhar, embora muito a lamentar. Mas que os pretensos intelec­tuais, fantasiados de inúmeras maneiras, inconscientemente ou por simples má-fé, o fizessem, eis algo a estranhar e a lamentar. No momento em que desabou sobre nós a afirmatividade, toda possí­vel criação que questionasse nosso mundo estava condenada. E a conseqüência, estabelecida: entre-nós o pensamento haveria de ser "ornamento e prenda".

Essas, as questões que deverão ser abordadas numa introdu­ção a uma possível Filosofia brasileira. Não apenas ao nível das te­orizações abstratas - ao modo das infindáveis "introduções à Filo­sofia" que se publicam entre-nós - , mas investigando aquilo que a Filosofia veio a ser entre-nós e as condições que circundam tal acontecimento. Em suma, revivificar os modos de alienação do pensamento brasileiro, sua incapacidade de maior compromisso com as urgências históricas que nos rodeiam e sua fuga para a sé­tima nuvem à direita, onde se pensa "do ponto de vista da eterni­dade". E sobre isso exercer a consciência negadora.

41. ROMERO, Sylvio. Op. cit, p. 30&

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Com efeito, o que faz a Filosofia? Sua pretensão parece ser clara: desde sempre pretendeu ser um pensar ao limite. Ou: um levar a sério que busca extrair de si as últimas conseqüências.

É justo aqui que encontramos o entrave básico a um pensar brasileiro. Se o próprio homem é resultado de um ato de criação de si, o viver social providencia - e nós providenciamos - nossos modos de instalação no real, modos de contornos bem definidos e práticos, numa especialização de nossa existência, objetivando manejar situações com a máxima segurança.

Uma condição talvez nos leve a isso: o homem é um animal enraizado na insegurança, o que faz com que nada nos fascine mais do que a certeza. As certezas dos limites de nossas instala­ções, as quais acabam plasmando nosso mundo. É de agarrar-se a tais limites que extraímos nossa débil segurança. A dinâmica bá­sica da existência oscila entre momentos de segurança e inseguran­ça, certeza e dúvida - sendo o ato criador aquele momento que faz romper algumas certezas, desequilibrando um sistema. Ao con-

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trário, a vitória de uma dada visão de mundo tenderá a se trans­formar em instituição, segura e sólida, vigente. Logo, morta.

Um pensar ao limite só poderia nos atrapalhar. Se devo pen­sar, tudo está em jogo, sendo o pensar a sério um levar-se ao limi­te. Equivale a expor nossas instalações ao perigo da dissolução, já que pensar é o mesmo que duvidar. A face inquietante da Filoso­fia é a ameaça ao tranqüilo esquema de instalação que montára­mos para enfrentar o real, aniquilando-o como coisa em sL O pen­samento tenderá a explodir esta inércia do dado bruto ao qual nos agarrávamos. Contávamos com comodismos de instalação que vemos, súbito, desabar. E o que pretende a Filosofia quando a sé­rio? Salvar-nos? Não. A Filosofia não é salvação - é perdição. Ao menos antes de alienar-se nalgum sistema. Convida-nos a lar­gar tudo, a encontrar soluções por conta própria. Em suma: pen­sar por si mesmo.

Eis o convite que nos aterroriza e que nos põe nos limites de nossas certezas: pensar por conta própria. Me contaram ou li (ou inventei) que segundo os chineses "pensar dói". Dói. E um ris­co a assumir. Exige colocar tudo em jogo. É conduzir-se aos limi­tes a despeito da insegurança. É neste momento que o chão nos falta - e preferimos a burra paz dos que não sabem. De fato, pen­sar dói. Mas é a única coisa que nos resta.

Uma Razão Afirmativa é o mesmo que uma sem-razão. Com­plemento desesperado do senso impensado da Razão Eclética. Equivale a agarrar-se ao dado na pretensão de perpetuá-lo, quan­do a função radical do pensamento é destruir a positividade do da­do. Se a Razão Eclética perdia-se numa indiferenciação amorfa e despersonalizada, a Razão Afirmativa tende a sacralizar o passa­do, fonte de todas as certezas - certezas que já não sabemos ver­dades caducas. E ambas encontram na Razão Ornamental a for­ma adequada à sua expressão: o pensamento não pensado, alegó­rico. Que não incomoda nem arrisca. O pensar anestésico e esteri­lizado.

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94 A Razão Afirmativa

Por exemplo, o estruturalismo, o neopositivismo, a predomi­nância da lógica, formal ou matemática, são os lugares onde se rea­lizam aquelas intuições filosóficas que se perderam. Verdadeiras salas de operação: esterilizadas e inofensivas. E úteis. Ou, pelo menos, consentindo. Isso se dá em função do estado de alienação no qual nos encontramos; preferimos jogos lógicos e epistemológi­cos àquilo que sabemos urgente.

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Captíub 11 Razão Dependente e negação

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96 Razão Dependente e aegaçio

...porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão nao tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.

GABRIEL GARCÍA MARQUEZ (Cem Anos de Solidão)

Se a função da consciência é explodir um mundo, pode­mos dizer que com a Semana de Arte Moderna, em 1922, realizamos uma primeira tentativa de real indepen­dência cultural face ao passado europeu e aos modelos estrangeiros. Com exagero - este sim, bastante nosso -

efetuamos a constatação do óbvio: à nossa volta não havia fog, ne­ve ou castelos medievais - mas bananeiras, coqueiros, casas de ca­boclo e gente de nariz batatudo e lábios grossos. O parnaso super-refinado, os traços suaves das madonas, o bom gosto oficial vieram abaixo; nossos artistas retiraram de seus ombros a carga de um passado alheio e que lhes pesava. Tornava-se possível criar. O re­sultado foi uma revolução. De Mário e Oswald a Drummond e João Cabral de Mello Neto, súbito percorremos os caminhos de uma emancipação artística. Os imensos pés das figuras de Portina-ri denunciam: encontrou-se um chão sobre o qual pisar.

É claro que análises detalhísticas encontrariam por detrás do Manifesto Antropofágico o italianíssimo Marinetti. Mas uma coisa se ressalta: mudou o espírito, a atitude. A partir daí uma re­ação em cadeia será liberada, permitindo produzir uma arte cujo

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Razão Dependente e negação 97

significado é flagrante: assumir nossa posição. "Confesso - diz Os­wald de Andrade - que a revolução modernista eu a fiz mais con­tra mim mesmo (...) Pois eu temia escrever bonito demais. Temia fazer a carreira literária de Paulo Setúbal. Se eu não destroçasse todo o velho material lingüístico que utilizava, amassasse-o de no­vo nas formas agrestes do modernismo, minha literatura aguava e eu ficava parecido com D'Annunzio (...) Não quero depreciar ne­nhuma destas altas expressões da mundial literatura. Mas sempre enfezei ser eu mesmo. Mau mas eu."42

O modernismo brasileiro instalava-se sobre o signo da nega­ção. Havia que destruir, como diz Oswald, aquilo que falsamente viéramos a ser: "A revolução modernista eu a fiz contra mim mes­mo". Destruir as condições internas e subjetivas da dependência, pois esta não é simples fato externo - se existem fatos puramen­te internos ou externos - mas disposição internamente assumida: o escravo traz o senhor dentro de si. Lutando contra si mesmo, contra seus próprios fantasmas, os modernistas sentiam a urgência de se libertarem dos vínculos que os mantinham presos a uma Eu­ropa idealizada.

"A Alemanha racista - diz Oswald - purista e recordista pre­cisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E preci­sa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se."43 Um mundo desaba­va. E a primeira coisa a fazer - assim como nas revoluções - era queimar os retratos e bustos dos tiranos. Não contra os tiranos -mas contra nós mesmos. E o efeito de substituição: a tomada de consciência do mulato, do índio, da América Latina. A consciência daquilo que nos constituía e sem o que nada poderíamos ser.

Após a derrubada do ídolo - saudavelmente barulhenta - , assistimos à aproximação de nossos valores, de nossos limites e possibilidades. "Nada podemos esperar da Europa européia, para

4Z ANDRADE, Oswald de. Op. cit, p. 11. 43. Idem, p. 62

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onde vivemos por tanto tempo voltados, com a luz de Paris em nossos espíritos. Foi uma época que terminou. Tínhamos pelos lati­no-americanos um desprezo que participava do conhecimento de nós mesmos, de nossos pobres recursos civilizados, perdidos no es­magamento de uma fiança torpe ligada à fome dos imperialismos."44

Nas páginas de O Movimento Modernista*5, Mário de Andra­de deixou algumas lições que precisaríamos recuperar, já que a possível Filosofia brasileira muito teria a aprender com nossa Litera­tura. Encontramos aí certos traços de desgosto e arrependimento, certas restrições a seu passado modernista.

Não se revolta por ter sido modernista, mas por não ter ido além de suas pretensões. Não propõe um retorno, mas a revisão crítica, na tentativa de recuperar a intuição revolucionária que se perdera.

O modernismo havia sido "uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência Nacional". Mário nota, porém, que o "es­pírito modernista e suas modas foram diretamente importados da Europa". Daí o aparecimento subterrâneo, às vezes nem tanto, de uma postura nitidamente aristocrática, de um internacionalis­mo modernista e um nacionalismo embrabecido. "Era uma aristo­cracia do espírito." No entanto, o movimento, essencialmente des­truidor e com possibilidades de criar, representava uma convulsão no panorama artístico e intelectual brasileiro. O que ficaria expres­so nos três princípios apontados por Mário: "O direito permanen­te à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasi­leira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional."

Isso permitiria uma reviravolta aos artistas brasileiros, que ti­nham sempre jogado "colonialmente certo". Havia que dar conta das "numerosas Cataguases", o que, associado à pesquisa estética,

44. Idem, p. 63. 45. ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista In: Aspectos da Literatura Brasi­

leira. São Paulo, Martins [s/d.], pp. 231-55.

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pudesse representar o primeiro movimento de independência, legí­timo e indiscutível, da inteligência brasileira. "Essa normalização do espírito de pesquisa estética, antiacadêmica, porém não mais revoltada e destruidora, a meu ver, é a maior manifestação de in­dependência e de estabilidade nacional."

Mas onde o lamento e a lição maior? Aqui, creio: "Se tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitu­de interessada diante da vida contemporânea. E isto era o princi­pal!" Vítima de seu próprio individualismo, Mário crê não encon­trar em suas obras e nas obras de seus companheiros "uma paixão mais contemporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem. Tem mais é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós".

Essa consciência dolorosa, aguda, denuncia o espírito num momento decisivo: o da consciência que explode um mundo. O momento da negação, -a crítica, que permitiria superar o próprio modernismo e vislumbrar o que deveria vir em seguida. Falta al­go. Este contato - fora de toda Razão Ornamental - com nosso contorno; talvez um levar-se a sério ainda mais comprometido. "De­veríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está."

Revisando tudo, Mário aponta onde fora efetivamente reno­vador e onde fracassara - e dá testemunho deste fracasso, supe-rando-o. Esquecera-se de seu tempo, quando muito lhe fizera, "de longe, uma careta". Creio que isso possa explicar por que mesmo Mário de Andrade não tenha ficado livre, ao final, do espírito con­ciliador; é fácil encontrar nele traços de uma Razão Eclética da qual não conseguiu se libertar inteiramente.

Mas estava, ao dar testemunho de si, virtualmente pronto a reiniciar tudo, tendo sido capaz de negar mesmo seu passado, recu-perando-o criativamente. Seu lamento deve ser considerado co­mo uma devastadora revisão crítica, legítima, porque dava testemu­nho de um mundo seguinte. "Eu creio que os modernistas da Se­mana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase inte­gralmente política da humanidade."

Registremos agora a ausência de repercussão do modernis-

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mo na Filosofia praticada entre-nós. Mais uma vez vemos aí denun­ciado o estado de alienação, de apartamento, da Filosofia diante de uma realidade nossa. Foi, para os praticantes da Filosofia, co­mo se a Semana não houvesse existido. "A partir da Semana de Arte Moderna e da Revolução de 30 - diz Roland Corbisier - , ocorreu no país uma significativa renovação cultural, assinalada pelo aparecimento de romancistas, poetas, arquitetos, pintores, músicos, críticos literários, ensaístas etc. A essa eclosão de valores no campo da arte e do ensaio não correspondeu, porém, no cam­po da Filosofia, ao surgimento de valores equivalentes."4*

A razão disso, creio, possa ser encontrada no fato de ter si­do na Filosofia onde se enraizou mais fortemente - já pela primei­ra tentação alienante da Filosofia: pensar acima do tempo e do espaço - o caráter afirmativo da dependência cultural, perduran­do aí a atitude "assimüadora", de prolongamento do universo euro­peu. Ao nível das justificações ideológicas, houve uma reação de defesa por parte das idéias e ideais dominantes, não permitindo que se questionassem mais radicalmente as bases da visão de mun­do vigente. Enquanto estas manifestações de libertação se davam ao nível das propostas artísticas e ensaísticas, fazendo, de longe, caretas para o tempo - coisas, de resto, facilmente redutíveis a um estado de ornamento social - , era fácil manter o seu controle, absorvendo os seus golpes. Mas pensemos no que ocorre sempre que se tenta ir, na Filosofia ou em qualquer outra forma de expres­são e conhecimento, além de um mero questionamento ornamen­tal das condições nacionais.

Vista a questão de dois ângulos, complementares e indissociá­veis, podemos dizer que, por um lado, houve a retenção do espíri­to crítico aos limites permitidos pela ordem vigente e, por outro, os praticantes da Filosofia entre-nós, desde sempre vítimas e bene­ficiários da Razão Ornamental, preferiram manter-se a distância de questões mais delicadas, permitindo-se flutuar no limbo das ques­tões "metafísicas".

46. CORBISIER, Roland. Carência de Filosofia. Jornal Crítica, Rio de Janeiro, ano 1, 37:7, 21 a 27 abr., 1975.

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Razão Dependente e negação 101 Razão pela qual a Filosofia preservou entre-nós uma atitude

de desprezo face às questões efetivamente urgentes, delas se es­quecendo, considerando-as coisas pouco sérias, não dignas das lu­zes de nossos pensadores. Sérias, só teses secas e desinteressantes, montadas a partir de questões que foram vitais para homens que viveram há, no mínimo, sete séculos. Sérios são estudos maçantes que cheiram a Europa. Assim, apesar dos traços de emancipação de uma inteligência nacional que podemos encontrar no modernis­mo, os praticantes da Filosofia continuaram, e continuam, como no verso de Manuel Bandeira, "macaqueando a sintaxe lusíada".

Podemos agora equacionar a questão de um pensamento bra­sileiro. A Filosofia representa, por si só, num desafio a nossas insta­lações, uma exigência de questionamento radical. Por outro lado, por comodismo, ligação incestuosa e pela violência do projeto colo­nizador, sempre delegamos à Europa nos dizer o que deveríamos pensar. Deste irreconciliável choque - quanto a isso não há como dar um jeito - resultou a impossibilidade de uma Filosofia brasileira.

Ou não? A questão é irrespondível se não fizermos referências às pecu­

liaridades de nossa formação histórica. Este país foi iniciado por pessoas que para cá vieram sem a

pretensão de permanecer. Tanto que até o início do século XVUJ "o termo brasileiro, como expressão e afirmação de uma nacionali­dade, era praticamente inexistente".47 Não só por oposição à for­mação dos EUA mas até mesmo com relação ao que aconteceria na América Espanhola, o sonho de enriquecer depressa e voltar em seguida fez com que a ação dos portugueses se caracterizasse entre-nós por um mercantilismo selvagem.

Os primeiros que se instalaram nestas terras mantiveram uma ligação permanente com Portugal e, por seu intermédio, com o resto da Europa. Desde o início existiam as condições externas e

47. MOOG, Vianna. Bandeirantes e Pioneiros, paralelo entre duas culturas. 8? ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 116.

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102 Razão Dependente e negação

internas da dependência: a força da metrópole e a mente do ban­deirante - atividade extrativa, predatória e desinteressada do lu­gar - caracterizam a posição periférica do Brasil, com toda sua produção voltada para o centro europeu. Assim, os primeiros "bra­sileiros" - no sentido que esta palavra tinha até meados do sécu­lo XVII: aquele que explora o pau-brasil ou aquele que fez fortu­na nestas terras - sempre se mantiveram voltados com muitas sau­dades (já se pensou nas explorações dessa palavra entre-nós?) pa­ra as terras d'além-mar. De lá vinham as notícias significativas, lá o destino do mundo era decidido. Lá estavam o poder e o saber. E para lá se voltaria algum dia.

O primeiro traço a ser destacado na formação brasileira é a origem colonial, com seu característico alheamento. Não possuin­do uma geração interna, resultou de um transplante cultural Ja­mais sujeito da própria história, a dependência lhe reservava ape­nas o papel de objeto de exploração, exigindo que assumisse o pa­pel de assimilador. "Numa produção transplantada, e montada em grande escala, para atender exigências externas, surge natural­mente uma cultura também transplantada."48

Condição que contaminaria séculos de Brasil De país coloni­zado, tornamo-nos formalmente livres - e sempre saudosos. O pó­lo de nossa dependência econômico-cultural sofreu vários desloca­mentos, mas sempre esteve nalguma parte fora de nossos limites. De um modo geral este centro sempre foi a "Europa", não a geo­gráfica, mas a espiritual, no sentido da distinção feita por Husserl e analisada por Mario Casalla; neste sentido, os EUA também fa­zem parte da "Europa".49 Lá se encontra o centro do mundo. É onde se fazem descobertas, se escrevem romances notáveis, se re­novam os costumes, se é fino e inteligente. O brasileiro, assim, sem­pre desejou ser europeu. Vale dizer: não-brasileiro. O que explica­ria o incrível sucesso de uma viagem ou de estudos realizados na

48. SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de História da Cultura Brasileira. 2? ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972, p. 5.

49. CASALLA, Mario. Husserl Europa y la justification ontológica dei imperialismo. Revista de Filosofia Latinoamericana, Liberación y Cultura, Buenos Aires, l(l):16-50, ene./ jun., 1975.

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Europa - para não falar do charme sempre desejável das manei­ras européias.

As origens de nosso mazombismo têm data remota. Como a pretensão era a posse e a instalação provisória nestas terras - sen­do permanente o desejo de voltar - o própio padre Nóbrega já notara: "Não querem bem à terra, pois têm afeição a Portugal".

Com a sucessão de outros pólos de dependência, essa atitu­de se viu reforçada e acabou generalizando-se. Em gerações recen­tes encontramos o irresistível desejo de ser norte-americano. Vale aqui um registro quanto ao verdadeiro perfeccionismo que empre­gamos ao falar uma língua estrangeira. É fácil observarmos que um norte-americano ou europeu costuma falar português com a fluência de quem cospe cascalhos. E não dão a isso a menor im­portância. São o que são e querem ser o que são. Daí se concluir que falar mal uma língua estrangeira é sinal de amadurecimento cultural.

Executores e vítimas desta situação de colonialismo cultural, jamais nos conformamos e muito menos desejamos ser o que so­mos. Os norte-americanos, por exemplo, nasceram de uma preten­são assumida: um novo mundo. Gostemos deles ou não, foram ca­pazes de assumir-se culturalmente. Enquanto isso, o mazombo que habita em cada um de nós continua suspirando pela culta vida d'a-lém-mar.

Estamos aqui em pleno domínio daquilo que Octávio Ianni chamou de "cultura da dependência", referindo-se mais especifica­mente ao caso da Sociologia, que "também reflete as peculiarida­des da dependência estrutural e histórica que caracteriza as socie­dades da América Latina".50

Podemos dizer que tanto na Sociologia quanto na Filosofia a problemática é externa, importada, e traz consigo as implicações

50. IANNI, Octávio. Sociologia da Sociologia Latino-americana. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1971, p. 39.

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teóricas que dela resultam. Daí a dificuldade de aplicação de tais conhecimentos à realidade que nos circunda, o que impede que venhamos a conhecer criticamente a superfície ideológica que en­cobre nossas alienações.

"Da mesma maneira que no passado, na atualidade também a produção científica e filosófica dos países da América Latina con­tinua a revelar influências acentuadas da produção intelectual nor­te-americana, francesa, alemã, inglesa etc. (...) Na Sociologia, assim como nas artes, nas outras ciências sociais e na Filosofia, ainda é freqüente que o prestígio de alguns sociólogos latino-americanos esteja relacionado com a informação sobre a última novidade so­ciológica norte-americana ou francesa."51

O pensar latino-americano e particularmente o brasileiro se encontram presos a importâncias e urgências que não são nem im­portantes nem urgentes, senão para europeus e norte-americanos - motivo pelo qual a Razão entre-nós se perdeu nas alegorias da ornamentalidade. Ocorre então à Filosofia optar por uma reprodu­ção do pensar alheio - que é, em última análise, a reprodução do pensar europeu, no âmbito do qual seremos mdefinidamente dependentes - sem se dar conta do que nos é próprio. Ou, em momentos de exaltação patrioteira, a querer se refugiar no mato, como bugres. "A Filosofia no Brasil se acha, pois, muitas vezes en­tre duas tentações igualmente funestas: a de se entregar, abando­nar-se cegamente ao passado, ou a de confiar nos filósofos estran­geiros. Enquanto nos contentarmos com estudar problemas do pas­sado ou do estrangeiro; enquanto, de fato, manifestarmos menos­prezo pelos verdadeiros problemas do Brasil de hoje - a Filosofia merecerá ser tachada como artigo de luxo, que o país poderia even­tualmente dispensar."52

O que Michel Schooyans não acrescenta, e do que pouca gen­te quer dar-se conta, é que justamente esta Filosofia alegórica inte­ressa à manutenção de nosso estado de dependência. Com efeito,

51. Idem, pp. 41 e 42 52. SCHOOYANS, Michel. Op. ciL, p. 78.

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urge libertar o Brasil de dois modos: externamente, das pressões econômico-culturais, e, internamente, da introjeção do papel de dependente e "assimilador". É vigente, no entanto, a crença de que o verdadeiro pensar encontra-se nesta incestuosa ligação com os centros da Razão Européia, na repetição do dito, jamais no di­zer. O pensamento, que poderia e deveria ser essencialmente nega-dor e libertário se atendesse a urgências históricas nossas, torna-se apenas mais um instrumento de domínio. E grave, posto que instalado dentro de nós.

Estamos aqui às voltas com a oposição entre o passado e o futuro. Passado representado pelo que nos legou a cultura euro-péia-ocidental, sendo o futuro a possibilidade ainda existente de que possamos superar as amarras que nos atam a esse legado. "De tal maneira que a 'nova cosmologia' e a 'nova história' não são nem mais nem menos que a superação - no sentido estrito de Aufheben - de um passado histórico em direção a um futuro redefínidor."53

Não se trata de julgar conveniente qualquer tipo de ilhamen-to cultural. O que se isola, morre; o futuro não se constrói a partir de um presente arbitrariamente fixado, mas do questionamento do passado. É tão grave esquecer-se no passado quanto esquecer o passado. Nos dois casos desaparece a possibilidade de história. O contato continuado com o universo euro-ocidental é condição de nossa maturidade. Mas sob uma condição: o exercício de uma impiedosa antropofagia. É urgente devorar a "estranja" - como gostava de dizer Mário de Andrade. Devorar sem culpa ou senti­mento de inferioridade.

Com relação ao passado europeu, precisamos ter consciência de que estamos diante de uma estrutura de vida e pensamento, de um horizonte de sentido que é preciso desvendar para compre­

si CASALLA, Mario. Razón y Liberación, notas para una filosofia latinoamericana, 1? ed., Buenos Aires, Siglo XXI, Argentina. Ed. 1973, p. 71.

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endermos o que nos ocorreu. A possibilidade de redefinirmos um futuro existe na medida em que nos for possível estabelecer as con­tradições a que se viu conduzida esta Razão Européia. "O germe do novo mora na caducidade efetiva do velho. O futuro não é um simples desejo, nem um projeto demagógico a mais, não é um novo produto para o mercado, é o levantamento definitivo da contradição à qual um modelo de vida-pensamento chegou."54

A Razão Euro-Ocidental é a Razão Metafísica que se gerou a partir da Grécia, vindo culminar no século XIX, sendo a "civiliza­ção euro-ocidental uma civilização metafísica".55 Esta metafísica que nos foi legada hoje sofre as mesmas impossibilidades da civili­zação à qual deu forma e da qual é o reflexo. A Razão Dualista que emerge desde as origens na Filosofia grega encontrou sua tra­gédia: a impossibilidade de conciliar uma consciência atemporal, universal, com uma história que é fluidez no tempo. Nesta dualida­de, a bipartição do homem residente nesta civilização tornou-se inevitável, e sua reconciliação, impossível. O século XIX expressa a última busca desesperada da reconciliação, quando a Razão Eu­ro-Ocidental atinge sua maior grandeza e miséria. Em tal contex­to é compreensível o desvario final de Husserl: é preciso "salvar a humanidade da crise". Não nos iludamos. Não a humanidade, mas uma parcela da humanidade e seu modelo de vida e pensa­mento preocupava a Husserl. Defender a perpetuidade de seus valores e a "missão civilizadora" da Europa face ao resto do mun­do foi a tarefa à qual Husserl se dedicou. Batalha previamente perdida. A Europa não precisou ser destruída por ninguém, che­gando por seus próprios pés ao limite de exaustão do qual encon­tramos os sinais por toda parte: guerras, dominação, exploração, marginalidade, violência, desespero. Expressão de uma civilização que morre, "a metafísica - agrade ou não a Husserl - terminou".56

A nós cabe a conquista da consciência de que só seremos li­vres após devorarmos o legado de nossos pais. A solução do com-

54. Idem, p. 80. 55. Idem, p. 73. 56. Idem, p. 7R

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plexo de Édipo, que Freud propôs e milhões se recusaram a enten­der, consiste nisto: a vida explode para fora - e morre quando se volta para o passado. De uma condição de dependência e envolvi­mento com relação aos pais, urge chegar ao ponto de introjetá-los. Devorar nossos pais - o que ficou expresso no assassinato do pai primordial - numa assimilação profunda e, então, propor nosso caminho. Numa explosão para fora e para a liberdade. Inexplicá­vel sem nossos pais, mas irredutível a eles.

No todo da cultura as coisas se passam assim, pois é o todo histórico-social que determina o psicológico. Com grande aborreci­mento noto o excesso de escrúpulos de nossos praticantes de Filo­sofia, esmerando-se em permanecer fiéis aos textos, questões e sis­temas dos mestres europeus. A máxima fidelidade a um mestre é abandoná-lo. É jamais deixar que seu pensamento vire fórmula va­zia. Não deixar que a originalidade de sua intuição morra na este­rilidade de um conceito. Fazer o que um mestre fez não é fazer o que fez, mas o que faria se estivesse em nosso lugar.

É preciso devorar o mestre e referir a lição restante a uma situação nossa, aquilo que está diante de nós - sem o que nunca haverá verdade para nós, não havendo verdade nossa. A Filosofia, já foi visto, é negação do passado, é dizer o contrário. A tentativa de enxergar um palmo diante do nariz. Enquanto a Razão Euro-Ocidental, com seus fins, interesses, preocupações, esforços, conti­nuar sendo para nós a prisão intelectual que até aqui represen­tou, aquelas pretensões radicais da Filosofia serão irrealizáveis en-tre-nós. "Tudo aquilo que não cheira o bom perfume de nossa in­telectualidade faz mal a nosso nariz. Nós estamos tão cheios de uma importância de sabidice e de teorismos inúteis que não quere­mos nos aproximar daquilo que está diante de nosso nariz, nas ruas, nas conduções coletivas, nas gerais dos campos de futebol, nos suburbanos, porque tudo isto fede e fere o nosso chamado bom gosto, que eu não sei de onde veio: somos afinal uns mesti­ços luso-afro-tupiniquins com incríveis problemas de povo pobre, mas pensamos em termos de uma civilização cristalizada e que po­de se dar ao luxo de pesquisar e divagar sobre problemas esotéri­cos antes de resolver os problemas da existência mais imediata:

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alimentação, habitação, saúde, educação etc. Somos uns deslum­brados daquilo que nem conhecemos: América do Norte e Europa."57

O que impede o surgir de um pensar nosso é a recusa implí­cita de enfrentarmos algo brasileiro. Se os modelos de ver que as­similamos são os de um outro, não nos vemos a não ser de modo distorcido e sem chegarmos a nos assumir teórica e praticamente. Nossos temas são recusados por não serem de odor tão refinado quanto as questões européias. Nosso modo específico de abordar o real, tornando-o importante, é esquecido. O mesmo se dá com os problemas que deveríamos efetivamente problematizar, pois não se enquadram entre aqueles que possamos pensar com "isen­ção", "distanciamento", de modo "neutro". Quer dizer: não pode­riam ser objeto de uma Filosofia esterilizada sem contaminá-la, obrigando-a a assumir seu papel histórico entre-nós. Contamina­da, esta Filosofia viria a ser muito incômoda, já não permitindo a infindável conciliação. O que não é recomendável, quer do ponto de vista do vigente - e o vigente entre-nós é a dependência - , quer do ponto de vista das instalações que providenciamos para nos proporcionar certezas.

Esta Filosofia esterilizada, asséptica, refinada, de bom gosto e ornamental é na verdade "a voz do dono". Não se comprome­te nem suja as mãos. Dedica-se de preferência ao puro jogo for­mal que a ninguém incomoda ou contamina.

As condições de possibilidade de um juízo filosófico brasilei­ro se encontrariam na missão de demolir as condições subjetivas e objetivas da dependência, a consciência crítica voltada contra a introjeção do papel de "assim Dadores" que a condição de coloniza-

57. FERREIRA FILHO, João Antônio. "Um Apanhador de Dados". Depoimento a Nelson Blecher sobre o papel do repórter no jornalismo. Jornal Ex-, São Paulo, 8:9, dez., 1974.

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dos nos reservou. O crivo severo com relação ao passado: reler nossa história. Criar uma nova consciência com relação a nós mes­mos e com relação à consciência que se veio gerando no Ociden­te e da qual somos uma última expressão desfibrada e mambem­be. Saber que somos outra realidade, o que de pronto exige outra consciência, outros fins, interesses, preocupações. "Sendo a Filoso­fia uma atividade vital, inseparável da existência e dos problemas da vida, é necessário (para Cruz Costa) filosofar sobre o Brasil, vestindo as idéias com os músculos, o sangue, os nervos da realida­de presenciada e apreendida: explicar sua gênese, analisar a sua natureza, prever as suas diretrizes. Em suma, é preciso ligar a nos­sa atividade mental aos destinos de nossa história, porquanto 'pa­ra que o pensamento não seja fantasia sem proveito - como dizia el-rei D. Duarte - é mister que não perca contato com a história, com os problemas reais da vida'."58

É preciso inventar as condições de nosso futuro: nossas im­portâncias e urgências. Mas fora de todo contexto dependente, deixando vir à tona as virtualidades efetivamente nossas para que estas mesmas importâncias e urgências não se vejam novamente vítimas da Razão Ornamental. Para tanto, dar adeus ao mazom­bo que habita em nós. Resolvido nosso complexo de dependentes - desveladas suas condições internas e externas - , superar a cul­pa e a inferioridade. Conceder a nós mesmos o direito de ser o que somos, a nosso modo. Afinal, não estamos fazendo um pique­nique em Hampshire ou Saint-Germain. Aceitar que há uma dolo­rosa verdade no juízo segundo o qual somos "los macaquitos". E pior: macaquitos que julgam tão sem classe comer banana.

A condição prévia a qualquer Filosofia brasileira que não quei­ra se ver reduzida, como tem acontecido até hoje, à mera assimila­ção ornamental e dependente - úteis tão só a britharecos verbais diante de um povo adormecido - é fazer desabar as instalações sérias nas quais vivemos. Negar postiças importâncias e urgências providenciadas estranhamente e que não nos expressam, encobrin­do condições que poderiam liberar em nós um pensamento de fa-

58. VITA, Luís Washington. Op. cit, p. 81.

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to criador. Jamais esquecer-se nalgum sistema cômodo de pensar, em qualquer arquivo de primeiros socorros existenciais. Correr o risco de não saber coisa alguma, longe de qualquer certeza prévia. Pois o pensamento não é gerado pela certeza, mas pela dúvida. Urge ser o que somos - descobrir-se no Brasil, na América Lati­na. Sem um "outro" ao qual possamos nos agarrar. Só a solidão gera pensamento - só na tragédia nasce Filosofia. Mas que seja um pensamento comprometido, a sério, fora de toda Razão Orna­mental. Essencialmente negador.

Antes disso, qualquer Filosofia será, entre-nós, pura ingenuidade. Aprendamos duas coisas. Que nesta altura dos acontecimen­

tos um soco na mesa, violento e sonoro, é mais importante do que sabermos da validade dos juízos sintéticos a priori E que, do pon­to de vista de um pensar brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos en­sinar do que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a Filosofia, como o samba, não se aprende no colégio.

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Sugestões de atividades didáticas

Um título Cap. 1 1. Fazer uma sessão de apresentação/repre­sentação das melhores piadas que o grupo conhece. Em seguida analisar as relações entre os personagens; apontar as piadas crí­ticas e as alienantes. 2. Pesquisar sobre o Movimento Modernis­ta, Oswald de Andrade e Mário de Andra­de. Apresentar os resultados. 3. Comentar a frase do texto: "Gaba seu inigualável jeito piadístico, mas na hora das coisas 'culturais' mergulha num escafandro greco-romano". 4. Apontar formas de conformismo nos vá­rios campos da vida brasileira. 5. Elencar algumas obras dos autores cita­dos na página 12. 6. Montar painéis com reportagens e arti­gos sobre o caráter brasileiro. 7. Analisar as ilustrações do capítulo (o mesmo vale para os capítulos seguintes).

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112 Sugestões de atividades didáticas

A sério: a seriedade Cap. 2 1. Apontar pessoas ou atividades "sérias" e "a sério". 2. Entrevistar um artista, um filósofo sobre sua atividade e sobre o poder demolidor do pensamento crítico. 3. O que é erotizar o agir? 4. Analisar o conto "A hora e a vez de Au­gusto Matraga", de Guimarães Rosa, sobre a libertação da personalidade de uma pessoa. 5. Criar uma comédia, "a sério". Sugestão de título: "Viagem de um barnabé, que saiu do sério e rodou a baiana, a sério". 6. Comentar a frase de Nelson Rodrigues sobre o escanteio. 7. Ao dizer que "o Brasil não é um país sé­rio", o general De Gaulle, sem querer, fez um elogio ou uma crítica? 8. Comentar: " afinal, o peixe é que menos sabe da água". Cap. 3 1. Responda, a partir do texto: " Onde es­tou? Quem sou?" 2. Faça uma coleção de sambas-enredo, or­ganize uma audição e aponte as imagens que eles apresentam sobre o Brasil Ressal­tar a visão oficial e a visão alternativa. 3. Comentar a frase do poeta brasileiro: "Cansei de ser eterno, agora quero ser mo­derno". 4. Procurar a relação entre a arte de um conjunto de rock e a sua época. O que é sucesso e o que é impasse em arte?

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Sugestões de atividades didáticas Ili

5. Dar exemplos de situações (equipamen­tos, métodos, idéias, modas) estrangeiras mal adaptadas, entre-nós (uma boa fonte são revistas ilustradas antigas). 6. Citar casos de soluções originais para al­guns problemas brasileiros.

Filosofia e negação Cap. 4 1. Pesquisar artigos de jornal e revista sobre a Academia Brasileira de Letras e apontar as relações dessa instituição com o pensa­mento oficial. 2. Localizar em Machado de Assis o perso­nagem José Dias. Escrever um texto sobre a figura dos agregados na família patriarcal brasileira. 3. Comentar: "O verdadeiro intelectual e o verdadeiro artista são sempre negadores". 4. O que é ser clássico? O que é ser moder­no? Qual a relação entre as duas caracterís­ticas?

O mito da impar­cialidade: o ecletismo Cap. 5 1. O que é ecletismo? Vantagens e desvan­tagens. 2. O brasileiro é um ser cordial? 3. Sinais da dependência cultural do brasileiro. 4 . 0 Brasil é um país velho, jovem ou infantil? 5. Comentar: " O espírito da dúvida é o iní­cio e a essência do pensamento". Vanta­gens e desvantagens da dúvida como atitu­de mentaL

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114 Sugestões de atividades didáticas

6. Fazer um cartaz (com colagens, dese­nhos) criticando a frase: "Mais uma vez, a Europa se curva perante o Brasil".

O mito da concórdia: o jeito Cap. 6 1. Fazer uma pesquisa sobre as revoltas san­grentas na História brasileira, passada e re­cente. 2. Entrevistar um burocrata assumido, sobre o que ele considera a importância da buro­cracia. 3. Entrevistar uma vítima da burocracia. 4. A partir dos depoimentos, montar uma pequena peça teatral. 5. Apontar no cotidiano manifestações de jeitinho e de intolerância. Ver como elas aparecem na musica popular.

Originalidade e jeito Cap. 7 1. Fazer o levantamento das modas intelec­tuais que assolam o Brasil e dos resíduos que deixam. 2. Pesquisar sobre as idéias de Sylvio Rome­ro, Sérgio Buarque de Holanda. 3. Com o que os brasileiros se importam, profundamente?

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Sugestões de atividades didáticas 113 A Filosofia entre-nós Cap. 8

1. Diferença entre ser criativo e assimilativo. 2 Quais as principais correntes filosóficas entre-nós? 3. Entrevistar um filósofo brasileiro sobre suas influências e sua originalidade. 4. O brasileiro tem "cabeça filosófica"? 5. Comentar a relação pensamento-lingua-gem, levantada por Mário de Andrade na p. 65. Entrevistar um professor de Portu­guês sobre os preconceitos a respeito da nossa língua.

A Razão Ornamental Cap. 9 1. Aponte algumas pessoas "brilhantes" e outras "esforçadas", que você conheça. 2. Analise nas campanhas eleitorais o paren­tesco entre "brilhantismo" e demagogia. 3. Comparar o bacharel bem-falante com o sofista da Grécia Clássica. 4. Estudar os livros e artigos de Millôr Fer­nandes. Responda se ele é um filósofo, um humorista, ou ambos. Demonstrar sua con­clusão com trechos das obras.

Cap. 10 1. Pesquisar sobre Comte e o positivismo. 2. Comentar a opinião de Comte sobre o voto e os direitos humanos. 3. Comparar o positivismo e o ecletismo.

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116 Sugestões de atividades didáticas

A Razão Afirmativa 4. Fazer um levantamento das idéias de Benjamim Constant 5. Demonstrar a presença da afírmativida-de e a dúvida na educação, religião, nas re­lações cotidianas, no sistema de trabalho, política e cultura. 6. Comentar: "A Filosofia não é salvação, é perdição" e "Pensar dói".

Razão Dependente e negação Cap. 11 1. Além da Semana de 22, que outros movi­mentos culturais provocaram rompimento no Brasil? 2. Comentar: " O escravo traz o senhor den­tro de si". 3. O que é "jogar colonialmente certo"? 4. Apontar a presença do lucro imediato e o sucesso fácil e rápido na economia, políti­ca e cultura no Brasil 5. "O brasileiro sempre desejou ser europeu (ou norte-americano)" - levantar na músi­ca ou na poesia comentários a essa situação. 6. Qual a tarefa atual da filosofia no Brasil? 7. Produzir um texto (redação, peça, músi­ca, cartaz) que sintetize as principais idéias que você teve a partir das discussões deste livro.

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O autor Igual a todo mundo, nasci Mas, em 8/10/1944, na cidade de Blume­

nau, Maternidade Santa Isabel, num domingo às 15 horas, só eu e um amigo de infância, chamado Cacaes, com quem nunca mais cruzei na vi­da. Um ponto a menos para os horóscopos. Aos treze anos, por culpa de Mark Twain, disparei a ler livros, revistas, jornais, folhetos, cartazes, bulas de remédios, receitas de bolo, regulamentos de hotéis (desses que ficam pendurados atrás das portas). Desde então vivo com uma porção de livros por perto e quase me transformo em personagem de Borges. Aos 16 anos, resolvi que ia ser escritor e gastei o primeiro salário de au­xiliar de desenhista da prefeitura na compra de uma máquina de escre­ver usada. Nela e em mais três outras, até chegar ao micro que uso ho­je, escrevi contos, romances, artigos, reportagens, crônicas, o que resultou numa imensa montanha de papel e em nove livros publicados, além de uns três ou quatro inéditos. O livro Crítica da Razão Tupiniquim foi es­crito entre 1974 e 1977. Nele eu investi contra a hipocrisia intelectual, contra a falsa cultura, contra a filosofia desfibrada e mole qüe se prati­cada) no Brasil. Mas também investi contra mim mesmo, quer dizer, con­tra aquilo que o ensino, a escola e a universidade haviam feito de mim. Foi uma libertação emocional e intelectual pela qual agradeço até hoje. A minha esperança é que o mesmo aconteça com os leitores.

Roberto

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A Filor er vista e apresentada como algo c* esquisitices de gregos e ale­mães .o uma coleção de teorias que se Tf nas que, de tão profundos, são in' comum dos mortais. A preocu-P mérito, desta CRÍTICA DA RAZÃO ,razer estas questões para o solo 3 no dia-a-dia, fazendo da indaga-m questionamento que parte do co-. 1 0 que nos é próximo, das formas que .•a particular usa para nos construir , numanos. Darcy Ribeiro disse a propó-ablicação deste livro: "O Brasil volta, final-j, a filosofar." Preocupado em reconstruir o modo como nós brasileiros nos apropriamos da tra­dição européia, Roberto Gomes tem da Filosofia uma visão muito particular. Ela é uma crítica dos mecanismos por meio dos quais nos tornamos dig­nos ou indignos da Razão.

Livros desta coleção: PLATÃO - OUSAR A UTOPIA Jorge Cláudio Ribeiro

ARISTÓTELES - O EQUILÍBRIO DO SER Otaviano Pereira DESCARTES - A PAIXÃO PELA RAZÃO Mario Sérgio Cortella

ROUSSEAU - O BOM SELVAGEM Luiz R. Salinas Fortes MARX - TRANSFORMAR O MUNDO Moacir Gadotti

SARTRE - É PR0D3ID0 PROIBIR Fernando José de Almeida GANDHI - POLÍTICA DOS GESTOS POÉTICOS Rubem Alves

CRÍTICA DA RAZÃO TUPINIQUTM Roberto Gomes

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