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9 Críticas Ao Sistema : O Abolicionismo Penal. Priscila Formigheri Feldens INTRODUÇÃO O presente trabalho se constitui em uma monografia jurídica, destinada a servir como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito. O tema escolhido versa sobre o sistema penal brasileiro e a teoria do abolicionismo penal. O estudo em análise é bastante oportuno porque seus conteúdos fazem parte da ciência criminológica contemporânea e vêm sendo estudados em vários países do mundo. Ademais, questões como a fragilidade das teorias da pena, impunidade pelas autoridades, a estigmatização gerada por um processo criminal, a seletividade dos delitos, a corrupção dentro dos órgãos controladores, são argumentos abordados pela teoria abolicionista e que possibilitam a indagação sobre o número de benefícios e ônus do direito penal. Essa pesquisa analisa as idéias abolicionistas do direito penal, através de seu conceito, origem e desenvolvimento, seus principais defensores e opressores e respectivas sustentações. Com esse enfoque, disserta sobre os pontos positivos e negativos de seus fundamentos para, então, concluir se a teoria abolicionista se ajusta a realidade atual brasileira, ou se há outra política criminal mais adequada e o que esta sustenta. Ademais, a ciência penal é colocada em discussão através do movimento abolicionista, o qual defende algumas soluções extremas, o que propicia expor a todos que o direito penal não atinge a maioria de seus objetivos e, assim, estimular um senso crítico social que minimize a inclinação à vingança punitiva arraigada na consciência popular. Nessa esteira, a resposta sobre a possibilidade de aplicação das propostas abolicionistas, ou de outra mais adequada, é revelada no transcorrer do trabalho, em seus três capítulos. Inicialmente, apresenta-se o surgimento do controle social, desde o período do contrato social, em que se ergueu o ius puniendi, até os dias de hoje, manifestado pelo exercício do sistema penal. Destarte, são analisadas a definição, a estrutura e a função da

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Críticas Ao Sistema : O Abolicionismo Penal. Priscila Formigheri Feldens

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se constitui em uma monografia jurídica, destinada a servir como

requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito. O tema escolhido versa

sobre o sistema penal brasileiro e a teoria do abolicionismo penal. O estudo em análise é

bastante oportuno porque seus conteúdos fazem parte da ciência criminológica contemporânea

e vêm sendo estudados em vários países do mundo. Ademais, questões como a fragilidade das

teorias da pena, impunidade pelas autoridades, a estigmatização gerada por um processo

criminal, a seletividade dos delitos, a corrupção dentro dos órgãos controladores, são

argumentos abordados pela teoria abolicionista e que possibilitam a indagação sobre o número

de benefícios e ônus do direito penal.

Essa pesquisa analisa as idéias abolicionistas do direito penal, através de seu conceito,

origem e desenvolvimento, seus principais defensores e opressores e respectivas sustentações.

Com esse enfoque, disserta sobre os pontos positivos e negativos de seus fundamentos para,

então, concluir se a teoria abolicionista se ajusta a realidade atual brasileira, ou se há outra

política criminal mais adequada e o que esta sustenta. Ademais, a ciência penal é colocada em

discussão através do movimento abolicionista, o qual defende algumas soluções extremas, o

que propicia expor a todos que o direito penal não atinge a maioria de seus objetivos e, assim,

estimular um senso crítico social que minimize a inclinação à vingança punitiva arraigada na

consciência popular.

Nessa esteira, a resposta sobre a possibilidade de aplicação das propostas

abolicionistas, ou de outra mais adequada, é revelada no transcorrer do trabalho, em seus três

capítulos. Inicialmente, apresenta-se o surgimento do controle social, desde o período do

contrato social, em que se ergueu o ius puniendi, até os dias de hoje, manifestado pelo

exercício do sistema penal. Destarte, são analisadas a definição, a estrutura e a função da

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justiça criminal, sem perder de vista a abordagem do direito penal, o qual é considerado seu

núcleo central.

Posteriormente, num segundo capítulo, é exposto o ideário do abolicionismo penal nos

vieses de seus diferentes sustentadores e de seu mais conhecido crítico, Luigi Ferrajoli. Por

derradeiro, verifica-se a adequação da teoria em questão à realidade social do Brasil, bem

como a possível existência de outra doutrina mais ajustada.

O marco teórico deste estudo centra-se, principalmente, no pensamento de Louk

Hulsman, Eugenio Raúl Zaffaroni e Luigi Ferrajoli. Outrossim, o método de abordagem

utilizado para o desenvolvimento desta pesquisa é o método dialético, o qual analisa um

objeto (o sistema penal) em sua atividade contínua, tentando demonstrar o que é falso e

verdadeiro, através de debates, questionamentos e argumentos.

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1 O CONTROLE SOCIAL PENAL

Desde os tempos primitivos, no período paleolítico da pré-história1, havia conflitos

entre os seres humanos que viviam isolados e com o intuito único de sobrevivência. Tais

conflitos eram resolvidos diretamente entre as partes, de acordo com suas intuições, visto que

não possuíam regra alguma que regulasse suas relações. Assim, cabia às pessoas daquele

tempo a legitimidade para solucionar tais questões.

Como explica Chauí, para Thomas Hobbes (século XVII) e Jacques Rousseau (século

XVIII), essas condições configuravam o chamado “estado de natureza”, o qual era visto de

maneira um pouco distinta entre os dois pensadores. Hobbes defendia que o “estado de

natureza” era a maneira de viver isoladamente numa situação permanente de guerra, onde

predominava o medo da morte violenta. Dessa forma, como meio de defesa surgiram as armas

e iniciou-se a demarcação de territórios. Entretanto, tal atitude era inútil, pois não havia

garantias, e a única segurança era que o mais forte sempre vencia.2 Já Rousseau aduzia que

[...] em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas,

sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e

comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua generosa e

benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem

sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um

terreno e diz:“É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade

privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao

Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos. 3

Com o passar dos séculos, e a evolução humana, as pessoas começaram a sentir a

necessidade de acabar com essa exposição contínua à ameaças, como também, de melhor se

1 COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 13.

2 CHAUÍ, Marilena. Filosofia. 6 ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 399.

3 Idem.

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coordenarem entre si, diante da desagregação e da desorganização em que viviam, pois esses

fatores retardavam o seu desenvolvimento.

1.1 Controle Social

Foi a partir da idade dos metais4, ainda na época pré-histórica, que surgiu a civilização

como conseqüência de uma organização social de homens que fatigados

[...] de só viverem em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte,

cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil,

sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança. A

soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu

a soberania da nação; e aquele que ficou encarregado pelas leis como

depositário dessas liberdades e dos trabalhos da administração foi

proclamado o soberano do povo. 5

Nesse magistério, Rousseau e outros pensadores, no século XVIII, desenvolveram a

teoria do contrato social, sustentando que todos os cidadãos realizam um acordo com um

poder maior, o Estado, limitando parcela de suas liberdades e obedecendo a determinadas

normas estabelecidas em função do alcance de um escopo: o bem comum. Desse modo, a

concessão voluntária de parte da liberdade por cidadãos em situação de igualdade legitima o

contrato social e forma a chamada “vontade geral”, que deverá ser seguida e respeitada por

todos. A respeito disso, Foucault manifesta:

Ao nível dos princípios, essa nova estratégia é facilmente formulada na

teoria geral do contrato. Supõe-se que o cidadão tenha aceito de uma vez por

todas, com leis as da sociedade, também aquela que poderá puni-lo. O

criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal.Ele rompeu o

pacto, é portanto inimigo da sociedade inteira, [...].

Efetivamente a infração lança o indivíduo contra todo o corpo social; a

sociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele, para puní-lo. Luta

desigual: de um só lado todas as forças, todo o poder, todos os direitos. E

tem mesmo que ser assim, pois aí está representada a defesa de cada um. 6

4 COTRIM, Gilberto, op. cit. p. 16.

5 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003, p. 19.

6 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 19 ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 76.

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Todavia, o exercício da punição daqueles que descumprem o contrato social é

delegado ao Estado, que é o representante do povo e possui a responsabilidade de criar as leis,

de acordo com os anseios e com os princípios gerais da coletividade e, conseqüentemente, de

observar seu cumprimento, exercendo o chamado controle social.

Dentro de um paradigma sociológico, Lakatos afirma que o controle social conceitua-

se como a reação a uma conduta desviada através de suas sanções, que objetivam punir tal

desvio, impedir sua repetição e modificar as condições que o propiciaram.7 Essa reação se

intensifica na medida dos valores e dos princípios da coletividade controlada, sempre

direcionada à busca da solidariedade e do bem estar de seus componentes. Seguindo essa

linha, o jurista Sica afirma que

[...] pode-se dizer que existem dois fatores determinantes para a disciplina

do controle social. O primeiro, a fixação de valores tidos como consensuais,

que se sobrepõe à vontade individual, concretizando uma pressão sobre o

indivíduo para que tenha certos comportamentos e, principalmente, se

abstenha de outros. Essa determinação é a base do conceito de bem-estar

comum. O segundo, consectário do primeiro: a necessidade de garantir a

ordem contra os comportamentos desviantes.8

O controle possui total vinculação com a existência da vida social, pois ele surge a

partir da sociedade e para ela. Lakatos referencia que, na concepção do sociólogo Edward

Ross (autor da primeira obra sobre controle social), o homem já nasce com os instintos da

simpatia, da sociabilidade, do senso de justiça e do ressentimento aos maus tratos, o que o

torna apto a estabelecer um convívio equilibrado com os demais. Se não houvesse as

alterações complexas das sociedades, essa harmonia se tornaria mais fácil de ser conquistada.

Portanto, é nesse ponto que o controle social mostra-se necessário, e os recursos íntimos do

controle humano passam a ser substituídos por mecanismos artificiais como a lei, a opinião

pública, a crença, a religião, a sugestão social (tradição, convenções) a influência de certas

personalidades marcantes, a ilusão e a avaliação social.9

Nesse diapasão, verifica-se que os meios de controle social são plúrimos, não bastando

somente o seu exercício através do Estado. Assim, podem ser informais (internos), como o

exercício da própria consciência através de valores e de princípios pessoais desenvolvidos

7 LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 5 ed. São Paulo: Atlas, 1986, p. 239.

8 SICA. Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,

p. 28. 9 LAKATOS, Eva Maria, op. cit. p. 247.

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durante toda a vida, ou formais (externos), estabelecidos para a convivência social. Mais

especificamente, pode-se dizer que os

[...] primeiros são os processos pelos quais a sociedade busca educar o

indivíduo, desde a infância (família, escola, igreja etc.), interiorizando

valores e, em suma, formando uma consciência que impeça ou reprove a

prática de condutas que se desviem do padrão ético-social de

comportamentos. Já os externos são os mecanismos, em regra punitivos,

estabelecidos institucionalmente para reprimir e, em tese, prevenir e reprimir

atos atentórios às normas. Aqui se corporificam as instâncias formais de

controle, dentre as quais o sistema penal.

As instâncias formais atuam sempre a posteriori, ou seja, como reação à

desviação. Por isso o recuso àquelas (informais) há que ser valorizado,

devendo ter preferência de atuação, pois pela sua atuação -única e

exclusivamente- podem ser definidas as bases de consenso as quais deve

operar o sistema penal.10

Dentre as formas de sua efetivação, o controle social desenvolve-se com viés

orientador (positivo), quando é demonstrado como determinados cidadãos devem se portar, e

com intuito repressor (negativo), quando esses são censurados pelo descumprimento de

determinada instrução.11

Ele também ocorre de maneira institucional, através do Estado, com

a exigência do cumprimento das normas, e não-institucional, com os ensinamentos recebidos

diante da proliferação de princípios e de valores resultantes do simples convívio grupal. Como

agentes deste último se incluem a família, a escola, a igreja, o clube, os grupos econômicos,

políticos e qualquer outro agrupamento de pessoas que possuem ideais próprios a serem

seguidos.12

Assim, o controle social se efetua de acordo com o tamanho de cada grupo, com

as pessoas que nele se encontram, com os objetivos e com a intensidade de inter-relação das

mesmas. Além disso, varia conforme os instrumentos utilizados para seu exercício.

Ainda, cabe dizer que algumas classes privilegiadas, tanto econômica quanto

intelectualmente, utilizam-se de interesses e de discursos próprios para desenvolver um maior

controle sobre outras com menos privilégios. Uma amostra exorbitante disso é o poder

influenciador da mídia que, através da maneira pela qual transmite uma informação, consegue

induzir conclusões e modificar pensamentos. Neste sentido, os

10

SICA, Leonardo, op. cit. p. 29. 11

LAKATOS, Eva Maria, op. cit. p. 249. 12

Ibidem, p. 150.

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[...] habitantes do mundo pós-moderno já se acostumaram a apreender o real

através da intermediação midiática, já se acostumaram a trocar as

experiências direitas da realidade pelas experiências do espetáculo da

realidade, a trocar até mesmo sua identificação, sua comunicação e muitos de

seus afetos por vivências transmitidas e emoções formadas pela televisão,

pelas revistas e pelos jornais. 13

É por intermédio desse controle realizado pelos meios de comunicação que se

intensificam as exigências de outra instância de controle, a do sistema penal. Essa esfera é,

segundo Zaffaroni, “a parte do controle social que resulta institucionalizado em forma

punitiva e com discurso punitivo [...]”14

Com fulcro nesse discurso punitivo, a mídia promove a divulgação dos conflitos

penais repetidamente, de modo exacerbado e com fundo emocional, intensificando o terror e a

insegurança gerada pela violência com o intuito de elevar a audiência popular. Desse modo, a

“[...] força ideológica da enganosa publicidade do sistema penal cria a falsa crença que faz

com que o controle social, fundado na intervenção do sistema penal, apareça como única

forma de enfrentamento de situações negativas ou condutas conflituosas”.15

O sistema penal estabelece um controle sobre a sociedade através do Estado, que é o

responsável pela mantença da ordem em prol do bem-estar social. Quando as leis impostas

pelo Estado são violadas, cabe-lhe aplicar uma sanção, a pena, que, além de punir, objetiva

prevenir a prática de novos crimes pelo acusado e servir de exemplo aos outros cidadãos para

que também não o façam. É nessa seara que a mídia interfere com seu discurso emocional,

provocando a comoção social e apelando para o rigorismo das sanções com um controle mais

rígido pelos órgãos estatais, além de estimular estes a tomarem providências em que diversas

vezes não cabem a eles.

Nesse sentido, são as outras esferas de controle que devem se consolidar. Conforme

Queiroz “o Sistema Penal tem, dentro do controle social global, um papel secundário,

puramente confirmador de outras instâncias,”16

ou seja, caso a família, a escola, e as outras

13

KARAM, Maria Lúcia.Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso livre de

abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 77,78. 14

ZAFFARONI, José Henrique Pierangeli; Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4 ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 69. 15

KARAM, Maria Lúcia, op. cit. p 103. 16

QUEIROZ, Paulo. Eficientização do controle social não-penal , IBCCRIM. Disponível na internet:

<http://www.ibccrim.org.br..html> Acesso em: 08 ago. 2005.

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instituições sociais falharem ou não forem totalmente exploradas, o controle penal deve agir.

Nessa mesma direção, Queiroz defende que fundamental

[...] é privilegiar outras instâncias de controle social (família, escola,

informação, etc.), por meio sobretudo da democratização da prevenção e da

eficientização do controle administrativo, reservando a intervenção penal

para situações absolutamente irrenunciáveis, segundo os princípios de

adequação, lesividade, proporcionalidade, porque, definitivamente, o

controle da criminalidade tem, em verdade, pouco a ver com o controle

penal. 17

Entretanto, é flagrante que o controle social não ocorre desse modo, porque se realiza

por diversos âmbitos e em diferentes intensidades, tendo em vista a preferência de interesses e

a urgência do controle. Em conformidade, Zaffaroni e Pierangeli ressaltam que o

[...] controle social se vale, pois, desde meios mais ou menos “difusos” e

encobertos até meios específicos, como é o sistema penal (polícia, juízes,

agentes penitenciários, etc.). A enorme extensão e complexidade do

fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais ou menos

autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou

outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle

social institucionalizado ou explícito. 18

Enfim, é possível dizer que o controle social se manifesta através de diversas facetas

no cotidiano de todos os cidadãos, tanto por estímulos internos, como por instrumentos

externos, os quais muitas vezes inobservados, ocasionam determinadas punições aos membros

da sociedade. O controle social se demonstra mais eficiente e útil na medida em que se

valoriza o conjunto de suas esferas, priorizando aquelas com menos prejuízos às pessoas. Para

tanto, cabe aos cidadãos uma maior conscientização sobre as intenções de controle, bem como

uma mobilização a favor de políticas públicas para um maior direcionamento ao controle

informal, através de implementação de programas de apoio e de desenvolvimento para a

17

QUEIROZ, Paulo. Eficientização do controle social não-penal , IBCCRIM. Disponível na internet:

<http://www.ibccrim.org.br..html> Acesso em: 08 ago. 2005. 18

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 61,62.

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família, a escola, a igreja e outras instituições, assim se mostrará desnecessária a intervenção

formal em diversos casos.

1.2 Ius puniendi

Como explicado anteriormente, em certo momento de progressão da sociedade foi

concedido ao Estado, como manifestação de sua soberania, o encargo de exercer determinado

controle social. Para isso, criou normas com o propósito de proteger os interesses dos

cidadãos.

No entanto, verificada a possibilidade de a proteção normativa falhar, ou constatada a

não observância dos mandamentos legais por todos os integrantes da sociedade, foi outorgado

unicamente ao Estado o exercício de um poder-dever denominado ius puniendi. Este, ao

mesmo tempo em que é entendido como um direito, demonstra uma obrigação estatal de punir

o indivíduo que perturba a harmonia social ao não considerar o preceito das normas. Dessa

maneira, o direito de punir se exibe abstratamente com a instituição das leis ao prever uma

possível pena a ser empregada àqueles que as infrinjam. Entretanto, quando essa violação

legal se concretiza, cabe ao Estado o dever efetivo de aplicar a punição adequada ao

responsável transgressor.19

Conforme Mossin, o “dever concreto de punir do Estado decorre de sua própria

atividade política voltada ao interesse coletivo, ao equilíbrio societário que deve haver entre

os cidadãos”. 20

É nesse supedâneo que se alicerça a legitimação do poder estatal em limitar o

jus libertatis dos cidadãos, à medida que isso seja necessário para conservar o bem estar

social. “Desse modo, o estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em

conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringi-la com inflição de pena”. 21

É importante acentuar, entretanto, que o dever-poder do Estado de diminuir a liberdade

de agir das pessoas também possui suas restrições. Foi a partir do desenvolvimento das

doutrinas liberais do iluminismo no século XVIII, resultante na queda dos governos

absolutistas, que passaram a ser desenvolvidas idéias de contenção do poder estatal, como

explica Zeidan:

19

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 6. 20

MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. vol. 1. São Paulo: Atlas, 1998, p. 75. 21

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op.cit. p. 6.

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Na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou

o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir o ordenamento estatal

aparece, de início, na moderna teoria constitucional como maior inimigo da

liberdade, levando efetivamente a reconstituição da autoridade, em bases

completamente novas que dessem ao indivíduo, com a Carta de seus direitos

fundamentais, ideologia fundada em valores rígidos e absolutos. 22

De acordo com Zeidan, a eclosão da Revolução Francesa, com a intensa propagação de

seu lema “liberdade, fraternidade e igualdade”, foi um marco histórico para a garantia dos

direitos dos cidadãos frente a eles mesmos e ao Estado.23

Ademais, nesse mesmo período, com

a Declaração dos Direitos do Homem, em 1791, muitos princípios defensivos da atuação

limitada do poder estatal foram expressos, entre eles o princípio da legalidade, em seus artigos

7º e 8º.

Anteriormente, o pensador marquês de Beccaria já explanava o princípio da legalidade

em seu livro Dos delitos e das penas (1764) ao declarar que “[...] apenas as leis podem indicar

as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa

do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social”.24

Hodiernamente, o referido princípio se faz presente na atual Constituição Federal

brasileira através de três diferentes acepções: a reserva legal, a taxatividade e a

irretroatividade. A reserva legal, estabelecida expressamente no artigo 5º, inciso XXXIX, da

Constituição Federal, sustenta-se por meio da máxima latina nullum crimen, nulla poena sine

lege, ou seja, não há crime, nem pena, sem lei. Melhor delineando, deve-se dizer que existe a

exigência concreta de que, para um fato ser considerado crime e serem aplicadas medidas

sancionadoras ao seu autor, haja uma lei, elaborada anteriormente, que determine ser o

referido fato um ilícito penal. Dessa forma, tal ideário afirma-se como uma forma de

resguardo humano diante de possíveis arbitrariedades daqueles que detêm o poder. Com esse

sentir, Luisi ensina que ao

22

ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da

potestade punitiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 36. 23

Ibidem, p. 143. 24

BECCARIA, Cesare, op. cit. p. 20.

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[...] reiterar na Constituição de 1988 o postulado da Reserva Legal, o

constituinte brasileiro não somente manteve um princípio já secularmente

incorporado ao direito pátrio, mas se aliou às Constituições e ao Código

Penais de quase totalidade das Nações já que o mencionado princípio é uma

essencial garantia a liberdade e de objetiva justiça.25

Quanto à concepção da taxatividade derivada do princípio da legalidade, pode-se

entendê-la como a necessidade de a lei ser clara e determinada, não passível de ambigüidades,

de compreensão ampla, ou então, de espaço aberto para vastas interpretações. Diante disso,

Toledo explica que

A exigência da lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar

margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos

incriminadores genéricos, vazios. Para que a lei penal possa desempenhar

função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser

facilmente acessível a todos, não só aos juristas.26

Por sua vez, o postulado da irretroatividade legal, capitulado no artigo 5º inciso XL da

Constituição Federal, exprime a impossibilidade de a lei retroagir no tempo, exceto para

beneficiar o réu. Dessa maneira, se a lei que vier a viger for mais benéfica ao acusado, esta

será aplicada ao caso, mesmo que tenha sido anterior à lei. Entretanto, se a nova lei puder

causar algum dano ao agente delitivo, não será empregada. É possível, portanto, afirmar que a

[...] regra da retroatividade benigna, ao projetar seus efeitos para o passado,

acaba atuando como fator de equalização das diferenças, de tal modo que o

indivíduo condenado sob o império da lei mais gravosa possa vir também a

se beneficiar dos efeitos da lei posterior, instrumentalizadora da nova visão

da sociedade sobre o mesmo fato.27

25

LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 23, 24. 26

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 29. 27

BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria dos

Advogados, 2000, p. 45.

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20

Diante dos três preceitos expostos, vale salientar que o princípio da legalidade se

realiza ao determinar a fixação normativa do conteúdo penal, a forma e o tempo em que ele

atua. Nesse proceder, é através da lei que cabe ao Estado o poder de instituir as condutas

consideradas como proibidas e prejudiciais à vida social e as suas respectivas penas. No

entanto, isso se faz com devidas restrições de como tais normas devem funcionar, para

garantir proteção àqueles que se subjugam a elas.

Como o princípio da legalidade, há outros princípios expressos ou implícitos na

Constituição Federal que servem como limitadores do ius puniendi e que devem ser

examinados. Entre esses, primeiramente, é oportuno destacar o princípio da intervenção

mínima, o qual defende que a atividade penal deve proceder somente subsidiariamente, ou

seja, ser utilizada em última hipótese para a resolução dos conflitos e não protegendo de forma

absoluta os interesses sociais. Destarte, deve-se dar preferência legislativa a outras esferas de

controle, que não sejam a penal, com o intuito de se precaver dos possíveis prejuízos que a

interferência rígida do sistema criminal possa causar.28

Não obstante, tal atuação, entendida

como rígida ou severa, não é descartada, pois é utilizada na ocorrência de lesões graves a bens

jurídicos de grande relevância à sociedade. Ainda, Boschi destaca:

O princípio da intervenção mínima e fragmentária do direito penal, na

concepção garantista, traduz, portanto, proposição substitutiva do Estado

Penal por um Estado (mais) Social, de modo a que o direito penal, como

soldado de reserva, só seja convocado a atuar como derradeira alternativa. 29

O princípio da humanidade, encontrado em vários artigos da Constituição Federal,

também se apresenta como princípio constitucional limitador e delimita, no plano penal, a

aplicação desmedida da pena sem considerar os valores basilares da dignidade humana. Até

porque, como expressa Zeidan, é

[...] inadmissível que, num Estado Democrático de Direito, ao exercitar a

potestade punitiva, submeta as pessoas a tratamento desumano ou

degradante. Se o Estado consagra o princípio da humanização como Direito

Fundamental, não o pode, mesmo no exercício do ius puniendi, transgredi-lo

em desfavor de seu povo.30

28

ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 64. 29

BOSCHI, José Antonio Paganella, op.cit p. 50. 30

ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 71.

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21

O princípio da culpabilidade é outro que deve ser mencionado, pois aduz que ninguém

será incriminado sem ser culpado. Desse modo, a apuração da culpa na conduta do agente da

conduta danosa é pressuposto indisponível para penalização daquele. Nesse propósito, o

[...] princípio da culpabilidade deve ser entendido, em primeiro lugar, como

repúdio a qualquer espécie de responsabilidade pelo resultado, ou

responsabilidade objetiva. Mas deve igualmente ser entendido como

exigência de que a pena não seja infligida senão quando a conduta do sujeito,

mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável.31

Por sua vez, o princípio da proporcionalidade, apesar de ser utilizado em diversas áreas

legais, é cabível de destaque na esfera penal. A partir dele, exige-se a existência de equilíbrio

entre a gravidade do delito praticado pelo delinqüente e a pena a ele aplicada. De acordo com

Côrrea Júnior e Shecaira, para uma sanção ser determinada devem ser observados o bem

jurídico protegido, os meios utilizados para a penalização e os fins alcançados ou

objetivados.32

Mais especificadamente, os autores argumentam:

Em matéria penal, o princípio da proporcionalidade deve ser observado em

três momentos distintos, ou seja, no momento legislativo de cominação da

sanção penal, no momento judicial de aplicação da pena em concreto e

também no momento da execução da pena. No primeiro momento, o

legislador deve considerar a conduta que está tipificando e cominar uma

pena proporcional à gravidade do delito. Por outro lado, no segundo

momento, o juiz deve considerar a conduta efetivamente praticada pelo

agente e aplicar uma pena proporcional à gravidade objetiva do fato

praticado. 33

Com outra orientação, o princípio do fato é contemplado implicitamente em alguns

dispositivos constitucionais, ao determinar que qualquer indivíduo se sujeita a uma punição

conforme o crime cometido, não por fatores pessoais e íntimos, como a maneira de pensar ou

viver. Na posição de Zeidan, o “[...] princípio do fato pode ser violado através de duas formas:

31

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 103. 32

CORRÊA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Teorias da pena: finalidades, direito positivo,

jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 89.

p. 89. 33

Idem.

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22

pela incriminação direta de atitudes internas ou pela punição de fatos carentes de lesividade,

utilizados como mero sintoma de ânimo”.34

Por fim, compete atentar-se ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos,

segundo o qual, como a própria denominação demonstra, o sistema penal deve ser acionado

somente para o amparo de bens jurídicos protegidos legalmente e, quando atingidos, causem

sérios danos aos cidadãos. “Esse princípio impede que o Direito Penal sirva à proteção de todo

e qualquer tipo de interesse, de estratégias ou de convicções morais, cuja lesão careceria de

uma autêntica repercussão negativa na sociedade”.35

Diante do exposto, cabe notar que o Estado detém soberanamente o poder-dever de

punir os integrantes da vida social, desfrutando dos instrumentos normativos para tal

finalidade. Todavia, mais evidente ainda é o fato de que é das próprias normas que emergem

os limites do ius puniendi, o que revela a existência de garantias aos cidadãos perante o Estado

e que “[...] o poder de um Estado social e democrático de Direito não é um poder absoluto,

mas submetido a limites”. 36

1.3 Sistema penal

A palavra “sistema” pode ser conceituada como um complexo de instrumentos

interligados e ordenados, que se dirigem a um determinado fim, ou como melhor explica

Dotti:

O vocábulo sistema tem origem grega (systema) e significa reunião,

conjunto, método, organização, totalidade. Pode-se definir sistema como um

conjunto de dois ou mais elementos que satisfazem três condições: a) o

comportamento de cada elemento afeta o comportamento do todo; b) o

comportamento dos elementos e dos seus efeitos no todo são

interdependentes; c) nenhum dos elementos tem um efeito autônomo. É

possível, então, falar-se em sistema de Governo, sistema econômico, sistema

monetário, sistema de trabalho, sistema métrico, etc., bem como de um

sistema jurídico que é instituído para regular as atividades dos indivíduos, da

sociedade e do Estado em suas relações determinadas pelo Direito. Dentro do

sistema jurídico se estabelecem os vários regimes jurídicos e se fundam

várias instituições legais. 37

34

ZEIDAN, Rogério, op. cit. p. 60. 35

Ibidem, p. 61. 36

Ibidem, p. 55. 37

DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral.Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 4.

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23

Dentre os sistemas jurídicos, faz-se presente o sistema penal, que se diferencia dos

demais por fazer uso do ius puniendi para atuar e ser entendido como um conjunto de meios

relacionados, inclinados à análise do fenômeno delitivo e de seus agentes, à criação de normas

penais e ao cumprimento destas. Outrossim, atua através de seus elementos punitivos impondo

normas de conduta. Se as mesmas não são obedecidas, configura-se a existência de um delito,

com o que se inicia o chamado processo de criminalização. Nessa linha de raciocínio,

Zaffaroni e Pierangeli referem que

[...] chamamos de “sistema penal” ao controle social punitivo

institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou

supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma

pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei, que

institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os

casos e condições para esta atuação.38

Dessa forma, o sistema penal utiliza diferentes setores para exercer suas atividades e,

como explica Bianchini, é abrangido por agentes de criação (Legislativo), de aplicação

(Judiciário e aparelhos policiais) e de execução, além dos cidadãos, que também são partes

atuantes e interferem nos demais agentes citados.39

Sabe-se que as “[...] funções típicas do

Poder Legislativo são legislar e fiscalizar,”40

mas, especificadamente no direito penal, cabe-

lhe a elaboração de normas tipificadoras das condutas delitivas, como também daquelas

responsáveis pela sua prevenção, pela sua punição e pela sua persecução. No concernente aos

agentes de aplicação, cabem aos órgãos policiais impor as devidas limitações aos bens

jurídicos individuais (polícia administrativa), prevenir a prática delitiva (polícia de segurança)

e investigar e apurar os delitos buscando seus responsáveis (polícia civil).41

De outro modo,

“[...] cumpre aos juízes e tribunais declarar o delito e determinar a pena proporcional aplicável

[...].”42

Ainda nessa mesma categoria, deve-se salientar a participação do Ministério Público,

o qual defende os interesses da sociedade, sendo fiscal da lei e pólo ativo em várias ações

38

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op.cit. p. 70. 39

BIANCHINI, Alice. A seletividade do controle penal. Revista IBCCRIM, São Paulo, ano 8, n. 30, abr/jun,

2000 , p. 60. 40

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 361. 41

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. op.cit. p. 58,59. 42

LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen

Júris, 2003, p. 7.

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24

penais.43

Finalmente, aos órgãos de execução toca o cumprimento da decisão judicial. Esse

setor constitui-se por meio das instituições carcerárias e do Judiciário, que fiscaliza o

cumprimento das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos.

Cada uma dessas agências penais é parcela indisponível para o funcionamento

coordenado do sistema penal, as quais pressupõem uma organização entre si de forma

ordenada e interligada, com auxílio recíproco para todas atingirem seus fins. Em

contrapartida, Zaffaroni e Pierangeli declaram:

O complicado jogo de identidades artificiais, criadas pelo próprio exercício

do poder do sistema penal, introduz antagonismos entre os operadores das

diferentes agências do poder. Estes antagonismos provocam a imputação

recíproca de que aquilo que se considera falhas conjunturais do sistema

penal, na realidade são características estruturais dos mesmos.

Estas imputações recíprocas provocam uma “compartimentalização” das

agências do sistema penal, já que cada um deve defender seu próprio

exercício de poder frente às outras. Ao encastelar-se para defender seu poder,

cada agência o exerce com absoluta indiferença - e até desconhecimento ou

ignorância - em relação às restantes e, muito mais ainda, em relação ao

resultado final da operacionalidade do conjunto, sobre o qual não tem sequer

a possibilidade de se informar.

Desta forma, não é correto referir-se a um “sistema penal” quando, em

realidade, trata-se de um conjunto heterogêneo de agências

compartimentalizadas, razão pela qual usamos a expressão apenas por sua

consagração técnica. Na realidade, por “sistema penal” entendemos

simplesmente a soma dos exercícios de poder de todas as agências que

operam independentemente e, de modo algum, aquilo que a palavra

“sistema” quer assinalar no terreno da biologia ou em outros análogos. 44

De qualquer modo, presente ou não uma interdependência entre os setores penais,

todos se consolidam por meio de um mesmo núcleo denominado “direito penal”, refletido

como um sistema normativo45

que se insere dentro do sistema penal como base indissolúvel.

43

Ver artigo 129 da Constituição Federal Brasileira. 44

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 144. 45

Norberto Bobbio, em sua obra Teoria do ordenamento jurídico (p.77/80, 1999) explica três diversos

fundamentos históricos e filosóficos para um conjunto de normas ser denominado como sistema. No primeiro,

defende-se que a organização sistêmica das normas deve-se à constatação que todas elas resultam de princípios

gerais, os quais são postulados de derivação.O segundo fundamento é sustentado através de um processo

indutivo, em que se constroem conceitos sempre mais gerais a partir do conteúdo de simples normas e, assim

ocorrendo, o ordenamento do material jurídico.Por fim, a terceira argumentação apóia-se na incompatibilidade

das normas, ou seja, devem ser compatíveis, demonstrando, assim, um certo relacionamento entre elas, o qual

não possibilitará qualquer norma desarmônica.

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25

Tal importância se explica diante da análise de que inexistindo o crime, o qual é oriundo do

direito penal, não subsiste o sistema penal, pois este perde sua razão de ser.

O delito existe a partir do momento em que determinado ato é cometido em desacordo

com ordenamento penal, produzindo a realização de um tipo penal, que consiste na “[...]

descrição abstrata de um fato real que a lei proíbe [...]”.46

O intuito de tal vedação é a proteção

de bens de intensa proeminência individual e social, como a vida, a liberdade, a intimidade, a

integridade física e vários outros.

Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli o “[...] tipo penal é um instrumento legal,

logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a

individualização de condutas humanas penalmente relevantes (por estarem penalmente

proibidas)”.47

Nesse sentido, os tipos penais são constituídos através da atividade legislativa

por meio de normas incriminadoras, originando, assim, junto a outras categorias de leis, o

direito penal. Nessa linha, Bitencourt acrescenta que o

[...] Direito Penal apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que

tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas

sanções correspondentes - penas e medidas de segurança. Esse conjunto de

normas e princípios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornar

possível a convivência humana, ganhando aplicação prática nos casos

ocorrentes, observando rigorosos princípios de justiça.48

Já, no entendimento de Dotti, o direito penal é um complexo de leis que, por meio de

interpretação do Estado, expressa o interesse público ao prever e ao estabelecer as condutas

proibidas e suas sanções e ao empregar normas para manter o convívio em sociedade e bens

jurídicos fundamentais resguardados.49

Ademais, o direito penal pode ser percebido por duas

direções. Objetivamente, reputa-se como a totalidade de regras e de princípios de direito

público, responsáveis pela regulação dos comportamentos delituosos. Por um viés subjetivo,

pode ser verificado como o próprio direito de punir (ius puniendi). 50

46

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. vol. 1. 3 ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2002, p. 289. 47

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. 443. 48

BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral. vol. 1. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2000,

p. 2. 49

DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 48. 50

ZEIDAN, Rogério, op cit. p. 51.

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26

O direito penal possui características peculiares e devidas ao seu objeto, função,

âmbito de atuação, entre outros fatores. Explicitamente, é considerado normativo por utilizar

normas para realizar suas atividades e através daquelas, existir. Também, “[...] é direito

público por excelência, posto que os objetos da tutela jurídica são os bens que dizem respeito

à comunidade organizada em Estado. A sanção penal é aplicada pelos órgãos estatais e sempre

no interesse coletivo”.51

Mostra-se autônomo dos demais ramos jurídicos ao reger-se por

princípios e por normas próprias.

Quanto a um traço constitutivo, Zaffaroni explica que tal característica é excepcional

no direito penal, que contribui para a criação da antijuridicidade somente em alguns casos,

tendo manifestado, em sua maior parte, seu caráter sancionador.52

Em contraponto, Bitencourt

defende que

[...] é preciso reconhecer a natureza primária e constitutiva do Direito Penal-

e não simplesmente acessória-, pois protege bens e interesses não protegidos

por outros ramos do Direito, e, mesmo, quando tutela bens já cobertos pela

proteção de outras áreas do ordenamento jurídico, ainda assim, o faz de

forma peculiar, dando-lhes nova feição e com distinta valoração. 53

As feições sancionadora e coercitiva do direito Penal manifestam-se pelo emprego de

sanções (penas e medidas de segurança) para a prevenção e repressão de atos que

desobedeçam às leis penais. Outrossim, Zaffaroni e Pierangeli destacam que a forma pela qual

o direito penal provê a segurança jurídica, através da coerção penal, diferencia dos demais

ramos.54

É nesse sentido, da sanção e da coerção, que o caráter preventivo do direito penal

apresenta-se, pois “[...] antes de punir o infrator da ordem jurídico-penal, procura motivá-lo

para que dela não se afaste, estabelecendo normas proibitivas e cominando as sanções

respectivas, visando evitar a prática do crime”.55

Por meio dessas últimas características, referencia-se a grande valia atribuída à pena

para a realização dos encargos penais. Tal importância se evidencia também na constatação de

51

DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 50. 52

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit. p. 102. 53

BITENCOURT, César Roberto, op. cit. p. 62. 54

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique, op. cit p. 100. 55

BITENCOURT, César Roberto, op. cit. p. 4.

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27

que “[...] todos os mecanismos de atuação do sistema penal confluem para a imposição da

pena, meio pelo qual o sistema efetivamente se concretiza”.56

A pena é um instrumento peculiar do sistema penal utilizada para o controle social, o

que se realiza por meio das funções conferidas àquela. Na legislação brasileira, tais funções

podem ser verificadas no artigo 59 do Código Penal57

, ao estabelecer que a pena, sua

quantidade, seu regime e possível substituição por outra espécie, serão aplicadas conforme

seja necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime.

Os encargos atribuídos à pena de reprovar e de prevenir o delito se originaram de

diferentes teorias. A primeira é a chamada “teoria absoluta ou retribucionista”, que teve como

propulsor o filósofo Emmanuel Kant, o qual sustentava

[...] que a aplicação da pena constituía-se em um imperativo categórico,

resumindo sua posição retribucionista (retribuição moral) da seguinte forma:

caso um Estado fosse dissolvido voluntariamente, dever-se-ia antes executar o

último assassino que estivesse no cárcere, a fim de que sua culpabilidade não

recaísse sobre todo o povo que deixou de exigir a sanção. Se assim não

procedesse o povo, poderia então ser considerado partícipe da lesão pública

da justiça.58

Seguindo a mesma linha, Hegel posiciona-se afirmando que a pena é resultado jurídico

e necessário do crime, e dialeticamente é a negação da negação do direito, como instrumento

restaurador da ordem atingida.59

Desse modo, é a partir desses posicionamentos que a teoria

absoluta passa a ser desenvolvida e, assim, entendida como aquela que

56

SICA, Leonardo, op. cit. p. 32. 57

Art. 59. “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos

motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,

conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I- as penas aplicáveis dentre as

cominadas; II- a quantidade da pena aplicável, dentro dos limites previstos; III- o regime inicial de cumprimento

da pena privativa de liberdade; IV- a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de

pena se cabível.” 58

CORRÊA JUNIOR, Alceu . SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p.130. 59

SICA, Leonardo, op. cit. p. 57.

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[...] atribui à pena um caráter retributivo, ou seja, a sanção penal restaura a

ordem atingida pelo delito. Essa repristinação, pretendida pelos adeptos da

teoria absoluta, ocorre com a imposição de um mal, isto é, uma restrição a

um bem jurídico daquele que violou a norma. Com efeito, a teoria absoluta

encontra na retribuição justa não só a justificativa para a pena (legitimação

da intervenção penal), mas também a garantia de sua existência e o

esgotamento de seu conteúdo. Assim todos os demais efeitos (intimidação,

correção, supressão do meio social) não guardariam qualquer relação com a

natureza da pena.60

Sucintamente, a posição absoluta da pena pretende retribuir o dano causado a bem

jurídico penalmente protegido, através de um castigo. Afinal, como alega Sica, é difícil não

haver o entender de pena como castigo, visto que tal pensamento está arraigado à idéia da

correspondência de um mal por outro, demonstrando uma reação irracional do homem que

perdura há anos, acompanhando a história da pena. 61

Em desconformidade com esse raciocínio, alguns estudiosos passam a analisar

diversamente as finalidades providas da pena. Ainda como Sica explica, foi através de Ferri,

Lombroso e Garófalo, que compunham a Escola Positiva e se direcionavam mais

intensamente ao estudo do criminoso do que ao delito em si, que foi impulsionada a idéia de

tratar e de neutralizar os condenados através da aplicação da pena.62

Nesta perspectiva, a pena

passou a ter o encargo de prevenção anteriormente citado, originando a teoria relativa ou

prevencionista da pena, que se ocupa desta para prevenir que os membros da sociedade

cometam crimes como os delinqüentes apenados e que esses, por sua vez, não incidam no

mesmo erro novamente. Nessa esteira, Toledo traduz as idéias relativas afirmando que

“[...] por meio de cominação de penas, para o comportamento tipificado

como ilícito penal, visa o legislador atingir o sentimento de temor

(intimidação) ou o sentimento ético das pessoas, a fim de que seja evitada a

conduta proibida (prevenção geral). Falhando essa ameaça, ou esse apelo,

transforma-se a pena abstratamente cominada, com a sentença criminal, em

realidade concreta, e passa, na fase de execução, atuar sobre a pessoa do

condenado, ensejando sua possível emenda efetiva neutralização (prevenção

especial).”63

60

CORRÊA JUNIOR,Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 130. 61

SICA, Leonardo, op. cit. p. 57. 62

Ibidem, p. 59. 63

TOLEDO, Francisco de Assis, op.cit. p. 3.

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No concernente à primeira espécie de prevenção penal, denominada como “geral”, são

constatáveis duas modalidades prevencionistas: uma negativa e a outra positiva. De um lado, a

prevenção negativa objetiva que as pessoas se omitam de se comportar ilicitamente ao

conhecerem suas conseqüências, ou como ensina Boschi, a

[...] punição serviria também como bom exemplo para que os outros não

sigam os mesmos passos do criminoso. Desse modo, ainda na base da teoria,

castiga-se o criminoso para que a sociedade permaneça em estado de alerta,

reforce o sentimento de confiança no direito e, ao mesmo tempo, também

disponha de uma boa defesa contra o criminoso e crime.64

De outro lado, a concepção positiva ou integradora de prevenção geral pretende

relembrar o dever de obediência às normas impostas pelo Estado e reforçar a possibilidade de

alcance da justiça. Além disso, possui duas linhas de orientação, conceituadas como

fundamentadora e limitadora.

A perspectiva fundamentadora alega que a pena exerce uma função de amparo a

valores éticos que devem ser mantidos na vida social. Quando as normas são violadas, tal

objetivo demonstra-se não atingido. Desse modo, a pena direciona-se ao estímulo das

condutas em conformidade com as leis e com os princípios. Bitencourt refere em destaque

Güinter Jakobs65

como um dos representantes dessa linha teórica, entretanto explica que em

sua formulação, Jakobs não acredita que se intente a proteção de valores ou de bens jurídicos

por meio da prevenção penal.66

Em relação à função limitadora da prevenção geral positiva, é

defendido que a penalização deve ocorrer de forma limitada. Tal limite é estabelecido por

princípios protetivos, que devem ser seguidos e servirem como orientação na prevenção

através da pena.

No tocante à segunda espécie de prevenção, qualificada como “especial”, menciona-se

o ensejo de impedir que o agente de um crime reitere tal prática. Shecaira e Corrêa Júnior

ensinam que atualmente, “[...] também se divide a prevenção especial em dois sentidos, ou

seja, um negativo (neutralização pela prisão) e outro positivo (reinserção social)”. 67

Nesse

sentido, tem-se verificado que enquanto os delinqüentes são mantidos no cárcere, a

64

BOSCHI, José Antonio Paganella, op. cit. p. 113. 65

Sobre a linha teórica deste autor, vide Um novo sistema de direito penal: considerações sobre a teoria de

Güinter Jakobs, escrito por Enrique Peñaranda Ramos, Carlos Suárez Gonzáles e Manuel Cancio Meliá,

traduzido por André Luiz Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri. São Paulo: Manole, 2003. 66

BITENCOURT, Cézar Roberto, op.cit. p. 86. 67

CORRÊA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 133.

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30

neutralização destes acontece, pois, nesse período não praticam delitos na sociedade e nem

causam danos a seus membros. Entretanto, é inegável que, por intermédio da pena, deve-se

reeducar o condenado com a pretensão de reintegrá-lo futuramente na vida social, através de

um processo de ressocialização, e, assim, impedi-lo de incidir em novos crimes. Essa posição

se evidencia na legislação penal brasileira através do artigo 1º da Lei de Execução Penal.68

Ademais, é considerável referir também que, diante das teorias expostas, há ainda

aqueles que abrigam as teses de retribuição e de prevenção concomitantemente, as quais são

nomeadas como ecléticas. Em consonância a isso, Boschi relata que, no viés dessa teoria

mista, além desse binômio de retribuir e de prevenir, a pena tem como principal missão

defender a sociedade e, secundariamente, reinserir o criminoso na sociedade sem danos a

ele.69

Em suma, é possível averiguar que o sistema penal existe com a pretensão de amparar

bens jurídicos de intensa importância para as relações em sociedade. Mostra-se como uma

expressão do controle social ao servir-se do direito de punir do Estado para desempenhar suas

funções através da pena, a qual, fundamentada por diferentes feições de retribuição e

prevenção, é atribuída aos indivíduos que descumprem os preceitos comportamentais

impostos pelas normas do direito penal. Este, além de definir fatos tipificados como crime e

suas respectivas penas, é integrado por princípios orientadores, que também são

indispensáveis à vida social e, principalmente, à garantia do direito de liberdade dos cidadãos

frente ao Estado. Apesar disso, cabe analisar se tais princípios são realmente verificados e se

as funções de controle penal realmente se efetivam.

68

Art 1º. “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e

proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” 69

BOSCHI, José Antonio Paganella, op. cit. p. 128.

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31

2 A TEORIA ABOLICIONISTA

Como visto no capítulo anterior, o sistema penal possui características peculiares, as

quais são definidas pela forma como se organiza, pelos instrumentos que utiliza para suas

atividades, pelos preceitos que o orientam e pelo fim que pretende atingir. Entretanto, são

essas mesmas características que, a partir da eclosão do movimento iluminista (século

XVIII)70

, passam a ser o alvo de críticas por vários pensadores, entre eles Beccaria, que,

com sua obra Dos delitos e das penas “desenvolveu as mais variadas frentes de crítica ao

sistema penal daquele tempo[...]”71

. Ao longo dos anos, várias linhas teóricas foram

desenvolvidas, demonstrando o entendimento de doutrinadores sobre a situação da justiça

criminal em diferentes tempos.

Entretanto, faz-se mister afirmar que duas correntes político-criminais destacaram-se

nas últimas décadas ao apontarem a deslegitimação do sistema penal: o direito penal mínimo e

o abolicionismo penal. O direito penal mínimo recusa a legitimidade do sistema penal atual,

propondo a sua substituição por outro sistema criminal de interferência mínima. De outro

ângulo, a teoria abolicionista sustenta a ilegitimidade do sistema penal hodierno, como

também de qualquer outro futuro, postulando por instâncias informais de solução de

conflitos.72

Desse modo, resta evidente que a teoria abolicionista penal se apresenta como a

proposta de maior radicalismo acerca do sistema penal.

De acordo com Garcia e Molina, “[...] desde o final dos anos 60, surgiram nos países

anglo-saxônicos movimentos de opinião favoráveis à busca de vias alternativas ao sistema

legal (diversion), isto é, instâncias não-oficiais e mecanismos informais que possam resolver

70

DOTTI, René Ariel. op. cit, p. 143. 71

Ibidem, p. 144. 72

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed.

Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 89.

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32

com eficácia e menor custo os conflitos.”73

Com esse pensamento, com o passar dos anos, o

movimento abolicionista firmou-se e “[...] organiza duas vezes por ano, desde 1983, uma

Conferência internacional, através de um organismo especialmente constituído para tratar do

assunto: a Conferência Internacional sobre Abolição Penal”74

(ICOPA). Nesse evento, em sua

sexta edição, em 1993, o doutrinador holandês Louk Hulsman apresentou uma síntese de sua

posição abolicionista, que veio a ser, posteriormente, publicada em seu livro Penas perdidas.75

2.1 Hulsman e as Penas perdidas

Através do sua obra Penas perdidas76

, Louk Hulsman, juntamente com Jacqueline

Bernat de Celis, expõe vários princípios e fundamentos abolicionistas. Primeiramente, para

ele, não “[...] existe uma realidade ontológica do crime”,77

ou seja, não há uma real existência

do delito, pois os fatos que, para o direito penal, são denominados “crime”, na perspectiva

abolicionista, são eventos criminalizáveis, ou seja, acontecimentos que por meio das leis e da

justiça criminal podem vir a se tornar crimes. Esses mesmos eventos criminalizáveis se, por

um lado, se mostram um problema para algumas pessoas, não são considerados de tal forma

para outras, tendo como única semelhança entre eles a atuação do sistema penal,78

que, por

seu turno, também entendido como justiça penal, corresponde, para Hulsman, a um conjunto

de entes cooperados em que

73

GARCIA, Antônio. MOLINA, Pablos de. Criminologia. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 524. 74

DOTTI, René Ariel, op. cit. 28. 75

HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. 2 ed. Niterói:

Luam, 1997, p. 150. 76

Não há duvida de que a expressão peines perdues, originalmente grafada por Louk Hulsman e Jacqueline

Bernart de Celis, sugere a lembrança de um clássico da literatura mundial: À la recherche du temps perdu (À

procura do tempo perdido) de Marcel Proust (1871-1922). Para o romântico escritor francês, o objeto da obra

literária é descrever o universo refletido porém deformado pelo espírito. A vida qual se escoa não é mais que

tempo perdido; o tempo só pode verdadeiramente se reencontrado e salvo sob o aspecto da eternidade, que é

também o da arte. (DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 29.) 77

HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 150. 78

Ibidem, p. 150.

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33

[...] cada órgão ou serviço trabalha isoladamente e cada uma das pessoas que

intervém no funcionamento da máquina penal desempenha seu papel sem ter

que se preocupar com o que se passou antes dela ou com o que se passará

depois. Não há uma correspondência rigorosa entre o que um determinado

legislador pretende num momento dado – o que ele procura colocar na lei, no

Código Penal – e as diferentes práticas das instituições e dos homens que as

fazem funcionar. Tais instituições não têm nada em comum, a não ser uma

referência genérica à lei penal e à cosmologia repressiva, liame

excessivamente vago para garantir uma ação conjunta e harmônica. Tais

instituições estão, de fato, compartimentalizadas em estruturas

independentes, encerradas em mentalidades voltadas para si mesmas.[...]

Cada corpo desenvolve, assim, critérios de ação, ideologias e culturas

próprias e não raro entram em choque, em luta aberta uns contra os outros.79

Além disso, conforme o pensamento hulsmaniano, a justiça criminal limita-se ao

condão de culpar alguém e, junto com a dramatização repetida da mídia, dá origem a

personagens do mal, as quais, desse modo, se diferenciam das demais.80

Karam explica essa

idéia, sustentando que por meio da publicidade midiática enganosa divulga-se a noção de que

a maioria dos delitos provém de agentes e ações individualizadas, que aumentariam cada vez

mais de forma descontrolada. Assim, conduzem todos a acreditarem que a punição desses

criminosos específicos seria a única forma de resolução de toda a violência, dos perigos e das

ameaças existentes atualmente.81

Com essa acepção, Hulsman se posiciona sobre política criminal, definindo-a como

aquela correspondente tão-somente aos crimes e criminosos, quando deveria ser mais ampla e

multifocal, voltada ao desenvolvimento de seus órgãos, à análise dos fatos que devem se

submeter ao sistema penal e à forma como os membros da sociedade podem agir diante das

situações problemáticas.82

Nessa linha, Vitorino Prata observa que a melhor política criminal

não é aquela que privilegia a repressão criminal como forma de solucionar o problema da

violência e da criminalidade na sociedade, mas aquela que, antes de tudo, realiza uma

prevenção efetiva, constante e diuturna,83

o que impediria, assim, a ocorrência dos fatos

puníveis e a imersão de seus responsáveis no sistema penal. Outrossim, o pensamento

abolicionista hulsmaniano alude ainda várias outras considerações sobre o funcionamento do

79

Ibidem, p. 59. 80

Ibidem, p. 56. 81

KARAM, Maria Lúcia.Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.), op. cit. p.78. 82

HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 156. 83

PRATA, Vitorino. Apud FERNANDES, Newton. FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2 ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.466, 467.

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sistema penal. Diante dele, inicialmente, realça a necessidade de valorizar os reais interesses e

condições da vítima, visto que ela

[...] não pode mais fazer parar a “ação pública”, uma vez que esta “se pôs em

movimento”; não lhe é permitido oferecer ou aceitar um procedimento de

conciliação que poderia lhe assegurar uma reparação aceitável, ou – o que,

muitas vezes, é mais importante – lhe dar a oportunidade de compreender e

assimilar o que realmente se passou; ela não participa de nenhuma forma da

busca da medida que será tomada a respeito do “autor”; ela não sabe em que

condições a família dela estará sobrevivendo; não faz nenhuma idéia das

conseqüências reais que a experiência negativa da prisão trará para a vida

deste homem; ela ignora as rejeições que ele terá que enfrentar ao sair da

prisão.84

Nessa seara, o sistema penal pretende a resolução do conflito das pessoas, ao mesmo

tempo em que atribui etiquetas às pessoas envolvidas, como vítimas ou criminosos.85

Salienta-

se, na obra em análise, que o rótulo de criminoso é incutido nos cidadãos através do processo

judicial e da vida no cárcere, pois, em

[...] inúmeros casos, a experiência do processo e do encarceramento produz

nos condenados um estigma que pode se tornar profundo. Há estudos

científicos sérios e reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição

social por elas produzida podem determinar a percepção do eu como

realmente “desviante” e, assim, levar algumas pessoas a viver conforme esta

imagem, marginalmente.86

Assim, percebe-se que “Hulsman descreve as funções de seletividade, etiquetamento e

estigmatização operada pela incidência arbitrária, e não-paritária como quer a tradicional

doutrina liberal, do modelo nos diferentes estratos sociais”.87

Ainda, o encarceramento gera

vários outros malefícios à pessoa do condenado ao submetê-lo ao degradante cotidiano das

prisões e ao privá-lo de vários benesses do exterior. Com esse entendimento, Hulsman

expressa que

84

HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 82,83. 85

Ibidem, p. 82. 86

Ibidem, p. 69. 87

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de

limitação do poder punitivo. Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 15.

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[...] o condenado à prisão penetra num universo alienante, onde todas as

relações são deformadas. A prisão representa muito mais do que a privação

de liberdade com todas as suas seqüelas. Ela não é apenas a retirada do

mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também e principalmente,

a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da

prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril.88

Com esse pensar, Dotti assinala que a prisão é o monocórdio imposto para executar a

grande sinfonia do bem e do mal. Por força desse fenômeno, os problemas sociais e culturais

que vertem no crime e na conduta de seu agente estão imersos no espectro da desgraça e da

maldição.89

Diante disso, percebe-se que os direitos humanos de alguns cidadãos são

derrogados quando é conveniente para o sistema penal para a proteção do direito de outros.

Nessa esteira, evidencia-se a incompatibilidade de muitos preceitos fundamentais com as

facetas do sistema penal.90

Nesse contexto, a pena, instrumento basilar da justiça penal, passa a ser vista como

ilegítima diante da imposição de castigos de intensa danosidade aos agentes delitivos e por

mera relação de poder, pois, na maioria das vezes, não é aceita pelo condenado, o que

demonstra a inexistência de concordância entre as partes da relação jurídica: Estado e réu.

Daí que, não havendo uma relação entre aquele que pune e aquele que é

punido, ou ausente o reconhecimento da autoridade, estaremos diante de

situações em que se torna extremamente difícil falar de legitimidade da pena.

Se a autoridade for plenamente aceita, poderemos falar de uma pena justa.

Se, ao contrário, houver uma total contestação da autoridade, não teremos

mais uma pena verdadeira, mas pura violência. 91

Ademais, Hulsman assinala que tal penalização não é aplicada a todos que realizam

condutas tipificadas como crime, sendo evidente que é irrisório o número de criminosos que

são descobertos pelas autoridades policiais, originando, assim, a chamada “cifra-negra”.

88

HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 62. 89

DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.

28. 90

HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op.cit, p. 159,160. 91

Ibidem, p. 87.

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36

Além disso, há um número menor ainda daqueles que são processados penalmente, como

também há uma minoria absoluta daqueles que são condenados e submetidos a uma pena.92

Com esse mesmo enfoque Karam se posiciona:

A impunidade não acontece apenas por questões conjunturais ou por

deficiências operacionais. As estatísticas indicadoras do número reduzido de

ocorrências que chegam a resultar em processos e, nestes, em condenações,

sempre divulgadas como se fossem um retrato aberrante de um quadro

excepcional a ser enfrentado com mais repressão, com maior aparelhamento

das agências policiais ou da justiça criminal, com novas leis penais ou

processuais penais, ou com investigações conduzidas por anunciadas

comissões internas ou externas, na verdade, apenas refletem a realidade

global de que o sistema penal somente se sustenta na medida de sua

seletividade, incerteza e ausência de efetividade, a seleção de apenas alguns

dos responsáveis por condutas criminalizadas, para que, processados e

condenados, sejam exemplarmente identificados como “criminosos”,

constituindo-se em uma característica inseparável do funcionamento penal. 93

Seguindo esse viés, conforme o pensar hulsmaniano, o próprio conceito de crime é

atingido no momento em que vários fatos considerados como delituosos pelo sistema penal

não são constatados por este, tampouco avaliados pelos atingidos, mostrando-se de diferente

natureza daqueles que foram verificados pela justiça criminal.94

Por conseguinte, essa posição

[...] constitui um ponto de partida extraordinariamente importante, dentro de

uma reflexão global sobre o sistema penal. Como achar normal um sistema

que só intervém na vida social de maneira marginal, estatisticamente tão

desprezível? Todos os princípios ou valores sobre os quais tal sistema se

apóia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça, etc...) são

radicalmente deturpados, na medida em que só se aplicam àquele número

ínfimo de situações que são os casos registrados. O enfoque tradicional se

mostra, de alguma forma, às avessas. A cifra negra deixa de ser uma

anomalia para se constituir na prova tangível do absurdo de um sistema por

natureza estranho à vida das pessoas. Os dados das ciências sociais

conduzem a uma contestação fundamental do sistema existente. E longe de

parecer utópica, a perspectiva abolicionista se revela uma necessidade lógica,

uma atitude realista, uma exigência de equidade.95

92

HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op.cit, p. 65. 93

KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.) op. cit. p. 91. 94

HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 65,66. 95

Ibidem, p. 66.

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Diante de todos esses fatores e evidenciando-se que o discurso oficial da justiça penal

mostra-se diverso do que realmente acontece na prática, passa a ser visto como

deslegitimado, atribuindo essa característica ao sistema penal como um todo. Desse modo,

Hulsman propõe um processo de mudança através de uma conversão coletiva da linguagem

penal por outra mais benéfica à realidade atual e do modo pelo qual as pessoas encaram os

fatos considerados criminosos,96

visto que “a limitação das situações problemáticas à

terminologia utilizada pela justiça penal (crime) é uma forma diversa de compreensão dos

fatos e de providenciar resoluções.”97

Dessa forma, é possível privilegiar os procedimentos

não penais de controle e a maior participação dos envolvidos. Assim,

[...] seria preciso devolver às pessoas envolvidas o domínio sobre seus

conflitos. A análise que elas fazem do ato indesejável e de seus verdadeiros

interesses deveria ser o ponto de partida necessário para a solução a ser

procurada. O encontro cara-a-cara deveria ser sempre possível, pois as

explicações mútuas, a troca das experiências vividas e, eventualmente, a

presença ativa de pessoas psicologicamente próximas, podem conduzir, num

encontro desta natureza, a soluções realistas para o futuro.98

Destarte, a algumas relações pessoais poderiam ser aplicadas medidas acordadas entre

as próprias partes e que melhor se ajustassem às suas necessidades. Já, em outros, nos quais

se mostra necessária a intervenção de um ente estatal, as pessoas poderiam servir-se da justiça

cível para a resolução de seus conflitos.99

Com essa ótica, Hulsman fundamenta:

Não há qualquer razão para se acrescentar um poder de punir a tribunais

repressores, a fim de que, em determinados conflitos, escolhidos de

maneira discutível, algumas pessoas sejam tratadas como culpados que

devem ser castigados. Se repensarmos as diferentes linhas de aproximação

possíveis diante de uma situação conflituosa, veremos claramente que o

enfoque cível – nos limites postos pelo campo institucional - sempre poderá

ser uma linha adequada, qualquer que seja o conflito. Todos os tribunais

chamados de “cíveis”, com algumas modificações que teríamos que

considerar, podem ou deveriam poder intervir de maneira mais útil para os

interessados do que o atual sistema penal.100

96

HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op.cit, p. 96. 97

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 15. 98

HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 102. 99

Ibidem, p. 120. 100

Ibidem, p. 131.

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Nessa perspectiva, os juízes passariam a atuar somente no âmbito cível quando fosse

necessário para garantir os direitos dos homens não defendidos por outras formas de controle.

Já os órgãos policiais seriam agentes de paz, procurando evitar que as questões chegassem ao

Judiciário.101

Nesse diapasão, Hulsman entende tais órgãos como mecanismos de urgência e

afirma:

Estou convencido de que a abolição do sistema penal num país determinado

não aumentaria ali os riscos reais de graves enfrentamentos ou violências. De

um lado, porque as situações em questão passariam a ser examinadas a partir

de uma aproximação humana. Por outro lado, porque a perspectiva

abolicionista reconhece a necessidade de manutenção de mecanismos de

urgência a que se deve recorrer em tempos, ou intervalos, de crise.102

Dessa forma, o autor não retira a importância da atividade judiciária e policial para o

exercício da coerção, no entanto defende um modo diferenciado de atuarem e interferirem na

vida dos cidadãos. Para isso, há necessidade de solidariedade e intenção de mudança entre as

pessoas com o intento de abrangência das relações comunitárias e informais. Com essa

perspectiva, Hulsman afirma que seria possível abolir o sistema penal e

[...] romper os laços que, de maneira incontrolada e irresponsável, em

detrimento das pessoas diretamente envolvidas, sob uma ideologia de outra

era e se apoiando em um falso consenso, unem os órgãos de uma máquina

cega cujo objeto mesmo é a produção de um sofrimento estéril.103

É possível perceber, então, que, com sua obra Penas perdidas, Hulsman expressa seu

modo de entender as situações que, atualmente, na justiça penal são vistas como crimes.

Demonstra a forma danosa como tal justiça exerce suas atividades e afirma que os prejuízos

resultantes dessas são responsáveis pela “perda das penas”, ou seja, pelo não alcance dos fins

penais e, conseqüentemente, pela perda de todo o sistema penal. Diante disso, propugna outros

101

HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op.cit, p.113. 102

Idem. 103

HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op. cit. p. 91.

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meios para a resolução de tais situações, os quais sejam mais adequados aos interesses de

ambas as partes e originem menores prejuízos as essas. Para esse fim, seria necessário uma

mudança da linguagem penal para outra, não punitiva, ocasionando, conseqüentemente, a

abolição dos instrumentos penais de controle e a oportunização de utilização de outros meios,

menos prejudiciais e desumanos.

2.2 Zaffaroni e sua busca pelas penas perdidas

Com fulcro na teoria abolicionista exposta por Louk Hulsman em seu livro Penas

perdidas, o doutrinador penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni realiza um ensaio crítico

através de sua obra Em busca das penas perdidas, escrita em 1989, na qual explana sua

posição sobre o sistema penal e sobre sua deslegitimação na atualidade. Além disso, traz a

lume fundamentos próprios e peculiares dos países da América Latina, aos quais denomina

como “regiões marginais”.

Inicialmente, em sua obra, o pensador “reprova vigorosamente o discurso jurídico-

penal, averbando-o de perverso e falso porque procura contornar, com inteligência, as mazelas

da realidade operacional do sistema”.104

Isso é facilmente visualizado na medida em que

[...] tornou-se comum a descrição da operacionalidade real dos sistemas

penais em termos que nada têm a ver com a forma pela qual os discursos

jurídico-penais supõe que eles atuem. Entre outros termos, a programação

normativa baseia-se em uma “realidade” que não existe e o conjunto de

órgãos que deveria levar a termo essa programação atua de forma

completamente diferente.105

Na compreensão de Andrade, é impossível que a operacionalidade de um sistema penal

se adeque a sua programação, pois isso constitui uma marca estrutural do exercício do poder

que não pode ser eliminada sem, conseqüentemente, suprimir totalmente o referido

sistema106

. Apesar disso, no entender de Zaffaroni, o discurso penal poderia ser socialmente

verdadeiro, se obedecesse a dois níveis de verdade social:

104

DOTTI. René Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29. 105

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit, p. 12. 106

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do

controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 312.

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a) um abstrato, valorizando em função da experiência social, de acordo com o

qual a planificação criminalizante pode ser considerada como o meio

adequado para a obtenção dos fins propostos [...].

b)outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que integram o

sistema penal operem sobre a realidade de acordo com as pautas

planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico-penal.107

Como isso não ocorre, Zaffaroni constata o descompasso do discurso penal com a

realidade atual, o que acarreta a perda de racionalidade do sistema penal, elemento

indispensável para legitimá-lo. Ademais, tal racionalidade depende também de uma coerência

interna, na qual seus preceitos não se contradigam. Isso é essencial visto que a mera legalidade

não legitima o sistema penal, pois é evidente que seus órgãos não exercem o “seu poder de

acordo com a programação legislativa tal qual como expressa o discurso jurídico penal”.108

Para Zaffaroni, os órgãos penais atuam de maneira militarizada e verticalizadora,

demonstrando uma face configuradora do poder da justiça penal, não simplesmente repressiva,

visto que interioriza a presença de uma autoridade centralizadora que disciplina a vida dos

cidadãos através de uma vigilância constante. Ademais, muitas vezes, além de o poder penal

agir fora da legalidade, atua contrariamente a ela, mostrando-se intensamente violento. Nesse

sentido, o autor enfatiza que a

[...] estas violações devem ser acrescentadas a corrupção, as atividades

extorsivas e a participação nos benefícios decorrentes de atividades como o

jogo, a prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas proibidas, dados

geralmente não registrados nos informes dos organismos de direitos

humanos, apesar de pertencerem à inquestionável realidade de nossos

sistemas penais marginais.109

Com esse enfoque, Passetti salienta que as corrupções e acordos entre agentes da lei e

infrator provocam a filtragem e seleção daqueles que serão os criminosos da justiça criminal.

Assim, demonstra-se que o sustentado lema de defesa da sociedade não ocorre, prevalecendo a

defesa dos interesses dominantes.110

107

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 18. 108

Ibidem, p. 21. 109

Ibidem, p. 29. 110

PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso de

abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26.

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Em que pese a tudo isso, Zaffaroni justifica que o sistema penal ainda se mantém por

ser considerado uma forma de segurança para muitas pessoas que se deixam influenciar pelas

ideologias dos meios de comunicação de massa, que “ocupam-se da precoce introjeção do

modelo penal como pretenso modelo de solução dos conflitos”111

e “ têm a função de gerar a

ilusão de eficácia do sistema”112

. Isso ocorre através da falsa publicidade, que propaga a idéia

de que, nos dias de hoje, predomina uma intensa violência na vida social. Logo, o autor

conclui:

Sem os meios de comunicação de massa, a experiência direta da realidade

social permitiria que a população se desse conta da falácia dos discursos

justificadores; não seria, assim, possível induzir os medos no sentido

desejado, nem reproduzir os fatos conflitivos interessantes de serem

reproduzidos em cada conjuntura, ou seja, no momento em que são

favoráveis ao poder das agências do sistema penal.113

Outrossim, no pensar Zaffaroniano, são esses mesmos meios de comunicação que

criam o estereoótipo de “criminoso” a determinadas pessoas, selecionando-as como aquelas

que sofrem os efeitos negativos do sistema penal, o que ocorre, muitas vezes, por terem tido

um mero contato com ele através de alguma de suas agências. “Estes esteriótipos permitem a

catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição

fabricada, deixando de fora outros tipos de delinqüentes (delinqüência de colarinho branco,

dourada, de trânsito, etc).”114

Tais status se afirmam, ainda, através da forte carga estigmática

que a punição penal acarreta com a pena prisional, que insere na vida nos detentos um vasto

número de malefícios, os quais acompanham e prejudicam além do cumprimento da pena.

Nessa mesma ótica, o doutrinador salienta:

111

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 128. 112

Ibidem, p. 129. 113

Ibidem, p. 128. 114

Ibidem, p. 130.

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42

O efeito da prisão, que se denomina prisionização, sem dúvida é deteriorante

e submerge a pessoa numa “cultura de cadeia”, distinta da vida do adulto em

liberdade.

Esta “imersão cultural” não pode ser interpretada como uma tentativa de

reeducação ou algo parecido ou sequer aproxima-se do postulado da

“ideologia de tratamento”; suas formas de realização são totalmente opostas

a este discurso, cujo caráter escamoteador é percebido até pelo menos

avisados.115

Nessa percepção, Cervini ensina que os internos aprendem uma nova forma de viver,

com novos hábitos, linguagens, usos e costumes porque não têm outra alternativa. Esse

aprendizado evidencia os efeitos negativos do aprisionamento a qualquer ressocialização, pois

na prisão os detentos não aprendem a viver em sociedade, pelo contrário, se integram com

mais intensidade à vida criminosa, mudando para pior e captando valores negativos para

futura vida social livre.116

Diante disso, na obra de Zaffaroni, expõe-se a ocorrência da deteriorização dos direitos

humanos, tanto na vida dos criminosos como dos próprios agentes do sistema penal, que

sofrem uma crise de identidade pela incongruência existente entre a forma como atuam e o

que o discurso oficial prevê. Não obstante, há outra parte também prejudicada pela justiça

penal, a vítima, pois aquela, com intuito centralizador, “provoca o desaparecimento dos velhos

mecanismos de solução entre partes em confronto, produzindo-se a expropriação dos conflitos

(dos direitos da vítima), assumindo o soberano o lugar da “única vítima”[...]”.117

Diante desse pensamento, o doutrinador considera:

Enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador de

igualdades de direitos de longo alcance, os sistemas penais são instrumentos

de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as

sociedades. Não é por acaso que os dispositivos dos instrumentos de direitos

humanos referentes aos sistemas penais sempre sejam limitadores,

demarcadores de fronteiras mais ou menos estritas do seu exercício de poder:

fica claro que os direitos humanos se defrontam ali com fatos que desejam

limitar ou conter.118

115

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 149. 116

CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 41. 117

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 152. 118

Ibidem, p. 149.

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Nesse passo, para Zaffaroni, é constatada a fraqueza de conteúdo das teorias da pena

perante a situação atual da justiça penal, visto que não sustentam a legitimação desta. Nesta

esteira, Andrade acrescenta que,

[...] comparando-se a programação teleológica do sistema penal, isto é, as

funções instrumentais e socialmente úteis declaradas pelo seu saber oficial

com as funções reais da pena e do sistema pode-se concluir que estas não

apenas têm descumprido, mas sido opostas às declaradas.

Enquanto a função de proteção de bens jurídicos universais atribuída ao

Direito Penal revela-se como proteção seletiva de bens jurídicos; a pretensão

de que a pena possa cumprir uma função instrumental de efetivo controle (e

redução) da criminalidade e de defesa social na qual se baseiam as teorias da

pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a reincidência é uma

constante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor das

hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente. 119

Além disso, Zaffaroni alude à irracionalidade da pena por ser mera manifestação do

poder. Ainda, por todo esse entendimento, conceitua-a como “qualquer sofrimento ou

privação de algum bem ou direito que não resulte racionalmente adequado a algum dos

modelos de solução de conflitos dos demais ramos do direito”.120

Enfim, o pensador explica que todos esses apontamentos negativos sobre a justiça penal

são decorrentes do processo histórico da América Latina, o qual, englobado pelo período

colonialista e neocolonialista, incorporou uma espécie de “controle social punitivo

transculturado”121

em vários países latinos, ocasionando a desigualdade, a dependência e a

fragilidade econômica, geradoras do grande grupo populacional pobre existente nessas regiões

e principal alvo do sistema penal. A partir disso, o autor propõe “a busca das penas perdidas”

através um marco teórico que, inspirado nas referências teóricas centrais (como o

abolicionismo), adapte-se à realidade das chamadas “regiões marginais”. Destarte, sugere uma

reinterpretação do direito penal122

através de uma visão ética e otimista do mesmo. Para esse

escopo, primeiramente, o direito penal deve ser recebido como uma

119

ANDRADE, Vera Regina de, op. cit. p. 291. 120

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 204. 121

Ibidem, p. 119. 122

DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29.

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[...] reconstrução discursiva que interpreta as leis de conteúdo punitivo (leis

penais) para dotar a jurisdição dos limites exatos para o exercício de seu

poder decisório e de modelos ou opiniões não contraditórios para os

conflitos que o poder das demais agências seleciona a fim de submetê-los à

sua decisão, de modo a proceder de forma socialmente menos violenta.123

Necessita-se, assim, que o direito penal assuma a função de um direito humanitário

que se empenhe na “defesa de lugares ou espaços de poder comunitário, controle e limitação

de poder verticalizador e, finalmente, enfraquecimento do instrumental de dependência”.124

Destarte, as idéias de Zaffaroni dão enfoque aos princípios limitadores da justiça criminal

como direitos humanos e à necessidade da sua real efetivação, visto que a “desmedida

ampliação do poder do Estado de punir produz leis de exceção que, vulnerando princípios e

garantias essenciais ao funcionamento do Estado Democrático de Direito, ameaçam a sua

própria subsistência [...].”125

Nessa perspectiva, o doutrinador assinala:

É absurdo pretender que os sistemas penais respeitem o princípio da

legalidade, de reserva, de culpabilidade, de humanidade e, sobretudo, de

igualdade, quando sabemos que, estruturalmente, estão preparados para os

violar a todos. O que se pode pretender - e fazer - é que a agência judicial

empregue todos os seus esforços de forma a reduzir cada vez mais, até onde

o seu poder permitir, o número e a intensidade dessas violações, operando

internamente a nível de contradição com o próprio sistema, a fim de obter,

desse modo, uma constante elevação dos níveis reais de realização operativa

desses princípios.126

Isso não deve se suceder bruscamente, de um momento para outro, mas desenvolver-

se de modo progressivo e atingindo gradualmente determinadas padronizações capazes de

serem observadas pelos operadores do sistema penal em seus diferentes tempos. Porém, a

123

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 206. 124

Ibidem, p. 201. 125

KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.), op. cit. p. 72. 126

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 235.

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45

[...] única forma de se manter esta progressividade da limitação repressiva e

de fazer com que os princípios penais permaneçam sempre “abertos” ou

“inacabados” consiste em sustentar um certo grau de contradição entre o

discurso jurídico-penal da agência de reprodução ideológica e o padrão

obtido pelas agências judiciais.127

De tal sorte, é possível verificar se o conteúdo do discurso jurídico do sistema criminal

está de acordo com a forma como seus órgãos verdadeiramente atuam e se estes acatam os

preceitos garantidores previstos e indispensáveis para alcançar o término dos conflitos de

maneira mais humanista. Com essa acepção, Zaffaroni pretende o resgate gradativo dos

instrumentos não penais para solucionar os dissídios entre os cidadãos, reduzindo, cada vez

mais, a interferência violenta das agências criminais nas relações sociais. Para esse fim, o

direito penal mínimo, interferência mínima e em última esfera do sistema penal, é exposto

como uma alternativa e “[...] de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por

todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como

passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça;

[...].”128

Em síntese, pode-se analisar que Zaffaroni concorda com vários aspectos da teoria

abolicionista explanada por Hulsman, tanto no tocante às objeções feitas ao sistema penal

como às possíveis medidas a serem tomadas diante dos efeitos negativos dele. Porém, também

se verifica que, ao inclinar-se à situação atual dos países da América Latina, Zaffaroni propõe

uma solução mais ajustada à realidade subdesenvolvida em que se encontram. Sugere que, no

momento atual, o sistema penal ainda seja utilizado para a resolução de um pequeno

quantidade de conflitos, restringindo em etapas a sua atuação e, assim, se possa, futuramente,

abolir a justiça penal em sua completude.

2.3. Outros pensadores e suas correntes

Além de Hulsman e Zaffaroni, outros pensadores construíram uma posição crítica

acerca do abolicionismo penal, entre os quais se pode referir, primeiramente, o inglês Thomas

127

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 237. 128

Ibidem, p. 106.

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Mathiesen, o qual segue uma linha de pensamento muito próxima do marxismo, que, como

ensina Chauí, sustenta que o

[...] poder político sempre foi de maneira legal e jurídica pela qual a classe

economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O

aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político

existe como poderio dos economicamente poderosos, para servir seus

interesses e privilégios e garantir-lhes a dominação social. 129

Nesse sentido, Mathiesen faz uma ligação entre a atual sociedade capitalista de

dominação e o sistema penal, outra forma prejudicial de poder. A partir disso, sugere que não

só o sistema penal seja abolido como também qualquer outra forma de poder opressivo,130

sendo necessário, para isso, que o abolicionismo tenha permanente relação de oposição e

competição com o sistema que deseja abolir.131

Outrossim, defende que toda construção teórica deve se mostrar inacabada e em

constante superação de limites, possibilitando o verdadeiro retrocesso de poder, não parciais

retrocessos, como as descriminalizações e as penas alternativas de prisões, que são utilizadas

como táticas para neutralizar as teorias contrárias ao poder. Tais táticas intentam definir o que

está “dentro” e “fora” dele, para, conseqüentemente, conseguir englobar o que está “fora”

através do referido retrocesso estratégico.132

Alternando um pouco a linha de pensamento, outro doutrinador que não deve ser

olvidado é o escritor norueguês Nils Christie. Apesar de apresentar vários entendimentos

comuns ao pensamento de Hulsman, cabe realçar que Christie possui uma característica

peculiar: dar ênfase às suas experiências históricas.133

Além disso, o autor posiciona-se como

um abolicionista-minimalista, afirmando contrariar Hulsman ao defender a necessidade de

manter algumas garantias legais, visto que o sistema penal, com fulcro nas leis penais, é o

melhor limitador de alguns comportamentos absolutamente inaceitáveis numa sociedade em

129

CHAUÍ, Marilena, op cit. p. 409. 130

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 99. 131

Ibidem, p. 100. 132

Idem. 133

Idem.

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47

que nada importa e onde o freio da vergonha não existe. 134

Nessa linha de raciocínio, Christie

justifica sua posição afirmando:

Meu primeiro, e talvez, mais importante ponto é que os abolicionistas estão

corretos em seu posicionamento de buscar a solução dos conflitos em outro

campo que não o direito penal. A maioria dos casos deveria ser resolvida por

meio de diálogo entre as partes, por intermédio do Juízo Cível, com base na

reparação do dano. Esta deveria ser a principal solução para os conflitos, mas

resta, ainda, um pequeno problema, que deveria ser mantido tão pequeno

quanto possível. Nesses casos, talvez, é que devêssemos utilizar o poder

estatal, através do encarceramento.135

Entretanto, tal encarceramento deve ser limitado para que não aconteça o que já está

ocorrendo em alguns países no tocante ao crescimento populacional carcerário. Sobre essa

visão, Christie elaborou o livro A indústria do controle do crime, no qual faz críticas ao

controle penal nos Estados Unidos, com enfoque ao ampliado número de presos nesse país, os

quais são os objetos centrais da indústria controladora de delitos. O autor explica:

A população potencialmente perigosa é afastada e colocada sob completo

controle, como matéria-prima para uma parte do próprio complexo industrial

que os tornou supérfluos e ociosos fora dos muros da prisão. Matéria prima

para o controle do crime ou, se quiserem, consumidores cativos dos serviços

da indústria do controle.136

Com direcionamento histórico, Christie explica que a expansão da denominada

“indústria controladora dos delitos” teve origem com o término da Guerra Fria, período de

intensa recessão econômica no qual as nações industriais não tinham mais inimigos externos

e passaram a se voltar, com prioridade máxima, aos inimigos internos.137

Desse modo,

propiciou-se o aumento da população carcerária não pelo aumento da criminalidade em si,

mas pelo o crescimento de interesses econômicos (como a construção de prisões, gestão

dessas e equipamento para o controle carcerário).138

134

OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de. Conversa com um abolicionista minimalista.

Revista IBCCRIM, nº 21, ano 6, janeiro /março,1998. p.16 135

Ibidem, p. 22. 136

CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 122. 137

Ibidem, p. 4. 138

Ver item 7.1 da obra “A indústria do controle do crime” de Nils Christie.

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Diante disso, um grande número de detentos sofre, hodiernamente, com as

degradantes condições penitenciárias, visto que, como Christie declara, “[...] quando você

está nesta situação indigna de ser um prisioneiro, perde traços de sua personalidade que faz

com que os outros tenham alguma identificação com você. Quando você está atrás das grades

é mais difícil vê-lo como ser humano”.139

Por esse motivo, o autor em questão é conhecido como ferrenho crítico das idéias de

Durkheim, o qual afirmava que o processo de modernização faz a sociedade progredir,140

não

considerando que tal modernização propícia também a ampliação da indústria do controle do

crime. Diante desse entendimento, “Christie destaca expressamente a destrutividade das

relações comunitárias do sistema penal, seu caráter dissolvente das relações de

horizontalidade e os conseqüentes perigos e danos da verticalização corporativa”.141

Dessa

maneira, simpatizante da resolução de conflitos de forma comunitária, Nils Christie valoriza

a existência de sociedades limitadas, pensamento que se deve ao fato de que nessas

sociedades ocorre uma espécie de solidariedade, com a impossibilidade de substituição de

seus membros. Assim, a

[...] prosperidade favorece a tolerância, a tradição torna compartilhar menos

ofensivo e a população pequena e homogênea cria inibições contra a

exclusão de pessoas visivelmente necessitadas. Também ajuda a estabilizar

uma situação instável, a sociedade reconhecer que existem alguns critérios

diferentes quanto aos objetivos da vida, e ter alguma consideração pelos

“pobres mas puros”, ou respeitar mais a generosidade do que a eficiência.142

Nessa linha, seria possível devolver os conflitos às vítimas, os quais, de acordo com

Christie, são bens subtraídos, freqüentemente, em nossa justiça penal. Ademais, conforme o

referido pensador, os conflitos são elementos importantes à vida social, pois, apesar de

ferirem as pessoas envolvidas e o sistema social, podem ser bem usados como experiências

para a vida dos envolvidos. Todavia, para tanto, as partes das situações conflituosas não

podem tê-las roubadas pelos seus advogados.143

139

OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de, op. cit. p. 18. 140

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op.cit, p.101. 141

Idem. 142

CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. op. cit, p. 45. 143

OLIVEIRA, André Isola Fonseca; Ana Sofia Schimidt de, op. cit. p. 14.

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49

Enfim, as idéias de Christie aqui expostas podem ser facilmente identificadas como

parte dos fundamentos abolicionistas, no entanto, o autor não deixa de salientar sua posição

minimalista diante da atual realidade. Ademais, explica:

O que o abolicionismo quer é encolher o sistema penal. Alguns querem

encolhê-lo tanto até o ponto da não existência. Outros, tanto quanto

politicamente possível em uma sociedade leniente. O meu interesse pessoal é

propiciar o desenvolvimento de um senso crítico em relação ao sistema penal

para que não se torne opressivo. 144

Como contrapartida ao conteúdo teórico abolicionista explanado neste capítulo, é

proeminente trazer a lume a acepção do pensador Luigi Ferrajoli, não por integrar o

movimento abolicionista, mas por ser opositor a ele. De acordo com sua ideação, a abolição

penal seria a causa de dois custos: o abandono social através das reações selvagens e

desregradas às ofensas e a regulamentação disciplinar da sociedade, ocasionado meios ainda

mais onerosos que a pena.145

Mais detalhadamente, Ferrajoli aduz que com a abolição penal

prevaleceriam quatro tipos de controles sociais arbitrários, os quais são:

144

CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. op. cit, p. 14. 145

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p.

272.

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50

a) os sistemas de controle social-selvagem, que vêm historicamente

expressos em todos os ordenamentos arcaicos onde a reação à ofensa vem

confiada não à pena, mas, sim, à vingança individual ou por força de

parentesco, como as vinganças de sangue, os duelos, e outros similares, com

livre espaço para a lei do mais forte; b) os sistemas de controle estatal

selvagem, tais como aqueles historicamente realizados quer em

ordenamentos primitivos de caráter despótico, quer em muitos ordenamentos

autoritários modernos, onde a pena é distribuída com base em procedimentos

potestativos orientados pelo arbítrio ou pelos interesses contingentes de

quem a comina, sem garantias que tutelem o condenado; c) os sistemas de

controle social-disciplinar, ou auto-regulamentados, também característicos

de comunidades primitivas, mas, em geral, de todas as comunidades

fortemente ideologizadas e éticas, sujeitas à ação de rígidos conformismos,

operantes em formas autocensuráveis, bem como às pressões de

observadores coletivos, de policiamentos morais, de “panoptismos” sociais

difusos, de implacáveis perseguições de opiniões, de ostracismos e de

demonizações públicas; d) os sistemas de controle estatal-disciplinar, que

são um produto tipicamente moderno e, sobretudo, um perigo futuro,

caracterizados pelo desenvolvimento das funções preventivas de segurança

pública, mediante técnicas de vigilância total, tais como aquelas consentidas

para espionagem dos cidadãos pelos potentes polícias secretas, bem como

dos atuais sistemas informáticos de controle audiovisual e de fichamento

generalizado.146

Além disso, a última forma de controle estatal disciplinar seria a mais perigosa, pois

poderia ocasionar o exacerbado controle policial, através de carros-tanques nas ruas, de

policiais “nas costas” dos cidadãos, de interceptações telefônicas e, no futuro, do uso de

câmeras nos lugares de trabalho e divertimento, com controle a distância. Enfim, esse seria um

sistema muito mais detalhado e penetrante na vida dos cidadãos.147

Ademais, Ferrajoli adverte que a teoria abolicionista evita especificações acerca da

deslegitimação do direito penal, “confundindo em uma rejeição única modelos penais

autoritários e modelos penais liberais, e, portanto, não oferecendo nenhuma contribuição à

solução dos difíceis problemas ligados à limitação e ao controle do poder punitivo.”148

Dessa

forma, ao mesmo tempo em que o abolicionismo propugna pela abolição de todo e qualquer

sistema penal, não considera os instrumentos de garantias que nele estão contidos e não

encontra, por isso, adaptação à presente realidade. Nesse sentido, Ferrajoli afirma:

146

FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 273. 147

Idem . 148

FERRAJOLI, Luigi, op.cit. p. 203.

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51

O abolicionismo penal – independentemente dos seus intentos liberatórios e

humanitários - configura-se, portanto, como uma utopia regressiva que

projeta, sobre pressupostos ilusórios de uma sociedade boa ou de um Estado

bom, modelos concretamente desregulados ou auto-reguláveis de vigilância

e/ou punição, em relação aos quais é exatamente o direito penal- com o seu

complexo, difícil e precário sistema de garantias - que constitui, histórica e

axiologicamente, uma alternativa progressista.149

Diante disso, Ferrajoli refere a importância dos princípios penais garantidores para a

configuração menos violenta do sistema penal:

Enquanto existirem tratamentos punitivos e técnicas institucionais de

prevenção que incidam sobre os direitos e as liberdades dos cidadãos, a sua

justificação residirá, unicamente, no sistema de garantias penais e

processuais que lhe assistirão. Mesmo em uma improvável sociedade

perfeita do futuro, na qual a delinqüência não existisse, ou pelo menos, não

se advertisse a necessidade de reprimi-la, o direito penal, com todos os seus

códigos de garantias, deveria, contudo, remanescer somente para aquele

caso que poderia, excepcionalmente, produzir-se de reações institucionais

coativas a um fato delituoso. 150

Entretanto, é relevante aludir que, apesar de todas as suas objeções às idéias

abolicionistas, Ferrajoli aponta nelas também alguns fatores positivos. Primeiramente, defende

o valor das teorias do abolicionismo ao beneficiar a autonomia da criminologia crítica, ao

incentivar as pesquisas sobre a origem cultural do delito e sobre a modificação dos interesses

penalmente protegidos no transcorrer da história.151

Além disso, salienta existir mais um

149

FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 275. 150

Ibidem p. 277. 151

Ibidem p. 203.

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[...] mérito, que igualmente deve ser reconhecido ao abolicionismo teórico e

que possui um caráter mais especificadamente eurístico e metodológico.

Deslegitimando o direito penal de um ponto de vista radicalmente externo e

denunciando-lhe a arbitrariedade, bem como os custos e os sofrimento que o

mesmo traz, os abolicionistas despejam sobre os justificacionistas o ônus da

justificação. Justificações adequadas daquele produto humano e artificial que

é o direito devem conseguir reproduzir, convincentemente, o desafio

abolicionista, fazendo ver não apenas que os custos que aquele comporta são

inferiores às suas vantagens bem como às suas penas individualmente

consideradas, às suas proibições concretas e às suas efetivas técnicas de

verificação processual. E, exatamente porque o ponto de vista externo dos

abolicionistas compreende aquele dos destinatários das penas, também no

que tange a eles, as justificações devem ser moralmente satisfatórias e

logicamente pertinentes. 152

Enfim, diante do conteúdo teórico trazido à baila neste capítulo, é possível concluir

que o abolicionismo penal apresenta os mais diversos argumentos para sua sustentação, os

quais, são defendidos por um grande número de doutrinadores que se posicionam de acordo

com suas culturas e realidades. Com base nisso, é possível compreender o contraste entre a

idéia radical de abolição propugnada por Hulsman e os pensamentos mais moderados de

Zaffaroni e Christie, que acreditam na utilização preliminar do direito penal mínimo para

alcançar, de repente, um dia a total abolição da justiça penal. Ainda, há autores como Ferrajoli

que, apesar de serem favoráveis aos princípios minimalistas, não os vêem como uma etapa

para o abolicionismo, pois não acreditam na possibilidade da efetivação deste, tampouco, que

gere benefícios à vida em sociedade. Ademais, essas várias concepções de abolição propiciam

uma análise crítica sobre o sistema penal, auxiliando na busca de uma solução ideal que

minimize os danos gerados por ele.

152

FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 204.

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53

3 A UTOPIA ABOLICIONISTA E O DIREITO PENAL

MÍNIMO E GARANTISTA COMO POSSÍVEL

ALTERNATIVA AO SISTEMA PENAL ATUAL

Como é possível verificar no capítulo precedente, a teoria do abolicionismo penal

coloca em evidência várias falhas da justiça criminal e a fragilidade de seus fundamentos,

fatores que, conseqüentemente, acarretam sua deslegitimação. Dessa forma, os postulados da

teoria abolicionista propiciam uma análise crítica acerca do sistema penal hodierno. Ademais,

como Carvalho ressalta:

[...] Entendemos que várias matizes do abolicionismo são (a) são

extremamente úteis e importantes para a avaliação fenomenológica da

(in)eficácia do sistema penal; (b) seus fundamentos teóricos-doutrinários,

ancorados no paradigma da reação social, são irreversíveis, do ponto de vista

acadêmico, na ciência criminológica; e (c) algumas de suas propostas,

fundamentalmente aquelas que dizem respeito à abolição da pena privativa

de liberdade cumprida em regime carcerário fechado, aos processos de

descriminalização e à negativa da ideologia do tratamento, são viáveis como

projeto político criminal.153

Ademais, calha espancar que Ferrajoli reconhece a importância das idéias abolicionistas

para desenvolvimento da criminologia crítica, para os estudos sociais e culturais sobre os

153

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de

limitação do poder punitivo. Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 17.

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delitos, para a exposição das doutrinas penais dominantes e para atribuição do ônus da

justificação aos justificacionistas.154

3.1 Objeções à teoria abolicionista

Não obstante todo o pensamento crítico trazido à baila pelo abolicionismo à ciência

penal, deve-se advertir sobre a existência de várias debilidades em suas propostas, as quais

impossibilitam que suas teses sejam aplicadas, integralmente, à realidade brasileira.

Primeiramente,

[...] as teorias abolicionistas foram criadas a partir da realidade totalmente

distinta da realidade marginal latino-americana. É proposta gerada no interior

de sociedades nas quais o Estado efetivamente cumpriu seu papel, ou seja,

em países nos quais a existência do Estado liberal e do Estado Social é

notória, países em que as promessas da modernidade saíram do papel e

integraram o cotidiano das pessoas. 155

Logo, é impossível colocar em prática, nos países latinos subdesenvolvidos, uma teoria

que foi formulada com inspiração em condições de vida totalmente diversas daqueles, em

nações de Primeiro Mundo, como a Holanda, Inglaterra, Noruega e demais países europeus.

Além disso, é flagrante a insegurança diante do fato de que, abolido o sistema penal, a

violência entre as pessoas venha a se dissipar cada vez mais diante da inexistência de um

controle penal estatal. Nesse pensar, comungando com as idéias Ferrajoli, expostas no capítulo

anterior, Carvalho registra com maestria:

154

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p.

203. 155

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de

limitação do poder punitivo. Criticas à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 37.

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Entendemos como um dos grandes problemas das teorias abolicionistas a

possibilidade de conversão do sistema formal de controle processual penal

em modelos desregulamentados de composição dos conflitos, que tendem

reeditar esquemas pré-contratuais (sociedade primitiva) e/ou formar

modelos disciplinares (panoptismo social), ou ainda a criação de instâncias

formais civil-administartivas isentas das garantias típicas do processo

penal. O primeiro modelo revela um estado isento de legalidade e limites às

liberdades, configurando um modelo de resposta irracional à violação dos

direitos, ou instaura modelos pedagógicos de higienização sócio-política de

sociedades de tecnologia maximizada e total. O segundo modelo,

administrativizado, acaba por ser um dos modelos vigentes na estrutura

processual contemporânea (modelos anteriores e superveniente ao processo

penal de cognição), e representa sistema de extrema violência aos direitos

fundamentais. 156

Nesse diapasão, a justificativa abolicionista, de que o sistema penal é o grande

responsável pela deturpação dos direitos humanos, não procede na medida em que, por meio

do direito material e processual penal, concede-se o mínimo de garantias aos cidadãos.157

Nessa senda, explicita-se a necessidade de manter o controle da resolução dos litígios na

esfera estatal, pois é nesta que o direito penal é utilizado, amparando e efetivando alguns

direitos assegurados às pessoas. Por isso, Baratta assevera:

A contração ou “superação” do direito penal deve ser a contração e

superação da pena, antes de ser superação do direito que regula o seu

exercício. Seria muito perigoso para a democracia e para o movimento

operário cair na patranha, que atualmente lhe é armada, e cessar de defender

o regime de garantias legais e constitucionais que regulam o exercício da

função penal no Estado de direito.158

Assim, as classes mais pobres, principais prejudicadas na atual sociedade de interesses

econômicos, seriam intensamente atingidas com a falta de uma esfera penal-estatal que

proteja seus direitos. Além disso, a relevante interferência do Estado nas relações dos

cidadãos pode ser embasada pela sua própria origem, conceito e função. Segundo Jardim, o

Estado foi criado pelo homem, um ser eminentemente social. Assim, é entendido como uma

156

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 18. 157

Ibidem, p. 25. 158

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal.: introdução à sociologia do direito

penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 206.

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56

instituição necessária e natural, utilizada, em certa etapa do processo civilizatório, como

instrumento humano para alcançar interesses e fins,159

entre eles, a solução dos conflitos

existentes entre os cidadãos, com fulcro na paz social. Por isso, entende-se que o Estado

tutela bens jurídicos de interesse de toda a sociedade, o que lhe atribui o dever de reagir

contra quem os viola.160

Contudo, o Estado não pode agir com uso direto da força, e, sim,

respeitando a dignidade humana, subsumindo ao império da lei por meio de formalidades

legais e de seus órgãos jurisdicionais.161

Em tal grau, à

[...] medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a

autodefesa, assumirá o monopólio da justiça, produzindo-se não só a revisão

da natureza contratual do processo, senão a proibição expressa para os

particulares de tomarem a justiça por suas próprias mãos. Frente à violação

de um bem juridicamente protegido, não cabe outra atividade que não a

invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização

da estrutura preestabelecida pelo Estado- o processo judicial- em que,

mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não

corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura

institucional, será solucionado o conflito e sancionado o autor.162

Portanto, por meio do processo, a jurisdição penal demonstra-se um objeto limitado e a

serviço do aperfeiçoamento da convivência humana. Destarte, é interessante referir que

todas as objeções feitas à jurisdição penal, no atinente à violação de direitos humanos,

originam-se em dois momentos administrativos: na atividade policial (inquérito) e na

atividade executiva (sistema penitenciário).163

Tais procedimentos,

159

JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense,1999, p.1. 160

MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2 ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 3. 161

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 85. 162

LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen

Júris, 2003, p. 3. 163

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 23.

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57

[...] que orbitam na esfera do direito processual penal (inquérito e execução

penal), regem-se pela inquisitorialidade. O inquérito policial, p. ex., em

decorrência de sua natureza prevalentemente administrativa, não comporta as

garantias fundamentais do modelo acusatório, como o contraditório, a ampla

defesa, a publicidade, a presunção de inocência, o duplo grau de jurisdição

(requisitos mínimos do processo penal no Estado Democrático de Direito).

Igualmente no que tange à execução penal, estrutura híbrida na qual os

direitos e garantias do apenado ficam subordinadas às praticas

administrativas (disciplina carcerária e laudos criminológicos). Representam,

dessa forma, momento no qual inexiste controle eficaz e substantivo,

vislumbrado somente nas estruturas judicializadas.164

Por isso, sustenta-se que a justiça penal, por meio de seus órgãos, é indispensável ao

mínimo controle das reações de violência entre as pessoas e ao respeito dos direitos

fundamentais.165

Diante disso, manifesta-se débil a intenção abolicionista de resolver as

relações conflitivas de maneira informal, sem a intervenção estatal, com a participação

direita da vítima. Não obstante, tal debilidade se consolida pelo fato

[...] de que o sujeito envolvido com o conflito não tem “capacidade de

sublimação”, ou seja, de sair do próprio conflito e, ao observá-lo de fora,

verificar imparcialmente a resposta adequada ao caso. Pelo contrário,

entendemos que pelo fato de estar intrinsecamente envolvido na contenda

acaba por internalizar desejos de vingança, respondendo irracionalmente

(desproporcionalmente) ao agressor.166

De tal sorte, o Estado é visto como meio racional necessário à composição de

conflitos, sendo que não só “deve realizar a expropriação do “direito” (natural) da vítima,

como esta não tem, e nem deve ter interesse penal”.167

No entanto, é importante destacar que

não se pretende ignorar as falhas do poder estatal na execução de suas funções penais e sua

tendência ao autoritarismo, o que ora se explana é, apenas, a (re)afirmação do contrato

social.168

Outrossim, Zaffaroni leciona que a

164

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 25. 165

SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)

legitimadoras. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001, p. 202. 166

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 19, 20. 167

Ibidem p. 20. 168

CARVALHO, Salo. Pena e Garantias: Uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de

Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 277.

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[...] decisão criminalizante da agência judicial é sempre “má”, mas menos

“má” que a decisão arbitrária do poder de outras agências, de modo que nos

pouquíssimos casos a ela submetidos melhor é que os decida, porque poderia

ser muito pior se não o fizesse.

Reconhecer a legitimidade da intervenção decisória da agência judicial como

“valor inconcluso” não implica introduzir nenhuma racionalidade no

exercício do poder do sistema penal, e sim apenas limitar sua irracionalidade

operativa em curso a tal ponto que a agência possa exercer o seu poder neste

sentido. 169

Por fim, deve-se rebater também a assertiva dos abolicionistas de que a justiça criminal

impossibilita a reparação dos danos gerados às vítimas dos delitos. Diante disso, não se pode

olvidar os ensinamentos de Frederico Marques, sobre as diferentes funções do direito penal e

do direito civil, de que cabem a este último as sanções, especificamente, reparatórias. 170

Nesse sentido, propugnar

[...] a reparabilidade do dano pela via processual penal é (con)fundir as

esferas de ilicitude e os graus quantitativos e qualitativos entre os ilícitos

criminais e os demais (civil administrativa, tributária e trabalhista et

coetera). A dogmática penal, ao elaborar a estrutura propedêutica da ciência

criminal, diferencia o ilícito penal dos demais ramos fundamentalmente pela

sanção aplicada.171

Em suma, são várias as razões que impedem a abolição da esfera penal: as condições

em que as teses abolicionistas foram criadas, a segurança propiciada por aquela no resguardo

dos direitos humanos, as funções insubstituíveis do âmbito criminal, entre outros fatores.

Desse modo e diante dos malefícios do sistema penal hodierno nos países subdesenvolvidos,

cabe encontrar uma alternativa ajustada a ele.

3.2 O direito penal mínimo e garantista como alternativa à realidade atual

Pelos fundamentos abrangidos, explicita-se a indispensabilidade do ramo jurídico

penal, material e processual à vida em sociedade.Todavia, esse ramo deve se voltar a sua

169

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op cit. p. 246. 170

MARQUES, Frederico. Apud CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 21. 171

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op cit. p. 20.

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59

principal função que é proteger os direitos dos homens, e ter seus efeitos negativos limitados.

Com base nisso, consolida-se a necessidade de um direito penal mínimo e garantista como

recurso adequado à situação atual da justiça criminal nos países latinos. Em consonância,

Ferrajoli aduz que tal modelo corresponde a um meio-termo ideal entre um modelo máximo

de direito penal e entre o abolicionismo.172

Nessa esteira, as penas são compreendidas como

um “mal menor”,173

devendo serem

[...] dirigidas para a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as

agressões de outros associados. Significa, antes, que o direito penal tem

como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como outras

negativas, quais sejam a prevenção dos delitos e a prevenção geral das penas

arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a

segunda função indica o limite máximo das penas. Aquela reflete o interesse

da maioria não desviante. Esta, o interesse do réu ou de quem é suspeito ou

acusado de sê-lo. Os dois objetivos e os dois interesses são conflitantes entre

si, e são trazidos pelas duas partes do contraditório no processo penal, ou

seja, a acusação, interessada na defesa social e, portanto, em exponenciar a

prevenção e punição dos delitos, e a defesa, interessada na defesa individual,

e via de conseqüência, a exponenciar a prevenção de penas arbitrárias. 174

Essas duas espécies de prevenção são, conjuntamente, responsáveis pela legitimação

da necessidade política do direito penal, como instrumento de tutela aos direitos fundamentais,

os quais protegem bens que não podem ser atingidos nem com ofensas de delito, nem com

punições.175

Com essa perspectiva, o direito penal mínimo e garantista deve causar, “além do

máximo bem-estar possível dos não desviantes, também o mínimo mal-estar necessários dos

desviantes”.176

Nesse viés, Ferrajoli conceitua, especificadamente, direito penal mínimo como

um

172

QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas observações críticas.

Revista IBCCRIM, São Paulo, n. 27, ano 7, jul/set, 1999, p. 145. 173

FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 271. 174

Ibidem, p. 269. 175

Ibidem, p. 270. 176

Ibidem, p. 267, 268.

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60

[...] direito penal maximamente condicionado e maximamente limitado, isto

é, limitado às situações de absoluta necessidade - “pena mínima necessária”-

que corresponda, assim, não só ao máximo grau de tutela de liberdade dos

cidadãos frente à potestade punitiva do Estado, senão também a um ideal de

racionalidade e de certeza, razão pela qual não terá lugar a intervenção penal

sempre que sejam incertos ou indeterminados os seus pressupostos. 177

Em outros termos, o direito penal mínimo resume-se àquele utilizado em mínimas

ocasiões, quando efetivamente necessário, em razão do “efeito freqüentemente

contraproducente da ingerência penal do Estado”,178

que gera intensos malefícios àqueles

que são submetido a ele. Segundo Dotti, esta linha do direito penal, identificado pelo

princípio constitucional da intervenção mínima, constitui-se um destacado movimento crítico

de avaliação a crise do sistema positivo, diminuindo a insegurança jurídica e a ineficiência

responsável pela hipercriminalização.179

Pode-se afirmar que nas duas últimas décadas um dos temas de maior

ressonância no panorama crítico do sistema penal tem sido hiperinflação

legislativa fazendo com que se reduza intensamente o poder coercitivo do

Direito Penal em face da rotineira criação de tipos que não satisfazem as

exigências de proteção dos bens jurídicos fundamentais. Tem sido uma

constante o recurso às leis penais para atender interesses conjunturais do

Estado ou de grupos de pressão.180

Ocorre que esse intenso apelo às leis penais ocasionou o desenvolvimento de algumas

correntes minimalistas que desejam contê-lo, as quais propugnam pela descriminalização e a

despenalização das condutas tipificadas como crime.

A descriminalização é “sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito do

Direito Penal certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas”.181

Em consonância, é

entendida através de duas facetas: de jure e de facto. A primeira é conceituada como a

177

QUEIROZ, Paulo, op. cit. p.145. 178

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2004, p. 341. 179

DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 37. 180

Idem. 181

CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 72.

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61

renúncia jurídica de agir num conflito pela via do sistema penal 182

, ou seja, a lei deixa de

prever um fato como crime e, conseqüentemente, de penalizá-lo. Já a segunda, de acordo com

Aniyar de Castro, ocorre “quando o sistema penal deixa de funcionar sem que formalmente

tenha perdido competência para tal, quer dizer, do ponto de vista técnico-jurídico, nesses

casos, permanece ileso o caráter de ilícito penal, eliminado-se somente a aplicação efetiva da

pena”.183

Com essa ideação, a autora compreende essa forma de descriminalização como uma

modalidade de despenalização,184

que, por sua vez, é definida, por Zaffaroni como o ato de

“degradar” a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no quê entraria toda a possível

aplicação das alternativas às penas privativas de liberdade.185

Para Baratta, a despenalização

trata de aliviar a pressão negativa do sistema punitivo sobre as classes menos favorecidas

economicamente e de diminuir seus efeitos negativos sobre elas. Além disso, tais alternativas

propiciam a substituição das sanções penais por outros meios de controle legal não

estigmatizantes e de maior aceitação social.186

Ademais, Cervini opina que às

[...] vezes considera-se mais conveniente manter a ilicitude do fato,

eliminando-se somente a pena, evitando um possível excesso da conduta

nessas áreas, e ratificando a suposta tarefa de docência moral da legislação.

Por isso, a chamada descriminalização integral, ou desinteresse total do

sistema por ações que eram puníveis, ocorre com pouca freqüência.187

De qualquer modo, tanto a modalidade de descriminalização como a de despenalização

pretendem diminuir a interferência penal na vida das pessoas e, assim, difundem o ideário do

minimalismo penal, manifestando a aplicação prática do mesmo e, conseqüentemente, do

garantismo. Isso ocorre porque os fundamentos minimalistas estão totalmente interligados às

concepções garantistas, pois, sendo a intervenção mínima um princípio constitucional, não há

como se desvincular do garantismo que se dirige à proteção dos direitos fundamentais e,

assim, à valorização dos princípios limitadores do ius puniendi.

182

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2004 , p. 340. 183

CASTRO, Aniyar de. Apud CERVINI, Raúl, op. cit. p. 74. 184

Ibidem, p. 74. 185

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.341. 186

BARATTA, Alessandro, op. cit. 202. 187

CERVINI, Raúl, op. cit. p. 76.

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62

No pensar de Ferrajoli, o garantismo pode ter três diferentes significados:

Segundo um primeiro significado, “garantismo” designa um modelo

normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o

modelo de “estrita legalidade” SG, próprio do Estado de direito, que sob o

plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de

poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de

tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o

plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do

Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. É, conseqüentemente,

“garantista” todo sistema penal que se conforma normativamente com tal

modelo e que o satisfaz efetivamente.188

Por um segundo significado, Ferrajoli sustenta que o “garantismo” representa a

diferença existente entre o complexo normativo e as práticas operacionais, ou seja, entre o

“dever ser” e o “ser”. Corresponde a uma teoria jurídica que entende a “validade” e a

“efetividade” como categorias distintas, pois as normas são válidas e não efetivas, ao passo

que a prática operacional é efetiva, mas inválida.189

Segundo um terceiro significado, por fim, “garantismo” designa uma

filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação

externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou garantia

constituem a finalidade. Neste último sentido o garantismo pressupõe a

doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça,

entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do

ordenamento, ou mesmo entre “ser” e o “dever ser” do direito. E equivale à

assunção, para os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-

política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo.190

Sinteticamente, “garantismo penal é um esquema tipológico baseado no máximo grau

de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, limitando o poder punitivo e

garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada.”191

Nesse sentido, embasa-se em vários preceitos teóricos, mais especificamente, em dez

garantias penais fundamentais.

188

FERRAJOLI, Luigi, op. cit, p. 684. 189

Idem. 190

FERRAJOLI, Luigi, op. cit p. 685. 191

CARVALHO, Salo. CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 2 ed. Rio de

Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 21.

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63

Ei-las: 1. princípio de retributividade ou da sucessividade da pena frente ao

delito; 2. princípio da legalidade; 3. princípio da necessidade ou da economia

do direito penal; 4. princípio da lesividade ou da ofensividade do ato; 5.

princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6. princípio de

culpabilidade ou de responsabilidade pessoal; 7. princípio da jurisdição; 8.

princípio acusatório; 9. princípio de verificação; 10. princípio do

contraditório e da ampla defesa.192

Tais princípios, ordenados e conectados, são “as regras do jogo” do direito penal, ou

seja, possibilitam estabelecer a responsabilidade penal;193

são, segundo Ferrajoli, as

respostas de várias questões, que possibilitam o exercício do direito penal. 194

Nesse

diapasão, os três primeiros princípios, respondem a quando e como se deve punir alguém.195

O princípio da retributividade ou da sucessividade da pena perante o delito expressa que a

penalização deve ocorrer como retribuição à realização de um crime, o qual é pressuposto

para uma sucessiva punição.196

Relacionado a essa idéia, o princípio da legalidade, como já abordado no primeiro

capítulo, estabelece que não existe um crime e, conseqüentemente, uma pena sem que haja

previsão legal que o estipule. Com isso, evita-se que os cidadãos sejam intitulados

criminosos e, também, punidos por qualquer fato valorado negativamente.

A importância do princípio da legalidade ou da reserva legal, especialmente

no campo penal, adquire sua máxima relevância ao referir-se ao caráter

forma ou legal da definição da desviação, seja por vincular a lei como

condição necessária da existência do delito, seja por submeter o juiz à lei.

Pela reserva da lei, não pode o juiz qualificar como delitos os fenômenos que

considera imorais ou merecedores de sanção segundo sua consciência ou

juízo de valores e, mas somente aqueles que, com independência de suas

valorações, vêm formalmente designados pela lei como pressupostos de uma

pena, de forma precisa, taxativa, com o menor índice possível de termos

imprecisos ou que demandem uma extensão hermenêutica muito ampla no

momento da tipificação.197

192

QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145. 193

FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 75. 194

Ibidem, p. 75. 195

Idem. 196

QUEIROZ, Paulo, op. cit. p. 145. 197

COPETTI, André. Direito Penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000,

p. 111.

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64

Diante disso, Ferrajoli, com seu enfoque garantista, criou um modelo normativo

fundado na legalidade estrita ou substancial, o qual é definido como uma técnica legislativa

que pretende evitar convenções penais arbitrárias e discriminatórias dirigidas às pessoas.

Com ela, deseja-se que as normas penais sejam, apenas, “regulamentares” dos delitos, não

“constitutivas”. Diante disso, concede-se aos cidadãos a possibilidade de fazer qualquer coisa

não proibida em lei, pois não serão penalizados por fato que não esteja legalmente tipificado.

Ainda relacionado a esses dois princípios, há o princípio da necessidade, o qual

defende que seja evitada a utilização do direito penal, ocorrendo somente quando necessária.

O princípio da necessidade ou da economia do direito penal foi proclamado pela Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a qual, em seu artigo 8º, versa que “a lei

apenas deve estabelecer penas estritas e evidentemente necessárias [...].”198

Ademais, tal

preceito é de suma importância pois sua ausência

[...] dá margem ao surgimento de uma série de situações vexatórias, para não

dizer de um sistema punitivo vexatório. A presença do princípio da economia

ou da necessidade não expressa propriamente uma técnica punitiva, mas um

critério de política criminal, cuja satisfação está condicionada, mas não é

condicionante das demais garantias. Essa deficiência de nosso sistema tem

possibilitado a presença em nossos textos legais de proibições e penas

supérfluas que se chocam frontalmente com as razões de utilidade individual

e coletiva que justificam o direito penal; tem tornado também possível a

previsão legislativa de proibições penais totalmente injustificadas por elas

mesmas serem lesivas de direitos fundamentais, não só pela impossibilidade

de sua execução, mas também por não estabelecerem proteção a nenhum

bem jurídico, bem como por se absolutamente possível a sua substituição por

proibições civis ou administrativas; e, por fim, tem facilitado

significativamente a inserção no sistema legal de penas injustificadas por

serem totalmente excessivas, não pertinentes ou desproporcionais em relação

à relevância do bem jurídico tutelado.199

De outro modo, os princípios da lesividade, da materialidade e da culpabilidade

servem como a resposta ao questionamento de quando e como proibir. O princípio da

lesividade ou da ofensividade do ato disciplina que para uma conduta ser proibida deve

causar dano real a um bem jurídico protegido. Se esse princípio não estivesse presente no

198

DOTTI, René Ariel, op. cit. p. 69. 199

COPETTI, André, op. cit. p. 123, 124.

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65

ordenamento constitucional e penal, a lesão efetiva a bens jurídicos não se apresentaria como

pressuposto necessário para que condutas (comissivas ou omissivas) venham a ser tipificadas

como crime no sistema penal.200

Em conformidade, o princípio da materialidade prevê a

necessidade de que os danos causados aos bens legalmente protegidos tenham

exteriorizações, ou seja, tenham materialidade. Já, o princípio da culpabilidade, analisado no

primeiro capítulo, define que um delito não é proibido se não for culpável. Para Bitencourt,

este princípio é recebido em três sentidos:

Em primeiro lugar a culpabilidade - como fundamento da pena- refere-se ao

fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato

típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal. Para isso, exige-se a

presença de uma série de requisitos – capacidade de culpabilidade,

consciência de ilicitude e exigibilidade da conduta - que constituem os

elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A

ausência de qualquer destes elementos é suficiente para impedir a aplicação

de uma sanção penal.

Em segundo lugar, a culpabilidade – como elemento de determinação ou

medição da pena. Nesta acepção a culpabilidade funciona não como

fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja

imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de

culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios como importância do bem

jurídico, fins preventivos etc.

E, finalmente, em terceiro lugar, a culpabilidade - como conceito contrário à

responsabilidade objetiva. Nesta acepção, o princípio de culpabilidade

impede a atribuição de responsabilidade objetiva. Ninguém responderá por

um resultado absolutamente imprevisível, se não houver obrado com dolo ou

culpa.201

Por fim, os princípios restantes arrolados são utilizados para solucionar a dúvida de

quando e como julgar. O princípio da verificação determina que o ônus probatório cabe à

acusação, isto é, o acusador deverá trazer ao processo as provas do que alegou sobre o fato

delituoso.202

O princípio do acusatório traz à lume “a regra da igualdade processual, segundo a

qual as partes – acusadora e acusada – se encontram no mesmo plano, com iguais direitos.”203

Assim, a paridade entre partes previne que alguma delas obtenha qualquer vantagem no

decorrer processual. Com esse viés, o princípio do contraditório, versado no artigo 5º, inciso

200

COPETTI, André, op. cit. 124. 201

BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1999, p. 44, 45. 202

QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145. 203

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 50.

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LV, da Constituição Federal,204

sustenta a concessão do direito de defesa aos acusados, com a

possibilidade de produzir todos os meios de prova legais necessários.

Assim, de acordo com tal princípio, a defesa não pode sofrer restrições,

mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e

defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de

condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”,

para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as

provas, “dar a cada um o que é seu”.205

Outrossim, complementando esses três últimos princípios, o principio da jurisdição

expressa a exclusividade do poder jurisdicional, o direito ao juiz natural, à independência e

imparcialidade da magistratura com exclusiva submissão à lei, servindo como orientação à

relação do juiz com as partes da lide 206

Portanto, com esse princípio, institui-se o direito do

réu de ter um processo público e preestabelecido, com um juiz eminentemente imparcial.207

Enfim, compete dizer que, como explica Lopes Júnior, os dez princípios garantidores

ora apresentados foram deslocados por Ferrajoli da concepção de confinamento que possuem

para serem inseridos no centro do sistema penal.208

Como aponta Ibãnez, “não se trata de

garantir unicamente as regras do jogo, mas sim, um respeito real e profundo aos valores do

jogo, com os que – agora - já não cabe jogar.”209

Desse modo, tais preceitos devem ser

orientações vinculadas a qualquer exercício do sistema penal.

Com base nesses princípios, os defensores do garantismo e do minimalismo criticam,

veementemente, as teorias justificadoras da pena, principal instrumento da atividade penal.

Nesse senda, Zaffaroni “[...] questiona a necessidade teórica (do professor de direito penal) e

prática (do operador jurídico penal) de um modelo explicativo da sanção no terceiro

milênio.210

O autor refere ainda que a teoria da pena é uma disciplina dogmática, a qual realiza

uma tarefa estéril ao tentar justificar o poder de punir, pois a legitimação da dogmática não se

204

Art. 5º. LV- “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados

o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” 205

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 49. 206

LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p. 13. 207

QUEIROZ, Paulo, op. cit. 145. 208

LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p.13. 209

IBÃNEZ. Apud, LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit. p.13. 210

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Apud CARVALHO, Salo de. Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de

limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 27.

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67

direciona a este poder e, sim, ao juiz, enquanto, a punição ocorre no âmbito administrativo e

não judiciário.211

Nessa esteira, constata-se a ineficácia das diferentes teorias de justificação da pena, as

quais se tornam desnecessárias por não conseguirem legitimar a pena e, tampouco, o sistema

penal. Especificadamente no tocante às teorias retributivas, Zaffaroni declara que são falhas

por perderem o dado da realidade ao tentarem aplicar a justiça de retribuição em países pobres

e injustos, como são os integrantes da América Latina. Logo, as classes menos privilegiadas

economicamente são os principais alvos dos “castigos” penais, resultando novamente

prejudicadas pelos detentores do poder,212

reforçando as desigualdades já existentes.

No que corresponde às teorias preventivas, pode-se dizer que são os principais focos

de críticas dos garantistas e minimalistas.Inicialmente, a prevenção geral

[...] não demonstrou os efeitos preventivos gerais proclamados. É possível

aceitar que o homem médio em situações normais seja influenciado pela

ameaça da pena. Mesmo assim, a experiência confirma, isso não acontece em

todos os casos, estando aí, como exemplos os delinqüentes profissionais, os

habituais ou os impulsivos ocasionais.213

Dessa maneira, nota-se que as pessoas não se abstêm de delinqüir por existir a previsão

de uma pena à sua conduta. Ademais, as [...] teorias preventivas, como as retributivas, não

conseguem sair de outro entrave: sua impossibilidade de demonstrar quais são os

comportamentos diante dos quais o Estado tem legitimidade para intimidar e, assim, sendo

não define também o âmbito do punível.214

Já a prevenção especial é fortemente atacada diante dos altos índices de reincidência

criminal, resultado dos efeitos intensamente danosos da pena privativa de liberdade, os quais

Edmundo Oliveira descreve:

211

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Apud CARVALHO, Salo de.Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de

limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de (Org.). op. cit. p. 28. 212

ZAFFARONI, José Henrique Pierangeli; Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2004, p. 342. 213

BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1999, p. 110. 214

Idem.

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68

[...] a) não serve para o que diz servir; b) neutraliza a formação ou o

desenvolvimento de valores; c) estigmatiza o ser humano; d) funciona como

máquina de reprodução da carreira do crime; e) introduz na personalidade a

prisionização e g) legitima o desrespeito aos direito humanos.215

Nesse sentido, inexistem condições de efetivar a chamada “ideologia de tratamento”, a

qual pretende ressocializar o criminoso e prepará-lo para viver em sociedade.216

Outrossim,

essa impossibilidade se afirma pelo fato de que as próprias normas sociais não

[...] podem determinar unilateralmente o processo interativo, sem contar com

a vontade do indivíduo afetado por este processo, pois as normas sociais não

são algo imutável e permanente, mas o resultado de uma correlação de forças

submetidas a influências que mudam. Em outras palavras, ressocializar o

delinqüente sem avaliar, ao mesmo tempo, o conjunto social no qual se

pretende incorporá-lo significa, pura e simplesmente, aceitar a ordem social

vigente como perfeita, sem questionar nenhuma de suas estruturas, nem

sequer aquelas mais diretamente relacionadas com o delito cometido. 217

Portanto, verifica-se haver vários argumentos capazes de desqualificar as teses de

justificação da pena como um objeto eficiente do sistema criminal. Diante disso, Zaffaroni

aponta para a visão da pena como um instrumento, apenas, de caráter político, ao passo que

os delitos e suas penas provêm de mera decisão do Poder Legislativo, o qual é uma agência

eminentemente política, e não tem a capacidade de superar todo o limite da irracionalidade e

de estipular o que é “pena” e o que não é, de dizer o que é “doloroso” e o que não é. 218

Com

essa lógica, Carvalho demonstra ser indispensável reconhecer que negar

[…] as teorias da pena possibilita eliminar do discurso penal seu viés

declarado (e não cumprido) que mascara a real funcionabilidade de sanção,

retomando, seu identificador essencial que radica na esfera da política. Em

suma: a pena seria uma manifestação fática, em essência política, isenta de

qualquer fundamentação jurídica racional.219

Diante disso, denota-se que para o garantismo e minimalismo penal, é impossível a

(re) legitimação da pena, e, sim, do direito, que é visto como regulador e inibidor da violência

215

OLIVEIRA, Edmundo. Apud SICA, Leonardo, op. cit. 46. 216

CERVINI, Raúl, op. cit. p 45. 217

CERVINI, Raúl, op. cit. p. 34. 218

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 202. 219

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 29.

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política da sanção,220

a qual precisa ser mantida como o mínimo de coerção necessária para o

controle social.221

Tal necessidade de manutenção integra as bases teóricas do utilitarismo

reformado de Ferrajoli,222

pelo qual argumenta que a pena é instrumento necessário nos dias

de hoje, porém com as devidas limitações na sua aplicação. Assim, “[…] o modelo garantista

recupera a funcionabilidade da pena na restrição e imposição de limites ao arbítrio

sancionatório judicial e administrativo.”223

É dentro dessa ótica que Ferrajoli

[…] concebe o fim da pena não apenas como prevenção aos injustos delitos,

mas também, e principalmente, como esquema normativo de prevenção da

reação informal, selvagem, espontânea, arbitrária que a falta das penas

poderia ensejar. Desde este ponto de vista, a pena se apresenta como guardiã

do direito do infrator em não ser punido senão (proporcionalmente) pelo

estado, redimensionado a função do direito e do processo penal à proteção da

pessoa que se encontra em situação de violência.224

Destarte, “[…] o direito penal mínimo e o garantismo monstram-se tendentes a realizar

a aplicação da pena e a proteger o acusado do arbítrio e do poder demasiado do Estado.”225

Logo, a política criminal voltada ao minimalismo e ao garantismo,

[…] que se presta de modo incomparável para uma abordagem

relegitimadora do Direito Penal, é fundamental para a constatação no sentido

de que o Direito não pode ser justificado como um valor intrínseco somente

por estar vigente. O poder não se sustenta somente por ser poder ou por

derivar do Estado. 226

Desse modo, tanto a existência, como a (re) legitimação do direito penal vinculam-se

diretamente ao dever de os direitos fundamentais nortearem sua aplicação, intentando a

220

CARVALHO, Salo. Penas e Garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de

Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 283. 221

SICA, Leonardo, p. 44. 222

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 34. 223

Ibidem, p. 33. 224

CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 34. 225

COSTA, Renata Almeida da. Abolicionismo utópico e garantismo penal tópico. Revista Justiça do Direito.

vol. 1, n. 16. ano 2002, p. 77. 226

SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)

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minimização dos prejuízos gerados por aquele. Ademais, isso não parece impossível, pois tais

garantias já estão inseridas no sistema normativo penal, bastando efetivá-las. De tal sorte,

diferentemente do abolicionismo, que ainda se demonstra uma utopia, o minimalismo e o

garantismo apresentam-se como solução adequada e tópica à realidade atual,227

que vem

necessitando, urgentemente, de mudanças voltadas a humanização de seus mecanismos de

controle.

Enfim, é possível analisar que, apesar de os argumentos abolicionistas se revelarem

altamente valorosos à crítica do sistema penal, os fundamentos de manutenção deste se

sobressaem diante dos perigosos danos que sua ausência possa causar às garantias

fundamentais dos cidadãos. Destarte, é indispensável a existência do sistema penal para o

mínimo controle da sociedade, contudo aquele deve ter em seu centro um direito penal que

vise, principalmente, diminuir os malefícios que a justiça penal acarreta, utilizando-a como

meio eficaz de resguardo aos direitos constitucionais de todas as pessoas, inclusive do réu.

227

COSTA, Renata Almeida da, op. cit. p. 77.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização da presente monografia jurídica coroou o desenvolvimento de uma

pesquisa iniciada há três anos, durante o curso de Direito, no grupo de pesquisa em ciências

criminais. Daquelas primeiras leituras, foi possível desenvolver o projeto de monografia que

resultou neste texto. Dessa forma, este trabalho possibilitou a utilização dos conhecimentos

adquiridos sobre a ciência penal durante o período acadêmico, como também, o

aprofundamento dos mesmos. Ademais, oportunizou a construção de uma análise crítica

sobre o sistema penal em sua totalidade.

Restou demonstrado ao longo da exposição que, dentre as várias formas de

manifestação do controle social, faz-se presente o sistema criminal, o qual se serve do ius

puniendi, para perseguir a ordem e o bem comum, quando as demais facetas de controle não

atingirem seus fins. Para levar a efeito o controle social penal, a justiça criminal dispõe de

uma estrutura que proporciona o seu funcionamento e, conseqüentemente, atribui-lhe

características peculiares.

Ocorre que, conforme se depreendeu, nas últimas décadas, vários elementos

definidores do sistema penal têm sido fortemente criticados por algumas linhas teóricas de

política criminal. Nessa senda, o movimento abolicionista penal surge, explicitando várias

debilidades da justiça penal e adscrevendo os efeitos danosos causados àquelas pessoas que

nela estão inseridas. Nesse sentido, dentre vários fatores, a teoria abolicionista alega a

dissonância entre as agências penais como uma das causas de ineficiência das mesmas. Aduz

também que o sistema penal se restringe a estigmatizar pessoas como criminosos no momento

em que denomina determinados fatos como crimes e encontra culpado para eles.

Ainda, verificou-se que o abolicionismo realça os malefícios que o cárcere gera

àqueles que estão submetidos a ele, explicitando o desrespeito da justiça criminal aos direitos

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humanos. Com isso e por ser mera manifestação de poder, aplicada a uma minoria descoberta

pelo sistema criminal, a pena é taxada como ilegítima. Contudo, para ofuscar tais evidências,

cria-se uma falsa ilusão à coletividade, pelos meios de comunicação de massa, sobre a

maximização da violência social, o que dissipa a impressão de que somente a justiça criminal

é capaz de contê-la.

Outrossim, percebeu-se que no entendimento abolicionista, a vítima é parte excluída

pelo sistema penal, o qual desconsidera os interesses daquela. Logo, com o intuito de acabar

com tais danos, a teoria abolicionista se revelou propugnar pela solução comunitária e

informal dos dissídios entre os cidadãos, sustentando que a intervenção estatal se resuma à

esfera cível, quando esta for realmente necessária. Para isso, asseverou-se que o

abolicionismo advoga por uma mudança da linguagem hodierna por outra não-punitiva,

voltada a alcançar maiores benefícios às partes do litígio e, conseqüentemente, à

coletividade, através da paz social. Nesse diapasão, a doutrina abolicionista é de grande valia

à ciência penal, pois evidencia de forma radical os defeitos da justiça criminal e, assim,

revela que modificações devem ocorrer urgentemente.

Entretanto, averiguou-se que muitos fundamentos do abolicionismo são objeto de

censura por alguns pensadores. Primeiramente, notou-se que as doutrinas abolicionistas se

erigiram em sociedades que possuem condições de vida totalmente diversas daquelas

presentes nos países latino-americanos, ou seja, advieram da cultura de países desenvolvidos

em que o Estado propicia grande parte da assistência e segurança de que a população

necessita. Contrariamente, nas nações latinas, o Estado não aplaca, muitas vezes, nem o

essencial à dignidade humana.

Ademais, constatou-se que, com a abolição penal, o mínimo de proteção

proporcionada pelo Estado aos cidadãos deixaria de existir, eis que várias garantias

constitucionais são reconhecidas àqueles através da realização dos processos judiciais

criminais. Nessa esteira, outras formas de controle ainda mais maléficas poderiam

predominar, pois as limitações impostas ao ius puniendi perderiam seu apoio e se

oportunizaria a atuação estatal arbitrária, como nos períodos ditatoriais, em que os agentes do

Estado utilizavam-se do poder de maneira ilimitada, violenta e quando era conveniente a

repressão e punição da coletividade. Outrossim, dificultar-se-ia mais ainda a resolução dos

litígios entre as pessoas, visto que elas, muitas vezes, quando envolvidas no conflito, perdem a

capacidade racional de autodeterminação e agem impulsivamente diante de um abalo

emocional. Logo, a vingança privada poderia voltar a prevalecer nas relações sociais frente à

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não existência de um sistema jurídico responsável à contenção das ofensas aos bens jurídicos

de profunda proeminência individual e coletiva.

Além disso, o estudo do abolicionismo, permitiu refletir sobre a possibilidade de

injustiças e de dominação por parte daqueles que detêm o poder na sociedade sobre os

economicamente oprimidos, a partir do fim do processo legal. Afinal, estes não teriam, nem

mais, o resguardo do devido processo para serem acusados e punidos. Portanto, percebeu-se

que, apesar de todas as objeções feitas ao sistema penal pela teoria abolicionista, aquele possui

função indispensável para a mínima manutenção da ordem e da paz entre os seres humanos.

Assim, considerou-se que entre a insegurança gerada pela abolição penal e os malefícios

gerados pela justiça criminal, esta se mostra de menor danosidade.

Contudo, advertiu-se que não estão sendo aceitas as falhas do sistema penal ao ser

sustentada a sua necessidade, pois junto a isso foi proposta uma outra alternativa a ele, que

visa, pelo menos, minimizar os prejuízos que ocasiona. Tal alternativa teve seu fulcro

ressaltado num direito penal garantista e mínimo, assentado no exercício de uma justiça

criminal garantidora e presente quando mister. Nesse magistério, foi indispensável referir a

ligação existente entre a linha garantista e a minimalista do direito penal, porquanto de serem

demonstradas a valorização dos princípios constitucionais, por parte da primeira, e do

surgimento da segunda através do princípio da intervenção mínima.

Mais especificadamente entendeu-se como direito penal garantista aquele

impulsionado a efetivar as garantias humanas constitucionais através de preceitos jurídicos

materiais e processuais, os quais estabelecem restrições ao Estado e procedimentos a serem

seguidos na busca dos agentes criminosos e na penalização dos mesmos. De tal sorte,

constatou-se que o garantismo concede uma segurança aos cidadãos: a impossibilidade de a

justiça penal agir com total discricionariedade e liberdade para atingir seus fins.

Por sua vez, compreendeu-se direito penal mínimo, ou minimalismo, como uma

limitação à ciência penal, pois essa se mostrou útil somente quando as demais esferas de

controle da sociedade forem ineficazes. Com isso, denotou-se que o direito penal não deve ser

suprimido, porém vinculado a atuar limitadamente e a agir com cautela para não dissipar

danos em ocasiões não oportunas. Nessa seara, algumas linhas teóricas, como a

descriminalização e a despenalização, se consolidam com o condão de implantar o

minimalismo de forma prática na realidade cotidiana, sustentando, respectivamente, que

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alguns crimes deixem de ser tipificados e que outros não sejam punidos com penas privativas

de liberdade, a principal responsável pelos malefícios do sistema criminal.

Nessa perspectiva, corroborou-se a incapacidade das doutrinas justificacionistas de

demonstrarem uma boa razão para pena. As teorias retributivas revelam-se injustas na medida

que, diante da situação atual de desigualdade, as classes baixas são as principais afetadas e

prejudicadas com o castigo da pena. Já as teorias preventivas, geral e especial, mostram-se

visivelmente ineficientes diante da quantidade de crimes praticados entre as pessoas, bem

como o alto índice de reincidência penal. Diante disso, os fundamentos aludidos pelas

referidas teorias foram identificados como falsos perante a situação da realidade, entendendo-

se a penalização como algo carente de juridicidade.

Nessa linha, observou-se que a pena se mantém, ainda, pela função limitativa que

exerce sobre as reações ilegais e irrestritas da população e do Estado. Por conseguinte, a pena

possui um caráter, eminentemente, político, servindo como mero instrumento de fato para o

controle social estatal. Esse viés político advém, principalmente, da forma como os fatos

delitivos são estabelecidos, através da ideologia de políticos que integram o Poder Legislativo,

e que criam os tipos penais.

Assim, verificou-se que os defensores do garantismo e do minimalismo penal não

vêem na pena a possibilidade de (re)legitimação mas, sim, no direito penal, através de uma

(re)interpretação do mesmo, amparada nos princípios constitucionais, com a priorização dos

direitos fundamentais no sistema penal, que atuará quando for realmente conveniente ao

resgate da harmonia social.

A partir disso, pode-se constatar que o direito penal explicita um duplo

direcionamento: proteger os cidadãos de vinganças individuais e resguardar os direitos do réu

integrante do sistema penal. Destarte, o direito penal assumirá uma feição mais humanitária,

diminuindo a interferência prejudicial causada por ele.

Enfim, concluiu-se que, diante das deficiências sociais presentes no panorama da

América Latina, torna-se inviável, hodiernamente, o ideário abolicionista. No entanto, isso

não significa a inércia de mudanças positivas nas condições do sistema criminal. Ao contrário,

propõe-se um direito penal mínimo e garantista como solução ideal ao presente momento da

vida em sociedade e como passo intermediário para quiçá, um dia, a possível abolição penal.

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