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ÍNDICE 01 Apresentação do projeto CROMO SAPIENS 02 O X da questão na exposição ContraBando, por Rubens Pileggi Sá 08 Vídeo instalação GALDINO 10 NOTÍCIAS FABRICADAS, texto de Manoel Silvestre Friques 15 NO ÁLBUM, FIGURA A RUA, texto de Rafaela Tasca 18 Réplica do jornal EXTRA 20 Ações CROMO SAPIENS 22 Opiniões do público e outros textos

Cromo sapiens

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Apresentação em fotos e textos dos trabalhos desenvolvidos entre 2009 e 2012, com moradores de rua, sob o título de CROMO SAPIENS.

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ÍNDICE

01 Apresentação do projeto CROMO SAPIENS02 O X da questão na exposição ContraBando, por Rubens Pileggi Sá08 Vídeo instalação GALDINO10 NOTÍCIAS FABRICADAS, texto de Manoel Silvestre Friques15 NO ÁLBUM, FIGURA A RUA, texto de Rafaela Tasca18 Réplica do jornal EXTRA20 Ações CROMO SAPIENS22 Opiniões do público e outros textos

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A Secretaria de Estado de Cultura (SEC) vem trabalhando desde 2008 para difundir, estimular e fortalecer a cultura do Rio de Janeiro, criando mecanismos

de fomento e políticas estruturantes para o setor, em todas suas vertentes, buscando contemplar todos os setores e áreas, desde as manifestações mais tradicionais, e abrangendo agentes culturais de todo o estado.

Como parte desse trabalho, a SEC criou o edital de Artes Visuais, com a finalidade de incentivar a criação artística, bem como a integração cultural, a pesquisa de novas linguagens, a formação e o aprimoramento de pessoal de sua área de atuação.

Balizado por esses parâmetros, o edital proporcionou apoio financeiro a projetos que propunham a circulação, o intercâmbio e a implementação de ações de Artes Visuais no Rio de Janeiro, visando estimular a multiplicidade e a diversidade de tendências e linguagens.

Através do edital, a SEC contemplou projetos como este, de exposições de arte, intervenções urbanas e organização, conservação e catalogação de acervos referentes à memória e ao patrimônio das artes visuais no estado. E, assim, reiterou o compromisso do Governo do Rio de Janeiro de oferecer uma programação plural, de qualidade, ampla e diferenciada.

Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro

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projeto

CROMO SAPIENS

CROMO SAPIENS é um projeto de arte centrado na questão da exclusão e da mobilidade social das grandes cidades. Sua estratégia é a de dar voz aos mo-

radores de rua, mendigos e andarilhos que perambulam pelo centro do Rio de Janeiro. Iniciou-se em 2009 com uma pesquisa sobre o sonho de pessoas que nada de material possuiam e se desdobrou

em álbum de figurinhas, vídeo instalações, ações perfomáticas, in-tervenções urbanas e, também, afetos dos mais diversos níveis. Sua execução só foi possível graças ao patrocínio da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, após ter sido selecionado pelo edital de apoio às artes, de 2010.

O nome CROMO SAPIENS foi pensado a partir da ideia de que saímos da Era do homo sapiens e “evoluímos” para uma Era em que tudo se transforma em

imagem para ser comercializada, em produto reprodutível, para ser colecionado e colado em um álbum, tornado arquivo, transformado em registro, dados numéricos, pixels eletrônicos. Quando Andy Warhol disse que “no futuro todas as pessoas teriam direito a quinze minutos de fama”, ele não podia prever que esse tempo, hoje, se tornou quase uma eternidade. Pessoas sem nenhum dife-rencial se tornam estrelas de um minuto para outro e depois desaparecem no anonimato de onde vieram. Talvez, os últimos que ainda faltam ser incluídos nessa lista de ‘cromos’ sejam, justamente, os mendigos, os andarilhos, os moradores de rua. Assim a estratégia do trabalho é a de buscar transformar seres “invisíveis” em figurinhas colecionáveis e dar-lhes voz, através de seus sonhos, ou da impossibilidade deles. Afinal, como disse Paul Klee, “a arte torna o invisível, visível”.

A presente publicação tem como objetivo reunir as diversas manifestações que se desdobra-ram do projeto, como textos críticos, opiniões do público e várias fotos, além de apresentar os trabalhos realizados, levantar um pequeno histórico das fases do projeto e comentar sobre o álbum de figurinhas, descrevendo como se deu sua circulação e distribuição.

Rio de Janeiro - maio de 2012

“Esses olhos são roubados. É azul. É de uma mulher que trabalha ali. Por isso que eu não posso trabalhar.”Clara Nunes Pereira do Santos, abordada na Rua da Glória

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Localizando a ação Esse texto trata da situação vivenciada entre os dias 10, 11 e 12 junho de 2011, durante o evento CONTRABANDO, realizado no formato de uma exposição de arte dentro de um apartamento de classe média alta, no Flamengo, que acabara de ser reformado. Diante de uma das janelas da fachada do prédio, com vistas para o Pão de Açúcar, na Cidade Maravilhosa, foi realizada a proposta do trabalho X, de minha autoria. Além de relatar a situação viven-ciada, que, como veremos, é, em si, um trabalho de arte, busco, também, refletir sobre as consequên-cias desta obra em meio a outras obras inseridas na referida mostra.

O convite Quem me indicou para participar do even-to foi meu professor e parceiro Roberto Corrêa dos Santos, que vinha acompanhando de perto o que eu andava fazendo, à época. Assim, fui apresentado ao curador da mostra, Pedro Moreira Lima, em reunião com os artistas, para conversar sobre a exposição e apresentar nossas ideias de trabalhos ligados ao tema da mostra, além de informar os locais onde instalar cada obra no apartamento, que estava ter-minando de ser reformado. Um detalhe anterior a esse fato é que quando recebi o texto da curadoria pelo e-mail, alguns dias antes, entendi que era pre-ciso pensar em uma ideia forte, compatível com o que tinha sido escrito. Ressalto um trecho do release da exposição:

“(...)almeja corporeificar o trânsito daquilo que escapa da zona de conforto de um circuito oficial. Talvez esta seja a possibilidade semântica mais literal, já que tal exposição se realiza num “espaço-tempo do nosso co-tidiano”, à margem do aparato museológico. No entanto, penso que nossa ação contrabandista vá além desse entendimento. Deseja inspirar, também, afetos que vão a contrapelo dos hábitos já domesticados pela síndrome legalista que nossa cultura vive na contemporaneidade.”

Pensei, os caras não estão para brinca-

deira. Ações fora do circuito oficial da arte sempre são bem vindas e, com essa atitude, ainda melhor. Assim, na reunião, após uma rápida olhada pelo espaço da casa, tinha decidido o que gostaria de exibir. Estávamos em uma roda falando de nossa ideias e, quando chegou a minha vez, disse que gostaria de levar um mendigo para pernoitar na residência durante o tempo que ali ocorresse o evento artístico. Senti que peguei pesado, pois um grave silêncio sucedeu à minha fala e as pessoas pareceram se surpreender com o que eu havia dito. Em um misto de cumplicidade com terror sincero de quem precisa que seu evento seja bem sucedido, Pedro, o curador, me pergunta: “mendigo?”. E eu: “é, sim, meu amigo. Ele costuma perambular bem aqui embaixo, no aterro”. “Mas ele fede?”, perguntou-me novamente. Tive certeza, naquele momento, que o trabalhado tinha tudo para ser forte, mas dificil-mente seria levado a cabo. “Bem, tenho outra ideia, mas acho que essa tem mais a ver com o trabalho que venho desenvolvendo atualmente...”

Procurando um canto A reunião deu uma esfriada ali mesmo. Mas como eu já tinha olhado a casa e escolhido um lugar perto da janela com vista para o Pão de Açúcar, disse que aquele chão era um bom local para colocar um papelão e um cobertor para o meu amigo dormir. Apenas gostaria de escrever um X na parede, delimitando um espaço. Estava preocu-pado em criar um local onde ele se sentisse menos deslocado no ambiente e resolvi delimitar um lugar dentro da casa para acomodá-lo, sem, óbvio, excluir outros espaços que ele quisesse permanecer. Lembro-me, ainda, que alguém objetou se era apenas um ou mais de um mendigo, porque senão iria virar uma bagunça. E outra coisa que eu ainda disse foi que eu até preferiria que ele viesse depois do evento fechar e saísse antes da casa abrir para visitação. Como o evento iria durar

O X da questão na exposição Contrabando

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apenas três dias, não seria muito difícil adminis-trar as entradas e saídas do nosso amigo, que iria viver uma situação inusitada: de morador de rua a frequentador de mansão no Flamengo.Passaram-se alguns instantes e Pedro veio me diz-er que aprovava a ideia, mas que eu deveria mostrar o homem ao menos na noite da vernissage. Eu topei.

Luiz Carlos Marques da Silva Fui falar com o Luiz Carlos, mas estava muito sem jeito sobre como explicar para ele sobre o que se tratava o trabalho. Ele costumava ficar atrás das canchas de futebol do aterro. Junto com outros moradores de rua. Lá ele é conhecido como Bin, de Bin Laden, por causa da barba que usa. Que karma! Mas podia contar com um amigo fiel que o chamava carinhosamente de PQD, “porque o Luiz foi paraquedista no exército”. E esse amigo era chamado de Bárti. Um garoto de pouco mais de 20 anos, portador de HIV, que vivia cheio de feridas pelo corpo. Um doce de pessoa. Educadís-simo. Um tempo depois, Bárti acabou indo procurar internamento no sanatório, em Manguinhos e nós não soubemos mais dele. Luiz Carlos sempre teve fé que um dia ele iria voltar para uma visita, e que ele iria conseguir sair dessa vida de rua. Foi por causa dele e do Luiz Carlos que cheguei à conclusão que essas pessoas são delicadas demais para viver e se inserir no capitalismo selvagem que vivemos. Eles não pos-suem defesas contra as estruturas de poder da nos-sa sociedade e se tornam uma espécie de marginais que, ao se revelarem – como aconteceu neste caso – estão muito mais para flor do que para monstros, como são vistos. “Não é todo mundo igual eu, não. Eu tenho Jesus no meu coração”. Uma das frases que Luiz Carlos vive repetindo, assim como outra que diz: “Há três mil metros, no fundo do poço, a gente não ‘veve’, a gente vegeta”. Conheci Luiz Carlos durante o tempo em que estava buscando os sonhos dos moradores de rua no centro da cidade para fazer o álbum de figurinhas NOWHEREMAN. Depois não o vi mais.

Passaram-se dois anos e, um dia, o vi no meio da calçada, no Catete, perto do lugar onde eu tinha acabado de me mudar. Emocionado, fui falar com ele. “Você não é o Luiz Carlos Marques da Silva?”. “Como você sabe?” Ele respondeu. Estava muito mais magro, sujo, sem camisa. Muito diferente do personagem que eu tinha entrevistado, fotografado e filmado. E estava bêbado, louco, delirando. Corri em casa, peguei um álbum para mostrar para ele o trabalho que tinha realizado – anda em fase de pro-jeto - passei na lanchonete, comprei um lanche, um suco para levar e mostrei a foto dele no álbum. Cheio de ‘amor para dar’, ele ficava querendo me beijar, me abraçar, ficava querendo agarrar minha mão, beijar minha mão e eu não sabia o que fazer direito. Pediu dinheiro, disse que eu ia ficar rico com as fo-tos que tinha feito dele e, aos poucos, fui me safando e fotografando nossa despedida. Agora ele era o Luiz Carlos dos cromos 26, 36, 39, 40, 41 e 42.Além disso, quando o jornal EXTRA quis fazer uma en-trevista comigo, conseguimos localizar o Luiz Carlos que, gentilmente, aceitou falar de sua vida à repórter do jornal e, com a matéria publicada, nos tornamos personalidades do bairro por um dia. Voltando à conversa sobre a proposta do apartamento no Flamengo, quem me salvou foi o Bárti, indo direto ao ponto: “ele quer expôr você como obra de arte”. Respirei aliviado. Era isso que eu queria dizer, mas estava com vergonha de falar. “Eu já ‘tava’ desconfiado”, mandou Luiz Carlos. E topou.

Negociações Acontece que, nesse ínterim, a dona da casa desaprovou o trabalho e o curador mandou um e-mail pedindo desculpas sobre o fato ocorrido, mas confirmando meu nome para apresentar um trabalho lá. Não aquele, claro! Passei dias tentando ter uma boa ideia e cheguei a rabiscar um projeto que não tinha nada a ver com morador de rua, que iria apresentar ao curador, em outra reunião. Uma noite, pelo facebook, comecei a conversar com a dona do apartamento – que é minha amiga - e, meio

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para reclamar, meio para fazer uma piada da situa-ção, disse que ela tinha ‘censurado’ meu trabalho. No que ela responde prontamente que o problema era no prédio e não com ela, pois havia um coronel no edifício que poderia impedir até a realização do evento, caso acontecesse de cruzar com um mendigo subindo o elevador. Na noite da reunião, encontrei com ela e o marido dela e perguntei a ele por que o trabalho não podia ser realizado, no que ele me disse que, por ele, tudo bem, que o trabalho poderia ocorrer, sim. Opa, as coisas estavam começando a ficar mais interessantes! Chamei o curador, a dona da casa e o marido dela para conversarmos e estabeleceu-se que o trabalho poderia acontecer, mas nas seguintes condições: que o mendigo só poderia entrar, sair e permanecer no prédio comigo junto. E que nós dois deveríamos marcar presença no dia da vernissage. “Fechado”, eu concordei.

A obra No dia da vernissage, passamos pelo por-teiro que apenas pediu para que eu assinasse uma lista e nos liberou a subida pelo elevador. Por sorte não cruzamos o coronel. Logo chegamos ao aparta-mento transformado em galeria, salão de festas e centro cultural temporário onde iria ser apresen-tado, em meio a uma profusão de performances, vídeos, instalações, desenhos, pinturas, discoteca-gem e bebidas, a obra X. Já tinha garantido a janta do meu amigo e, por enquanto, estava tudo bem. Fomos para o nosso canto e ficamos na nossa, respondendo às perguntas das pessoas que queriam saber sobre o nosso trabalho e, de fato, o Luiz Carlos foi bastante procurado para conversar. Era impossível não per-ceber ali a tensão entre dois mundos completamente separados um do outro e, ao mesmo tempo, entre pessoas que se cruzam o tempo todo, andando pelas mesmas ruas. Foi uma espécie de choque para as pessoas do mundo da arte e isso era notado pela falta de jeito com que elas se aproximavam do Luiz. Algumas moças beijavam ele, abraçavam, como se

ele fosse ‘de casa’, tentando passar alguma naturali-dade e espontaneidade que tornava tudo mais incô-modo ainda, de ambas as partes. E o detalhe é que o Luiz Carlos estava sem tomar banho há mais de um ano! Havia um constrangimento solene no ar. Uma senhora me disse que apertar a mão dele foi uma experiência de textura como nunca ela tinha sentido igual. Uma boa parte dos artistas e convida-dos acompanhavam e participavam de outras per-formances e um artista, aproveitando o tema do evento, foi fantasiado de Bin Laden. Também isso era estranho. Porque enquanto um se positivava se representando como ‘terrorista’, o outro, em uma condição sem nenhuma escolha na vida, era conhe-cido como Bin Laden lá no meio dele, não porque ele fosse terrorista, mas porque era barbudo, marginal e sujo. Sentia que já tinha cumprido meu dever e queria proteger o Luiz Carlos daquela situação que já tinha virado festa, quando aparecem duas garotas para conversar com o Luiz Carlos e eu aproveitei para buscar um refrigerante no bar para tomar-mos. Mas eis que, quando retorno do bar, estava acontecendo uma performance com distribuição de bebida alcoólica e uma das garotas pegou um copo e ofereceu ao seu mais novo e íntimo amigo e, depois que ele bebeu um copo, ela foi pegar outro copo para ele beber e eu corri para impedí-la de fazer isso. Ela, então, me cobra o fato de estar achando o trabalho interessante justamente porque mistura uma pes-soa de um mundo sem acesso à diversão e à arte, com pessoas desse outro mundo, mas que estava me achando ‘careta’ porque queria censurar a diversão de alguém que, justo eu, tinha trazido para a festa. “eu vou dar a bebida, sim. Ele não é sua obra!”, falou, impositivamente. “Ele é minha obra, sim!”, respondi com o mesmo ímpeto e, antes que ele bebesse o ter-ceiro copo, perguntei se ele queria ir, ele disse que tudo bem, e fomos embora. Na saída, Luiz Carlos me pediu uma parte do dinheiro que a gente tinha combinado pelo

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trabalho. “Claro, pois não, precisa de mais?”, respon-di, mostrando gratidão. “Não, doutor (ele me chama por doutor), isso aqui basta”. Ainda fiquei obser-vando ele se distanciando, com a bolsa murcha à tiracolo levando todas as coisas que possui na vida. Um (mais um) corpo magro e franzino cortando a madrugada carioca. No outro dia, de tarde, passei lá no ‘es-conderijo do Bin’ para levá-lo ao “trabalho”, como combinado. Ele estava imprestável, bêbado, louco, delirando, pior do que a vez que nos reencontramos. Alucinado. Escorria de seu cabelo algo gosmento como a textura de um ovo cru quebrado. Era um sábado de tarde e ele estava no meio das pessoas que tinham ido ao campo para jogar bola, beber e conversar. Fiquei com medo que o machucassem e me senti responsável por sua sorte, naquele momento. “Ei, cara, o que aconteceu com você?”, indaguei. Ele mal respondeu qualquer coisa. Tirei ele daquele lugar e ele não parava de xingar o mundo, a vida, de me xingar e nada mais. Comprei uma pinga do camelô e fiquei bebendo, deixando ele blasfemar até eu perder a paciência e ir embora. Esse foi o X da questão. Mas qual era a questão que a obra colo-cava? Confesso que a indignação da garota sobre o fato dele não ser minha obra, perturbou-me. En-quanto fazíamos nossa ação – Luiz Carlos e eu - uma das minhas preocupações naquele ambiente de arte do apartamento transformado em galeria para um evento era a de manter a distância entre público e ação de arte. E criar uma situação de diferença en-tre o que era dado a ser visto e o ambiente de festa e curtição que acabou se instalando no local, evitan-do, assim, a banalização. Era essa a resistência que eu quis manter, até o final. Bastaria dizer à garota que ele, o Luiz Carlos, era um adicto, um viciado. Que ele não pode tomar um trago porque enquanto tiver bebida e droga ele vai querer mais e mais, até o fim. E depois seria encontrado na rua como um trapo sujo jogado. Ou, então, usando da ironia, poderia ter dito a ela que, para provar amizade, que o levasse à

sua casa para beberem juntos, para provar que ele, mesmo sendo um mendigo, é irmão e amigo, e de-vemos tratar a todos de igual para igual. Mas perdi a piada e só pensei na resposta depois que o fato ocorreu. Ou, então, que ele estava lá a trabalho e fim de papo.

Relações entre o mundo e as coisas do mundo O caso é que era eu a trabalhar com alguém considerado marginal e isso leva a mil in-terpretações, como a de estar usando uma pessoa para humilhá-la ou, até, de estar sujando o aparta-mento novo da moça de família. No entanto, há vári-os artistas trabalhando com essa mesma temática e os piores casos são aqueles que ou querem falar pelo Outro, ou querem denunciar uma situação, transformando arte em mensagem ou estetizando a miséria. Em todo caso, o que aconteceu naquele apartamento foi um afastamento tão determinado da representação que tornou-se, aos olhos de quem viu de longe e não quis se aproximar, um desafio. E para os que chegaram perto, a única alternativa era, em algum momento, por melhor que fosse a intenção, buscar o desvio: “pensei que você tinha trazido ele aqui para se misturar no meio de nós”, teria sido uma das falas da garota indignada. Dentro dessa fala, teríamos apenas uma relação de mão única em um terreno onde só existe livre arbítrio e nós não estaríamos sujeitados a nada. “A economia não nos impede de dar as mãos”, poderia ter sido a fala da senhora que se perturbou com a textura das mãos do Luiz Carlos. Mas essa é a capa da indife-renciação que o capitalismo quer dar às relações entre as pessoas e o mundo. Entre o mundo e os objetos, para que tudo se transforme em matéria de consumo. O experimente de ontem é o compre de amanhã. De fato, o Luiz não é meu objeto. Ou, ele só se tornou meu objeto na medida em que eu sou o objeto dele, também. E, na medida que haviam vários níveis de relação, seja com o espaço, com o lugar e com o público. Estávamos lá trabalhando e aquele

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era um trabalho que deveria ser mantido. Caso meu “objeto de arte” começasse a beber, ou eu, como propositor da obra começasse a beber, e nos sol-tássemos no meio da festa, o trabalho teria ido para o espaço. E eu perderia a chance de mostrar o que eu tinha ido lá para mostrar: uma relação de tensão. Tensão com os outros artistas e seus trabalhos, tensão com a dona da casa, tensão com o curador, tensão com o coronel do prédio. E, não uma relação de integração. Pois essa integração iria sugerir uma mentira. Seria de uma inocência hipócrita. Depois da festa voltaríamos a ser quem éramos e eu te-ria que me desculpar porque não tive a capacidade de levar meu trabalho às últimas consequências. Não teria sido profissional. Assim, misturar teria sido matar a tensão trazida pela presença do “de fora”. Arte, se não há uma intenção, se não há um desejo de comunicação, não pode existir como arte. Mesmo um trabalho desses, onde a comunicação é a incapacidade de compreensão, de tradução de um mundo para outro. Bárti ainda não apareceu, mas o Luiz Car-los ainda tem fé que ele volte. Só que o Luiz Carlos brigou com o resto do bando e não se mistura mais com eles. Eu também me mudei da redondeza e não vejo mais o Luiz Carlos, mas tenho saudades. E ainda não fiquei rico, como ele me disse, quando mostrei a figurinha com a foto dele.

REPERCUSSÃO

LUIZ CARLOS MARQUES DA SILVA

“e, apontando com o dedo, ele me falava de um lugar chamado o fundo do poço. um lugar sem lugar, porque, aonde quer que fosse, o fundo do poço o esperava à sua frente, e ainda o per-seguia. no fundo do poço havia faca, bala, por-rada, e o mais que havia, como fome, doença, trapos, era feito nos moldes da falta. quando se livrava aqui de uma delas, era para encontrá-la de novo ali, sem demora, à espera, mas tão às claras que nem emboscada havia. e ele me fa-lava que, no fundo do poço, só havia amizade ao preço de uma guimba de cigarro, de um trago de cachaça, de uma ponta de pão mesmo que dormida, fora disso, sem um preço a ser pago, nada de amizade havia, já que a própria amizade só havia na duração do preço que a pagava, não mais do que isso. era do fundo do poço que ele me falava. e ele me falava que, no fundo do poço, era preciso manter a dignidade, manter a mente em seu devido lugar, saber apanhar sem querer revidar, saber dormir onde quer que fosse (chegando a tanto fazer se seria lá ou aqui que iria sonhar), aprender a se camu-flar de fumaça, asfalto, lixo. e, com seu bafo de nicotina e tabaco, acrescentando que cada um tem sua cruz, ele, a dele, eu, a minha, ele me falava que, no fundo do poço, pouco importava a já mínima vontade, mas o único e exclusivo gesto, o de amar – ao ponto de não se sentir incomodado em ter seu fundo do poço contra-bandeado para este evento na cobertura em que estávamos, onde iria dormir no chão, ao lado do artista que o trouxe, de frente para o mar, na qual, trazendo-nos o fundo do poço, ele me falava.”

Alberto PucheauX: Rubens Pileggi da Silva e Luiz Carlos Marques da Silva

Foto: Liza Santos

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GALDINOInstalação: projeção de vídeo sobre cobertor, texto e ventilador, 2012

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NOTÍCIAS FABRICADASInstalação em 03 partes: Folhas de jornal (03 verdadeiras e 02 paródias), relógio preparado e travesseiros sonorizados

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Por uma arte política: os mundos visíveis de Rubens PileggiManoel Silvestre Friques

Dentre o conjunto de procedimentos poéticos uti-lizado por Rubens Pileggi, aqueles que talvez se-

jam mais pungentes dizem respeito ao modo como o artista lida com a visibilidade. Suas obras propõem, com uma certa freqüência, deslocamentos do vi-sível, na medida em que trazem à baila elementos ignorados pela paisagem urbana – mas que perten-cem, irrevogavelmente, a esta – ao mesmo tempo em que se dissolvem em meio ao caos das grandes cidades. Questionando, por exemplo, a “lógica do monumento” – no interior da qual a escultura representa, em caráter grandioso, permanente e comemorativo, um feito histórico – Pileggi trata de criar estátuas efêmeras em miniatura, instalando-os em lugares de grande circulação. Em poucas horas, tais objetos somem sem deixar rastros, em contraponto direto ao boom de memória vivenciado nos dias atuais, seja por meio do desenvolvimento tecnológico, seja por meio de um revival da idéia de

monumento como memorial. Aqui, não resta dúvi-das quanto à proposta desmaterializante da obra: o trabalho de Pileggi resiste à institucionalização artística ao se diluir nas ruas das metrópoles, afirmando-se como uma antiescultura, antiobjeto. Se, em “Monumento Mínimo Precário” (1998), o visível – a obra de arte, a escultura mini-monumental – é devolvida à sua condição de invisibilidade, em “Notícias Fabricadas” (2011), observa-se movimento inverso. Atuando criticamente a partir de reporta-gens jornalísticas que lidam com o “problema” dos moradores de rua, Pileggi exibe não apenas este grupo de indivíduos, mas também os recursos utiliza-dos pela mídia para torná-los, por meio da visibilidade da notícia, mais invisíveis. A matéria-mote para a obra expunha as medidas utilizadas pela prefeitura do Rio de Janeiro para impedir a ação dos mendigos, colocando pedras embaixo dos viadutos, tornando in-viável a permanência deles nestes locais - lugares in-

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abitáveis os quais a necessidade transforma em lar. Relatava também a preocupação dos moradores “legítimos” dos bairros, por meio da contratação de detetives responsáveis por desvendar a origem e o perfil dos “invasores”. Ora, como não saber a origem dos moradores de rua? A leitura do artista para a notícia produziu então o trabalho que agora lemos. Às matérias iniciais, são acrescentadas duas páginas de jornal contendo reportagens produzidas pelo próprio Pileggi, três travesseiros sonoros e um relógio “Romelex”. Por meio das notícias que produz, o artista cria uma fenda naquilo que Barthes denomina de logosfera – uma espécie de camada de forração formada por tudo que lemos e/ou ouvimos. Neste caso, ela se refere ao discurso oficial, por meio do qual a versão jornalística se converte em retrato legí-timo da realidade. A criação de mais reportagens sobre o tema, acrescentando-lhe informações, não é realizada de forma incólume, pelo contrário. As notícias de Rubens levam ao extremo as posições jornalísticas – aparentemente imparciais – a ponto de revelar-lhes seu absurdo latente. O acréscimo de matérias impõe-se como um artifício por meio do qual a reportagem do artista revela o caráter fictí-cio – e, por que não dizer?, mentiroso – de algo que se pretende verdadeiro. A adição, portanto, abala o discurso jornalístico, interrompendo o continuum de palavras que trata de esconder, ou ao menos ve-lar, suas verdadeiras intenções e posicionamentos. A perspectiva crítica deste trabalho não surge por meio da denúncia ou da supressão, mas da intensi-ficação – através do acréscimo – de um discurso. É neste sentido que o trabalho de Pileggi pode ser relacionado à poética de Bertold Brecht. Pois, assim como a do encenador alemão, a obra aqui comentada trata de devolver a verdade histórica ao escrito. Neste caso, ela está estampada no título: “Notícias Fabricadas”. Enquanto verdade produzida, o sentido deste discurso jornalístico é único: ele atua de modo monopolizante, parcial e redutor. Isto não deve ser desconsiderado, nem

neste, nem em outros casos onde a mídia, com a sua capacidade (e o seu poder) de controlar e manipular a informação, inventa verdades men-tirosas – neste sentido, o tratamento dado aos mendigos resulta de uma postura-padrão de um tipo de jornalista desvinculado já há algum tempo de qualquer pensamento ético, postura essa que pausteriza os insurgentes e os relega à invisibi-lidade (mais recentemente, pode-se mencionar o caso de Pinheirinho, em São Paulo, noticiado de modo torpe pelos veículos de comunicação). A verdade histórica é inserida então no espa-ço atemporal e asséptico da galeria de arte. Ora, nesta operação, onde o histórico se choca com o atemporal, põe-se em jogo não apenas os binômios verdade/mentira e história/natureza, mas também outro: fora/dentro. Ao dar destaque, por meio de sua obra, a assuntos rotineiramente relegados ao esquecimento – não apenas pelos jornais, mas por todo e qualquer transeunte de uma grande cidade – Pileggi impregna o interior da galeria de seu ex-terior, acrescentando (uma vez mais) a um espaço subtraído (afinal, este lugar isola a obra de tudo aquilo que pode interferir a sua apreensão) todo o seu entorno. O cubo branco é, com isso, contamina-do – os mendigos não estão apenas soltos nas ruas, mas presentes também até nos espaços ideais das galerias de arte. Os três travesseiros atuam, com isso, de modo diametralmente inverso a propostas relacionais, como os “Objetos transitórios para uso humano” (2008), de Marina Abramovic – cuja gene-alogia, indubitavelmente, deve remontar à produção de Ligia Clark – na qual o espectador é convidado a vivenciar “momentos de paz” desencadeados por relações ritualísticas com materiais como cristais, cobre e ferro. No caso de Pileggi, elimina-se a pos-sibilidade de uma vivência desta natureza, pois encostar a cabeça no travesseiro traz consigo a densidade sonora do exterior. O espectador, então, é alçado à condição de mendigo, vivenciando, não uma experiência íntima e atemporal, mas uma situação histórica e fabricada pela notícia do artista.

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O choque temporal e a redistribuição espacial observados na obra de Rubens Pileggi condu-zem à crença de que suas produções artísti-cas são políticas. Tal afirmação pressupõe uma noção de arte política que, antes de representar conflitos sociais ou denunciá-los, configura-se como um sensorium no qual a experiência pro-posta trata de produzir um dissenso, uma fissu-ra na logosfera instituída. Por meio de abalos, acréscimos e deslocamentos, Pileggi questiona justamente os regimes instituídos de visibili-dade e de legibilidade, travando um diálogo com Jacques Rancière, quando este diz que a arte é política quando “os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das com-petências e das incompetências, que define (ou definem?) uma comunidade”. Sua obra é política na medida em que redistribui relações e embar-alha polaridades – ela não poderia ser outra, portanto, a não ser um Romelex.

Manoel Silvestre Friques é Teórico do Teatro (UNIRIO) e Engenheiro de Produção (UFRJ). Douto-rando no Programa de História Social da PUC-Rio, é Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO. Professor da Faculdade de Artes do SENAI-Cetiqt, foi assis-tente do artista plástico André Parente entre 2008 e 2010. É editor de conteúdo dos sites tempofestival.com.br e novasdramaturgias.com.br e co-fundador do grupo teatral Aquela Cia. Na abertura da ex-posição In-Possíveis (Parque Lage, 2012), lançou seu primeiro livro, Seis Chaves, contendo ensaios sobre seus companheiros de Programa Aprofun-damento, Luciana Paiva, Tiago Rivaldo, Louise D.D., João Penoni, Bruno Belo e Danilo Ribeiro.

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NO ÁLBUM, FIGURA A RUA: A EXPERIÊNCIA DE NOWHEREMAN, O LIVRO-OBJETO E A INSERÇÃO DA OBRA NOS CIRCUITOS IDEOLÓGICOS Rafaela Tasca

Titubeei várias vezes em abrir o pacote de figurinhas que o artista me enviou. Havia

em mim ruídos de medo e desconcerto frente à proposição artística de Nowhereman, pois sabia exigir minha ativação para se completar. Preparei-me para iniciar a ação sobre o objeto e, ao fim do primeiro movimento de abrir e co-lar figurinhas nos espaços do álbum, fui tomada pela sensação típica da imersão em um jogo. Entretanto, Nowhereman vai além da experiência do colecionismo e do lúdico pos-sibilitada por sua forma “álbum de figurinhas adesivas”. Nowhereman é livro-objeto. É expan-são do espaço de arte. É exposição fotográfica itinerante. Um museu-miniatura. Um álbum-tabuleiro. Uma maquete-livro. Um não-objeto1. Uma intervenção urbana. Criado pelo artista Rubens Pileggi como parte da exposição Cromo Sapiens, Nowhereman assume um formato clássico de álbum. Com dimensões de 20x18 cm, contém 27 páginas, em papel couchè e sulfite de gramatura média, a serem preenchidas com 42 fotografias de moradores de rua do centro carioca. Cada figurinha, ou cromo, tem 6,5 x 8,5 cm e é for-necida dentro de pacotes lacrados. Em alguns cromos há trechos da fala do retratado. Na página, podem ser afixadas sobre o texto de anúncios imobiliários do centro do Rio. Ou ao lado da planta baixa de um apartamento. A cada retratado é dada a referência de nome, idade, procedência, tempo como morador dia e local da “abordagem”. Fruto de uma pesquisa do artista com mendigos da região central do Rio de Janeiro, Nowhereman se propõe a uma reforma urbana

simbólica que contemple estes “homens e mul-heres sem onde, resumidos a um aqui e agora sem esperanças.”, como escreve na apresen-tação de sua proposta. Para tal, o artista se vale de um formato tradicional de colecionismo que se dá através de figuras adesivas das mais variadas temáticas, em sua maioria ancoradas nos ideais de herói, dos objetos de consumo venerados ou do ilustre inalcançável. Pileggi também se apropria de um fenômeno editorial brasileiro recente, ocorrido durante a Copa de 2010, quando o conglomerado multinacional Pa-nini lançou um álbum de figurinhas com os joga-dores das seleções participantes da competição mundial. Posto que o futebol é febre nacional, as figurinhas igualmente assim foram. Assim, pleno de uma intenção que absorve o formato popular e interativo da natureza dos álbuns, o artista atua às avessas, em outra esfera social, em uma vertente de contra-informação. O gesto ousado de Pileggi sedimenta um trabalho de arte que opera na fusão de mer-cadoria e arte, com ênfase no consumo de um objeto pelo público; parte essencial de seu pro-jeto artístico. Em Nowhereman, o artista desti-tui a metáfora2 e acopla à sua proposição a noção de circuito e circulação de informa-ções, nos moldes adotados por Cildo Meire-les em Inserções em Circuitos Ideológicos (1970) e Elemento Desaparecendo/ Elemento Desaparecido (2002). A exemplo da fabricação e comercial-ização dos picolés proposta por Cildo em Kassel, Pileggi também cria um aparato de distribuição de seu produto, o álbum e as figurinhas, que po-dem ser adquiridos – ou trocadas - em espaços

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http://www.brasildefato.com.br/node/6898

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da capital fluminense (uma banca, uma galeria e um museu), ou solicitados para postagem através de email ou contato telefônico. Portanto, cria por meio de um impresso industrial, de re-produção e circulação massiva, uma “estratégia de visibilidade” que usa da noção de circuito para dar materialidade e sentido a seu trabalho. Interessante pensar que Pileggi tam-bém é poeta, crítico de arte e escritor. Uma atu-ação que remonta à familiaridade do artista com o objeto livro, formato de expressiva aparição na arte brasileira, sobremaneira entre os concre-tos e neoconcretos que tensionaram, por vezes dissolveram, as fronteiras entre artes visuais e literatura. Ferreira Gullar ao tecer sua análise sobre a obra Bichos de Ligia Clark aponta que o próprio início da participação do espectador nas obras de arte teria origem no livro, “por definição um objeto manuseável3”. Assim, No-whereman atua no campo do objeto escultórico, embricado ao alargamento conceitual do forma-to livro impulsionado por Haroldo e Augusto de Campos (Poemóbiles), Ferreira Gullar (Poemas Espaciais), Waltércio Caldas (O Colecionador, Aparelhos, Livro Velásquez e Manual da Ciência Popular) e, também, de Artur Barrio (Cadernos-Livros e Livro de Carne). Por fim, Nowhereman segue o curto-circuito das fronteiras e tensionamentos da arte, vida e ação política. Ao inverter o espelho dos ícones sociais e expor os cão sem plumas4 da urbe, o projeto artístico de Pileggi trabalha é com a pólvora, mesmo.

1 “Diante do espectador, o não-objeto apresenta-se como inconcluso e lhe oferece os meios de ser con-cluído. O espectador age, mas o tempo de sua ação não flui, não transcende a obra, não se perde além dela: incorpora-se a ela, e dura. A ação não consome a obra, mas a enriquece: depois da ação, a obra é mais que antes – e essa segunda contemplação já contém, além da forma vista pela primeira vez, um passado em que o espectador e a obra se fundiram: ele verteu

nela o seu tempo. O não-objeto reclama o espectador (trata-se ainda de espectador?), não como teste-munha passiva de sua existência, mas como condição mesma de fazer-se. Sem ele, a obra existe apenas em potência, à espera do gesto humano que a atualize.” (GULLAR, Ferreira. Teoria do Não Objeto.)2 “...fazer trabalhos que não existam simplesmente no espaço consentido, consagrado, sagrado. Que não aconteçam simplesmente ao nível de uma tela, de uma superfície, de uma representação. Não mais trabalhar com a metáfora da pólvora — trabalhar com a pólvora mesmo.” (MEIRELES, Cildo.)3 “de fato, a origem da participação do espectador na obra não poderia ter sido mais natural e sim-ples: nasceu do livro que é por definição um objeto manuseável. (GULLAR, Ferreira)4 Célebre poema de João Cabral de Melo Neto sobre o Rio Capibaribe e a miséria que acometia os habitantes de suas margens. O “Cão Sem Plumas” foi publicado pela primeira vez em 1950. REFERÊNCIASANJOS, Moacir dos. Cildo Meireles: A poesia e a in-dústria. In: Revista do Programa de Artes Visuais, UERJ, 2004.GULLAR, Ferreira. Teoria do Não-Objeto. In: Experiên-cia Neoconcreta: momento-limite. São Paulo. Cosac Naify, 2007.MEIRELLES, Cildo. Depoimento sobre Inserção nos Circuitos Ideológicos. Revista Bravo. Julho/2006. Disponível em: www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/000795.html (Acesso em 4/06/2011)NETO, João Cabral de Melo. O cão sem plumas. Edi-tora Nova Fronteira, 1984.

Rafaela Tasca é jornalista com especialização em História da Arte Moderna e Contemporânea pela EMBAP e desenvolve pesquisa em curadoria e crítica de arte.

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http://extra.globo.com/noticias/rio/artista-paranaense-conta-historias-de-moradores-de-rua-em-album-de-figurinhas-2031645.html

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AÇÕES CROMO SAPIENS

As estatísticas apontam para mais de 2000 mil moradores de rua no Rio de Janeiro.

A maioria jogada no centro da cidade, que se transforma em dormitório a céu aberto, à noite. O que eu posso fazer para intervir nessa situação? O que você pode fazer diante desse trágico quadro exposto cotidianamente diante de seus olhos? O que o poder público pode fazer para melhorar a vida dessas pes-soas? O presente trabalho nada esclarece sobre essas perguntas, apenas aponta na

Aceitando trocar um álbum de figurinhas NOWHEREMAN por uma refeição, colecionadora entrega uma ‘quentinha’ para moraddores de rua, na região do Catete..

Lançamento no Estúdio Dezenove

À esquerda: no meio da rua, na Lapa, junto à Banca Cultural antes de ter sido colocada no chão pelo poder público. Uma perda para a região!

direção daquilo que todos preferíamos não ver, mas que não podemos continuar fingindo que não vemos.Em pouco mais de dois anos de trabalho, voltei a ver apenas um dos personagens. Ele, no en-tanto, simboliza e aponta para o sofrimento de outros, que perambulam errantes, despossuí-dos, inclusive, de sonhos. Além do aspecto for-mal, as questões sociais e contextuais não são estranhas à história da arte. Foram elas que levaram às ações do projeto CROMO SAPIENS.

Troca-troca

Banca Cultural da Lapa

Acima: com a presença de amigos, em 30/04/2011, no Estúdio Dezenove, em Santa Teresa

foto: Livia Hung

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Museu do Mundo

Museu do Mundo foi o nome dado para o es-paço que abriu com a proposta de « clínica

de artista », pelo artista e professor Roberto Corrêa dos Santos, em Ipanema. Foi lá, durante o mês de junho de 2011, que ocorreu a exposição SÓ SONHA QUEM DORME.

http://figur inhasnowhereman.blogspot.com

Constituída de duas instalações e lançamento do livro ilustrado – álbum de figurinhas – NOWHEREMAN, a exposição conseguiu atrair um público significativo, interessado em arte e, também, nos conteúdos propostos dos trabalhos apresentados.

OLHOS ROUBADOSVídeo InstalaçãoVídeo, espelho, painel fotográfico recortado, texto de parede e caixa de papelão

A vídeo instalação OLHOS ROUBADOS apresenta frontalmente a imagem de uma idosa sentada, com as mãos estendidas, pedindo esmolas. Seu rosto, mãos e pés são recortados. Colada à parede, uma frase dita por ela. Quando o espectador se aproxima desse conjunto, percebe um som e uma luz atrás do painel. Para ver o rosto da personagem no espelho e o que ela fala, precisa ‘invadir’ sua privacidade, onde descobre a caixa de papelão que, supostamente, seria o lugar onde a mulher dorme.

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SÓ SONHA QUEM DORMEVídeo InstalaçãoAparelho de vídeo, TV, e esteira

A vídeo instalação SÓ SONHA QUEM DORME assume a mesma estratégia das academias de ginástica da zona sul carioca, que exibem seus clientes malhando enquanto assistem TV, do outro lado da vitrine. Só que, ao invés de usar a pro-gramação “normal” dos canais, passa um vídeo em que moradores de rua relatam a necessidade de se manterem atentos, evitando, assim, serem surpreendidos pela polícia ou por marginais dispostos a chutá-los ou incendiá-los enquanto dormem. Em sua apresentação no Museu do Mundo, uma placa no chão pedia que as pessoas tirassem os sapatos. A ideia é que as pessoas, para se relacionarem com o trabalho, ficassem na mesma situação dos personagens retratados.

Oi,Me chamo Joice e vi a matéria que o Brasil de Fato fez sobre o álbum Nowhereman. Moro em Santa Maria/RS e trabalho em uma escola da periferia da cidade, àrea onde há uma ocupação urbana. Várias crianças que moram na área da ocupação estudam na escola, e por isso tenho a intenção de trabalhar a questão da terra e da moradia no contexto urbano com essas crianças, que, mesmo em uma situação diferente daqueles que estão em Nowhereman, acabam se tornando invisíveis pela condição em que vivem. Gostaria de mostrar o teu trabalho para as crianças e montar alguma ativi-dade baseada nele. Como faço para consegui-lo?Obrigada,Joice Zorzi

01/08/2011

Olá Rubens,Meu nome é João Pires, sou funcionário da Secre-taria de Cultura de São Bernardo do Campo, SP, e gostaria, primeiro lugar, de parabenizar seu trabalho "Nowhereman", que realiza algo que acredito como central para o artista e a arte, qual seja, de buscar refletir e intervir na realidade cotidiana, ou seja, uma propositura que busca a alteração do simbólico. Isso posto, gostaria de consultá-lo sobre a pos-sibilidade de viabilizarmos a execução da proposta aqui em nossa cidade, pois a atual administração do município de iniciou uma série de ações para a Redução de Danos e para a População de Rua e esta intervenção seria de grande importância para seu fortalecimento no sentido de efetivação de uma Política Pública para este setor.no aguardo de seu retornoJoão Pires12/07/2011

Opiniões do público

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Olá Rubens, tudo bem?O material chegou hoje pela manhã e só confir-mou a minha expectativa, além de causar grande impressão ao restante da equipe da SC. Em breve voltamos a conversar.abração

João Pires21/07/2011

Oi Rubens, como está por aí?ADOREI O ALBUM DE FIGURINHAS!!!!!!!!!!EM SETEMBRO TEMOS A SEMANA DE ARTE DA UEM, NÃO SEI SE VC ACHA VIÁVEL, MAS SE QUISER DARIA PRA EXPOR O TRABALHO.Beijo grande!Sheilla07/07/2011

Só sonha quem dorme, exposição de Rubens Pileggi apresentada no Museu do Mundo, aponta para a afirmação da arte como espaço da vida. Com dois trabalhos instalativos e um impresso,

a exposição coleciona histórias, registros e sonhos que desfazem mais que conservam a forma do inventário. O tom aparentemente objetivo dos três trabalhos que compõe a exposição – Só sonha quem dorme, Esses olhos não são meus e Nowhereman – não materializa somente a informação sobre o mundo de “invisíveis funcionais”. Dão igualmente visibilidade à divergência no espaço pú-blico da arte. Pileggi apresenta a força da inscrição de imagens que realizadas com a perspectiva da dor do outro são transformadas por uma imaginação reflexiva. Registradas, reiteradas, deslocadas para modos de apresentação e dispositivos diferenciados, Só sonha quem dorme torna reversível o documento em sua condição de prova, pois ele expressa a vida que insiste nos espaços da ci-dade desamparada. Qual a importância da atividade de colecionar se o que reunimos não afirma o movimento da vida? A indigência pertence à poesia quando ela arrisca a dar brilho ao não ilustre. Estranho brilho fosco de uma poesia que se instala entre as provas da infâmia.

A miséria não é aqui digna de lástima ou pena. Não há nenhum tom de lamentação nesse trabalho engenhoso de Pileggi, ainda que o infortúnio social seja tema de sua angústia artística. Do jogo

inocente, resta a potência da visibilidade que atordoa. Afinal, que lugar tem esses esmoleiros, es-ses sem teto, no ambiente fino da arte? Fantasmas ou pessoas? A imagem manuseada invalida a inocência da atividade. É a voz do mendigo que afirma: “só sonha quem dorme”. Podemos sonhar porque diante da injúria dormimos. A vigília, entretanto, é o que nos resta depois de manusearmos as figurinhas de NOWHEREMAN. Suas imagens e frases, as indicações dos lugares, as estatísticas são provas da indigência, mas acima de tudo esses documentos exprimem a sobrevida que subsiste nos destroços.

Luiz Cláudio da Costa é professor adjunto da graduação e do Mestrado em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Trecho do texto de Luiz Cláudio da Costa para a exposição SÓ SONHA QUEM DORME

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Caro Rubens,

Estamos desenvolvendo aqui em maceió o www.jornaldarua.org.br , ele estará na rede a partir do dia 01 de julho, achei seu projeto interessante e gostaria de um exemplar para fazermos um trabalho com nossos moradores de rua.caso seja possível ficamos agradecidos, obrigado pela atenção.

Jose Bispo Filho26/06/2011

Parabéns pelo trabalho.Pena que não pude ver tua exposição no Rio, espero ter novas oportunidades.Te escrevo pois quero um álbum e figurinhas.Como fazemos?

Beijos,

Fernanda Magalhães25/07/2011

Tomamos conhecimento de sua exposição Só sonha quem dorme e ficamos encantados com a possibilidade de trazê-la para o CCULT em 2012. O CCULT é o Centro Cultural da UNISUAM – uma instituição de ensino superior com mais de 25 mil alunos, doze mil só na nossa unidade, que é a maior e fica em Bonsucesso. Temos cursos de Desen-volvimento Local, Assistência Social, Comunicação, Direito e vários outros que os alunos certamente adorariam ter contato com seu projeto. Além de achar importante aproximar os alunos de um tema normalmente rejeitado pela sociedade, tenho um interesse pessoal sobre o assunto.Poderíamos fazer uma palestra com eles e com você aqui no CCULT. O que acha? Bem, nosso es-paço é gratuito. Todos os que expõem aqui ganham

as fotos tiradas no evento. Quando a TV UNISUAM faz cobertura, damos a reportagem em DVD. E toda divulgação interna e externa é feita pelo Departa-mento de Comunicação da UNISUAM. O que sair na imprensa, passo para os expositores. Assim, temos conseguido trazer exposições organizadas pela LAMSA, pela FIOCRUZ, dentre outros; temos rece-bido personalidades, como o príncipe Dom João de Orleans e Bragança, O imortal Evanildo Bechara, o escritor Joel Rufino dos Santos, a professora e escritora Tania Zagury e outros mais. Até peças de teatro estamos trazendo para a UNISUAM. Dê uma olhada no nosso site para conhecer um pouco de nossa história. Agora queremos você aqui conosco fazendo parte dela. Então, venha nos conhecer, conhecer o nosso espaço. Tenha certeza de que vai ser muito bem recebido. Um grande abraço e até breve.Cintia Neves e equipe.CCULT - Centro Cultural Unisuam 22/06/2011

Splash deixou um novo comentário sobre a sua postagem "PEDIDOS":Olá!! comecei a colecionar hoje e adorei! preciso de novas figurinhas mas não sei onde achar e ainda tenho uma repetida! o que eu faço? Beijo!20/06/2011

Olá Rubens, tudo bem?Tive a oportunidade de conhecer o álbum NOWHER-EMAN, dei uma conferida no blog e fiquei muito interessada em fazer uma matéria sobre esse projeto. Sou repórter com passagem por alguns dos principais jornais impressos do Rio, mas há algum tempo optei pro trabalhar como freelancer. Faço matérias para revistas e outros trabalhos de comunicação. A minha ideia inicial é bater um papo informal com você para saber toda a ideia e montar uma pauta para oferecer à revista Piaui.

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Acho que tem tudo a ver com a linha editorial deles.Você topa?Se puder, me passe um telefone para contato. Assim, podemos marcar um encontro.Grande abraço.

Anna Luiza GuimarãesJornalista03/06/2011

Olá Rubens,Não nos conhecemos, mas estou encantada com o seu trabalho do album de figurinhas. É lindo. Dar visibilidade as diferentes formas de vidas, a vida em invenção o tempo todo, com suas crenças, desejos, sofrimentos e sonhos, se ocupar disso na sua arte é muito legal!Quero alguns, para mim e para dar de presente.Agradeço a sua atenção.Um grande abraço,Monica Rocha27/08/2011

Rubens ... recebi ontem o album e as figurinhas .... porém hj estava abrindo os pacotes e separando e notei que falta a figurinha numero 13 ...... vc teria como me enviar essa figurinha ???? acredito que faltou pq veio uma que não é para colar ..... e como vem 3 em cada pacote ... ficou faltando essa .....grata Sheila

Olá, SheilaA figurinha numero 13 é uma charada do álbum de figurinhas NOWHEREMAN, Sheila, pois ela confundiu as páginas do álbum onde ela deveria estar com os muros e paredes das cidades e, de vez em quando alguém diz que a viu em um ou outro

muro da cidade. Enquanto ela não aparecer, vc pode substituí-la pelo joker do baralho, pelo louco do tarot ou por uma cópia da pintura de Hieroni-mus Bosh, chamada “o filho pródigo”, do século XV. Peço, também, que de vez em quando vc dê uma olhada no blog http://figurinhasnowhereman.blogspot.com para saber o que anda acontecendo com a figurinha 13. Já tem bastante informação, mas quem sabe ela não apareça por aí, na sua casa, também? Afinal, esses andarilhos erram pelas cidades e a gente sempre acaba reparando em um deles, no meio de nosso caminho. Dê um prato de comida a ele, acaso acontecer de bater em sua porta alguém faminto, pedindo comida. Mais do que um cromo, a figurinha 13 representa um estado de loucura, de errância e de abandono e é só pelo nosso olhar e pela nossa compreensão que poderemos ajudá-lo a sair dessa vida.A outra figura, a que não tem número, veja só que ironia é a vida: ela é tão excluída que nem lugar no álbum de figurinhas tem. Dê um lugar a ela.Um abraço,qualquer coisa mande um email para saber mais.Um abraço06/04/2011

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Eu já acompanhava o trabalho do Pileggi pela net. Mas numa certa tarde, quando eu saía de casa pra minha corrida, uma surpresa: na caixinha do correio o álbum, que o artista carinhosamente me enviou (trocamos livros). Qual não foi a minha surpresa ao abrir o envelope e perceber que as figurinhas que completavam as páginas em branco eram de pedintes, de moradores de rua, dos excluídos, dos miseráveis, que pouco se diferem do Fabiano-bicho criado pelo Graciliano há mais de 70 anos (e somos "a sexta economia mundial"! Rá! Rá! Rá!).

Marcele AiresPoeta e professora de literatura da Universidade Estadual de Maringáhttp://aveianopulsoainda.blogspot.com.br/

Olá Rubens, Aqui é a Juliana do Vitrine Efêmera. Gostei de te conhecer. Te escrevo para contar sobre da minha experiência com o seu projeto Nowheremen. Você deve conhecer melhor do que eu as propostas de outros artistas que trabalham com o assunto dos moradores de rua. Alguns por um viés mais estético, outros mais políticos e tantos outros realizando propostas momentâneas. Imediata-mente, ao ter contato com seu projeto, confesso que achei que se tratava de uma abordagem mais antropológica, mas ao ir colando as figurinhas no álbum, me dei conta da potência sensibilizadora da sua proposição. Admiro o tempo que você dispendeu conversando com eles, assim como me comovo ao obrigatoria-mente me ver alisando as faces das imagens que você nos oferece em close. Seu trabalho é bem sucedido em vários momentos. Primeiro, quando você oferece a compra, a preço módico, o seu álbum, você consegue ativar um prazer pelo colecionismo

e uma recordação de infância que acredito que a maioria tenha tido. Depois, quando você propõe a tarefa de colar as figurinhas, o espectador deve empregar um certo tempo para realizá-la e consequentemente ler as sucintas informações das legendas. É aí, na legenda, que para mim, está o ponto fundamental do seu trabalho. Enquanto muitos artistas intentaram dar visibilidade à população de rua, você resgata os nome desses desconhecidos. Penso que o recon-hecimento dessas pessoas como indivíduos, a sua singularidade, é mais eficaz que mantê-los apenas como uma massa indiferenciada. Parabéns pelo projeto! Aguardo o cromo 13! Abraço, Juliana www.julianakase.com

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