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Básica 2, 3 Professor Alberto Nery Capucho Estudo Acompanhado 9º Ano 2004 / 2005 A Net Eu não sou analfabeta, mas sou anetfabeta. Os computadores, tal como os secadores de cabelo, os vídeos, os telemóveis e as calculadoras (tudo o que tiver mais de um botão e se faça acompanhar de livro de instruções) despertam-me suspeitas e tendências agressivas. Quando não funcionam como eu quero e penso (e não funcionam como eu quero e penso porque, geralmente, me esqueci de carregar no botãozinho) acho que um murro bem assente na estrutura, ou uma pancada seca, resolvem o problema. Sou do género de refilar com a máquina do multibanco e contar as notas à saída, porque a máquina é capaz de me querer enganar. Quando lido com pessoas e dinheiro, nunca confiro. Nos carros, acendo o rádio no isqueiro e meto a cassete ao contrário. Nunca consegui utilizar o temporizador do vídeo (que talvez esteja programado para o próximo milénio) e não faço ideia para que serve um equalizador. O computador, esse "acquis" da modernidade, é um objecto que me serve de máquina de escrever e nada mais. Nunca joguei o Tetris e só anteontem é que percebi que o DOS de MS-DOS era a abreviatura de Disk Operating System. No momento em que acabo de escrever isto, pergunto a um jornalista: e o MS para que serve? Ele acha que serve para Microsoft. Deus queira.

Cronica a Net

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Bsica 2, 3 Professor Alberto Nery Capucho

Estudo Acompanhado 9 Ano

2004 / 2005A Net

Eu no sou analfabeta, mas sou anetfabeta. Os computadores, tal como os secadores de cabelo, os vdeos, os telemveis e as calculadoras (tudo o que tiver mais de um boto e se faa acompanhar de livro de instrues) despertam-me suspeitas e tendncias agressivas. Quando no funcionam como eu quero e penso (e no funcionam como eu quero e penso porque, geralmente, me esqueci de carregar no botozinho) acho que um murro bem assente na estrutura, ou uma pancada seca, resolvem o problema.

Sou do gnero de refilar com a mquina do multibanco e contar as notas sada, porque a mquina capaz de me querer enganar. Quando lido com pessoas e dinheiro, nunca confiro. Nos carros, acendo o rdio no isqueiro e meto a cassete ao contrrio. Nunca consegui utilizar o temporizador do vdeo (que talvez esteja programado para o prximo milnio) e no fao ideia para que serve um equalizador. O computador, esse "acquis" da modernidade, um objecto que me serve de mquina de escrever e nada mais. Nunca joguei o Tetris e s anteontem que percebi que o DOS de MS-DOS era a abreviatura de Disk Operating System. No momento em que acabo de escrever isto, pergunto a um jornalista: e o MS para que serve? Ele acha que serve para Microsoft. Deus queira.

Assim sendo, por que raio que decidi investir num computador novo e entrar na Net? Em verdade vos digo que, de h uns tempos para c, alimento fantasias sobre o acesso aos bancos de dados, catlogos e contedos das grandes bibliotecas do mundo. Vejo-me dentro da Biblioteca do Museu Britnico a consultar os manuscritos de Dickens ou a estudar o esplio de Graham Greene que foi vendido Universidade de Austin, sem largar a minha cadeira anatmica (ergonmica?): a propsito, nela me instalei com desconforto durante vrios meses, sem reparar que tinha vrias posies a gosto, quando descobri as manivelas e parafusos que ocultava por baixo do assento, telefonei para os vendedores pedindo explicaes primrias sobre o modo de me reclinar, ao cabo de dezenas de pontaps e pancadas secas que no produziram o efeito desejado.

Quanto Net, simples. J comecei a bombardear com perguntas um perito em computadores que, mal passada a meia hora de interrogatrio, fugiu com ar abatido, prometendo voltar a contactar-me com todos os problemas resolvidos nos prximos dez anos. Duvido que me queira voltar a ver pela frente, mas no tenciono desistir. Nas horas de desalento imagino a Enciclopdia Britnica metida num CD-ROM (o que significa o ROM?) e animo-me. Um CD pesa meia dzia de gramas e tem uma espessura fininha que enche de felicidade: c em casa o espao livre finou-se. O futuro arruma-se (ou arroma-se?) em CD-ROM.

E h o e-mail, claro, que eu no sei bem o que e decerto me suavizar bem a vida. Com o e-mail posso marcar expedies, reservar lugar em avies, encomendar detergentes, contactar um tio na Califrnia, explorar as virtudes da l irlandesa, conhecer Barbados, pedir o programa dos festivais de Edimburgo e Salzburgo, apreciar os tesouros do Metropolitan, ouvir pera no Scala, etc, etc. tudo sem sair de casa. Desconfio que se lhe pedir com bons modos, o e-mail tambm faz um jantar para vinte pessoas e passe a ferro sem falhas os vincos. Talvez o convena a escrever esta crnica em minha substituio, enquanto vou at Barbados. Tudo a Net me dar.

evidente que terei de introduzir algumas modificaes no meu estilo de vida, com a Net c em casa. O manual de instrues ser um livro com o ttulo de Inforescravos, traduo um pouco desajustada de Microserfs, de Douglas Coupland, o autor de Gerao X (...).

O que o Douglas me diz que, com a Net e a subservincia Microsoft (MS) que ela impe, vou deixar de ter estilo de vida porque vou deixar de viver. Molharei os lbios na espuma dos dias e no chego a beber-lhe o champanhe. Levanto-me cedinho e sento-me ao computador onde comeo a conversar com o mundo inteiro e a conhecer as diferentes espcies de vrus do mercado. Ao almoo, no almoo, para poder passar mais tempo sentada ao computador. Ao lanche, no lancho porque o dia est avanado e o computador ainda no to rpido que me autorize a gozar intervalos. Ao jantar, algum c em casa, com pena de mim e temendo o estado de subalimentao, far deslizar por baixo da porta umas fatias de quijo, bolachinhas, passas e demais aperitivos com uma espessura inferior ao do meu CD-ROM. ceia, levanto-me, espreguio-me e preparo-me para o turno da noite que pode ser passado a balbuciar infantilidades como as do filme The Net ou a dar uma vista de olhos pela pornografia existente no mercado. Nas frias, vou at Barbados. Sento-me ao computador e peo o folheto electrnico e que me mostrem as vistas. Olho para o cr e aterro nums praia de areia lisa, mar turquesa e palmeiras a danar na brisa. Respiro fundo, dou um mergulho cibernutico, cou duas pancadinhas no rato e sigo viagem.

Clara Ferreira Alves, A Pluma Caprichosa I, Publicaes D. Quixote

Crnica "A Net" - Ficha de Trabalho

1 - Nesta crnica, a autora comea por se definir "anetfabeta".

1.1 - Por que razo ou razes?

1.2 - Que sentimentos despertam nela as novas tecnologias?

1.2.1 - Em que medida esses sentimentos se repercutem nas suas atitudes?

1.3 - A escritora decidiu "investir num computador novo e entrar na Net".

1.3.1 - Que vantagens considera ela que a Net poder trazer-lhe?

1.4 - Apesar de todas essas vantagens, a jornalista no deixa de encarar este "novo mundo" com ironia e alerta-nos para uma srie de contras deste "admirvel mundo novo".

1.4.1 - Detecta no texto marcas de ironia.

1.4.2 - Enumera os contras referidos no texto.

1.4.2.1 - Partindo da tua prpria experincia, acrescenta outros que consideres relevantes.

2 - Ser que a Net nos transforma em "Inforescravos" ou "Microserfs" e que apenas nos permite "molhar os lbios na espuma dos dias" sem nos permitir "beber-lhe o champanhe"?

3 - O mundo da Informtica deu origem a um enriquecimento da lngua portuguesa.

3.1 - Selecciona do texto vocbulos (siglas, acrnimos ou outros) introduzidos na nossa lngua graas a esta rea.

3.2 - Acrescenta a essa lista outras palavras que no se encontrem neste texto.