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São cinco e meia da manhã e chove. Não há barcos no ancouradouro, e os poucos transeuntes andam apressadamente. Acho que hoje será meu último dia nessa ilha maldita. Nunca gostei daqui, sabe, clima ruim. Sempre está chovendo. Nem me lembro como é o sol! Tanta chuva faz mal ao ser humano, talvez por isso os cidadãos dessa maldita ilha sejam tão desagradáveis. Veja bem, imagine aquelas pessoas que falam gritando, que te tocam durante uma conversa, aquelas que riem alto, e mesmo aquelas que falam mal de ti pelas suas costas; junte tudo isso e terá o perfil médio do cidadão de Sacredus.São ratos de telhado, em busca de qualquer forma de se alimentar, mesmo que seja com o mais aqueroso das carnes. Não é exagero de minha parte, porquanto pouco ganharia sendo antagônico aos moradores de onde estou aquartelado. Talvez a água da chuva e a neblina tenham infiltrado no cérebro deles. E o Sotaque? Nem lhes digo do sotaque. Um camponês bêbado e com uma batata atochada na boca falaria com mais desenvoltura do que os Sacredusinn. Só há uma coisa boa nessa ilha maldita: Aqui nunca há guerra. Quiçá os tempos de peleja façam falta aos mais animados dos soldados, mas para mim o que importa é continuar vivendo em segurança. Não que a guerra seja de todo ruim, nós soldados só existimos devido à guerra. Em tempos de guerra, podemos enriquecer com as pilhagens e destacar-se como comandantes. Tenho amigos que agora tem regimentos próprios pela bravura nas batalhas. Mas veja bem, levar uma flechada no joelho ou mesmo uma espadada no ventre não é nada agradável. E pior que isso: os cercos. Alguém aí já participou de um cerco? O último meu – em Ironia, se me lembro bem –, durou seis meses de fome e frio. Imagine sentar em frente de um porco e esperá-lo morrer para então comê-lo. Isso para mim é um cerco. O pior é quando a doença ataca, sendo a pior a cólera. Já vi exércitos de cinco mil pessoas serem dizimados até sobrarem uma meia centena. Outro inimigo desgraçado – e sorrateiro – é o frio. Maldito seja o deus-frio. Suas mãos malditas invadem nosso corpo roubando todo calor e vida . A única coisa boa do inverno é que o desgraçado também mutila nossos inimigos. Assim sendo, podemos voltar para casa mais cedo. Mas vontando ao que dizia, acho que hoje será meu último dia nessa maldita ilha. Meu comandante, nomeado Grupter mas conhecido entre nós soldados como testa de ferro – uma antiga

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São cinco e meia da manhã e chove. Não há barcos no ancouradouro, e os poucos transeuntes andam apressadamente. Acho que hoje será meu último dia nessa ilha maldita. Nunca gostei daqui, sabe, clima ruim. Sempre está chovendo. Nem me lembro como é o sol! Tanta chuva faz mal ao ser humano, talvez por isso os cidadãos dessa maldita ilha sejam tão desagradáveis. Veja bem, imagine aquelas pessoas que falam gritando, que te tocam durante uma conversa, aquelas que riem alto, e mesmo aquelas que falam mal de ti pelas suas costas; junte tudo isso e terá o perfil médio do cidadão de Sacredus.São ratos de telhado, em busca de qualquer forma de se alimentar, mesmo que seja com o mais aqueroso das carnes. Não é exagero de minha parte, porquanto pouco ganharia sendo antagônico aos moradores de onde estou aquartelado. Talvez a água da chuva e a neblina tenham infiltrado no cérebro deles. E o Sotaque? Nem lhes digo do sotaque. Um camponês bêbado e com uma batata atochada na boca falaria com mais desenvoltura do que os Sacredusinn. Só há uma coisa boa nessa ilha maldita: Aqui nunca há guerra. Quiçá os tempos de peleja façam falta aos mais animados dos soldados, mas para mim o que importa é continuar vivendo em segurança. Não que a guerra seja de todo ruim, nós soldados só existimos devido à guerra. Em tempos de guerra, podemos enriquecer com as pilhagens e destacar-se como comandantes. Tenho amigos que agora tem regimentos próprios pela bravura nas batalhas. Mas veja bem, levar uma flechada no joelho ou mesmo uma espadada no ventre não é nada agradável. E pior que isso: os cercos. Alguém aí já participou de um cerco? O último meu – em Ironia, se me lembro bem –, durou seis meses de fome e frio. Imagine sentar em frente de um porco e esperá-lo morrer para então comê-lo. Isso para mim é um cerco. O pior é quando a doença ataca, sendo a pior a cólera. Já vi exércitos de cinco mil pessoas serem dizimados até sobrarem uma meia centena. Outro inimigo desgraçado – e sorrateiro – é o frio. Maldito seja o deus-frio. Suas mãos malditas invadem nosso corpo roubando todo calor e vida . A única coisa boa do inverno é que o desgraçado também mutila nossos inimigos. Assim sendo, podemos voltar para casa mais cedo. Mas vontando ao que dizia, acho que hoje será meu último dia nessa maldita ilha. Meu comandante, nomeado Grupter mas conhecido entre nós soldados como testa de ferro – uma antiga história, bem desagradável, por sinal – nos informou que o Draco precisa de mais regimentos no front do grande oeste.

Para aqueles que não sabem, vivemos uma guerra civil. Eronia está dividida em duas forças antagonistas: Os imperiais, leais ao Draco Arm IX, e os legalistas, leais a Gragev. Os legalistas dominam as colônias de Ironia, o grande Oeste, parte de Barrera e algumas cidades do Grande Norte. Em minha modesta opinião, eles ganharão, mesmo estando do lado dos imperiais. Gragev, o primeiro filho do antigo Draco, Plivit I, é infinitamente superior ao medíocre Arm IX, segundo filho de Plivit. Com certeza desertarei na primeira oportunidade. Dizem que Gragev paga 20 dynamos aos soldados que desertarem à sua causa. Não que eu seja um traidor, mas o fato do atual Draco ser um fantoche do Barão de Minerv, o famigerado Oroc, me deixa receoso. Eu já engrossei às linhas de batalha comandadas por esse homem, e posso dizer sem sombra de dúvidas: É a pior pessoa que já conheci. Sua crueldade é proporcional ao seu poder de manipulação sob o infantil e destemperado Arm IX. Controla Arm como um burro com arreio. Quanto mais desertarem à causa de Gragev, mais rápido a guerra acabará, por isso desertarei. Eu teria o prazer de matar Oroc, mesmo que isso seja bem improvável, principalmente por nobres lutarem montados em seus alazões de guerra, e eu, como um

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simples soldado, não ser muito afortunado contra uma besta dessas. Contudo nem me intero de tal cena, não quero estragar meu sono.

Acabei de receber uma mensagem: sairemos às onze da manhã do dia quarenta e dois do mês de Lizél, no ancouradouro norte da ilha, onde eu estou aquartelado, que significa que terei que ajudar a preparar os barcos para a viagem. Trabalho pesado, eu diria, e ínutil, já que provavelmente haverá atrasos devido a chuva. Terei que fazer o trabalho de trinta dias em quinze.