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Sumário Passeio À Bela Vista, 1 Vida Indiferente, 2 Dia de solidão, 3 Promessa de uma vingança, 4 Maurício, 5 Recordações, 6 Carla, 7 Liberdade e repugnância, 8 Marília, 9 O bom consolo, 10 Tardes bucólicas, 11 5 copos de bebida quente, 12 Menino de Rua, 13 Paixão infernal, 14 Lembrança de morte, 15 A paixão segundo S.C, 16 O quarto e eu, 17 Conversa entre Homem e mulher, 18 Eles, 19 De uma suicida, 20 Próximo natal, 21 O código do papel, 22 O sonho, 23 Na praia noturna, 24 Fim do mundo, 25 Homens X Mulheres, 26 Entrevista, 27 Recordações do amor, 28 Experiência com o cogumelo, 29 Segundo contato com o cogumelo mágico, 30 A maçã (desejo), 31 As flores (pudor), 32 De que forma morreu a verdade?, 33 Procurar, 34 Por onde você anda?, 35 Ao amigo, uma vida curta, 36 Ao amigo R.T., sua solidão, 37 Pequenas cartas para alguém, 38 Sobre o poema que te fiz, 39 A espera de Chico Buarque, 40
Passeio À Bela Vista Ainda não havia começado o inverno tão esperado onde pudessem se despedir dos constantes maus humores advindos do calor intenso do verão. Porém os fortes ventos anunciavam da brisa febril, logo ali o mar. E não fosse isso o silêncio era absoluto, exalando do lugar o que sobrava de verde, de rústico e uma fraca luz amarela que, embora circulando, era precisa em seu foco: A pequena mesa quadrada ao lado da rede; Tudo isso era a varanda. A rede movimentava ao embalo do vento, abrigando os apaixonados que resolveram adiantar a lua de mel tão desejada na comum impaciência juvenil de construir o futuro sempre que o dia acaba e mudam os rumos, cada um se aquece no calor sutil e característico de seus aposentos familiares, e quando retornam à cama, sozinhos, sentem-se num riso discreto e a vontade incontestável de amar. Nara e Sivuca (José era seu nome, mas como o odiava tratou logo de arranjar um apelido, nome razoavelmente bom para quem tem admiração por sanfonas) tiveram que contornar o pai dela; Almácio, inventando uma prova de matemática no dia seguinte e claro, uma coleguinha de escola que era boa no assunto e estava disposta a estudar com ela. O pai aceitou meio desconfiado, ter a filha ausente por uma noite não podia ser de todo uma maravilha. Os dois seguiram estrada, felizes e cheios de planos. O fato de a pousada ser distante da cidade era suficientemente atrativo para criar um mundo fantástico de liberdade e lógico, o que esta palavra podia significar. O lugar escolhido por ele era bom. Pequeno, mas de aconchegante privacidade. Passearam na praia de mãos dadas enquanto conversavam trivialidades. Os surfistas recheavam a paisagem, pouca gente desfrutava da areia branca, o mar enfurecido ocasionou a certeza de que não iriam encarar o sal. Era realmente um daqueles momentos que se julga felicidade eterna, sensação de que o dia deveria durar o ano inteiro, pois ainda assim não haveria cansaço e nem a apatia costumeira dos casais enraizados pela intimidade do tempo. À noite depois de asseados e bem vestidos, a boa pedida para o jantar não podia deixar de ser lasanha de camarão. O vinho agora completava o perfil clichê de um passeio romântico. Os corpos rebuscados na tentativa, quase cruel, de não exprimir agitada ansiedade do desfecho: Os dois embriagados se entregando no escorrego dos sucos. E não sentem quando o quarto esquenta anunciando, pela luz do sol, quão breve foi o passeio. 2009
Vida Indiferente
Ela vivia totalmente indiferente das coisas que a rodeavam. Maria Aparecida,
78 anos, vítima de uma doença que acabaria com sua vida. Na sua juventude era
determinada e indomável, casara-se mais por necessidade de constituir família que por
amor. Os longos anos de convivência e filhos a fez sentir um pouco de amor pelo
homem que a idolatrava, Orlando Dias, seu marido parecia um eterno apaixonado pela
ousadia da figura feminina. Dias passava horas observando sua mulher com orgulho e
admiração - oito filhos foi o resultado de um casal comum, anos mais tarde, porém,
Orlando Dias se apaixonou perdidamente por Clemência, a novidade trouxe-lhe
consigo um desdém por Maria, já velha e quase imperceptível. Orlando passou a
frequentar cada vez menos a sua casa, seus filhos e principalmente, sua mulher, (em
seu leito de morte). Maria, por sua vez, se sofreu foi apenas pela sensação (ainda que
remota) de abandono e indiferença. Já não se lembrava do seu passado e da vidinha
tão cotidiana que tivera. Estava inativa, no ócio, sem lembranças e sem marido.
Apenas cinco filhos lhe restaram da cria, os outros três foram mortos no mesmo ano
em meses consecutivos, decorrente de uma doença crônica pavorosa. Dos cinco filhos
apenas dois faziam-se lembrar da mãe. Uma pessoa simples, sem qualquer vaidade, de
uma personalidade forte e intocável. Era assim... Maria aparecida morreu em
setembro, apenas morreu, por que estava apenas viva. Mas sua história nunca mais foi
lembrada. Porque não deixou história. Apenas viveu e morreu.
2006
Dia de Solidão
Hoje o dia amanheceu mais cedo. A casa permanece em profundo silêncio.
Somente o ventilador faz o som de um lugar abandonado. Deve ser um daqueles dias
que não há ninguém no mundo verdadeiramente bem. Não moro só, porém, os que
aqui residem, também chamado de família, se ausentaram por motivos diversos. A
mãe saiu para descansar um pouco a cabeça de tantas brigas e elogios pejorativos, o
pai sabe-se lá onde estar, a minha irmã ligou a pouco, aos prantos, narrando um
assalto que acabou de sofrer, só sobrou meu namorado que perdeu a avó hoje e talvez
nem esteja com o pensamento nesse mundo. Estou sozinha com o meu cachorro que
late com qualquer barulho a milhas de distância. A cabeça dói como um instrumento
de terror, que tritura pele, ossos, órgãos. Quando olho para cima, penso que vou
desmaiar. Amanhã logo cedo devo trabalhar, o sono foge de mim. Sinto-me só e
sofrida. Carrascos me deixaram chicoteada e rente ao chão. Talvez porque o dia
anoiteceu mais cedo, uma noite de eterna tristeza e solidão. A dor na solidão é pior
que a solidão na morte. Pois morte é o começo de novos encontros e jamais estarei
sozinha, e a vida, por mais habitantes que haja, é tão obscura e unitária, cada um
segue seu caminho, sem olhar para os lados, sem se importar com ninguém e sem
descobrir o amor.
Que dia! Devia ficar conhecido como o dia mundial da solidão, mas sabe por
que eles não fundam esse título? Porque não há saudações e nem manifestações no
comércio. O dia internacional da solidão seria obscuro, triste, chuvoso, ou talvez, o dia
anoiteceria mais cedo.
2006
Promessa de uma Vingança
Os primeiros raios de sol agrediam levemente o meu rosto enrugado, cansado de
tanta vida, de tantas coisas iguais e momentos normais, desejo, porém, ficar em paz,
só, com minha velhice, as memórias de uma morte inventada, sossegada e cheia de
choros, gemidos de dor daqueles parentes, amigos e até desconhecidos que se
lembrarão de mim nesse dia de morte. No caminho que faço todos os dias (o médico
recomendou), andando sem pretensão, pensando nesse dia breve que a vida se
esquecerá de mim, vejo tudo comum; carros, estudantes, velhos, animais, árvores e
penso nesses movimentos que de tão normais, são estranhos. Passei por um grande
campo de futebol, vazio e de chão úmido, ainda da chuva que inundou noite passada,
mesmo com todo respeito merecido, a mosca pousou na pele, fazendo-me lembrar de
que aquele seria um dos únicos dias que havia tomado banho. Depois a mosca
rodopiou na minha frente como se quisesse zombar, provocar para uma briga. Aceitei
a provocação e gritei:
- Respeite os mais velhos sua rapariga!
A mosca revidou com força, pousava nas minhas costas e depois no braço.
Comecei a bater nela com a mão (ou pelo menos tentei) mas a filha da puta
continuou enchendo o meu saco, apressei o passo e ela me acompanhou, como uma
inimiga fiel dos últimos dias. –Vá embora!!! Gritei novamente, ela fingiu nem me ouvir,
caçoava da minha raiva cada vez mais psicótica. Não sei o que aconteceu com a mosca,
deve ter morrido, às vezes me lembro dela com rancor, e penso que queria ser uma
mosca... Então, me deito no sofá e resolvo não pensar em nada.
2006
Maurício
Mauricio teve uma noite maravilhosa. Levou Fabiana ao cinema à tarde, juntos
tomaram sorvete e a noite lancharam num restaurante exótico e agradável. Passearam
no carro pela praia, conversaram, firmaram a paixão na lua e decidiram pernoitar num
hotel. Ah! Fabiana! Uma mulher linda que ele conhecera ao lado do trabalho, a
principio se encantou por sua beleza diferente, forte e singular, depois, porém, acabou
por se apaixonar completamente, ela tinha um poder de liderança que baleava o
sentimento de Maurício. Mas havia um grande problema: Fabiana era casada e pior,
por ironia do destino, o marido dela era um antigo amigo que Maurício teve no tempo
de colegial.
Saíram algumas poucas vezes, esta entretanto, foi a última. O hotel era
encantador e Fabiana estava mais bonita do que nunca, usava uma saia indiana
vermelha, uma blusa básica branca, uma pena na orelha combinando com a saia e um
sorriso branco e feliz. Tomaram um vinho. Fumaram e dormiram muito bem. O
cansaço do dia e o encantamento de momento foram responsáveis pela boa sensação
de sono. Ao acordar ele percebeu que estava só. Sorriu e pensou que ela não podia
chegar tarde... Afinal era casada, e logo com Carlos!, Começou a recordar seus
momentos com Carlos; eles andavam juntos por todo canto, fumavam escondido no
colégio, pulavam o muro no intervalo e influenciavam as meninas um ao outro, ambos
só tinham graça estando juntos. De repente Maurício viu um papel ao seu lado:
“ As poucas possibilidades que tinham restado para nós foram debilitadas e queimadas
ao ponto máximo. Você foi um erro no meu momento. Eu te odeio “
Maurício ficou desnorteado, imaginando se seria Fabiana ou Carlos quem lhe
escrevera aquilo.
2006
Recordações
O porvir tarda como uma nuvem que navega devagar, o sol demora a ser pôr,
seus pensamentos flutuam e dissipam de forma tão singular quanto àquela tarde de
domingo, ele pensa que talvez nem toda a sua vida fora tão lenta quanto aquele
tedioso dia. Severino era viúvo. Tinha seus quarenta e seis anos, novo, bem
conservado e ainda um tanto inteligente, matava a charadas antes das tentativas
alheias. O seu único filho -Cláudio Augusto- já era casado e não tinha filhos, sua mulher
era estéril. Severino se lembrava da sua juventude, tantas festas!Quantas mulheres! O
quanto era despreocupado e feliz, e o como aquelas lembranças excluíam os
momentos banais e ruins da mente, sorriu levemente como um autoconsolo, ao
menos teria saboreado alguns eufóricos momentos de alegria. Olhava agora pela sua
janela a rua fúnebre, solitária e seus bons pensamentos se dissiparam como uma
rajada de vento repentina, aquela mesma rua onde morava desde que se casara,
continuava ali, jovem, vendo tantos casais ou crianças jogando futebol, pensou que
talvez tivesse velho demais para recordar sua infância já tão remota, apenas queria
lembrar-se que fora boa, relativamente boa. Preferia crer que fora boa. E viu sua
mulher sorrindo no cartório, um casamento simples, só ambos e o padre, era uma bela
mulher, carnuda, dentes grandes, alvos e extremamente retos, era ciumenta e dona de
uma personalidade ímpar, de forma que exalava respeito apenas com sua meiguice,
lembrou-se dos seus defeitos, mas preferia ficar apenas com boas recordações, afinal
ela já estava morta. Gabriela se fora tão rápido que não dava nem para acreditar, um
ataque cardíaco, simplesmente sumiu, evaporou. Severino voltou para casa, esqueceu
suas velhas recordações, ligou a TV e mergulhou novamente em sua solidão.
2005
Carla
Passava pela rua todos os dias, olhava para as casas sem prender-me a
nenhuma em especial, e com pensamentos que vagavam na mesmice cotidiana.
Aquela casa, porém, me intrigava, era a casa de Carla, sim, Carla! Eu a conhecera no
transporte coletivo, quando vinha de uma prova seletiva, na qual ela também fizera, e
viemos lado a lado, discutindo as questões, que terminaram em outras discussões
insignificantes. Fazia um bom tempo que a havia conhecido, mas lembrava-me dela,
claro! Cabelo curto e vermelho, meio baixa, sorriso encantador e uns olhos grandes e
acastanhados que causava em qualquer homem, uma ideia perturbadora de
dominação e desejo. Quando descemos, ela mostrou-me sua casa, “aquela de pedra,
frente grande e portões marrons, com uma árvore na frente” o que me intrigava, no
entanto, era que jamais vira alguém na casa, e ainda assim, havia vestígio de
moradores (mesmo que fantasmas). Uma vez havia uma rede armada, e um pequenino
par de sandálias azuis repousavam sem qualquer dono; outro dia, uma moto preta
parou em frente à dita casa, um homem forte logo desceu, e gritou: Carla! Carlaaa!
Apressei o passo para tentar ao menos vê-la, passei pelo homem, e embora a
porta estivesse aberta, não aparecera ninguém. Em meses depois consegui ver um
homem dentro da casa, de idade avançada, porém, bem conservado, fumando na
varanda, imaginei ser o pai de Carla, mas acuei em minha timidez, e não perguntei por
ela. Então se prosseguiram meus dias monótonos, passava em frente da casa de Carla,
a rede armada; a porta aberta; sandália no tapete; e simplesmente ninguém aparecia.
Aprendi a contentar-me em ver a sua sandalhinha, pelo menos imaginava ser dela.
Desisti de vê-la, olhava para lá sem qualquer expectativa, com o pensamento tão vago,
em nada se fixava, nada questionava. Chegou o verão, não precisava mais seguir
aquele caminho, matriculei-me em outro curso, fiz muitas amizades, aprendi a tocar
umas músicas no violão e até arranjei uma namorada.
2006
Liberdade e Repugnância
Batia desesperadamente na porta marrom e estreita, Paulo acabara de fazer o
mais ridículo de seus comentários, poderia ter ficado no mesmo casual, mas a
promessa feita de nada esconder um ao outro, já lhe pesara demais a cabeça. Sônia,
tranquila, continuava trancada no banheiro sem nenhuma culpa a lhe pesar a atitude,
ao contrário, sentia-se incompreensivelmente triunfante! Ele batia. Ela sorria,
indiferente e fria. Algum rancor completava o coração da mulher que apesar de ter
traído muito, jamais admitira que não fora amor.
Durante muito tempo podiam jurar morte pela vida do outro, e ainda assim a
própria morte cegavam neles um desejo infantil de estarem juntos eternamente, era
um sentimento insano, de posse e carinho com gosto de séculos passados, como se
pudessem ter sido todos os casais apaixonados ao mesmo tempo. Sussurravam juras,
fizeram-se promessas e o amor se fez um só, por noites e noites, onde os corpos se
fundiam; e com a mesma intensidade, se beijavam loucamente, entrelaçavam as
línguas doentes por uma vida tardia, um desejo sem dor. Tic tac... os minutos
passavam...Toc Toc ...Quase derrubava a porta por desespero de consciência, Paulo
precisa questionar que, embora tivesse beijado outra, não havia traído, havia sentido
uma repulsa pelo maldito beijo e ao mesmo tempo uma incrível sensação de desprezo
pelo próprio ato, como se liberdade e repugnância fossem uma só.
Sabia ele, terminaria só; os amigos tentou evitar desde de quando firmou um
certo medo por Sônia, desde de quando ela passou a manipular sua instintiva
voracidade masculina, as amigas, nem mencionarei! Até sentia falta das segundas
intenções que lhe eram proporcionadas nas mesas com estas. Inclusive, mulher é o
cão! Como elas podiam perceber o perigo? Sônia tinha o dom de descobrir exatamente
quem eram as mulheres que lhe cobiçavam o marido. Embora ele achasse chato,
admirava muito essa percepção de sua mulher. Esta, traída, era satisfeita, tinha o seu
homem a aclamar-lhe a atenção e ainda sua consciência de beijos cedidos a outros
homens, diminuída. Sentia-se dona da situação. E era. A porta rangia. Ouviam-se gritos
loucos de alguém que desejava voltar ao tempo... Porém, Paulo não se arrependia,
também era dono da situação e faria tudo novamente se oportunidade tivesse. E
fizeram.
2008
Marília
Marília sorria satisfeita por ter conseguido a vingança desejada desde quando se
apaixonara por Renato. Ele a iludiu o quanto pode, traiu, e finalmente deu-lhe um
“chega pra lá” assim que conseguiu uma namorada mais jovem e bonita. Depois da
história de nove meses juntos, ela costumava dizer sempre, como ideia para vida, que
o amor é um filme de final trágico. Nem sabia ao certo que fora amor, mas podia jurar
que jamais sentiria algo tão forte por alguém. Renato nem era tão bonito, mas possuía
um charme de libriano que matava qualquer uma no olhar, sua inteligência era
limitada aos assuntos informais e conquistas específicas a cada estilo de mulher.
Marília viveu quase três anos de angústia, de raiva, e vez por outra, ainda ficava feliz
por qualquer elogio fingido de Renato, quando a encontrava nas festas, e vinha ao seu
ouvido sussurrar-lhe as frases mecânicas e ultrapassadas, mas assim mesmo conseguia
arrancar um sorriso interno, um riso que somente ela sentia, e quase a fazia flutuar
como se ingerisse alguma droga.
Certo dia Marília encontrou Marcos Antônio, o pai de Renato, num restaurante
discreto da cidade, cumprimentou-o com elegância, e sentou-se um pouco atrás dele,
de forma que podia observá-lo sem ser percebida. E assim fez, achou em seus gestos, a
forte presença charmosa do filho, com a única diferença do pai ter uma maturidade
mais peculiar no olhar. Ela ficou imaginando como seria em momentos íntimos, em ser
amparada por suas mãos tão belas! Em algum momento ele virou para trás para
chamar o garçom; ela se refez como se saísse do sonho e disfarçasse que não estava
sonhando. Em pouco tempo ela pôde contemplá-lo novamente, respirou fundo e
chegou a uma conclusão: A culpa é dos cromossomos! Claro! A culpa só podia ser dos
cromossomos, quem dera se os filhos não herdassem tal beleza de certos pais, e não
usassem isso como massacre de corações alheios! Por um momento estranho ela
sentiu raiva de dois! Pai e filho num mesmo complô!
Meses em frente Renato a surpreendeu numa ligação, seria real? Em pleno fim de
semana ligando para fazer-lhe um convite? E ainda um romântico passeio? Não! Não
podia ser a mesma pessoa, no mínimo tinha apostado com os amigos que ainda
conseguia tê-la. Ela pensou friamente e humildemente aceitou o convite de ir à praia à
noite.
Era sua chance de dar o troco, não sabia se ia resistir, mas tinha que tentar.
Rabiscou meio nervosa um esboço de mensagem e até chegou a escrever no celular “A
minha presença é lembrança e tuas mentiras te deixaram só, mas o mar ainda está
lá!”. Não sabia ao certo se enviaria a mensagem.
O bom Consolo
As paredes nuas invadem meus poros, cores se fazem vivas e ativas nas retinas
já cansadas duma vida morta. Sinto-me só. Sou só. Às vezes sinto a ingratidão inerte
sob o peso de minha existência, como se devesse pagar por cada segundo de vida.
A solidão do meu silêncio conforta a ausência de algum ouvido, que ao acaso, procura
o suicídio. Lembro-me bem, observava sempre distante os detalhes de tudo, as
gavetas da minha infância ainda guardam notícias fúnebres, e definitivamente cada
passo inumano das pessoas que minha vista alcançava. Hoje, não diferente do
passado, tenho meu quarto, amigos e talvez família. Porque tinha a impressão de que
a genealogia do meu sangue, não me pertencia nem quando estava sendo
descuidosamente gerada.
Tudo ao meu redor era fútil e propositalmente chato. Não havia uma forma de
escapar, não havia sequer motivo para isso. O concreto era concreto original, mesmo
sendo todo abstrato.
Pensei em gritar, inútil! O próprio grito já ecoava inaudível em mim. Nunca fui
a mesma depois que meu gato morreu. Já basta! Adoro crianças, mas prefiro os
animais.
Preciso de algo que me mate para ao menos escapar do ócio que traspassa
pelos objetos, entre os desejos. No lixo já não há nada de interessante. Foi tudo
roubado por um mendigo triste que havia perdido tudo num incêndio. No chão já não
existe terra, foi possuída por outro ser de semelhante destino. Preciso procurar o
buraco! Onde poderia começar a procurar o buraco, senão na beira do precipício? Ao
certo jogaria lá todos os tecidos que sobram das minhas vestes, todos os papéis onde
haviam escritos feito por alguém que não existia, na realidade existia, mas não sabia.
Oh! Solidão tão abordada, tão temida e tão feliz. Ensina-me tristemente a ouvir
o som da melodia, de tal forma que não queira mais sair. Nem da melodia, e nem
dessa névoa escura que contempla meu gesto.
Cansada estou do velho papel (na melhor das hipóteses, nunca me abandonou).
Abuso. Medo. Uma alegria quase infeliz arranca meu riso sedento e faz verter uma
lágrima salgada. Sim! Salgada.
Paulatinamente ela rola furtiva em minha face, como se consolasse a alma.
E de fato consolou, pois depois enxuguei as lágrimas, deitei e dormi.
2008
Tardes Bucólicas
Nem somente quando estou sob efeito de alguma erva (mas também em
momentos sóbrios), imagino certos detalhes da vida que de tão loucos, são bastante
precisos. Impecáveis realizações da mente transformadas em pura descrição da
realidade. Toda percepção latente torna-se óbvia e perde a magia quando sai da ideia
do pensamento para o fato em si.
Naquelas tardes em que há forte vento e uma melancolia advinda das ruas
vazias abordam a questão da própria existência, que logo associo ao pôr do sol de
domingo. Quando o sol se despede da sua sensação bucólica, é chegada a hora de
mergulhar no escuro iluminado da zona sul. Metrópole calma e solitária, o romantismo
dos livros antigos se faz sentir nesse momento, e quase naturalmente o leva ao mundo
“preto e branco” interiorano duma história que sequer viveu, a não ser pela leitura.
São os últimos momentos do descanso já cansado do ócio, de pensar no dia
posterior, onde a rotina dar as cartas e dita o dia bom e o dia mal.
Certa vez estava numa dessas tardes bucólicas de domingo, apenas observando
enquanto passava por uma reflexão de como não morrer de tédio. Era um condomínio
fechado e três crianças brincavam despretensiosamente. Estavam calmas. A única
menina parecia liderar o trio, cada um segurava uma vara de galho fino, enfiando-o
delicadamente num buraco de formigueiro, esperavam a formiga apoiar-se no pau e a
despejava numa garrafa plástica com areia dentro, construindo assim, um formigueiro
próprio. A concentração daquelas crianças em realizar um objetivo tão simples
despertou o questionamento acerca das atitudes, tantos conceitos complexos de
grandes filósofos e tão inúteis quanto transferi um formigueiro de seu habitat natural
para um artificial. Os homens pensam de forma artificial e nem mesmo as crianças
escapam disso. Querem proibir, limitar e apontar espaços como preferirem, sem
preocupar-se com a liberdade ou mesmo vontade do outro. Assim fazem com os
pássaros na gaiola, e os peixes no aquário, retirados da imensidão do céu e do mar,
respectivamente, e jogados numa minúscula cadeia de solidão.
Acendo um cigarro, velhas tardes de domingo nunca morrem, embora estejam
mortas em vida, são sempre iguais: Pensamentos vagos, concentração dispersa, corpo
cansado, ruas vazias, ventos barulhentos ao som das árvores mais experientes fazendo
sinfonia junto às corujas e grilos.
Lembro-me ainda de um grande amor. Nós debatíamos a respeito da atração
dos opostos, será que são opostos? Se se atraem supõe que se completam, então não
são opostos e sim complemento do outro. Assim, um músico de composições sempre
recordativas, tem como consolo para seguir em frente à autoafirmação do que foi um
dia; e em outro de composições românticas é paradoxalmente sensível, tendo em vista
um coração versátil que fácil se encanta e desencanta friamente. Mas o que isso tem
haver com os opostos? São complementos que transmutam entre si, envolvem-se e as
consequências são a troca de detalhes que restam do tempo: Só as lembranças, e
destas apenas restam os ventos de uma tarde bucólica.
2007
Cinco Copos de Bebida quente
Teodora chegou a sua casa já tarde. E embora estivesse tudo ao seu lugar, tudo
parecia exageradamente novo. Havia saído de um próprio interesse consigo mesma.
Fechou todas as portas, acendeu um cigarro que nem chegou a fumar, afinal havia
prometido ao seu prometido não mais fumar naquele dia. Nesse momento não podia
se descrever em fatos, era como se despretensiosamente respirasse sem pensar em
absolutamente nada entendível. Deixava os segundo guiarem a consciência cansada de
abstrações, de ousadias.
Em algum momento olhou à hora. Passava da meia noite e decidiu que podia
fumar, seria o primeiro cigarro do dia. Os tragos seriam bem aproveitados na tentativa
de afirmar seu próprio charme, gostava de fumar mais por se sentir charmosa que por
necessidade da nicotina. Lembrava o seu dia romântico. Teodora traíra (mas não
precisava pensar por esse lado... nem queria), e como uma espécie de narrativa
deitou-se no chão frio de seu quarto e tentou despejar no papel as sensações que lhe
abarcavam o juízo, porém, sua letra saía ininteligível tanto quanto seus momentos
recentes... Aquele telefonema... “Quando encontro os amigos?” poderia escrever
durante toda a sua vida sem pausa alguma. Mas o que tinha a dizer? Já não se
lembrava, o álcool determinava o momento do riso, o papo fluía... O sorriso... Os beijos
cedidos por um instante eterno de beleza e prazer.
O tapete de crochê incomodava-lhe as costas, os minutos passavam agradáveis
e recordativos, lembrava-se daquele mesmo amor um dia não correspondido. Era feliz,
sentia-se madura e feliz sim! O telefone agora tocava alto, tudo era percepção. Quem
ligava? Quem cantava? Quem era ela? Lembrou-se de Caio Fernando Abreu; Machado
de Assis e seus amigos comuns. Porque a relação destes? Já não importava, nada
importava.
Os questionamentos começavam a incomodar. Onde estavam os
personagens? Estava escuro e ainda que não se importasse com a coerência dos fatos,
sabia que tinha vivido tudo aquilo. Aquilo o quê? O som não dava trégua, o celular
tocava e nem sabia se era viva de verdade. A cabeça doía. O sono lhe pesava os cinco
copos de bebida quente. Não podia evitar o bocejo que prendia seu corpo contra o
chão, a música... o cigarro entre os dedos já não tinha o que queimar... Olhos pesados,
momentos... Vida... Música... Música... Chamada... Celular... música.
2008
Menino da Rua
Há muito já não convinha culpar o mundo por sua inutilidade na sociedade.
Conformado em sua própria escolha se limitava ao comando do destino: O azar dos
dias ruins que ia dormir sem ter pego em dinheiro algum, com a barriga e o
pensamento vazios. Ou a sorte dos dias bons: quando alguém concedia uns trocados
pra lhe suprir a vontade de fumar, e se a fome incomodasse mais que o vício comprava
um pão na esquina e sentia-se um pouco menos humano. O pão lhe causava a
impressão de esmola, fazia-o lembrar de que não tinha uma mesa para sentar e menos
alguém para compartilhar a janta, saía, porém com a sensação de dever comprido, ao
menos por hora não se preocuparia em não morrer de fome, pechinchando apenas a
nicotina.
Caso alguém perguntasse o seu nome, embora hesitasse em dizer, não havia
dúvida: “Pode me chamar de menino”. Teve que inventar o próprio nome e sem muito
esforço escolheu aquele que ecoava em sua mente como única lembrança importante
de sua mãe. Sempre suja, fumando cigarros vagabundos, passava pelas calçadas a
esmo e chamava-o de menino. Mas ele saía indiferente a qualquer passado, sabia que
não havia nenhuma estrela no céu que representasse os seus, aliás, nem acreditava
que tivesse um dia família, por isso sentia que era diferente e podia jurar que nasceu
ao acaso, sem nenhum planejamento e nenhum riso que consolidasse uma nova vida.
Assim como foi a morte de sua mãe, sem lágrima que representasse o fim ou a
saudade. A solidão já estava escrita em seus versos, a tentativa de aproximação com
alguém lhe causava tédio e náusea. Gostava de ser só, preferia assim. Tinha alguns
amigos que vagavam pelos sinais da cidade. Na verdade trocava com estes momentos
rápidos de prosa e aceitava também uma “roda de boca” como era chamada a reunião
para ingerir, por uma necessidade ideológica, algum tipo de “fuga da realidade”.
Fumavam, bebiam, cheiravam por horas e ele apenas seguia o seu caminho sem rumo
e sem pressa de chegar a canto algum. Roginho era o que mais confiava, o único que
se dava ao luxo de prolongar sua presença.
Certo dia, ambos tramaram um assalto, combinaram e se divertiram com as
diversas possibilidades do erro, e até pensavam em desistir quando Menino,
amedrontado, falava em polícia, na perda da liberdade. Rogi era mais ousado e
pretendia sair da miséria, tinha sonhos e confiava em si “Não merecemos tal situação!
Isso não é justo! Onde está Deus agora? Eu vou roubar e não tenho culpa por isso!”.
Era determinado e se especializou na vida fácil. Menino participou de algumas delas,
mas não tinha a vocação. Numa tarde de quarta-feira sentou-se na parada de
transporte coletivo e apanhou um jornal que voava pelo chão, no momento que abriu
pôde se divertir sem constrangimento, não entendia o que estava escrito ali, mas havia
algumas fotos e a sensação de ser um homem que lia um jornal em plena luz do dia era
transformada em risos incontroláveis e inocentes. Menino ficou ali por um longo
tempo, mesmo não percebendo que não estava só: As pessoas acompanhavam com
curiosidade àquela cena que não tinha nada demais.
2009
Paixão Infernal
Despertei assustado com um sonho medonho, abafei o grito e enxuguei o suor
com o lençol, algo queria me atacar, não sei bem, não podia correr e nem gritar. Em
segundos estava numa bela praia, pássaros cantavam como gente, eram músicas
famosas, havia um rio que corria no meio do mar aberto, havia ainda uma grande
cachoeira, e eu, estava relaxada, sozinha, contemplando a beleza daquele lugar
sublime, por uma fração ligeira, voei, foi a sensação! Senti o vento em minha face, o
corpo suspenso, os braços abertos, eu sorria... Sorria muito, de repente tive medo,
olhei para o chão e pensei “se eu cair?”, no mesmo momento eu caí, uma queda tão
profunda que não sentia minha pele, só a saliva que transcorria da boca, entrei no
chão, foi uma queda comprida e boa até o momento de estar sentada numa cadeira
grande, preta, meio velha e com uma pompa de Luiz XV; na minha frente havia uma
cadeira igual, e sentada nela, estava o demônio, muito bonito, elegante e
extremamente educado:
- Olá amiga! Bem vinda ao paraíso do fogo!
Não havia ruídos ou qualquer barulho, o silêncio era absoluto, e fiquei fascinada
pelo rapaz que se dizia Anjo do fogo. Olhei em seus olhos vivos, grandes e negros
como a noite, e antes que pudesse piscar os olhos, ele puxou-me e beijou-me a boca
levemente, senti o arrepio da paixão, um desespero quase infeliz! Apaixonara-me, e no
auge da minha ternura, apareceu subitamente uma mulher irada, com sangue nos
olhos, bastante enciumada, louca, queria me bater, e ela era eu! O seu rosto, oh!O seu
rosto! Jamais esquecerei que me vi, ali, brigando comigo mesma, disputando a mesma
pessoa, Lúcifer! Que loucura! E ela, (ou eu) puxou sua face como se fosse uma
máscara, atrás daquilo apareceu outro rosto, reconheci imediatamente, continuava
sendo eu, só que velha, velhíssima, as rugas não disfarçavam o pouco de cabelo branco
que havia; a pele engelhada, e ela (eu velha e leprosa) puxou uma faca de dentro de
sua garganta e correu para a minha direção, o demônio assistia a tudo rindo,
gargalhava muito alto, estava realmente satisfeito, num eterno estado de êxtase. Ela
cortou-me ao meio simetricamente, entretanto não sentia dor, somente o medo de
olhar para ela, estranhamente eu!
O diabo puxou um lado de mim, e tornou a beijar-me, foi esplêndido, mágico,
caótico e tranquilo; a velha pegou o outro lado de mim e quis engolir, porém despertei
assustado, com um sonho medonho, abafei o grito e enxuguei o suor com o lençol.
2006
Lembrança de Morte
Consegui abrir os olhos, ainda está um pouco escuro e uma fresta de luz vinda
da janela entreaberta corta o meu quarto infeliz. Sinto-me só. Todos que por mim
passaram já morreram, ou se encontram pior do que eu. Minha casa é grande e
inabitável, Manuel, meu único e fiel escudeiro cuida de mim, dos meus remédios
incontáveis e limpa meus vômitos quase constantes. Ele é o empregado desde o final
do meu segundo casamento. Fui viúva por três vezes e conheço a morte bem de perto.
Ela é faceira e às vezes melancólica, é irônica e bela. Não sou tão velha, mas o
bastante para ter herdado o cheiro de tanta doença que destruiu meus três maridos e
familiares. Jamais tive filhos, aliás, não posso, a natureza me impossibilitou desse feito.
Manuel acaba de entrar em meu quarto!
__ Com licença senhora, já acordou? Está se sentindo melhor?
__ Um pouco. Esta sempre é minha resposta, não gosto de ficar respondendo sobre
minha saúde lastimável. Ele trouxe-me um chá e uns biscoitos light que insistem em
me enojar o estômago. A dor de cabeça que trucida meu crânio (acho que não consigo
mais... estou morrendo...) me traz notícias e lembranças de morte.
Sinto o cheiro vazio de desvanecer e melancólico de perecer, quão dor me aflige o
corpo! (não vou conseguir, estou, estou mor... morren...).
A vida na qual me dispus a viver, nem sempre foi prazerosa ou temida. Não
temo o meu próximo momento, eu já estava aguardando, meu amanhã, meu leito, não
posso mais... Meu último suspiro.
2005
A Paixão segundo S.C Eu entendia que o meu reino é deste mundo, pelo lado do inferno em mim, pois vi como é o inferno, comia a vida e era comida por ela, o inferno é a dor do gozo da matéria. Tentara eu apagar o cigarro no plástico, e o cigarro entrava, assim como entrava em mim; o trago, a lágrima de regozijo. O riso é o próprio sangue inaudível e o tempo iluminado do tempo torna- se infinito e remoto, e assim torno-me remota a mim mesma, sou inalcançável alma impessoal, somos uma máscara de hereditariedade, e o que é dito torna-se em mim visível, e o que é lido torna- se agora uma forte perfeição no olfato, pois vejo na parede a tua luz branca, a tua alma inexistente preta e ainda todos os pensamentos que por ti passaram, sinto um horrível odor daquilo que descreveste, talvez tenha sido a própria barata que te descreveu, é um deserto silencioso e nele estamos latentes como a noite de um eterno verão, ah! Aquela imortal noite que matou o verão! O inferno é meu máximo inumano e dele já não quero sair, nele sinto minha alegria horrível e assustadora, abraço o demônio sem piedade e com amor, vivo aqui por te sido jogada e esquecida como eterna menina feliz... Ser humano é o orgasmo da natureza, eu sei o que só eu entendo, Clarice entenderia e mais ninguém, pois o cheiro de vida e também do seu fim, reina em meu nariz, tenho qualquer coisa para esquecer o inferno que é aquela barata, a barata é o mundo infinito e iluminado, elas são palhaços que nos fazem chorar e sorrir, e no fundo do riso há uma tristeza de noite de natal, pois a noite alegre é minha vida em parte triste, uma vez que a noite se cala, a minha loucura resplandece e logo após o regozijo ela ascende sem me deixar lembranças, a loucura é o sinônimo da liberdade, a livre alma de um corpo louco preso ao mundo, e esse momento jamais será com cor, intensidade, velocidade, luz, dor, medo, alegria e eternidade, pois o momento eterno é passado e único, jamais ele se repetirá. 2008
O quarto (e eu). Meu quarto está escuro. Falhou a luz que há tempos anunciava a velhice. À luz de velas escrevo agora. Com um grito que só silencia porque me convenço que viver é enfim bom. Os olhos ardem junto ao corpo meio sem força e descansado. Não sou personagem, não possuo nome e nem identidade. É sempre melhor ausentar-se das responsabilidades quando não se carrega um nome. É noite adentro e só vejo meus olhos pesados e livres, que me olham assustados e pedem mais um trago. E trago. Trago ao vivo e sopro simultâneo aos dedos deslizando sobre a tinta que discorre em palavras. Estas que não dizem nada. Aliás, os meus olhos me dizem que tenho medo de mim e por isso me atraio por mim mesma. Gosto do medo, gosto da atração... Ambos são desafios relativamente fáceis e de gostosa execução. O cachorro brinca querendo chamar atenção, e quase no instante em que o ignoro penso que um dia não o terei por perto. Desapego o caderno e vou dedicar carinho ao que me pede. Em pouco ele está satisfeito e volto ao meu mundo iluminado apenas por uma vela. As sombras que envolvem os móveis ficam mais visíveis. O foco é outro. Não há foco. Não há precisão. Não há futuro e nem passado. O quarto anda amarelado e eu só. O quarto pesado e eu vazia. O quarto grande e eu sem espaço para fugir. O quarto lento e eu agitada por uma náusea inexplicável. O quarto aqui e eu também, sem pensar em longas caminhadas; em barros na sandália e sem vontade de dormir.
Conversa Entre Homem e Mulher Olhava despreocupadamente as pedrinhas diversas sob seus chinelos. Maria nem pode se preparar para quem iria cruzar logo mais. Homero concentrado nas saias que passavam pela rua teve um susto quando ouviu: M- Posso? H- Claro! Essa pedrinha estava mesmo me tirando do sério. M- Então, vamos arrumar as coisas? H- Você me conhece de onde? M- (surpresa) Nem me lembro, você não? H- Só se foi antes do bandido me lascar a cabeça com um enorme pedaço de pau. M- (irônica) Vai saber?! E aí? Vamos nessa? H- Esperar Godot? M- É ele? Acho que tem outro nome... H- Vamos ver um filme comigo? M- Estive pensando nisso agora, o que me diz? H- Que gostaria de uma coisa antes M- A blusa? H- Eu passo depois M- E o ferro? H- Lá em casa tem um antigo que é bom que só. M- A propósito, você já trocou a água do aquário? H – Você fala do meu ou do seu? M- agora me lembro... O que queria antes? H- Algumas coisas M- pronto. Tudo pronto? H- Pra que? M- Isso aí que aí em seus olhos H- Na frente? M- É H- Óculos? Você trabalha em alguma ótica? Eu sabia que te conhecia. M- Talvez seja de lá mesmo, e a noite? H- você sabe quem sou? M- Não. H- pois é. M- Faz parte da vida, neh? E o filme? H- Por mim... Gosto quando uma mulher me chama pra essas coisas. M- só mais tarde, preciso te conhecer melhor! H- ta certo. M- Pode me passar o tempo? H- você quer em parcelas de quanto? M- Sorry? H- o que foi? M- Deixa pra lá... Ta na hora? H- Tenho que ir andando... . Me dá seu número?
Eles
Podia sentir a leveza daquela noite levar seus cabelos, elevar os pelos do braço
por um fio de vento gelado que passava, era um daqueles momentos certos que nunca
se repetirá. Mariana já não tinha o ardor da paixão por aquele homem, mas o simples
fato de terem se tornado amigos a deixava feliz. A ternura fraternal ocultava uma
ponta de desejo causado por engano, por não ter sido desejada da mesma forma que
o desejou.
Denis se apaixonou uma vez só, correspondido apenas por semanas. Passada a
decepção se especializou em iludir as meninas jovens, facilmente ludibriadas por sua
lábia tão bela quanto diferente. Mariana havia sido uma delas, felizmente o
relacionamento durou o pouco tempo de magia e sofrimento, e com a mesma sorte e
ironia tornou-se sua confidente fiel.
A praia era o lugar comum de encontro entre eles, ela sempre com cuidado de
vestir-se de acordo com o gosto de Denis, apesar de tudo sentia-se bem quando estava
bonita para ele. Conversavam sobre tudo; as meninas que estavam na “fita” dele, os
meninos que ela achava interessantes, falavam de astrologia, discutiam sobre família e
futuro; riam muito e, às vezes o silêncio se deixava ouvir junto ao vento e o mar, foi
num desses momentos, depois de fumarem um cigarrinho que Denis deitou-se no colo
tranquilo de Mari. “Quando tua cabeça me pede carinho, minhas mãos delicadamente
percorrem cada poro de tua face branca, bonita” Era o que pensava em dizer, porém
sabia que jamais o faria, pois Denis não corresponderia ao chamado de desejo algum, a
não ser por brincadeira e disto ela não precisava. A dor de ser um jogo não lhe supria a
satisfação mais do que ser sua melhor amiga. Enquanto falavam trivialidades sentia os
pelos da sobrancelha grossa e os tornava uniforme, descia a mão e tocava todo o
pedaço da bochecha esquerda, do nariz (pequenino nariz!). “Vejo a tua boca querendo
sussurrar, querendo calar... e não toco, são lábios avermelhados e bem convidativos. ”
O vento da praia se intensificava mostrando que era chagada a hora de ir embora.
Ele tinha pensamentos vagos e difusos, gostava dos carinhos da amiga mas preferia
mãos de outras garotas a lhe tocar o corpo. Mari só queria ficar ali fazendo planos e
carinhos, deixando que o pensamento seguisse sozinho seus desejos mais íntimos
embora soubesse que nos planos dele não fazia parte. “minhas unhas coçam tua barba
e continuas deitado, respirando quase preocupado, olhando fixo e pensando em
outra! Mas assim mesmo não consigo despregar os dedos de ti, meu movimento felino
e breve sempre quer se comunicar, olha pra mim! não somente amiga, sou tua
bióloga, tua professora e tua confidente”.
A lua se distanciava, ambos continuavam imóveis e os movimentos corporais
eram quase imperceptíveis. Denis no fundo sabia que ainda escondia desejo por ela,
não entendia mas gostava disso, pois ao pensar que esse desejo podia acabar sentia
ciúmes e medo, como se fosse ficar só embora nunca o estivesse. Era como se Mari
completasse seu ego, não! Não era só isso! Tinha imenso carinho por aquela menina,
não sabia bem definir, mas tinha plena certeza que não queria perdê-la.
Ambos se preparavam para partir, o consolo ainda estaria lá: O mar. Eles ainda
retornariam “você ainda vai querer minha boca; e quando acontecer não pensarei
mais em ti”. Levantaram e caminharam devagar, os passos concretizavam a certeza
que estavam ali, apenas estavam, porque no fundo sabia que ao retornarem para suas
casas, nem mais lembrariam um do outro.
2009
De uma suicida
Fui suicidada pela minha família, por mim mesma, pelo meu signo, pelo meu
número. O próprio mundo se modificou com a finalidade de provocar um paradoxo na
minha vida: Na medida em que ia aprendendo a amar, fui sendo “expulsa dos grupos
comuns” e individualizando uma essência que talvez nem fosse minha. Sou somente
uma criatura banal de um projeto infeliz, mas não acho que tenha sido tão ruim
assim... Pois embora sinta várias mãos a acalentarem meu desejo, nenhuma delas me
empurra de forma que ascenda e acenda um brilho oculto de abismo. Ou seja, não há
quem me tenha impulsionado a forca, ou ao veneno, sabe? A própria lucidez trata
disso.
A espera é inútil e preguiçosa. O tempo não me alcança, não me convém. Os
ouvidos já cansaram de infortúnios alheios, não sou mais eu. Nunca o fui. Pois
cabalisticamente fui descrita em versos, incompreensíveis palavras que tentam, ainda
que efêmero, o impossível. Abarcam minha infância difundindo risos e lágrimas.
Sempre infiel, sempre amando, sempre distraindo, sempre envolvente. Não mais que
envolvente. Não mais que envolvente. Um pouco mais mecânico que isso, um tanto
mais sobrenatural.
Sou envolvida por isso também, e ainda mais pela frieza que desinteressa em
mim. E começo a duvidar da existência da culpa. Se tudo é explicado (ou ao menos
uma incessante tentativa) ela nunca será a todos atribuída pela minha morte, inclusive
em algumas pessoas que me foram mais fortes na história. Já não aguento mais tudo
isso. Todas essas formas de informar, de dá satisfação sobre meu ato, minha dor. Já
não sinto dor, ela é me é instalada ao juízo. Fui suicidada por toda essa baboseira, e de
tão inútil é a força geral que ainda permaneço viva.
Próximo Natal
Um costumeiro pensamentar que não sabia de onde vinha o fez acender um
cigarro apenas por fumar e tentar imaginar uma história qualquer que não fosse a sua.
No escritório lembrava o que havia conquistado e fortemente verdadeiro não se
importava com isso, também não questionava nada além do que não fosse concreto.
Estava perturbado, já fazia ano e meio do término e o vazio ainda não fora
preenchido. Marcos sabia, no fundo seria difícil esquecer uma mulher tão completa.
Ao menos não precisava atuar, tinha o que falar e as opiniões eram sempre retrucadas
pela inteligência ligeira do que ela possuía como ninguém. Agora tinha que se conter
com “mulheres objetos” que no máximo satisfaziam seus hormônios e no final tinha a
impressão que não valera a pena.
Rabiscou um email para Marta. Por ironia ou mesmo força do destino, tudo que
ele havia escrito foi enviado antes dele ter a certeza que queria dizer tais coisas. O frio
lhe subia ao imaginá-la lendo um monte de besteiras rabiscadas por um fio de teia
para representar o passado, tantas vezes questionados e já sem motivação nenhuma
para recomeçar.
Tudo era confuso. Por minuto Marcos abria sua caixa de mensagem. Nada.
Acabou o expediente de cabeça baixa e caiu numa profunda insônia, o
arrependimento doía como atropelo de mil cavalos. Pudera; já devia ter esquecido.
Claro! Ela já devia amar outro, afinal para uma mulher esquecer cinco anos de planos
compartilhados era no mínimo bem mais fácil que para ele.
A semana passou lenta como a espera de um resultado importante. Ele tentava
em vão não se lembrar do que aconteceu; trabalhava até mais tarde, conversava com
amigos e até arriscava umas paqueras sem graça e sem maiores consequências. No
oitavo dia abriu a caixa de mensagem sem a esperança anterior de resposta, mas para
sua surpresa Marta havia respostado, como de costume, pela necessidade de concluir
um assunto.
“De vez em quando ainda paro e penso em ti. São pensamentos mergulhados
na ingratidão do que podíamos ser e não somos. Os dados do destino contradizem o
meu querer. Nossas ruas se bifurcaram rapidamente como vultos de carros velozes
que iluminam a cidade fantasma e deixam a desejar suas identidades. Repentinamente
ficamos sós com a multidão, perdidos na ilusão das noites de festas, dos beijos cedidos
sem amor e por manutenção do ego”. Daí ele fez uma pausa dramática. Então ela
havia beijado muitos outros, isso lhe doía apesar de saber que tinha feito o mesmo.
“Sinto orgulho de nossas decisões; livres como crianças abandonadas nas ruas pela
sociedade cruel. Não sinto mais tua boca. Soube dos teus casos. Tua beleza já não me
parece tão perfeita. Meu colo não é mais teu aconchego e teu nome não mais ilumina
a deixa de nossa antiga promessa. Está apagada esperando o próximo Natal...”.
Marcos não sabia ao certo o que sentia, despedida ou esperança? Marta com
mania de entrelinhas o fazia ler por diversas vezes a mensagem. Concluiu então que
esperaria Dezembro para fazer um convite. Sentia-se confortável de levar ao pé da
letra a sua interpretação.
2008
O código do papel
Uma mulher com pensamentos felinos é vítima do tédio matinal, vê números que
não sabe para que usá-los, ouve passos que não sabe para onde vão, sente emoções
que não entende de onde vem,olha para todos os lados e encontra um só desafio: um
papel em branco.
Segurando uma caneta que não alcança palavras que possa escrever, num papel
talvez um dia tão importante, sentia-se atônita e nervosa, pois ali estava o maior
desafio de sua vida, passou horas rabiscando o seu nome e teve uma ideia: sentia que
desejava, a principio, mostrar ao mundo os fatos que constituíram sua vida, tentou
escrever sobre seus antepassados, mas descobriu que era filha de todos e de ninguém,
apenas da vida, não sabia ao certo o que escrever, então achou melhor contar o seu
dia-a-dia, mas viu que todas as páginas seriam como códigos de DNA, chegou a uma
conclusão, o que deveria era descrever as pessoas que passaram repentinamente em
sua história, mas as páginas seriam tão vazias e tediosas quanto aquela tarde.
Pensou em falar do céu, do mar, da geografia, da filosofia, das plantas, dos seus pais,
da tecnologia, do capitalismo e até vícios e pecados, mas analisou que tudo isso está
sempre mudando e um dia o seu texto seria ultrapassado.
Como redigir um texto finalmente? Já tinha ela explorado pensamentos no tudo e no
nada, no tempo e no incerto, na vida e no que nela há, no mundo e na falta de
sentimentos, em Deus e no inimigo, na morte e pós-morte; então ela sorriu, deitou na
cama, ligou a televisão, segurava a caneta enquanto olhava o papel rabiscado com
vários nomes iguais, finalmente naquele momento sentia que estava crescendo e
ainda sorrindo, ignorou as futilidades da TV e viajou na mais profunda água da
existência, entendeu o que o papel queria lhe falar, que não valia a pena explicar ao
mundo o que seria... inexplicável.
Tentou chorar para entender suas lágrimas, rasgou o papel, jogou a caneta longe,
usou a ponta do dedo para sentir todo o tecido da sua pele, olhou fundo ao infinito e
respirou devagar, desta vez estava de lábios colados e uma lágrima verteu sobre sua
face, olhou-se no espelho, acabara de entender o código mais enigmático do ser
humano, sorriu e enfim, completou o seu desafio com êxito, levou o dedo até seu
coração ( batendo forte) e apertou fortemente...foi seu principio e seu fim...
2005
O sonho Ontem à noite, já cedo me sentia sonolenta, apesar de ter dormido a tarde
inteira. Segurei o sono até onde pude e antes das dez finalmente rendia suspenso meu corpo ao cansaço interno e psicológico da vida. O instante emudeceu. Meu quarto representava o futuro breve, como uma premonição. Então fui tomada de uma realidade dura e inesquecível: em um momento comum, esses que a vida não lembra nenhuma magia, acostumados com a rotina, numa sala conversando com minha irmã quando de repente, a cor escureceu. Acontecia algo no céu. Era o fim do mundo. Lembramos por um instante de pessoas amadas, mas não ousamos tocar no nome delas. A conformidade que sentíamos superava de longe o medo. Já estava previsto desde que fato é fato. O mundo ruía. Em lugar do sorriso comedido das pessoas, o caos. Em lugar das ruas asfaltadas, buracos e caos. Em lugar das maravilhosas invenções tecnológicas, o escuro absoluto, lixo e caos. Por um segundo eterno tudo me era possível ver. Não havia um homem sequer são. Corriam sem rumo, gritavam balbuciando, não tinham maturidade para aceitar a incompetência de controlar aquilo que não nos cabe: o destino.
O correr do rio. O andar lento das girafas, o olhar curioso dos macacos. O livre rastejar das cobras. Nada disso nos cabe, mas nos remete a sensação de expectador da vida. Um pouco menos que isso. Assim eu orava por paz diante as lágrimas desesperadas. Podia senti-los. Sofria porque ali estava a resposta que por tanto tempo insistimos em cobrar. Eu apenas me resignava. Pensava feliz nas pessoas que haviam construído minha estrada, aquelas queridas faziam parte de minha lembrança também despedaçada. Era o fim.
O que aconteceu depois deu pane e não pude lembrar. Sei que acordei às 6 da manhã, ao abrir a janela vi o céu cantando, os pássaros anuviados. Tudo estava em seu devido lugar, que dia lindo! Meu ‘bom dia’ foi resposta ao quintal que cabia apenas um quase nada da beleza de tudo. Toda harmonia. Bom dia passarinhos, bom dia nuvens! Bom dia plantas, terra, animais! Tratei de tomar um banho frio e fazer o primeiro cigarrinho do dia. Estava ilhada numa tranquilidade devastadoramente boa. Soprava fumaça para alto até vê-la difundir com a brisa do sol e do vento. O dia havia de ser tão lindo quanto a água molhando a grama. É tudo que podemos: Respirar contemplando. Viver sentindo...
O sonho aconteceu de fato, prova maior são as sensações, até premonitório se há de acontecer. Mas enquanto o presente for brisa, tratarei de me emocionar com o beija-flor, a lua e o nascer do sol. Porque tudo passa e uma hora a rotina estanca. Até lá terei arriscado a sanidade em favor da grande explosão que é perceber a humanidade. Essa sim dói.
Na praia noturna
Podia sentir a leveza de aquela noite levar seus cabelos, elevar os pelos do
braço por um fio de vento gelado que passava, era um daqueles momentos certos que
nunca se repetirá. Mariana já não tinha o ardor da paixão por aquele homem, mas o
simples fato de terem se tornado amigos a deixava feliz. A ternura fraternal ocultava
uma ponta de desejo causado por engano, por não ter sido desejada da mesma forma
que o desejou.
Denis se apaixonou uma vez só, correspondido apenas por semanas. Passada a
decepção se especializou em iludir as meninas jovens, facilmente ludibriadas por sua
lábia tão bela quanto diferente. Mariana havia sido uma delas, felizmente o
relacionamento durou o pouco tempo de magia e sofrimento, e com a mesma sorte e
ironia tornou-se sua confidente fiel.
A praia era o lugar comum de encontro entre eles, ela sempre com cuidado de
vestir-se de acordo com o gosto de Denis, apesar de tudo se sentia bem quando estava
bonita para ele. Conversavam sobre tudo; as meninas que estavam na “fita” dele, os
meninos que ela achava interessantes, falavam de astrologia, discutiam sobre família e
futuro; riam muito e, às vezes o silêncio se deixava ouvir junto ao vento e o mar, foi
num desses momentos, depois de fumarem um cigarrinho que Denis deitou-se no colo
tranquilo de Mari. “Quando tua cabeça me pede carinho, minhas mãos delicadamente
percorrem cada poro de tua face branca, bonita” Era o que pensava em dizer, porém
sabia que jamais o faria, pois Denis não corresponderia ao chamado de desejo algum, a
não ser por brincadeira e disto ela não precisava. A dor de ser um jogo não lhe supria a
satisfação mais do que ser sua melhor amiga. Enquanto falavam trivialidades sentia os
pelos da sobrancelha grossa e os tornava uniforme, descia a mão e tocava todo o
pedaço da bochecha esquerda, do nariz (pequenino nariz!). “Vejo a tua boca querendo
sussurrar, querendo calar... e não toco, são lábios avermelhados e bem convidativos.”
O vento da praia se intensificava mostrando que era chagada a hora de ir
embora. Ele tinha pensamentos vagos e difusos, gostava dos carinhos da amiga, mas
preferia mãos de outras garotas a lhe tocar o corpo. Mari só queria ficar ali fazendo
planos e carinhos, deixando que o pensamento seguisse sozinho os desejos mais
íntimos, embora soubesse que nos planos dele não fazia parte. “minhas unhas coçam
tua barba e continuas deitado, respirando quase preocupado, olhando fixo e pensando
em outra! Mas assim mesmo não consigo despregar os dedos de ti, meu movimento
felino e breve sempre quer se comunicar, olha pra mim! não somente amiga, sou tua
bióloga, tua professora e tua confidente”. A lua se distanciava, ambos continuavam
imóveis e os movimentos corporais eram quase imperceptíveis.Denis no fundo sabia
que ainda escondia desejo por ela, não entendia mas gostava disso, pois ao pensar que
esse desejo podia acabar, sentia ciúmes e medo, como se fosse ficar só embora nunca
o estivesse. Era como se Mari completasse seu ego, não! Não era só isso! Tinha imenso
carinho por aquela menina, não sabia bem definir, mas tinha plena certeza que não
queria perdê-la.
Ambos se preparavam para partir, o consolo ainda estaria lá: O mar. Eles ainda
retornariam “você ainda vai querer minha boca; e quando acontecer não pensarei
mais em ti”. Levantaram e caminharam devagar, os passos concretizavam a certeza
que estavam ali, apenas estavam, porque no fundo sabia que ao retornarem para suas
casas, nem mais se lembrariam de seus desejos.
2009
Fim do mundo? Seria bom demais!
Tenho percebido, assustadoramente, que pouco (nada?) tem se vivido na
coletividade e no amor. O egoísmo nos faz inúteis soberanos de um reinado projetado
em desespero, gerando a guerra silenciosa (individualista) de egos (aliás, de péssimo
gosto!). Quanto mais descompromisso com o outro, menos credibilidade da palavra. É
a banalidade da consideração humana. A defesa dos fracos é a autocomiseração, a dos
imbecis é o orgulho, a dos mal amados é a carência (que se espalha rapidinho pelas
redes sociais...).
Não há isentado, apenas alguns distraídos não percebem, mas a humanidade
anda adoecida, esquizofrênica. O vírus instituído feito praga é o medo. Tudo é
proposto em fingimento, não aceitam verdades. Como robôs marchamos,
obedecemos, ignoramos... Tanta miséria e o mesmo “feliz natal” distribuído feito
mágoa, sempre por obrigação (o compromisso com a obrigação é persistente durante
a vida toda, um martírio, um assassinato constante da liberdade). Tanto mais futilidade
mais sua proliferação.
O fim do mundo seria bom demais para ser verdade, seria uma solução em vez
de ser uma mentira para dar esperança aos esclarecidos, vagabundos e aventureiros
poetas. Adélia Prado tinha razão, a vida é horrível. Então avante ano ímpar! Vê se ao
menos o enigma de serpente influencia alguma pigmentação colorida na palidez das
pessoas. É preciso ser cuidadoso para não tornar acinzentado, ousado para se manter
corado.
2012
Homens X Mulheres
O homem focaliza. A mulher expande. O homem não vê problemas, a mulher os cria. A
mulher previne. O homem nem chega a remediar. A mulher é falsa, o homem
mentiroso. O homem é instintivo, a mulher sagaz e sincera. O homem prolixo,
incompetente, incompleto. A mulher é chata, impertinente, curiosa. O homem é mala,
a mulher mais ainda. A mulher é egoísta, o homem mais ainda. Mulheres ‘noiadas’,
homens covardes. A mulher tem sexto sentido, o homem falha. As mulheres
dissimulam, os homens simulam. O homem vacila e se ausenta do erro, a mulher
equilibra, perdoa, aconselha. A mulher é detalhista, o homem superficial. A mulher
pode ser supérflua, mas é o homem quem ama o futebol.
2012
Entrevista Café? Cappuccino. Chocolate? Amargo. Cardápio? Sushi e uísque. Camarão? Até cru. Televisão? Inconcebível. Dia? De chuva. Noite? Insone. Praia? De noite, ou em dia nublado. Vinho? Aceito. Tipo? Surreal. Moda? Péssimo gosto. Bom gosto? Música. Cheiro? De todos os sabores. Sonho? Desconheço o amanha. Livro? Necessidade. Medo? Hospital. Prisão? Medo, claustrofobia. Ilegal? Limitação. Casa? Vazia. Vazio? É surdo de um ouvido. Universo? Respira e flutua. Ocupação? Descansar. Trabalho? Não enche! Linguagem? Falha. Amor? Palpite? Calor? Irrita. Frio? Aconchega, me anima. Festa? Tranquila. Difícil? Desisto. Amizade? Sustenta. Herança? Sorte. Sorte? Nenhuma. Vida? Paradoxo. Ser? Autêntico. Dor? Constante. Saudade? Do que não tenho certeza. Alegria? Intensa. Valor? Humildade. Inteligente? A natureza. Belo? As ruínas do tempo, o impecável infinito. Egoísmo? Faço sempre mais que a minha parte. Idiotice? Ignoro. Traição? Algemar a consciência. Infância? Questionamentos, estranheza.
Maturidade? Confirmação da estranheza. Filosofia? Questionamentos da infância, desastre de respostas, estraga tudo. Verdade? Infinitas interpretações. Perspectiva? Maleável. Escolha? Seletiva. Objetivo? Paz plena.
2013
Recordações do amor
A vida é recortada e só faz sentido nos instantes de amor.
Que importa a felicidade se a angústia de libertar o amor é a única forma de senti-lo,
verdadeiramente? Seria no fundo o amor, uma profunda indiferença? Quem sabe a
não concretização de seus desejos, ou seja, apenas ‘um fantasma’ idealização? Então
era puro egoísmo o amor... Nada mais impreciso ou parecido a ele, justamente por
transbordar simplicidade meio às problematizações que criamos dentro de nós, e as
que criaram para nós.
Danem-se as interpretações linguísticas e a multipluralidade
de sentimentos. Nada mais acontece senão aquilo que se passa na própria realidade.
Quem garante que não? É preciso andar devagar para sentir as nuvens, poder
acompanhá-las. O amor estará no percurso, sereno como uma recordação.
Experiência com o cogumelo mágico (um relato etnobotânico)
Eu havia comprado no final do ano passado. Chegou ao início de janeiro 2013, para partilhar ao máximo de pessoas possíveis as coisas boas da vida, chamei quatro próximas e cada uma tomou uma grama (tinha apenas 5g.). Dias antes havia me preparado espiritualmente, emocionalmente e também costurado os detalhes do local e dia, para que absolutamente tudo estivesse a favor. Foi feita uma seleção de músicas boas, um preparo alimentar pré-ingestão, banho de ervas para espantar o cansaço. Meditações, orações, concentração e foco linguisticamente positivos. Separamos os panos e os incensos e fomos nos encontrar numa granja linda, onde a natureza transborda em exuberância, e isso ajudou bastante. Estava ansiosa e acabei excedendo-a em procurar a “lombra” em toda e qualquer imagem ou movimentação. Estávamos no rio e aproximadamente 1 hora depois de ingerirmos a planta seca com água, calafrios internos confundiam calor e frio, depois uma ligeira visão de gigantismo. O rosto da minha irmã transfigurava num estreito longo e engraçadíssimo. Fiquei me perguntando o tempo todo se estava de fato, chapada. Porque apesar da leveza hilária e os lapsos sutis de mudanças visuais, me sentia extremamente lúcida. Uma sensação suave invadia discretamente a água, que se tornava mais viçosa, e também a areia que formava desenhos perfeitos de tribais sob a lâmina transparente do rio que corria ainda mais espontâneo. Tudo fazia um sentido logicamente interessante. As plantas não precisam falar, os ventos não precisam preencher o tempo, todos comungam uns com os outros numa parceria elegantemente harmoniosa. Ali não pousava uma só angústia, dúvida, procura ou maldade humana. As ações eram tranquilas e puras; Pássaros, matas, céus, verdes, azuis, ventos, terras tornavam mais acessíveis, mais belos, cruelmente belos e complementares.
Observavam-nos a natureza inteira, nos viam nus, mesmo insistindo em nos vestir. O cenário inteiro era não só acolhedor e cúmplice, mas também conservava uma maturidade materna libertária de cuidado e amor. Tão gigante quanto o planeta suspenso no universo foi esbarrar na percepção emocionada de ver a grama respirar!! Lindo! Sim, elas respiram! A terra também respira, e junto ao ar uma sincronia de som imitando a transpiração natural da vida. Comecei a entender a natureza em sua unidade e divindade. Deus é natureza, sempre soube disso, mas depois do cogumelo digamos que a ideia tenha ficado mais palpável, mais coerente.
Havia uma pessoa de energia negra que desafiava o potencial da planta em toda etapa omitindo a mágica da coisa em vez de contemplar a beleza disposta ao redor. Sempre que eu me aproximava dela, aquela alegria artística sumia, parecendo mentira, dando lugar a uma tristeza feita de ilusão. Mas bastava me afastar, e a verdade espetacular voltava a deslumbrar minha retina.
Retornei ao banho de rio, desta vez sozinha, deitei a cabeça na água e vi uma luz muito forte sob minha cabeça. Foi rápido o suficiente pra me assustar e me deixar meio confusa. Depois nada. Enfim, percebia tudo, principalmente entendi a superioridade do fluxo natural pelo silêncio. Nós humanos falamos demais, e isso estraga tudo. No mais, a paisagem parecia um quadro vivo, tão surreal quanto real, verdes incríveis, o céu lilás multicolor e maravilhoso, risos, paz, amor. Nuances de
cores desconhecidas (na verdade mais fortes), e a sensação de ver por dentro a energia das pessoas. Experiência perceptiva muito aguçada, no mínimo transformadora.
Ao fim do dia (tomamos no inicio da tarde), voltamos para a casa com a melhor sensação do mundo. Uma lucidez estranhamente completa, um amor infantil e verdadeiro como se a vida se bastasse num instante. Comunhão de ser parte de um todo imenso e intransponível.
A única indignação era o fato de não haver percebido tais deslumbres antes, infelizmente matamos as possibilidades de vida fora do padrão pequeno, egocêntrico e banal dirigido pela sociedade. Por outro lado privilegiado, tivemos essa abertura acompanhada aos seres mágicos da floresta, e creio que tudo venha na sua hora...
No mais, palavras restringem as sensações, e ninguém bem as conhece senão sentindo-as vivamente no próprio campo imaginativo e, portanto real.
A vida torna-se reveladora quando se está humildemente, aberto às novas perspectivas, já que o mundo cético, cru, retrógrado sangra a infelicidade pobre das limitações.
Dessa forma ando flutuando em acompanhar as nuvens sem me importar com as coisas banais. Tudo é inútil. Apenas não o horizonte onde risca o mar. A harmonia deixa de acontecer quando há o primeiro conflito, mas é possível preservar em si a vontade pacificada de que o amor inunde a vista, o ouvido e a pele da humanidade. Não dá para escorar no tempo, já que ele é líquido. O futuro não existe, visto que ainda não houve. E assim seguimos a esperar o nada. Um fluxo contínuo...
2013
Segundo contato com o cogumelo mágico (revelador!)
Depois da sutil e curiosa tarde em que tomei pela primeira vez o cogumelo de deus, fiquei com a sensação que havia de continuar o processo de aprendizado que aquela planta antiquíssima supunha revelar. Digo supunha, porque a ideia estava ainda um pouco superficial ou mesmo confusa. Eu havia atropelado na ansiedade e perdi a melhor parte. A presença de pessoas desconexas com a energia do lugar também havia atrapalhado a entrega, e ainda a pequena quantidade (um grama) ingerida.
Tão logo houve oportunidade, compramos 15g. do fungo desidratado, reunimo-nos Eu, Gil e Tainah (as mesmas do primeiro ritual) com o meu pai David e o companheiro Juan. Embora alertasse aos iniciantes a importância de preparar-se corpo e mente, já que era uma experiência espiritual, apenas as três tínhamos dimensão de que quanto mais preparado estivesse, mais intenso o mundo maravilhoso e totalmente novo em que seríamos delicadamente conduzidos a participar.
Fiz o máximo de concentração na semana anterior evitando carne animal, álcool, tabaco, doces e estresses. Mergulhei em meditação, orações e tranquilidade, o rio havia de fluir e eu tinha que estar tranquilamente preparada. Marcado para o sábado de manhazinha, a mesma granja que nos acolheu na primeira vez. Na noite anterior tomei um banho de ervas e tive um pressentimento estarrecedor. Havia de conhecer o paraíso. Dormi em paz comigo unido de amor ao mundo. Acordei cedo e feliz. Todos estávamos felizes. E absolutamente tudo fluiu.
Chegamos e preparamos o espaço: encher colchão de ar, cortar algumas frutas (tivemos a ideia de levar apenas frutas e água para alimentação), acender os incensos, estender os panos, preparar as doses proporcionais às condições de cada um, estabelecida anteriormente. Assim eu e Gil tomamos 3g, o restante tomou 2g. antes, porém, fizemos uma breve oração em círculo, agradecendo o momento tão especial e principalmente pedindo sabedoria e humildade nessa interação divina com a natureza. Não concluiu quinze minutos e algo havia se transformado. Sentia-me levemente bêbada, com vontade de dançar e derreter em risos. Eu, Juan e meu pai ficamos no rio, tudo era graça e entrega. Quando começou os calafrios internos, resolvemos ir nos juntar as meninas, sentadas no colchão, também começando a incorporar o espírito da coisa. Agora estávamos reunidos e o riso era solto, descontrolado e intrigante. Juan tentava tocar violão, meu pai tentava bolar um cigarro de rolo, eu, por algum motivo que não lembro, quis abrir meu celular. Tudo tentava inútil, já não comandávamos nossas mãos, éramos conduzidos a apenas desfrutar da felicidade plena e harmonia com o todo. Tanto que pedi ao meu pai para trocar a música que rolava no carro, logo pertinho de nós. Paul McCartney é sempre maravilhoso, mas de repente imaginei Pink floyd e tive súbita vontade de curtir. Ele foi lá e não conseguiu tirar o cd. Nenhum comando do som obedecia a ele. O som tinha vontade própria e Paul foi o escolhido para continuar tocando, misteriosamente.
O colchão (já cheio por nós) inchava sozinho e sentíamos e víamos, ele surpreendentemente, inchar sem qualquer auxílio de bomba, sopro ou nada. Sentia-me velhinha e podia perceber absolutamente tudo que os outros sentiam. Meu pai se emocionava com um azul na grama que ele não sabia explicar, e só ele via. Ele secava
como eu e as minhas mãos idosas, feito uma folha se curvando espontaneamente ao cair morta. Gil parecia ter olhos maiores e de vidro, estava com uma expressão desconhecidamente compenetrada, preparando-se para uma possessão leve, dançante, mágica. Ela conseguia ver as rugas no meu rosto, minha clara expressão de velha. Juan estava enérgico, gigante, branquíssimo, ria e falava muito, dizia coisas engraçadas. Tainah descontraída, ciente e atenta a tudo que ocorria.
Estávamos em sintonia, uma cumplicidade enovelada no deslumbre de cada um. Os dois iniciantes pareciam mais susceptíveis a buscar, explorar aquele mundo transparente, lindamente inimaginável ou de longe, traduzido em palavras. Tudo era euforia explodida em risos coletivos, o estado de graça em que podíamos jurar não haver como melhorar, mais estávamos enganados. Descemos para o rio na alegria conjunta do amor verdadeiro. Tudo estava extraordinariamente mais lindo. Era mesmo o paraíso. Uma realidade tão nítida, tão pura, que tive a certeza que no mundo espiritual não cabe a ilusão do mundo físico, que conhecemos bem.
Juan havia desligado o som, antes de descer junto aos outros para o rio. Quando ele se afastou um pouco, o som ligou sozinho e tornou a tocar o cd que nunca findava, Paul McCartney. O espírito do cogumelo é quem fazia as honras e as horas, embora estas não se fizessem incomodar, de forma alguma, aliás. Eles seguiram ao rio e algo me deteve, porque ali eu não guiava absolutamente nada, apenas deslumbrava com privilégio de vivenciar o inefável. Então, olhando para a grama, eis que surge em minha frente, frágil e certamente se comunicando, uma borboletinha, laranja, pequena e parecia machucada. Ela rodopiou algumas vezes até pousar em minha mão. Fechei a mão com medo de perdê-la e corri até o rio para mostrar aos outros o presente que havia conquistado sem esforço. Era como se tivéssemos atravessado uma fase. A alegria eufórica deu lugar a uma felicidade plena, harmoniosa, perfeita. Não precisávamos conhecer o universo, porque ele já pulsava em nós. Não temia, não odiava, não havia problemas. Sinceramente me sentia Alice no país das maravilhas, podia ver cada detalhe, sentir cada partícula e me comunicar com tudo e qualquer ser. A água acomodava minha pele ao livre espiar dos pássaros, longe. Os coqueiros tão importantes criaturas, tão inteligentes, tão envolvidos com o vento. A borboleta destacava sua listra laranja na asa preta. Passeando entre meus dedos podia ver seu rostinho e também sua comunicação. Ela falava algo, sibilava, mas não haviam palavras formadas, era mais um dialeto tão simples que não somos capazes de compreender. Parecia pedir ajuda, tentei alisá-la e essa parte que toquei se dissolveu. A minha doce preocupação era vê-la bem, e ela parece ter entendido quando voou independente para uma pedra e começou a abrir e fechar as asas numa dança fluida, sincronizada e acolhedora. Também podia ser uma despedida, já que depois de um tempão dançando ela voou e não a vimos mais.
Íntima, a mata me chamava. A respiração era branda, o riso constante. A realidade era mais nítida do que nunca. Um portal infinitamente celestial, a água macia cobria até a barriga o nosso corpo sentado, era transparente e pude ver o peixinho encostando-se à minha perna. Sua boquinha parecia beijar-me várias vezes no mesmo ponto. Tudo era amor e infância dentro de mim. O rio transportava a vida e esta se deixava levar... Eu e tudo aquilo éramos a mesma coisa.
Gil começou a movimentar o braço em volta da cabeça sem comandar o gesto. A dança vinha de dentro dela, totalmente possessa do espírito de flor. Eu apenas a entendia, quando me olhava com olhos de vidro e nada dizia, assim choramos por entendermos sem a necessidade de falar, porque não existe essa necessidade nem qualquer outra. Despoluídas do menor grau de veneno, nós vivíamos algo incomensuravelmente grande ao mesmo tempo simples, conjunto, fatalmente real. Gil já não falava, não era humana, e sim uma flor. Sentia um amor tão grande, que uma responsabilidade amável me fez interagir com ela de alguma forma. Encostei-me ao seu corpo e nos deixamos movimentar (sem sair do lugar, só mover-se) apenas pela correnteza. Ela estava livre, a sensação gigantesca de ser leve, solta, branda, meiga, indiferente à existência de qualquer sentimento ruim. Ela habitava um mundo paralelo que apenas eu e ela podíamos ver. E apenas ela poder ser aquele lugar, eu fui convidada apenas. Mergulhava no rio uma blusa que segurava e derramava a água em cima da cabeça de Gil. Era minha forma de expor o amor que sentia. A gratidão sem limite e o momento de tanta cumplicidade que só nós (tomamos a maior dosagem) parecíamos penetrar. Em paz mantivemos em companhia e ausência. Nada havia de ruim, maldoso, tedioso ou incapaz. Tudo era vento (nós também), amigo, calmo, feliz, leve, poético. Chegaram outras pessoas e dessa vez, nada interferiu, ao contrário, pareciam incorporar naturalmente a interação. Eram três pessoas lindas; Olavo, seu filho Fabinho e a namorada Siara. Posso escrever mil páginas tentando verbalizar inutilmente. Uma experiência dessas não tem denominação. Tão íntimo que vai até a mais profunda capacidade de amar e silenciar, não apenas ver além da pele, além do muro, além da alma, mas ser a alma. Livre. Tão coletivo que é possível ver, claramente, a pulsação do universo inteiro como uma mãe maior, e tudo que habita (mos) a compõe como partes menores e não menos importante. Na verdade não existe o importante, porque não há infortúnios. A morte inexiste, o ciclo é simples e generoso. Não existe falha, nem dor. E mesmo que houvesse dor, seria tranquilo, porque seria natural. No fim da tarde, também na lembrança nos dias seguintes, uma sensação de paz enchia nossos corações de amor. O amor é mais que lindo, é completo, é natureza.
2013
A maça (desejo)
Quero o que o mundo poder me agarrar. Cedo bem entedia o que meu corpo clamava, chama viva, ardendo calmamente em busca de algo para amar. Percebi vantajosamente, além da ousadia, outra juventude: Correr ruas e vielas, de saltos ensurdecedores, para afastar o frio das minhas quatro paredes. Encontrei sombras fúteis do álcool no silêncio, mas sabendo que o amor não nasce propriamente ali. Gastei algumas escolhas pra não me encontrar em ruínas: Um “grande amor” a menos, substituídos pelo gozo da intromissão, o toque molhado, subindo e descendo o despertar dos desejos insanos. Assim fui me corrigindo, insaciável, tornando-me lua cheia constante, não importando quem partisse, haveria cautelosamente pegadas tardias, na sala, na pia, treinadas em casa com qualquer objeto de pudor. Não ficariam manchas pelos cômodos, os homens não deixam cheiros.
E como meu desejo não tem preconceitos, saí em busca das que deixam cheiros. Mulher. Não estranhei o mesmo pulsar febril por contornar as curvas, a pele macia, sentir com palmos a carícia de suas sinuosidades. Ali incorporava o sentido real de apalpar os seios: cerne de comunhão entre vício e sofrimento. Nascia uma ingênua paixão.
Foi Lilith; Lua Negra! Me puxou pelas mãos a passear no paraíso. Foi Lilith; Serpente bela! Perturbou-me às suas doces tentações secretas. Coube à desgraçada Eva testemunhar a cruel dádiva de sua própria afirmação, negligente Eva! Tu viesse atrasada, então não me destitua dos pecados, pois também sinto a falta do surtos cálido dos homens.
Por isso houve quem tentasse instituir-me a culpa, mas minha asa não dobra; então não me cansei de voar. Fiquei triste por aqui, mas a dor da gente não sai no jornal. Quase me esqueci de que nasci do sexo e nele devo perpetuar.
Se antes soubesse não jogaria flores em pisos novos, nem cobriria de óleos aromáticos minha carne antiga, podem decifrar-me facilmente, não devo conter desejo algum, inclusive o alheio. É um pecado sem igual a castidade. Disso não ganhei algum reconhecimento, mas por puro egoísmo continuo tentando...
2012
As flores (pudor)
Não que seja pudor de fato. Explico-me, não há necessidade de beijos e carícias sem que haja a cumplicidade construída na relação, aquilo que chamamos amor. Alguns me acusam recatada, talvez não baste. Um pouco mais que romanticamente seletiva; mais construtivo conversar, conhecer a preliminar dos acasos, testar as possibilidades de futuros amados. Claro que sinto desejos, fui enganada por ai e acabei perdendo coisas, até a graça. Por isso estou aqui, pra variar. Já nem lembrava como ser, pois só me cabe solidão. Uma escolha.
Não que não tentasse, tanto que pelos caminhos percorridos tive que escolher entre a poeira e o sol. Minha viagem lânguida e despretensiosa tem feito algo bem maior que a necessidade de se ter o grande amor. Este permanece pelas entranhas impalpáveis na estrada, no avião, no carro...
Na nostalgia dos destinos, encontrei um lago, oásis narcísico onde pude embebedar-me de esperança no espelho de minhas próprias tolices. Carência humana! Faz lembrar os tempos em que eu sorria, lembra? Bobagem. Isso foi há tanto tempo... Quando ainda acreditava que todas as partes carnais do mundo se fundiam num único sentimento. Desfeita a ilusão rompi as algemas caríssimas da vida e corri em busca de outras aflições. Encontrei OXUM e seu ouro foi guiando minha cegueira. Despejei no rio formado pela cachoeira, um frasco de rosas perfumadas, segui sensualizando, evitando os abortos de minhas ilusões. As crianças em mim passaram a gritar caladas, os fanáticos ecos que assassinarão o desejo do meu mundo em ti.
Não me toque nessas horas, cedo demais para permitir deleites. Além de ser mais bela uma maça inteira.
Pior do que lembrar deslumbres é saber que vida, tempo e morte são uma só coisa: É a trindade de Deus. Não há nada que podemos fazer, a não ser esperar... O quê? As nuvens não cessam e eu canso meus olhos tentando acompanhá-las. Nada que leve ao suicídio. Não adianta colher flores, elas murcham propositalmente. Porém antes seja deserto, sede, do que vida sem amor. O próprio. Não sei, a mim coube uma percepção além do controle humano, mas não me gabo. Preferia ser feliz.
2012
De que forma morreu a verdade?
Sinto-me como Prometeu, desafiando com propriedade aos poderes podres. Zeus me concedeu à luz nas páginas dos livros escritos por homens geralmente incomuns. O mito já não explica de que forma morreu a verdade. Sinto falta da solidão dos antigos pastos, embora nunca os tenha conhecido. O caminho é lento e circular, não leva a lugar algum.
Procurar
Procuro palavras no estilhaço dos meus dentes, procuro a infelicidade de uma amizade passada, procuro o inválido sentimento que já não é existente, procuro a fada do meu ser que se encontrava nas gavetas da minha infância, procuro por lombras que me façam viver a fantasia real, estou a procurar pelo limite do inatingível, tão concreto e surreal, tão tangível e invisível, o meu nascimento foi a procura de viver a loucura da eternidade, a escolha da morte foi a tua procura para me encontrar após vida, isso quando éramos ainda Adão e Eva. Procuro o meu máximo inumano, procuro projetar os meus olhos e analisar todos os meus internos, procuro no sangue a semelhança de um gesto, procuro por um abraço verdadeiramente quão sincero quanto o meu, procuro teus olhos puxados em nossos filhos, pois ainda quero te encontrar num passado feliz, estou sendo procurada por todos vocês que não sabem me esquecer, mas também estou pacientemente a procurar por eles, que um dia me farão chorar, que me machucarão, que serão falsos e dissimulados, com uma beleza sublime e um coração tão negro e obscuro como o início do planeta que chamamos Terra. Estou sempre a procurar algo que ainda não conheço, encontrar as portas do teu olhar interrogado, e com as portas dos meus olhos vejo o soberbo modo de sorrir,como se jamais fosse triste ou feliz por completo. Entre todas as palavras encontrei os detalhes de um mundo inexplorável, encontrei a loucura e a lucidez, a solidão e a janela da emoção, encontrei à mim e aos meus acessórios inúteis, mesmo completa vou continuar a explorar essa palavra tão simples e complexa, vou procurar... 2005
Por onde você anda? “Eu que sou seu sorriso mais antigo, sou seu mais velho amigo e na minha vida, me escondo dos seus perigos!”
A morte trágica te levou pra dentro dos meus sonhos, o silêncio. As lembranças são nítidas, porém entrelaçadas em vários momentos que, por diversos sentimentos e situações vivemos. A última vez em que ouvi a sua voz, algo cristalizou a magia “É tão reconfortante ouvir sua voz!” Falei espontaneamente, sem ter a consciência que seria a última vez em que falaria para ti. Mas algo continua inquietante e me atrevo a escrever-te essa carta 'póstuma', não pra dizer ou desabafar, mas pra dá vida àquilo que todos supõem inerte: sentimento. Cada dia não sei se vivo, mas presencio o tempo. E o que nos separa não é físico, não é espaço. É tempo. Habitamos o mesmo espaço em tempos diferentes, algum de nós “caiu pro futuro”, e não estou certa que tenha sido você. Fico com uma incógnita a cumprir; presa na individualidade egoísta deste mundo. Vou ao bar que você frequentou, estou no futuro e te sinto encruado nos azulejos, nas mesas, no cheiro do ambiente. Com toda certeza que mesmo em tempos diferentes, estamos sintonizados na música e no pensamento. Eu ouço, você sente. Eu sinto, você sabe. Eu sei; você estranha. Eu estranha, mundo louco. Nós loucos. Quando sinto extrema necessidade de te encontrar, procuro dormir à tarde. Lá sempre nos encontramos e ao acordar, ainda que me sentindo um pouco melhor, sei que o tempo nos afastou novamente e não tenho lembrança inteira sobre as respostas das mil perguntas que te faço sempre. Está bem? O lugar é bonito? Te tratam bem? Tem pessoas legais? Não sendo corpo, é necessário comer? Por que não me aparece? Tantas perguntas... Você às vezes sorri, entendendo a minha necessidade de investigar, de te amar. Tento algo acordada, vou à praia que tanto nos abrigou e ufa! Que alívio... O mar, o vento, a lua... Lá está você em todos os lugares, mas em silêncio. Espreitando a noite como o felino que vias em mim. As coisas mudaram... sempre mudam, não é? Em algum tempo, enquanto dormia pela tarde, me falaste que aceitou completamente a morte, mas o que significa isso? Você era espírita e acreditava que desencarnado, voltaria a encarnar em outro corpo, outra história. Por divergência de crença, discutíamos. Mas respeitando que cada um vive (na morte também) aquilo que acredita, então, tendo aceitado, estás maduro pra voltar em outro corpo? Não fico feliz... Devia me esperar por ai. Tenho tanto pra contar! Queria tanto ouvir tua voz novamente pra reconfortar-me! Ah! Rodrigo... tanto me acusou de ser fria e indiferente, e eu agora, com toda sensibilidade e tristeza, derretendo de sofrimento e de saudade. Tanto mais que todos. 2011
Ao amigo, uma vida curta!
Creia! Estou no cúmulo da solidão, sou só. Sempre fui. Não há família, estão todos mortos em seus tragos, em seus pensamentos fúteis. Não quero que pareça confidência de uma vítima. Acredite, não é. Até posso me considerar “feliz”, também não quero atenção, gosto de ficar só embora saiba que preciso de alguém. Não sou incompreendida. Não mais. Essa fase me abandonou desde que percebi que ninguém tem obrigação de me ouvir, estamos todos no mesmo barco, perigando furar e afundar sem dó. Explico-lhe o desabafo: o dia não foi bom nem em pensamento, os astros giram e decidem a sorte. Nunca fui boa com a sorte. Não que sempre tive azar. Claro que não! nada além do comum. Estou triste por mim mesma, uma metade que sobrevive dessa espreita triste e carente numa combinação de escrever e sentir. Com a licença de Pessoa, o poeta não é tão fingidor, ele sente mesmo; inventa e cria situações, mas não se coloca fora delas. Sente tudo e descreve! É preciso sentir para escrever. É o dom. Emociona-me lembrar de como somos sós. Tanta gente e em cada áurea acompanha a solidão. Não é culpa de ninguém, aliás, culpa não existe! Não pretendia ser tão fiel neste escrito, mas o fui. Foi mais espontâneo que por escolha. Mas tudo é uma escolha e por isso nos perdemos em portas labirínticas, por isso devo arcar com as consequências O amor é o primeiro a trair, não se iluda, fui traída mesmo antes de nascer, o respeito não se dá a todos , mentem, minto. A contradição não me erra. Quando morrer quero estar viva, pois em vida sinto-me morta e infiel. Não há saída. Não há outro caminho, já sinto as dores de uma morte precoce, uma vida curta.
2011
Ao amigo R.T- Sua Solidão
A solidão é extremamente importante pra se fazer uma reciclagem interior. Quem sou eu pra te emitir conselhos? Compartilho contigo as observações dizendo que não há uma delas em que não concorde contigo. Deve ser coisa de poeta o fato de se apaixonar a cada "passo" mas acima de tudo , por existir uma sensibilidade que nos permite ver além, amar instintivamente a todos. Somos minoria, R.T. Por isso sofremos tanto... O mundo com sua multidão é solitário e infeliz. Essa condição humana de julgar e conflitar, vejo que tem haver justamente com a carência das mesmas. Complexos de inferioridade, falta de senso, falta de amor... Por isso a história é composta de Guerras, aliás, a maior prova da nossa burrice e ignorância, as guerras. Sim, a vida é limitada, pois vivermos em sociedade. A vida é limitada, pois atrofiamos o cérebro por falta de sábios. Somos limitados porque julgamos, maltratamos e ainda usamos um salto como se fôssemos sempre certos. Não admitimos conversas. O importante é saber que nunca somos a "verdade absoluta” ela é relativa e de nada, nada mesmo sabemos desse amálgama de mistérios. - a vida agrada a uns e desagrada a outros. - Prefiro achar que os agrados e desagrados vêm pra todos em momentos diferentes, de forma que, essa variância permite a sensação de "felicidade" ou "tristeza". Tudo passa num é, R.T? Tudo passa.... Nada volta! Então, toda essa solidão necessária só vai te fortalecer e te tornar ainda mais especial e iluminado. Tudo é relativo, meu caro. É possível (tão possível!!) curtir esses dias "frios" de suportar a própria convivência. É aí que você percebe o quanto é necessário entender as pessoas, e não o contrário. A tempos desistir de querer que elas me entendam, tenho o dom de entendê-las. Isso me basta. Não alimenta ego algum, porque ego é fugaz. A vida é fugaz. É preciso ser a essência... Amanhã é outro dia...
Pequenas cartas pra alguém...
Discursei sobre o amor porque havia me perguntado algo a respeito. Mas também nem sei se concordo comigo. Nem ao menos tenho certeza se existe o amor. Talvez mais uma interpretação humana, mania de denominar sentimentos. Isso limita o sentido das coisas. Enfim, tornamos a simplicidade da vida na mais complexa tese inatingível. Por isso me calo. Por isso discordo e, no entanto, considero todas as opiniões. São infinitas as verdades, porque existem infinitos mundos. Haja vista que existem infinitas cabeças. Bom, definitivamente falar do amor não é meu forte. Talvez por amar demais, talvez por me faltar humildade suficiente de entender esse sentimento. Sigo na dúvida sem a pretensão de desvendá-la. Quanto aos venenos, faz parte de minha caminhada essa tendência de explorá-los, porque mais me encanta a folha seca numa rua suja e feia, que as mais belas artes paisagísticas. Provo para falar com propriedade. Devoro tudo que faz mal. Sou assim, corrompida, subversiva, inanimada. Sou antes exatamente o que ignoro descobrir. Pois não posso deixar de lado o que a própria natureza me induz. O que há de vir, virá, como os versos nascendo a cada emoção. Pra que a vida sem emoção? Ainda resta-nos as lembranças. E também os devaneios. Tudo isso nos compõe. Forte ou fraco. Como drogas, almejos, nuvens farsantes de formas variadas, logo esquecemos tudo. Não vejo muitas complexidades do ato de fingir. Imagino que F. Pessoa fala literalmente ao mesmo em tempo que usa uma metáfora. Todos fingimos, sabemos mentir. Porém, o fingimento poético, pra mim, soa como a percepção aguçada dos poetas, de tão poderosa faz com que se crie de verdade, a mesma sensação no poeta. O que gera uma mentira verdadeira. Um fingimento sincero. Poucos conseguem entender isso. É o que sentimos porque temos o dom de sentir. Nem sempre é bom, quando se ver além do que os olhos comum veem, o todo parece mais estranho e então, torna-te um ser estranho também. É sempre mais difícil ser simples, porém, mais perfeito. O uso das poucas palavras mostra o domínio, justamente, de saber excluir, desmaterializar-se das palavras para encontrar o sentido. O sentido não precisa ser explicado, por isso não exige muitas palavras, o que não impede de existir poemas enormes com sentidos bárbaros, é o caso de um poema de Pessoa chamado A HORA ABSURDA. Também um poema de Allan Poe, O CORVO, cheio de sentidos translúcidos. O fato é que as experimentações te buscam. Não adianta correr atrás dela, é insano. Inspiração é momento mágico da criação. Ela te escolhe o momento.
Sobre o poema que te fiz... O poema não espera respostas. O poema não faz pressão, não sente saudade, não deseja afetar. O poema entende tua superficialidade. O poema não é seu. O poema se apropriou de sensações inventadas. O poema conhece tua distância, teu silêncio, e protege o meu, embora grite. O poema é conformado como as plantas, acontece desacontecendo. O poema é espontâneo, é verdadeiro, é fantasioso. O poema é uma contradição. O poema compartilha sentimentos, ou não. Faça o que queres com ele, talvez nem leia, tão inútil os documentos! O poema sou eu, um plural de sentimentos, enclausurada à unidade do restante. Há algo em mim que sempre permanece resignado. É esse pedaço que te encontra, invisivelmente. É esse pedaço que me reconheço em ti, calmamente. E agora como vamos? Seguindo os fluxos, coberto de brisas, pessoas bonitas. Seguimos sorrindo, preguiçosamente. Em alguns raros instantes lembramo-nos um do outro. E então a lua se retira para dormir. Levando consigo os doces sonhos da ilusão. O mundo é grande, e não cabe na janela do meu quarto... Assim inconcluo. Como quem vira as costas e vai. Porque nada mesmo se conclui, nem a vida, nem a morte. O mundo tem suas próprias pernas. Procurar e questionar já não fazem parte do vocábulo. Percebi a vida dispersa, fazendo mais sentido na junção dos pedaços. Fico feliz que seja assim. Nosso destino, o destino das marés.
A espera de Chico Buarque... Um tanto mais que uma carta de fã, mas deixa! Não vim esbarrar em clichês. Deves saber da linha tênue entre lucidez e loucura, por isso te escrevo. Pedir
tua mão e um pouco de todo o resto. Proponho que me faças um convite: Levar-nos (eu e a poesia) a Sampa, Cambaio, Lobo, Budapeste, Veloso, Rio, Leão, Jobim... Apadrinharias a poesia, tornando o infinito palpável, poderíamos tentar novamente felicidade. Convém Chico, nos reencontrar, mas sem questionar nada, não há tempo há perder quando o mundo tem as próprias pernas.
Despedi-me dos amigos considerando tal possibilidade, pude ler em seus semblantes uma compaixão da evidente ilusão, ou até a desesperança de ter perdido mais uma para a loucura. Bem sei o quanto o mundo não me cabe, insano seria perder a oportunidade de tentar, ao menos agora me conheces, invisivelmente. Porque o amor contempla a arte. Ambos nascem da ruína, constroem a beleza e retornam sombra, inalcançável e inútil.
“Pode tudo consumir, o tempo que passa feroz” O tempo manda embora ele não exista. Desfrutar tua música inédita é como um exílio onde respiro livremente. Uma construção perfeita. Como se fosse fácil a arte, ou um prazer visto a parte, em decomposição.
Chove na cidade do sol enquanto me preparo de ti para ti. Em compensação também parei de fumar, só os de filtro. As nuvens não cessam e eu canso meus olhos tentando acompanhá-las.
Cedo para entender, devemos nos aproveitar e reinventar toda história. Ousaríamos elegantemente um café, um passeio na esquina, um chorinho. Até, quem sabe, um brinde à oportuna vida. Derramar o leite em memórias tristes de García, orgulhosamente a flor da pele durante uns cem anos de solidão. Para isso servem os escritores; pra que as palavras remem e resplandeçam nossos sorrisos distantes, prevalecendo uma amizade invisível, carinhosamente dedicada, suponho. A mim coube uma percepção além do controle humano, mas não me gabo. Preferia ser feliz. Não ganhei algum reconhecimento por isso, e por puro egoísmo continuo tentando...
Por hora não prometamos nada, deixa que os outros pasmem. Teu sorriso seria para mim como um tesouro, afinal as pessoas aqui são meio estranhas, gostam de machucar.
“Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário nos contrariar, mas se o destino insistir em nos separar” (...)
Minhas malas estão empoeiradas e esquecidas de planejo. Digo, fico por aqui aguardando o chá, a caminhada, a boa conversa, as invenções... Fico sem querer ficar, geminiano, também sem me importar se deixo passar tanta terra, tanto mar. Antes fosse árvore, pássaro, ar.
Talvez no tempo da delicadeza (espero!)... Sei que não somos tão mortais.
Agora somos ímpares Eu, tu e teu outro eu.
Três cruéis dissolvendo integralmente tuas duas faces frente a frente
refletindo o mesmo espelho.