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História e Imprensa 237 CRÔNICAS FOLHETINESCAS: SUBJETIVIDADE, MODERNIDADE E CIRCULAÇÃO DA NOTÍCIA 1 Ariane P. Ewald Aurea Domingues Guimarães Camila Fernandes Bravo Carolina Bragança Sobreira RETRATOS DE UMA SUBJETIVIDADE SOCIAL EM MOVIMENTO Um de nossos interesses, do ponto de vista da psicologia social, ao estudar crônicas publicadas em periódicos no século XIX, está diretamente relacionado à inserção e à divulgação do conceito de modernidade entre nós, especialmente no que diz respeito à dinâmica humana que as crônicas nos apresentam, sendo parte dela relativa ao projeto de modernidade que está se instalando no Ocidente naquele momento. Pensamos também que, para melhor compreender o presente, temos de resgatar fragmentos do passado e reconstruir, a partir deles, o caminho por nós traçado e definido como sociedade e singularidades sociais. Acreditamos que parte das respostas que buscamos para nosso modo de vida contemporâneo encontra-se no passado, no que concerne à sociedade e aos sujeitos que a compõem, e que, nesse sentido, podemos dizer, como o filósofo Jean-Paul Sartre, que o homem não possui outro legislador senão ele próprio. 1 Texto publicado em NEVES, L. M. B, MOREL, M. e FERREIRA, T. B. da C. (Orgs.) . História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, 2006. p. 237-259.

CRÔNICAS FOLHETINESCAS: SUBJETIVIDADE, MODERNIDADE E CIRCULAÇÃO DA NOTÍCIA

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Texto escrito com Camila, Aurea e Carolina (grupo da pesquisa). Publicado em NEVES, L. M. B, MOREL, M. e FERREIRA, T. B. da C. (Orgs.) . História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, 2006. p. 237-259.

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História e Imprensa

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CRÔNICAS FOLHETINESCAS: SUBJETIVIDADE,

MODERNIDADE E CIRCULAÇÃO DA NOTÍCIA1

Ariane P. Ewald

Aurea Domingues Guimarães

Camila Fernandes Bravo

Carolina Bragança Sobreira

RETRATOS DE UMA SUBJETIVIDADE SOCIAL EM MOVIMENTO

Um de nossos interesses, do ponto de vista da psicologia social, ao

estudar crônicas publicadas em periódicos no século XIX, está

diretamente relacionado à inserção e à divulgação do conceito de

modernidade entre nós, especialmente no que diz respeito à dinâmica

humana que as crônicas nos apresentam, sendo parte dela relativa ao

projeto de modernidade que está se instalando no Ocidente naquele

momento. Pensamos também que, para melhor compreender o presente,

temos de resgatar fragmentos do passado e reconstruir, a partir deles, o

caminho por nós traçado e definido como sociedade e singularidades

sociais. Acreditamos que parte das respostas que buscamos para nosso

modo de vida contemporâneo encontra-se no passado, no que concerne à

sociedade e aos sujeitos que a compõem, e que, nesse sentido, podemos

dizer, como o filósofo Jean-Paul Sartre, que o homem não possui outro

legislador senão ele próprio.

1 Texto publicado em NEVES, L. M. B, MOREL, M. e FERREIRA, T. B. da C. (Orgs.) . História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, 2006. p.

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Crônicas folhetinescas

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Gostaríamos, inicialmente, de fazer algumas considerações em relação às

crônicas e ao que chamamos de subjetividade social em movimento.

1) Com um pé apoiado no existencialismo sartriano e outro na

tentativa de estabelecer um diálogo transdisciplinar com as áreas das

ciências humanas e sociais, partimos do princípio de que as criações

humanas são essencialmente “produções de sentido que expressam de

forma singular os complexos processos de realidade nos quais o homem

está envolvido, mas sem constituir um mero [reflexo] destes” (González

Rey, 2003, p. IX). Integram, portanto, os diferentes aspectos do mundo

em que o sujeito vive, e aparecem em cada um desses sujeitos, ou do

espaço social concreto, de forma única, isto é, “organizados em seu

caráter subjetivo pela história de seus protagonistas” (id., ib.). Se as

criações humanas são produções de sentido, então é fundamental buscar

por meio de linguagens diferentes, que podem se articular a construções

teóricas, maior inteligibilidade em relação à subjetividade humana e sua

representação nas multifacetadas atividades e nos diversos contextos em

que a vida concreta desses indivíduos desenvolve-se.

2) Buscar articulações entre os saberes da psicologia, da história, da

literatura, da comunicação e da sociologia é iluminar a cena da história

concreta dos homens, num esforço de compreensão que transcende

fronteiras convencionais das disciplinas acadêmicas em direção a um

conceito das ciências humanas e sociais. Almeja-se uma “unidade de

percepção”, há muito perdida numa pulverização empobrecedora dos

saberes que têm o homem como centro. Esse é nosso objetivo e

prazeroso desafio.

3) Como psicólogos, interessados na dinâmica humana

contemporânea, temos como hipótese norteadora não haver como

decifrar os arcanos de nossa modernidade sem rastrear as pegadas de sua

construção. Não que isso implique a crença de uma suposta linearidade de

construção “evolutiva” do percurso em direção a uma cada vez melhor e

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mais “progressista” humanidade, como reflexo de uma caminhada

hipotética da barbárie à civilização. Pelo contrário, é nossa crença inicial

que essa construção de nosso projeto de modernidade foi atravessada por

contradições e contramarchas, por perdas e ganhos, e que a sociedade não

se tornou, necessariamente, gradativamente “melhor” – o que implicaria

uma ampla e séria discussão de valores –, mas sim, de forma inexorável,

distinta de si mesma, num lento e por vezes doloroso processo de

superação de cada momento histórico em direção ao seguinte. Como

Hegel já nos ensinava, ela irá superar cada um desses momentos ao reter

em seu “novo” projeto de modernidade o que julgou necessário, o que lhe

pudesse servir para dar conta do momento seguinte, deixando para trás,

na memória dos que sobreviveram e nos diversos registros escritos do que

pensou fazer ou mesmo realizou, configurados em documentos, livros,

revistas, jornais, almanaques, propagandas, artes e ciências, tecnologias

que produziu ou que decidiu “esquecer”.

4) Temos nos concentrado nesse “esquecimento”, para que a

memória de uma construção social, tão longa e fecunda, não se limite, em

nós, psicólogos, ao que dela restou na contemporaneidade e que

condicionou as circunstâncias de nossa existência. Esta memória é

caudatária de uma longa história de “superações” que merecem e

precisam ser desveladas, pois reafirmam um laço identitário com um

passado que afinal nunca passa, mas é somente “superado”.

5) Contudo, remeter alguém a seu passado não o conduz a um

lugar tranqüilo e neutro dentro de si. Só aparentemente podemos pensar

esse lugar dentro de nós como um espaço neutro. Ao nos deslocarmos

em direção a ele, espontaneamente ou por uma “provocação” externa,

conduzimo-nos a um lugar idiossincraticamente construído dentro de nós

mesmos, como parte essencial de um eu com que nos identificamos. A

recordação – que nos remete a cor, de coração, fazer vir à memória –

aponta sempre na direção de forte sentimento nessa ação. Tal sentimento,

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imerso no ato de recordar, pode produzir uma série de distorções. A mais

interessante talvez seja a de que o indivíduo é levado a construir, ou

melhor, a constituir ou reconstruir para si seu passado a partir da situação

histórica que o presente determine.

6) A significação que constituímos é resultado de interação social,

que conecta homem e mundo no processo de construção de sentidos. O

social, dessa forma, produz-se através de uma verdadeira rede de sentidos,

de marcos de referência simbólicos por meio dos quais os homens se

comunicam, criam uma identidade coletiva e designam seu lugar frente às

instituições de poder dessa dada sociedade. Mediante suas representações

ideológicas, exprimem seus desejos e aspirações, justificam seus objetivos,

concebem o passado como o desejam recordar, constituindo-o para si, e criam utopias

para seu futuro. É assim que constituímos o passado que desejamos

recordar e no qual as coisas ganham a espessura que passamos a lhes

atribuir transformando e assimilando o passado e o heterogêneo,

permitindo-nos cicatrizar nossas feridas, reparar nossas perdas,

reconstituir forças partidas e inventar, a partir daí, futuros possíveis. Lidar

com o passado é mexer com fragmentos, com pedaços esparsos de

memória circunstanciada, gravados em papéis, monumentos, jornais,

livros, cartões, medalhas, objetos de todo gênero, nos quais a humanidade

deixou impressas as marcas do que foi feito.

7) As crônicas são fragmentos e, ao mesmo tempo, elementos do

social que tornam perceptível a entrada da modernidade no Rio de

Janeiro, além da inserção de uma nova forma de pensar o mundo e de se

relacionar com ele. Na esteira da Escola dos Annales, especialmente de

Lucien Febvre, podemos pensar na idéia de um “instrumental

intelectual”2 criado e disponibilizado em cada época (Burke, 1991). Esse é

2 A noção está ligada ao conceito “aparelhagem mental” desenvolvido por Lucien Febvre ao

longo de suas pesquisas. Para Febvre, “a cada civilização cabe sua aparelhagem mental […] ela

vale por uma época que a utiliza; não vale pela eternidade, nem para a humanidade”. Ele estava

convencido de que os homens do passado “não viviam, não agiam como nós”, portanto é

necessário explorar exaustivamente uma cultura das mais variadas perspectivas, pois é com

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o nível do cotidiano, situado “no ponto de junção do individual e do

coletivo”, afirma Le Goff (1995, p. 71). Lembrar a importância do

psíquico nessas questões é tornar presente a afirmação de Marc Bloch de

que “os fatos históricos são por essência fatos psicológicos” (2001, p.

157). Esses fragmentos da vida no século XIX indicam também os sinais

mais públicos e visíveis do projeto da modernidade que se expande, ao

mesmo tempo que se tornam meio de divulgação eficaz do “espírito do

tempo” do século XIX. A vida, exposta nas crônicas folhetinescas,

proporciona uma noção do impacto da modernidade sobre os cariocas

nesse período.

CRÔNICAS FOLHETINESCAS: A SEMANA EM REVISTA

As crônicas folhetinescas foram publicadas nos rodapés dos principais

periódicos do Rio de Janeiro do Segundo Reinado, como Jornal do

Commercio, Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro. Revelam os principais

acontecimentos da semana, descritos por intermédio do olhar de um

contemporâneo. Os textos constituem um estilo literário particular dentro

do gênero crônica, de cuja pequena história traçaremos um esboço.

A crônica assumiu diversas formas ao longo do tempo, e sua definição

passou por algumas modificações. Textos comumente chamados de

relatos históricos, ensaios e folhetins enquadram-se na crônica. Contudo,

a denominação só pode ser entendida atualmente se repassarmos, como

num vol d’oiseau,3 as características de cada uma dessas definições que

acabarão por nos fornecer uma visão ampla do surgimento da crônica

como estilo literário no Brasil.

esses “instrumentos” que se constrói a experiência, tanto individual quanto coletiva (ap. Revel,

1993, p. 66-67; ver também p. 326-327).

3 Empregada aqui no sentido de uma visão panorâmica, a expressão significa “em linha reta”,

“diretamente”, “do alto, de um ponto situado acima de todos os acidentes”. Remonta ao século

XVIII e foi também usada para designar, em mapas, uma visão do alto.

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Crônicas folhetinescas

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Em seu momento inicial, a crônica constituía um gênero histórico. Sua

etimologia vem do grego khrónos (Corominas, 1954; Bueno, 1968; Cunha,

1982), que significa “tempo”, e seu sentido está ligado ao relato de fatos,

históricos ou não, sucedidos em algum lugar e seguindo a ordem do tempo.4

De acordo com Nilma Lacerda (1979), a crônica foi primeiramente uma

espécie “paraliterária”, pois margeava a literatura e pertencia quase

inteiramente à historiografia. Afrânio Coutinho (1999) também destaca a

importância da crônica para a historiografia, principalmente a portuguesa.

Sua origem está ligada à Idade Média, quando a memória era preservada

no registro oral, transmitida basicamente de forma cantada. Alguns

senhores feudais, para preservar sua história, mandavam registrar os

principais eventos de sua família em ordem cronológica, tomando como base

aquilo que se considerava digno de passar para a posteridade, mesmo que

fosse “corrigindo” o passado (Geary, 2002). As crônicas registravam

também episódios pitorescos da vida urbana, pequenas cenas trágicas

e/ou anedóticas.

Com o passar do tempo, a crônica deixou de ser um gênero estritamente

ligado à historiografia, ganhando caráter literário e incorporando a seu

texto, como já fazia Fernão Lopes, o interesse pelas emoções humanas,

mesmo as mais grosseiras. Como destaca Lacerda (1979), a narrativa se

tornou mais dinâmica, com a utilização de cortes e entrelaçamento de

cenas e situações; os relatos passaram a apresentar um sentido de

realidade, o que permite ao discurso atualizar o passado; a palavra ganhou

importância como instrumento de trabalho; o cronista incluía a

recordação, a observação e a expectativa em seus textos. Dessa forma, o

4 Benedetto Croce, ao discutir crônica e história, afirma que comumente se atribuíam à primeira

fatos individuais e privados, e à segunda fatos gerais e públicos, “como se o geral não fosse

individual e o individual geral, e o público não fosse sempre simultaneamente privado e o

privado público”. Portanto, para ele, foi sempre destinado à crônica aquilo que “não interessa”,

enquanto à história reservava-se o “que interessa” (1984, p. 280).

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autor podia inserir lembranças, sensações e emoções ao comentar o fato

histórico.

Além do estilo, o termo “crônica” também se modificou com o passar do

tempo, assumindo, segundo Afrânio Coutinho (1999), outro sentido no

idioma português no início do século XIX. Enquanto nos idiomas

europeus tinha basicamente o caráter de relato histórico, no Brasil passou

a significar um gênero literário específico, estritamente ligado ao

jornalismo. Apesar das modificações no termo, há nos séculos XVI e

XVII textos que podem ser enquadrados no gênero crônica como estilo

literário.

É o caso do ensaio, cujo acabamento, na condição de gênero literário,

deve-se aos ingleses.5 Em seu sentido primitivo, assemelha-se ao tipo de

texto que hoje, no Brasil, é classificado como crônica. Podem-se perceber

claramente as semelhanças a partir das características arroladas por

Coutinho (1999, p. 117s): o ensaio é um discurso breve e compacto, como

um compêndio de pensamento, experiência e observação; constitui um

gênero flexível e livre, permitindo maior liberdade de estilo, assunto,

método e exposição; é uma composição em prosa que tenta experimentar

a interpretação da realidade; a linguagem é coloquial, aproximando-se da

oralidade; o pensamento é exposto sem nenhum intervalo ou artifício

intermediário; não tem forma fixa, podendo utilizar narração, descrição,

exposição ou argumentação e ser apresentado mediante carta, sermão,

monólogo, diálogo ou crônica; finalmente, revela uma reação humana

diante do impacto da realidade, sendo portanto curto, direto, incisivo,

individual e interpretativo.

Apesar de haver textos no Brasil do século XVI semelhantes aos antigos

ensaios, e que podem ser classificados como crônicas, estas só se 5 Na acepção moderna, deve-se a Montaigne, com os Essais (1596), a iniciação do gênero

(Coutinho, 1999).

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consolidaram como gênero literário no século XIX. Seu caráter histórico,

porém, ainda prevalece em francês, inglês, espanhol e italiano.

Em já famoso prefácio sobre a crônica, Antônio Cândido (1992) afirma

que ela não foi feita originalmente para o livro, pois não tem pretensões

para durar. Por suas características peculiares, encontrou no jornal seu

veículo de comunicação e consolidou-se como estilo literário. A

efemeridade do jornal, que nasce, envelhece e morre a cada 24 horas,

permite o relato de acontecimentos circunstanciais numa linguagem mais

direta e coloquial. Cria, entre o escritor e o leitor, a cumplicidade que só a

amizade revela, a troca de experiências e confidências, uma intimidade até

então inexistente nos periódicos nacionais (Ewald, 2000). O

coloquialismo da linguagem escrita aproxima o cronista e o leitor pelo

tom de oralidade. O relato do circunstancial, por sua vez, caracteriza-se

pela captação de um breve instante, mas que ganha significância no

quadro geral da crônica.

No século XIX, as crônicas foram publicadas numa seção específica do

jornal, denominada “folhetim”, localizada no rodapé. Na época, os jornais

brasileiros já haviam incorporado a publicação de romances em capítulos,

traduzidos dos jornais franceses. Assim como na França, eles passaram a

ser publicados no rodapé, aumentando a venda dos jornais.

Segundo Ewald (ib.), na década de 1830 o sentido cronológico do termo

“crônica” permanece, pois se encontra um uso freqüente desse sentido

nos periódicos da época: um artigo como “O cocheiro de Sthulwagen –

crônica de Colônia (1523)”; uma seção específica do jornal como

“Crônica legislativa”, “Crônica administrativa” ou mesmo “Crônica

semanal”; ou ainda o próprio título do periódico especializado, como O

Cronista: Jornal Cronológico, Literário, Crítico e de Modas, criado por Justiniano

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José da Rocha, Josino do Nascimento Silva e Firmino Rodrigues da Silva,

e que existiu de 23 de maio de 1836 a 2 de abril de 1839.

Nos anos 1840 a palavra “folhetim” está diretamente relacionada aos

romances publicados em capítulos no rodapé do jornal. Delimitado por

acentuada linha preta, mas que segue a mesma estrutura de divisão em

colunas, o rodapé é designado pelo título “Folhetim”. Outros textos, além

dos romances, passaram a ser publicados nesse mesmo espaço, gerando

certa confusão quanto ao conteúdo da seção. Há realmente uma boa carga

de imprecisão quanto ao que esses termos significam e ao que se referem

(Meyer, 1992). Inicialmente, “folhetim” designava somente o romance em

capítulos no rodapé do jornal. Com a introdução no mesmo espaço de

“artigos” leves comentando os acontecimentos cotidianos da cidade, esses

textos também passaram a ser chamados de folhetins. Percorrendo os

jornais da imprensa brasileira, Ewald (2000) encontrou, num primeiro

momento, crônicas – no sentido original do termo – publicadas na coluna

“Variedades”; num segundo momento, romances franceses traduzidos

publicados no rodapé; por fim, também no rodapé, críticas teatrais e

crônicas dividindo espaço com os romances.

Segundo Brito Broca, a idéia de publicar artigos leves sobre episódios

variados, e intercalados por comentários pessoais no rodapé, surgiu do

costume criado pelo folhetim-romance.6 É possível aceitar essa hipótese

em vista do uso do rodapé para a publicação de outro tipo de texto, a

“crônica folhetinesca” (Ewald, 2000), que toma forma e corpo desde

1850, com a publicação, na seção “Comunicados” do Jornal do Commercio,

das cartas “Ao amigo ausente” de José Maria da Silva Paranhos, o

visconde do Rio Branco.

6 “O gênero [folhetim] criou o hábito de o leitor procurar todos os dias o folhetim dos

jornais. Daí a idéia de publicar-se também, em rodapé, um artigo leve, entremeando

comentários sobre fatos diversos, numa categoria semelhante à de capítulos de romances

[…]. Surgia assim essa nova modalidade de folhetim cujo predomínio se estenderia também

por toda a imprensa e seria a forma primitiva da crônica moderna” (Broca, 1979, p. 174).

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Crônicas folhetinescas

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A idéia central da crônica folhetinesca é entreter o leitor, transformando o

cotidiano da cidade em capítulos de um romance, como se fosse um

“folhetim-romance-realidade” (id., ib.), isto é, um romance baseado nos

fatos que aconteceram durante a semana. Ao mesmo tempo, o termo

“crônica” para indicar esse estilo literário difundiu-se e passou a ser usado

como sinônimo dos comentários da semana, geralmente publicados aos

domingos. Portanto, passou também a designar o relato semanal e atual

sobre a vida na cidade. Como lembra Coaracy (1961), é comentário que

exprime um “ponto de vista pessoal” sobre questões que, cada vez mais,

despertam o interesse do leitor. A palavra “folhetim” foi sendo

lentamente abandonada, e “crônica” generalizou-se no fim do século

XIX, ganhando nova vida com a Belle Époque.

As crônicas folhetinescas descrevem os principais acontecimentos da

semana relacionados à vida política, literária e social da elite carioca do

século XIX. Os cronistas-folhetinistas registravam fatos circunstanciais e

se preocupavam em manter uma relação de confiança com os leitores;

comprometiam-se, assim, a manter a veracidade dos episódios relatados,

às vezes exclusivamente de seu ponto de vista. Escreviam numa

linguagem coloquial e amiúde num tom vivaz, para tornar a leitura

agradável e divertida. Entre os cronistas-folhetinistas dos meados do

século XIX destacam-se José Maria da Silva Paranhos (visconde do Rio

Branco), Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Machado de Assis, José de

Alencar, França Júnior, Joaquim Manuel de Macedo e Ferreira de

Menezes.

Autores como Coaracy (1961), Broca (1979) e Coutinho (1999) indicam a

mudança que a crônica sofreu no século XX em relação ao que

representava originalmente no século anterior. A crônica moderna,

segundo os autores, libertou-se das “algemas da atualidade” – não é mais

um comentário oportuno sobre os fatos acontecidos. “Em vez de

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procurar assunto no noticiário”, afirma Coaracy, “passou a buscar inspiração

nas impressões quaisquer recolhidas pelo seu espírito através da

observação, da fantasia ou da reflexão” (1961, p. XV). O cronista, pois,

deixa de ser jornalista para se tornar escritor, e troca o ofício pela arte.

Neste sentido, a palavra “crônica” tem aqui o seu sentido contemporâneo

e abandona a “revista semanal da cidade” como objeto do seu texto. A

expressão “crônica folhetinesca” é específica para os textos dos meados

do século XIX (Ewald, 2000) e sua principal característica é o relato

circunstanciado dos acontecimentos da cidade.

A IDÉIA DE MODERNIDADE NAS CRÔNICAS DE FRANCISCO OTAVIANO

Francisco Otaviano de Almeida Rosa foi um importante político do

Segundo Reinado. Tornou-se conhecido no meio literário por seus textos

jornalísticos e poesias, que lhe renderam o epíteto “pena de ouro”,

conferido pelos intelectuais/jornalistas da época aos grandes mestres da

escrita. Em 1896 foi escolhido pelo visconde de Taunay como patrono da

cadeira 13 da Academia Brasileira de Letras (Serpa, 1952, p. 214). Foi um

homem do Império: nasceu alguns anos depois da Independência (em 26

de junho de 1826) e faleceu poucos meses antes da proclamação da

República (em 28 de maio de 1889), tendo vivido a maior parte desse

período no Rio de Janeiro. Testemunhou, portanto, os eventos mais

importantes do Segundo Reinado. Participou de acontecimentos que

marcaram a época, fosse lutando por seus ideais, como o fim da

escravidão e a proclamação da República, fosse como escritor, deixando

registrado nos jornais um relato crítico dos fatos polêmicos que

movimentavam a capital.

De 1852 a 1854, Francisco Otaviano ocupou o cargo de folhetinista do

Jornal do Commercio. Suas crônicas, publicadas sob o título de “A semana”,

tinham como tema o cotidiano da cidade, retratado de forma peculiar, o

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Crônicas folhetinescas

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que lhe rendeu, anos mais tarde, o reconhecimento como precursor da

crônica social no Brasil.7 Essas crônicas se tornaram um espelho da cidade

do Rio de Janeiro e encontraram na fala de Phoncion Serpa (1952, p. 57)

sua melhor definição: “Reler essas crônicas, cujo valor e perfume

resistiram ao lento derivar das horas, seria o mesmo que folhear um velho

álbum de família e reconstituir por imagens os cenários, os costumes, o

colorido das coisas aparentemente imutáveis, o colorido dos homens que

pareciam eternos”.

O sentido de modernidade nas crônicas folhetinescas de Francisco

Otaviano era o mesmo que se espraiava pelo mundo naquele momento e

que tomou forma sob a égide das noções de progresso e civilização. Tais

conceitos começaram a ser amplamente difundidos e teorizados na

Europa Ocidental desde os meados do século XVIII até a década de 1890

(Le Goff, 1984).

Segundo Le Goff (ib.), a idéia de progresso só ganha ênfase quando

existe, como pano de fundo, uma série de acontecimentos favoráveis. No

transcorrer do fim do século XVIII e notadamente durante o XIX, a

Europa viveu a explosão do capitalismo industrial e uma febre de

inovações técnico-científicas que promoveram a melhoria do conforto, do

bem-estar e da segurança das elites ocidentais, bem como o progresso do

liberalismo, da instrução, da alfabetização e da democracia. Esses fatores,

somados aos desdobramentos da Revolução Francesa, que instaurou um

ideário libertário cuja finalidade máxima era a felicidade dos povos,

compunham o cenário ideal para a disseminação de teorias sobre o

progresso.

7 Ver Coutinho (1999), Ipanema e Ipanema (1967), Sodré (1966), Broca (1979) e Serpa (1952).

Ewald (2000) crê que o precursor foi José Maria da Silva Paranhos, o visconde do Rio Branco,

com suas cartas “Ao amigo ausente” publicadas no Jornal do Commercio entre 1851 e 1852 na

seção “Comunicados”.

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A esse cenário de progresso, somou-se outro termo, “civilização”.

François Guizot (ap. Neves, 1988), seguindo a lógica estabelecida por

Turgot e Condorcet (Le Goff, 1984; Bock, 1980), escreve: “A civilização é

uma luz e consiste em um processo de desenvolvimento que sempre

tende em direção a um mesmo fim: o melhoramento da humanidade” (p.

30). Civilização passa a denominar tanto o processo que torna os povos

civilizados quanto o resultado cumulativo desse processo. Em ambos os

sentidos, o conceito toma a forma de uma antinomia à barbárie

(Starobinski, 2001).

Durante o século XVIII e a primeira metade do XIX, o Brasil se manteve

muito distante da dita civilização, uma vez que suas relações

internacionais eram incipientes e pautadas no modelo colonial. Somente

em meados do século XIX é que as relações brasileiras com a França e a

Inglaterra começaram a se estreitar em termos diferenciados. A

intensificação das relações comerciais e comunicacionais aproximou o

Brasil da Europa, que se apresentava como o mais alto grau de progresso

e civilização já alcançado na escala do desenvolvimento humano (Bock,

1980). Na época, segundo Le Goff (1984, p. 355), a Europa se encontrava

na era “do triunfo da ideologia do progresso em simultâneo com o grande

boom econômico e industrial do Ocidente” e vivia os desdobramentos de

uma série de episódios que lentamente conduziram a esse ápice de

prosperidade. O Brasil, no entanto, não passou pelas fases iniciais do

processo de desenvolvimento que culminou no período de avanço

material europeu e, para atingir esse nível, teria de fazer profundas

reformas em um curto período.

A máquina transforma-se no símbolo do poder e da supremacia européia

e nesta condição, afirma Neves (1988, p. 30), o poder “só se realiza e se

conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação

de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial”. A sociedade

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Crônicas folhetinescas

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brasileira assimilou, não sem críticas, a lógica de valorização dos ícones da

modernidade, e os melhoramentos materiais se tornaram símbolos da

modernidade. O povo ansiava pelas transformações e comemorava

efusivamente cada sinal dos novos tempos.

A partir da década de 1850, com o fim do tráfico negreiro, o dinheiro

empenhado nesse comércio passa a “sobrar” no bolso dos grandes

investidores. Isso é acompanhado por uma conciliação entre os partidos

políticos e acontecimentos favoráveis à concretização das tão aguardadas

mudanças. Lentamente, tais transformações começam a despontar no

cenário brasileiro: a iluminação deixa de ser a óleo de peixe e passa a ser a

gás; Mauá inaugura a primeira ferrovia brasileira; é estabelecida uma rede

telegráfica entre a capital e a cidade de Petrópolis; obras de calçamento e

de saneamento são concretizadas; vários monumentos são construídos na

capital. Essas e outras inovações fortalecem a sensação de prosperidade e

a constatação de que o progresso e a civilização estavam cada vez mais

presentes no cotidiano nacional.

A euforia é claramente percebida nos jornais da época, notadamente nas

crônicas folhetinescas que cumpriam a função de descrever os fatos

citadinos, sobretudo os que geravam comoção popular. Diversos cronistas

se punham a serviço desta nova ordem, o que significava reivindicar

melhorias materiais, industrialização e reformas urbanas, e denunciar tudo

que representava um entrave para o desenvolvimento do país.8 As

crônicas de Francisco Otaviano exprimem bem a função que essa

literatura tinha na época, revelando um retrato da intensa repercussão

social que esses acontecimentos geravam. Este trecho de crônica

folhetinesca de 1853 ilustra a função da escrita otaviana:

A presidência do Rio de Janeiro continua, zelosa e benéfica, a atender às necessidades mais urgentes do bom povo fluminense. Há poucos dias foi o Sr. conselheiro Pedreira a Parati solenizar a conclusão do aqueduto e

8 Sobre a idéia de progresso nas crônicas de José de Alencar, ver Souza (1998).

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História e Imprensa

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chafariz daquela cidade, obra executada sob o plano e direção do hábil capitão de engenheiros Francisco Januário dos Passos. S. Ex. teve um brilhante acolhimento e recebeu um brinde de honra que por louvável escrúpulo ofereceu logo à casa de caridade (“A semana”, Jornal do Commercio, 24 abr. 1853).

As descrições que Otaviano tece em suas crônicas são permeadas de

adjetivos, enriquecendo a narrativa e proporcionando ao leitor a perfeita

reprodução do episódio, além de contagiá-lo com o sentimento

vivenciado por quem estava presente no evento. O retrato feito da

inauguração da iluminação a gás na rua do Ouvidor elucida esse talento:

Toda a cidade correu à rua do Ouvidor para apreciar a nova iluminação. Encolhidas e tristes, as últimas torcidas dos lampiões de azeite viam passar as ondas desta população inconstante que adora as novidades e se esquece dos serviços antigos. Ninguém fazia caso daquelas relíquias do tempo passado, ninguém tinha olhos e elogios senão para os lampiões a gás! (ib., 2 abr. 1854).

A modernidade surgia para o Brasil como possibilidade de afastamento de

todo o atraso relacionado ao período colonial. Francisco Otaviano, assim

como muitos outros intelectuais/jornalistas, acreditava que o

desenvolvimento técnico traria progresso para o país. No trecho a seguir,

em que o autor fala sobre a inauguração da primeira estrada de ferro

brasileira, constata-se esse sentimento: “Aquela ponte parece que está ali

como o primeiro aceno do progresso, como uma garantia de celeridade,

como uma promessa de segurança. Foi sólida e rapidamente construída

até o ponto em que se acha, tendo ainda de ser prolongada para se

evitarem inconvenientes das marés baixas” (ib., 1º maio 1854).

Francisco Otaviano sempre comparecia às festividades que enalteciam os

símbolos do progresso. A primeira viagem da locomotiva brasileira foi um

grande evento, que contou com a presença do imperador Pedro II. A

descrição desse acontecimento histórico ocupou todo o espaço da crônica

folhetinesca da semana. Este excerto faz parte de crônica de 1º de maio

de 1854, sobre a inauguração da estrada de ferro de Petrópolis: “Hoje

dignam-se VV.MM. de vir ver correr a locomotiva veloz, cujo sibilo

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Crônicas folhetinescas

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agudo ecoará nas matas do Brasil prosperidade e civilização, e marcará

sem dúvida uma nova era do país” (ib.).

O aperfeiçoamento material não é o único tema nos folhetins de

Otaviano. Nesse espaço, afirma Serpa (1952, p. 54), “tudo encontra

ressonância […] as eleições, os bailes, as festas populares, os teatros, os

cantores da ópera, livros, discursos, encerramento das aulas no colégio de

Pedro II, o carnaval com seus entrudos, a febre amarela…”. Além desses

assuntos, outro aparecia com freqüência: a moda. Para Francisco

Otaviano, ela era sempre alvo de comentários satíricos e de conselhos

bem-humorados. Os exageros de todo gênero eram um de seus alvos

preferidos. Num de seus textos, traça um perfil de como as moças de sua

época costumavam vestir-se para ir aos bailes, proporcionando ao leitor a

visualização do alvo de sua crítica.

Já uma vez por todas declarei que não sabia avaliar os toilletes. Mas não posso me furtar de dar um conselho às nossas elegantes. Para que não suprimem elas algumas varas de seda ou de filó nas caudas de seus vestidos? Que prazer acham em sair do baile descosidas e laceradas nas roupas! Como é que meninas tão galantes tão bem feitas pedem a ornatos tão extravagantes e a gama de acessórios que as enfeiam, que lhes tiram a graça e a leveza dos movimentos. Uma flor singela no cabelo, um vestido mais à inglesa, dão realce à mocidade. O abuso das flores artificiais e dos saiotes faz com que as meninas pareçam nichos de igrejas ou balões de noite de São João (“A semana”, Jornal do Commercio, 4 dez. 1853).

As crônicas de Otaviano representam um rico material de estudo

psicossociológico do Rio de Janeiro, palco de acontecimentos

significativos que se irradiavam para todo o país. Os fatos ali descritos

integram nossa história e exprimem a lógica da modernidade, cujos

desdobramentos repercutem até hoje na vida dos brasileiros.

Circulação da notícia: pequeno itinerário de um cronista-folhetinista

Na perspectiva atual, no mundo globalizado do qual fazemos parte, os

veículos de informação são os principais agentes na divulgação dos fatos

ocorridos nos mais diferentes cantos do planeta. Satélites, internet,

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História e Imprensa

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televisão, telefone móvel, fax, entre muitos outros apetrechos, agilizam o

processo de comunicação. Mediante o estudo do século XIX e,

principalmente, o acesso aos jornais desse período da história do país, é

nítida a diferença de acesso a informações por parte dos “homens da

notícia” dos grandes periódicos da época. Mas o século XIX também se

caracteriza por avanços significativos nesse campo. Um exemplo é a linha

de paquetes transatlânticos, responsáveis por trazerem as novidades da

Europa, “diminuindo”, consistentemente, a distância entre o Brasil e o

Velho Mundo em intervalos fixos e menores. A implantação da primeira

linha de telégrafos no Rio de Janeiro (1852) e a inauguração das vias

férreas (1854, 14,5 quilômetros entre o porto de Mauá e a estação do

Fragoso) também reduziram o tempo da troca de informações entre os

estados brasileiros. Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do

Brasil (p. 42) menciona que, mesmo depois de inaugurado o regime

republicano, nunca, talvez, fomos envolvidos, em tão breve período, por

uma febre tão intensa de reformas como a que se registrou nos meados

do século oitocentista, especialmente de 1851 a 1855.

A dificuldade na obtenção de informações e a escassez de notícias,

sobretudo no intervalo dos paquetes transatlânticos, acentuavam-se com a

chegada da “estação calmosa”, o verão. Período de intensas ondas de

calor, provocava a saída da população carioca para o campo e as regiões

serranas como Petrópolis e Teresópolis, lugares de climas mais amenos e

mais apropriados às vestimentas da época. Um dos exemplos desse

“defluxo” é relatado por Francisco Otaviano:

Reina o defluxo por toda a cidade. Não há quem não lussa por enfermidade ou por moda; as mais delicadas vozes enrouquecerão; os mais animados rostos descorarão. – Via sion lugent.

A vida humana, disse um poeta árabe, não passa de uma embriaguez; o que ela tem de agradável se evapora na manhã seguinte. Antes eu não tivesse regressado do campo, onde, apesar das chuvas, tudo era festança, animação, boa conversa e boa mesa. Os dias aí passei foram tão rápidos como as últimas presidências de Buenos Aires (“A semana”, Jornal do

Commercio, 9 jan. 1853).

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Assim como outros cronistas-folhetinistas que lhe seguiriam os passos,

Francisco Otaviano muitas vezes se via sem assunto/notícias. O desafio

estava lançado: cumprir a função de historicizar a semana e, ao mesmo

tempo, entreter o público leitor. Assim ele se expressa sobre o dilema:

Aí está o papel sobre a mesa. Escreve, infeliz cronista; ninguém te levará em conta a nulidade destes sete dias. “Se o tempo não deu um passo”, corrige o tempo; se não há fatos a registrar, inventa-os; se não podes fazer um quadro histórico, esboça um painel de fantasia; mas cumpre o teu dever, tortura a tua inteligência, e dessa mente erma de idéias extrai algum fruto, embora disforme, que, reduzido a artigo de jornal, encha as colunas do folhetim hebdomadário (ib., 6 fev. 1853).

Diante dessas e de outras dificuldades, os intelectuais/jornalistas do

Segundo Reinado iam, literalmente, à “cata de notícias”, isto é, saíam à

rua, circulavam pela cidade, movendo-se para “tomar conhecimento” dos

fatos, das novidades sociais, políticas e culturais da cidade. Os lugares

escolhidos eram aqueles que agregavam políticos, intelectuais, literatos,

fofoqueiros, damas da Corte, finas ou não, além dos cultos religiosos que

sempre forneciam algum material para preencher páginas da coluna:

confeitarias, teatros, bailes, cafés, tipografias, livrarias, a Assembléia dos

Deputados, lojas de produtos diversos – especialmente na rua do Ouvidor

–, saraus, festas públicas e, sobretudo, salões de beleza. Além dessas

demarcações físicas, havia as fontes especiais, particulares de cada

cronista, as quais permitiam a cada um ter a chance de publicar na coluna

algo inédito.

O cronista-folhetinista em movimento remete ao flâneur, imagem

construída por Walter Benjamin (1985) em seus estudos sobre Paris. De

acordo com o autor, o flâneur parisiense vagueia pelo desconhecido,

banaliza o espaço e faz disso sua experiência fundamental; é produto da

cidade, criação feita de vida, que pulsa pelas ruas. A visão atual do flâneur é

“romântica”, já que, devido à correria do mundo moderno, poucos são os

que conseguem “andar sem destino”, sem preocupação. Em

contraposição, segundo o Grand dictionnaire universel du XIXe siècle

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História e Imprensa

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(Larousse, 1866-1878), o flâneur era conceituado como preguiçoso e

desocupado, verdadeiro entrave à circulação pela cidade.

Para Benjamin (1985, p. 66-67), “a rua se torna moradia para o flâneur, que

está tão em casa entre as fachadas das casas quanto o burguês entre as

suas quatro paredes”; ele necessita intimamente da multidão, assim como

o personagem do conto de Allan Poe (1965, p. 392-400) “Um homem na

multidão”, de 1840. Na busca incessante por estar entre as pessoas, ele

repetia o mesmo percurso sem se importar com os inconvenientes do

tempo, pois o que lhe satisfazia era estar no meio da multidão, não

conseguindo sobreviver longe dela. Na visão de Benjamin, o flâneur é,

sobretudo, alguém que não se sente seguro na própria sociedade (1985, p.

76), procurando reconstruir seus referenciais perdidos com a

“modernização” das cidades e, portanto, do cotidiano.

O cronista-folhetinista pode ser considerado um “tipo especial” de flâneur,

pois não é mero curioso ou observador despreocupado. Parte de seu

trabalho é um flanar que resulta num texto para o jornal. Homem de seu

tempo, estava atento para narrar as mudanças da cidade e o

comportamento das pessoas, observado durante as caminhadas. É preciso

ressaltar a diferença, quanto a aspectos como o espaço geográfico e o

clima, entre os flanares carioca e parisiense no século XIX. Paris já era

uma cidade com uma história longa, vibrante e revolucionária. Já o Rio de

Janeiro acabava de abrir-se para o mundo, tentando ainda construir sua

identidade como nação.

O flanar do cronista-folhetinista aponta para a circulação das notícias na

cidade, para lugares aos quais chegavam, eram comentadas, às vezes

“transformadas”, e dos quais saíam para espraiar-se alhures. Assim como

os salões de baile e os saraus realizados em residências imponentes, a

estreita rua do Ouvidor, cujo prestígio durante o Segundo Reinado teve

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Crônicas folhetinescas

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início nos anos 1830 (Ewald, 2000, p. 276), era um dos principais redutos

de notícias. Ali o comércio francês começou a se instalar, ao mesmo

tempo que a idéia de comprar tecidos e acessórios nas lojas francesas

tornava-se sinônimo de elegância, civilidade e respeitabilidade.

O renome da rua atraía todo tipo de comércio e a rica freguesia da Corte

brasileira. Lojas com produtos luxuosos/importados, floristas, sapateiros,

livreiros, cabeleireiros, confeitarias tornaram-se ponto de encontro e de

conversas acerca dos mais variados assuntos. Nesse ambiente,

comentavam-se notícias de primeira mão sobre as novidades da política e

da moda francesa, as recentes publicações e as novas máquinas que

chegavam da Europa. Como indica Francisco Otaviano: “Quem passasse

ontem pelas ruas do Ouvidor e da Quitanda acreditaria que estávamos no

tempo das procissões, contemplando a afluência de senhoras e de homens

que atravessavam por ali. A exposição da mobília de um nababo, que será

arrematada em leilão na próxima semana, era o chamariz de todo esse

concurso” (“A semana”, Jornal do Commercio, 25 set. 1853).

Cada cronista-folhetinista tinha suas preferências e elegia os locais para

sua circulação e seu comentário “desinteressado”, que acabava indicando

aos leitores como o must da modernidade. Em 1854, Francisco Otaviano

menciona os comerciantes da rua do Ouvidor, que chama de rua

Parisiense devido ao grande número de lojas francesas, e as baixas nas

compras devido à fuga da cidade para as festas de fim de ano longe do

calor.

A estação e as festas do fim de ano arredaram da cidade os passeadores da rua do Ouvidor e os freqüentadores dos círculos. Embalde estiveram à mostra as cassas e sedas nas vidraças de Wallerstein e de seus rivais, os adereços e pedrarias nas do Marin e Berard, os vasos e perfumarias nas do Desmarais, os álbuns preciosos en vieil argent nas do Audoin; quase ninguém percorria a rua Parisiense nestes dias últimos (ib., 8 jan. 1854).

Uma das principais características dos cronistas-folhetinistas, na condição

de um tipo especial de flâneur, é o olhar aguçado sobre o cotidiano da

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cidade, ligando o dia-a-dia aos jornais e, conseqüentemente, aos leitores,

verdadeiros atores da vida na cidade. Por ser, além de jornalista, advogado

e político, Francisco Otaviano apresentava em suas crônicas folhetinescas

a preocupação com os assuntos sociais da população carioca. Em uma de

suas buscas pela notícia, visitou uma casa de detenção e dedicou toda a

sua produção semanal a relatar suas impressões.

Na encosta do morro da Conceição há um casebre estragado pelo tempo, onde se infiltram as águas que descem da montanha; casebre estreito, escuro, baixo, sem ar, sem luz, sem espaço; antro ou covil de feras mais do que habitação de homens, jaula para reptis venenosos, que podem aumentar a sua peçonha com o tóxico do ambiente; este casebre é a casa de detenção e ao mesmo tempo a cadeia pública da capital do império do Brasil, da cidade do Rio de Janeiro, a primeira da América do Sul, a segunda ou terceira de todo o continente americano, cidade ilustrada, opulenta, rendosa, recinto de trezentos mil habitantes!

[…]

O sistema adotado na penitenciária do Catumbi é o trabalho em comum durante o dia, e o do isolamento celular à noite e nas horas de descanso; porém, mesmo nas oficinas, os presos não podem interromper o silêncio impunemente.

Trajam todos um vestuário semelhante. Não são conhecidos por seus nomes, sim por seus números e classe (ib., 17 jul. 1853).

A circulação do cronista-folhetinista pela cidade exerce papel importante na

compreensão das crônicas folhetinescas como divulgadoras de uma trama social,

de um estilo de vida, de valores que sinalizaram a modernidade no século XIX.

Ler essas crônicas é absorver um pouco dos acontecimentos e como a

população carioca reagia às mudanças. É entrar nos cafés, andar no Passeio

Público nas tardes de domingo, ir ao Teatro São Pedro e à regata no Flamengo.

É, enfim, flanar, caminhar pelas então povoadas ruas do Rio de Janeiro

oitocentista.

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