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0 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DIVERSIDADE E INCLUSÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO- BRASILEIRA ELISÂNGELA MEDEIROS DE OLIVEIRA CRUZ E SOUSA: LITERATURA E A QUESTÃO “RACIAL” NA POESIA SIMBOLISTA CAICÓ (RN) ABRIL/2016

CRUZ E SOUSA: LITERATURA E A QUESTÃO “RACIAL” NA … · língua, a literatura, o soneto) para enviar sua mensagem de diferença baseada na semelhança que constitui a espécie

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DIVERSIDADE E

INCLUSÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ – DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO

CERES

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-

BRASILEIRA

ELISÂNGELA MEDEIROS DE OLIVEIRA

CRUZ E SOUSA:

LITERATURA E A QUESTÃO “RACIAL” NA POESIA SIMBOLISTA

CAICÓ (RN)

ABRIL/2016

1

ELISÂNGELA MEDEIROS DE OLIVEIRA

CRUZ E SOUSA:

LITERATURA E A QUESTÃO “RACIAL” NA POESIA SIMBOLISTA

Trabalho de Conclusão de Curso – Artigo

Científico – apresentado à Coordenação do Curso de

Licenciatura em História, ministrado pela

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), em cumprimento às exigências para a

obtenção do título de Pós-Graduação, sob a

orientação do Professor Doutor Antonio Manoel

Elíbio Júnior.

CAICÓ (RN)

2016

2

ELISÂNGELA MEDEIROS DE OLIVEIRA

CRUZ E SOUSA:

LITERATURA E A QUESTÃO “RACIAL” NA POESIA SIMBOLISTA

Trabalho aprovado em: _______________/______________/_______________

Nota: ____________________________________________________________

Professor (a): _____________________________________________________

CAICÓ (RN)

2016

3

CRUZ E SOUSA:

LITERATURA E A QUESTÃO “RACIAL” NA POESIA SIMBOLISTA

Elisângela Medeiros de Oliveira1

Antonio Manoel Elíbio Júnior2

RESUMO

O presente artigo examina a literatura de João da Cruz e Sousa em relação a aspectos

relacionados à sua obra literária no que se refere à questão racial/social/cultural em que

mergulha o autor na busca de se autoafirmar como expoente poético do Simbolismo, escola a

qual pertenceu, e seu conflito interior em relação à discriminação racial sofrida no decorrer da

vida pessoal e poética.

Palavras-chave: Literatura, questão racial, preconceito.

ABSTRACT

The present article reviews the literature João da Cruz e Sousa in relation to related aspects

your literary work not refere what if racial / social / cultural issue in what the author dives in

search of poetic exponent reinforce how do Symbolism, school belonged to a wed and his

inner conflict in relation to the racial discrimination suffered throughout life staff and poetics.

Keywords: Literature, racial issue, prejudice.

1 Elisângela Medeiros de Oliveira, [email protected], Aluna do Curso de Pós-graduação Lato Sensu em História e Cultura Africana

e Afro-brasileira. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), turma de 2016

2 Antonio Manoel Elíbio Júnior, [email protected], Professor Doutor do Departamento de História do CERES-UFRN.

4

SUMÁRIO

1 Introdução .............................................................................................................................. 5

2 Movimento Simbolista e Cruz e Sousa ................................................................................ 7

3 Um histórico sobre a vida de Cruz e Sousa ........................................................................ 9

3.1 A importância da poesia de Cruz e Sousa contra a discriminação racial ................... 11

4 Considerações Finais ........................................................................................................... 14

Referências

5

1 Introdução

A pesquisa desse trabalho tem por objeto de investigação a literatura de Cruz e Sousa

em relação a aspectos relacionados à sua obra literária no que se refere à questão

racial/social/cultural em que mergulha o autor na busca de se autoafirmar como expoente

poético do Simbolismo, escola a qual pertenceu, e seu conflito interior em relação à

discriminação racial sofrida no decorrer da vida pessoal e poética. Um histórico sobre a vida

de Cruz e Sousa. A importância da poesia de Cruz e Sousa contra a discriminação racial.

O objetivo principal do estudo em questão é apresentar a produção de Cruz e Sousa

como afrodescendente, apesar da forma sutil, da linguagem e estruturas canônicas. Tudo isso

deverá ser abordado não só por causa do tom de pele, mas pelos temas e ponto de vista dos

quais o poeta se utilizou, subvertendo os valores de signos, símbolos discriminatórios da

população afrodescendente. Apesar de sentir diretamente o peso do preconceito, sem ofensas

diretas e numa linguagem pomposa, Cruz e Sousa se utilizou dos veículos do colonizador (a

língua, a literatura, o soneto) para enviar sua mensagem de diferença baseada na semelhança

que constitui a espécie humana.

E, poucos foram os escritores negros, mulatos ou indígenas. Cruz e Sousa, por

exemplo, é acusado de ter-se omitido quanto a questões referentes à condição negra. Mesmo

tendo sido filho de escravos e recebido a alcunha de "Cisne Negro", o poeta João da Cruz e

Sousa não conseguiu escapar das acusações de indiferença pela causa abolicionista. A

acusação, porém, não procede, pois, apesar de a poesia social não fazer parte do projeto

poético do Simbolismo nem de seu projeto particular, o autor, em alguns poemas, retratou

metaforicamente a condição do escravo. Cruz e Sousa militou, sim, contra a escravidão. Tanto

da forma mais corriqueira, fundando jornais e proferindo palestras, por exemplo, participando,

curiosamente, de campanhas antiescravagistas e demonstrando desgosto com a condução do

movimento pela família imperial.

Quando Cruz e Sousa diz "brancura", é preciso recorrer aos mais altos significados

desta palavra, muito além da cor em si.

Através da história e da obra do poeta simbolista João da Cruz e Sousa, ao longo deste

artigo científico, procuraremos conduzir o leitor por meio de sua poesia numa busca constante

de demonstrar ter sido ele um exemplo de como o homem pode superar as dificuldades e os

preconceitos do seu tempo através da literatura. O “Cisne Negro” procurava na arte a

transfiguração da dor de viver e de enfrentar os duros contrastes provocados pelas

discriminações sociais.

6

“No campo da cultura, da filosofia, das ciências humanas e das ciências da natureza, o

declínio das teorias racionalistas faz-se notar (...)”. (AMARAL, 2005, p. 121) Salvo um autor

ou outro, a lírica brasileira continua desconhecida do público em virtude das restrições

editoriais. O público ainda é restrito em razão do analfabetismo e das dificuldades econômicas

excluírem do mercado literário a grande maioria da população. Os padrões culturais e

estéticos importados ainda desempenham o papel de vanguarda na arte brasileira.

“(...) os escritores brasileiros que se engajaram na estética simbolista também viveram

intensamente o momento político que, no fim do século XIX, trazia como questão principal a

luta pelo fim da escravidão”. (ABAURRE, 2013, p.183)

A fim de justificar a escolha da temática, observa-se que quase metade da população

brasileira é não branca, pois o Brasil é o resultado de uma composição étnica diversificada, ou

seja, apresenta uma elevada variedade de raças3e etnias.

De acordo com o que se estuda nos bancos escolares, a composição étnica brasileira

tem sua base em três grupos: os indígenas, os africanos e os europeus. No entanto, essa é uma

visão simplista, visto que é impossível dizer que apenas essas três etnias (o “mito das três

raças”) formam a população brasileira.

Para validar e comprovar as informações supracitadas, pode-se observar a

classificação feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em relação à

classificação étnica brasileira de acordo com o último Censo Demográfico de 2010. Há,

portanto, segundo a pesquisa, cinco tipos diferentes de raça conforme os dados abaixo:

mostram.

População brasileira por cor ou raça, de acordo com o Censo de 2010.

3 O termo “raças” nesse contexto não é compreendido em seu sentido biológico, mas sim em seus aspectos socioculturais de modo a

diferenciar os grupos populacionais por características físicas externas, geralmente a cor e outros aspectos.

7

A exemplo do final do século passado, o Brasil ainda persegue a definição de sua

própria identidade cultural. O combate ainda não terminou. Não fomos vencidos. Prova disto

é a recuperação de um poeta como Cruz e Souza. Ele servirá de paradigma neste momento

conflituoso da história nacional. Após cento e dezoito de sua morte, Sousa ainda continua

desempenhando um papel importante na formação da identidade cultural brasileira.

Como diz Alceu Amoroso Lima: “Cruz e Sousa (...) é o famoso Poeta Negro, figura

das mais consideráveis e das mais impressionantes das nossas letras modernas (...). A riqueza,

a sonoridade, a fantasia dos seus ritmos e das suas imagens, numa poética ainda bastante

parnasiana, chamaram logo a atenção para esse humilde filho de uma raça4 que, até então, não

produzira nenhuma figura marcante nas nossas letras (...). Com a vantagem de ser um negro

puro5, sem mescla de raça

6, e por isso mesmo tanto mais significativo na sua perfeita

integração intelectual e sensitiva às grandes correntes do pensamento universal”. (IN: Muricy,

1973, págs. 47-48)

2 Movimento Simbolista e Cruz e Sousa

O Simbolismo surge, na Europa, como a estética literária do final do século XIX,

opondo-se ao objetivismo realista.

Nas últimas décadas do século XIX, a decadência econômica europeia põe por terra as

esperanças positivistas e materialistas. Uma nova forma de encarar o mundo faz com que se

retomem e revitalizem o idealismo e o misticismo.

4 Os termos “negro puro” e “sem mescla de raça” utilizados por Alceu Amoroso Lima podem soar como preconceituosos, discriminatórios

ou até mesmo racistas. Na verdade, dentro da Literatura do século XIX, tais termos eram usados sem qualquer intenção de tom

discriminatório. É bem verdade que ainda se tinha a ideia errônea de que a “raça” negra era inferior às demais raças. Porém, o termo raça

desapareceu dos livros escolares discretamente.

5 Para reforçar o estudo em questão, recomendo a leitura do artigo “Só existe uma raça, e ela surgiu na África”, disponível em

http://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/89206/S%C3%B3-existe-uma-ra%C3%A7a-e-ela-surgiu-na-%C3%81frica.htm

6 Recomendo a leitura do texto “RAÇA: Literatura, Conceitos e Métodos”, disponível http://zeneidemaria.blogspot.com.br/2013/03/raca-

literatura-conceitos-e-metodos.html, a leitura do artigo “A trajetória do negro na literatura brasileira”, disponível em

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100017

E do artigo “O NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA: DE OBJETO A SUJEITO”, disponível em

http://www.uel.br/eventos/semanadaeducacao/pages/arquivos/anais/2012/anais/educacaoemovimentossociais/onegronaliteratura.pdf

8

Refletindo esse momento histórico, o Simbolismo percebe a falência do racionalismo,

do materialismo, do determinismo e do positivismo, e representa uma ruptura radical com a

mentalidade do Realismo-Naturalismo-Parnasianismo. Além disso, a tendência simbolista

inicia a criação de novas propostas estéticas precursoras da arte da modernidade, retomando

as dimensões não racionais da existência, redescobrindo, para tanto, a subjetividade, a

imaginação, a espiritualidade, buscando desvendar o subconsciente e o inconsciente nas

relações misteriosas e transcendentes do sujeito humano consigo próprio e com o mundo.

“As primeiras manifestações simbolistas já estavam presentes na coletânea Parnasse

contemporain, com poesias de Baudelaire, Mallarmé e Verlaine. Mas é no livro As flores do

mal, de Charles Baudelaire, publicado em 1857, que vamos encontrar as diretrizes da poética

simbolista e de praticamente toda a moderna poesia europeia”. (MAIA, 2005, p. 328).

“Tanto o Simbolismo francês quanto o Simbolismo brasileiro foram fortemente

influenciados pela obra de Charles Baudelaire (1821-67), poeta pós-romântico considerado o

precursor do movimento”. (CEREJA, 2010, p.332)

“Em 1857, Charles Baudelaire, artista rebelde e original, publica na França As flores

do mal, obra que desencadeia uma verdadeira revolução poética no mundo ocidental (...)”

(AMARAL, 2005, p. 125) por rejeitar a moral e a poesia convencionais, desvendando

universos exteriores e interiores até então nunca explorados. Baudelaire torna-se o mestre das

novas tendências literárias.

Cruz e Sousa, influenciado diretamente pelos poetas franceses, é considerado o mais

importante poeta simbolista brasileiro e um dos maiores poetas nacionais de todos os tempos.

Tanto é que, em 1893, o Simbolismo no Brasil foi iniciado com a publicação de Missal (prosa

poética) e Broquéis, obras de sua autoria.

Otto Maria Carpeaux comprova a herança baudelairiana de Cruz e Sousa assim:

Discípulo de Baudelaire, se julgou ou foi julgado o negro brasileiro Cruz e

Sousa, cuja exaltação dolorosa se atribui a resíduos da tristeza tropical da

floresta africana. Compará-lo aos maiores simbolistas franceses parece

exagero; mas é certo que alguns sonetos seus - “Supremo Verbo”, “caminho

da Glória” – são das manifestações mais fulminantes e sinceras da poesia

moderna. (MURICY, 1973, págs. 45-46)

Assim como na Europa, o Simbolismo no Brasil trazia consigo ideias inovadoras e de

cunho místico, idealista e filosófico. Porém, não conseguiu substituir os cânones da literatura

9

oficial, predominantemente realista e parnasiana, tendo que enfrentar uma atmosfera de

hostilidade e oposição. Portanto, não foi tão relevante quanto o movimento europeu.

“O Cisne Negro” apresenta em sua obra poética, marcada pela inclinação filosófica e

metafísica, diversidade e riqueza. De um lado, encontram-se aspectos noturnos do

Simbolismo, herdados do Romantismo: o culto à noite, certo satanismo, o pessimismo, a

morte. De outro, há certa preocupação formal como influência recebida dos parnasianos: a

forma lapidar, o gosto pelo soneto, o verbalismo requintado, a força das imagens. E ainda, a

inclinação à poesia meditativa e filosófica, que o aproxima da poesia realista portuguesa,

principalmente da de Antero de Quental.

“Sentindo-se como um prisioneiro, um “emparedado”, em um mundo de privações e

infortúnios, aspirava a um outro mundo, espiritual, expresso em suas poesias, marcadas por

intenso misticismo e religiosidade”. (MAIA, 2008, p. 329)

Podemos perceber essa solidão na poesia Só!:

Muito embora as estrelas do Infinito/Lá de cima me acenem carinhosas/E

desça das esferas luminosas/A doce graça de um clarão bendito;/Embora o

mar, como um revel proscrito,/Chame por mim nas vagas ondulosas/E o

vento venha em cóleras medrosas/O meu destino proclamar num grito,/Neste

mundo tão trágico, tamanho,/Como eu me sinto fundamente estranho/E o

amor e tudo para mim avaro.../Ah! como eu sinto compungidamente,/Por

entre tanto horror indiferente,/Um frio sepulcral de desamparo! (MURICY,

1973, p. 99)

Outra constante em sua obra é o fascínio pela cor branca, vista ora como manifestação

de seu complexo racial e desejo de acesso ao mundo dos brancos, como podemos perceber na

poesia Sonho Branco:

De linho e rosas brancas vais vestido,/Sonho virgem que cantas no meu

peito!.../És do Luar o claro deus eleito,/Das estrelas puríssimas nascido./Por

caminho aromal, enflorescido,/Alvo, sereno, límpido, direito,/Segues

radiante, no esplendor perfeito,/No perfeito esplendor indefinido.../As aves

sonorizam-te o caminho.../E as vestes frescas, do mais puro linho/E as rosas

brancas dão-te um ar nevado.../No entanto, Ó Sonho branco de

quermesse!/Nessa alegria em que tu vais, parece/Que vais infantilmente

amortalhado! (CRUZ E SOUSA, 2006págs. 37-38).

3 Um histórico sobre a vida de Cruz e Sousa

10

Fonte: www.google.com.br

João da Cruz e Souza nasceu em 21 de novembro de 1861 em Desterro, hoje

Florianópolis, Santa Catarina. O nome João da Cruz vinha do santo do dia, o místico e poeta

ibérico San Juan de la Cruz. O Sousa era o nome dado pelo marechal Guilherme Xavier de

Sousa. 7

Mesmo com sinais místicos cercando o nascimento do poeta, João da Cruz nascera

estigmatizado com o signo da discriminação racial a partir do livro de batismo; filho natural

de Carolina Eva da Conceição, “crioula liberta” e de Guilherme de Sousa, cuja alforria,

recebida das mãos de seu senhor, Guilherme Xavier de Sousa, só lhe foi concedida aos 58

anos de idade quando Cruz e Sousa contava 10 anos de idade, o que daria ao poeta a titulação

de “livre de condição”.

Ao que tudo indica o marechal gostava muito dessa família, pois o menino João da

Cruz recebeu, além de educação refinada, adquirida no Liceu Provincial de Santa Catarina, o

sobrenome Sousa.

A família Sousa não tinha filhos, por isso, criaram Cruz e Sousa como se fosse um.

Desde os seus três anos de idade, a esposa do marechal, D. Clara Angélica

Xavier de Sousa (Clarinda), ia assiduamente visitá-lo. Por fim tomou a si a

“criação” do pretinho, o que fez com excessivo carinho, vestindo-o

luxuosamente, preparando-o, afinal, de boa-fé, para o desnível terrível que o

poeta, em virtude da cor (“que lhe lembravam a toda hora”) e à falta de

senso prático, iria sofrer vida afora. (MURICY, 1973, p. 10)

7 Para saber mais sobre a vida e obra de Cruz e Sousa, recomenda-se a coleção Fortuna Crítica, publicada em 1979 pela Editora Civilização

Brasileira e pelo Instituto do Livro, dirigida por Afrânio Coutinho. Outro livro de referência é a Coleção Nossos Clássicos, publicado pela

Editora Agir em 1957, com apresentação de Tasso da Silveira.

11

Apesar de toda essa proteção, Cruz e Sousa sofreu muito com o preconceito racial,

pois trazia em sua essência o estigma afrodescendente8. Seu pai e sua mãe eram escravos

alforriados.

Em 1870, o Marechal Guilherme, seu protetor, morre. As condições de vida do poeta e

de sua família tornam-se mais duras. O que o salva das agruras da vida é o sucesso escolar.

Depois de dirigir um jornal abolicionista, foi impedido de deixar sua terra natal por

motivos de preconceito racial. Algum tempo depois é nomeado promotor público, porém, é

impedido de assumir o cargo, novamente por causa do preconceito. Ao transferir-se para o

Rio, sobreviveu trabalhando em pequenos empregos e continuou sendo vítima do preconceito.

Em 1893 casa-se com Gravita Rosa Gonçalves, que também era negra e que mais

tarde enlouqueceu. O casal teve quatro filhos e todos faleceram prematuramente, o que teve

vida mais longa morreu quando tinha apenas 17 anos.

No ano de 1896, Gavita enlouquece e não sai mais de casa. Duas obras-primas

assinalam a tragédia pessoal do poeta: Balada de loucos (Evocações) e Ressurreição (Faróis).

A situação financeira se torna insustentável. Tanto que, saturnino de Meireles, um dos seus

amigos mais próximos, retirava parte dos seus vencimentos para que o Cisne Negro pudesse ir

vencendo o seu estado de quase miserabilidade.

É uma ironia essa miséria material do poeta, visto que os fiéis amigos o ajudavam e a

crescente admiração que sua obra suscitava entre os jovens do país inteiro não o pôde salvar.

Apesar de todos os cuidados, Cruz e Souza morre em 19 de março de 1898 na cidade

mineira de Sítio, vítima de tuberculose, causada por uma vida de privações. Seu corpo foi

transportado “para o Rio de Janeiro, onde chegou na manhã de 20, sendo desembarcado dum

horse-box, vagão para transporte de animais, e jogado, como simples fardo empoeirado, na

plataforma da estação. Ali o aguardavam Nestor Vítor, Carlos D. Fernandes, Tibúrcio de

Freitas e Maurício Jubim”. (MURICY, 1973, p.15)

Suas únicas obras publicadas em vida foram Missal e Broquéis.

Somente depois de morto o poeta tornou-se objeto de veneração e culto por parte de

seus amigos e admiradores. Os restos mortais foram transladados para um túmulo

monumental, encimado por um busto de autoria de Maurício Jubim.

3.1 A importância da poesia de Cruz e Sousa contra a discriminação racial

8 Afrodescendente: diz-se do ser humano originário da África ou que tenha linhagem do povo africano e que vive fora da África.

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Cruz e Souza é, sem sombra de dúvidas, o mais importante poeta Simbolista

brasileiro, chegando a ser considerado também um dos maiores representantes dessa escola no

mundo.

A poesia Antífona (Broquéis, 1893) marca o próprio processo de criação poética,

utilizando uma linguagem pouco convencional, herança de Baudelaire, com fortes traços

simbolistas:

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras/De luares, de neves, de

neblinas!/Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas.../Incensos dos turíbulos das

aras/Formas do Amor, constelarmante puras,/De Virgens e de Santas

vaporosas.../Brilhos errantes, mádidas frescuras/E dolências de lírios e de

rosas.../

Indefiníveis músicas supremas,/Harmonias da Cor e do Perfume.../Horas do

Ocaso, trêmulas, extremas,/Réquiem do Sol que a Dor da Luz

resume.../Visões, salmos e cânticos serenos,/Surdinas de órgãos flébeis,

soluçantes.../Dormências de volúpicos venenos/Sutis e suaves, mórbidos,

radiantes.../Infinitos espíritos dispersos,/Inefáveis, edênicos,

aéreos,/Fecundai o Mistério destes versos/Com a chama ideal de todos os

mistérios./Do Sonho as mais azuis diafaneidades/Que fuljam, que na Estrofe

se levantem/E as emoções, todas as castidades/Da alma do Verso, pelos

versos cantem./

Que o pólen de ouro dos mais finos astros/Fecunde e inflame a rima clara e

ardente.../Que brilhe a correção dos alabastros/Sonoramente,

luminosamente./Forças originais, essência, graça/De carnes de mulher,

delicadezas.../Todo esse eflúvio que por ondas passa/Do Éter nas róseas e

áureas correntezas... (CRUZ E SOUSA, 2001, págs. 25-26)

“Os perfumes, as cores e os sons correspondem-se/Há perfumes frescos

como a pele de uma criança/Doces como oboés, e verdes como os prados”.

BAUDELAIRE, In: AMARAL, 2005, p. 125.

“O que impressiona em sua poesia é a profundidade filosófica e a angústia metafísica,

temas que sem dúvida tiveram origem na sua sofrida experiência pessoal” (ABAURRE, 2013,

p. 183), como podemos perceber na poesia Alucinação:

Ó solidão do Mar, ó amargor das vagas,/Ondas em convulsões, ondas em

rebeldia,/Desespero do Mar, furiosa ventania,/Boca em fel dos tritões

13

engasgada de pragas./Velhas chagas do sol, ensanguentadas chagas/De

ocasos purpurais de atroz melancolia,/Luas tristes, fatais, da atra mudez

sombria/Da trágica ruína em vastidões pressagas./Para onde tudo vai, para

onde tudo voa,/Sumido, confundido, esboroado, à-toa,/No caos tremendo e

nu dos tempos a rolar?/Que Nirvana genial há de engolir tudo isto -/-

Mundos de Inferno e Céu, de Judas e de cristo,/Luas, chagas do sol e

turbilhões do Mar?! (CRUZ E SOUSA, 2006, P. 173)

Muitos críticos chegam a afirmar que se não fosse a sua presença, a estética Simbolista

não teria existido no Brasil. Sua obra apresenta diversidade e riqueza. Pode-se dizer ainda que

ela tem um caráter evolutivo, pois trata de temas até certo ponto pessoais como, por exemplo,

o sofrimento do negro e evolui para a angústia do ser humano. Em Broquéis, o poeta nos

mostra a dor de ser negro; em Faróis, a dor de ser homem e em Últimos Sonetos,

transparecem “a dor, mas também a alegria e a glória de ser espírito, de comungar com o

eterno, e heroicamente sobrevoar os abismos e as sombras da pobre terrenalidade”.

No estudo em questão, abordaremos o Poeta Negro Cruz e Sousa numa sociedade

escravocrata. Diferentemente do que se pregava nos bancos escolares, Cruz e Sousa fez sim

militância contra a escravatura. Ele não se fechou a sete chaves numa torre de marfim, não

abraçando a causa abolicionista, conforme alguns livros didáticos nos faziam acreditar. Talvez

essa visão “mesquinha” venha das poucas poesias divulgadas e ainda com resquícios

parnasianos.

Fonte: www.google.com.br

14

“Iniciou-se nas letras com crônicas abolicionistas”. Viajou pelo país como ponto de

um grupo teatral. Virgílio Várzea, seu companheiro nas lides jornalísticas, diz que “tinha

grande paixão pelas ideias humanitárias e serviu-as sempre como um fanático, sem poupar

sacrifícios, na tribuna, em praça pública e principalmente no jornalismo”. (MEGALE, s/d, p.

196).

No livro Tropos e Fantasias (1885), na prosa poética O Padre e na poesia Crianças

Negras (O Livro Derradeiro, 1945-1961), Cruz e Sousa nos mostra seu lado abolicionista

através da linguagem da violência inerente aos mal-estares colonial, pós-colonial e

neocolonial que mantêm o bem-estar material de alguns à custa do sofrimento de muitos.

Ainda como textos abolicionistas podemos citar Dor negra (de Evocações, 1898),

Consciência Tranquila (inédito, arrolado em Outras evocações), um dos mais violentos textos

brasileiros sobre os horrores da escravidão. A partir da leitura desses textos, podemos

observar o engajamento abolicionista de Cruz e Sousa, desmentindo visões equivocadas de

alguns críticos que “viam no artista o poeta negro fechado em sua “torre de marfim”,

obcecado pela cor branca e alheio às questões que lhe diziam respeito diretamente, como por

exemplo, o Abolicionismo”. (AMARAL, 2005, p. 130)

Os neologismos utilizados na poesia do Poeta Negro eram considerados uma violência

à língua, à gramática em tempos de parnasianismo purista. Através da escrita e da leitura,

entendidas alegoricamente como processo agressivo, a poética sousiana transferia para o texto

as violências sofridas pelos corpos supliciados dos escravos e também a própria dor do poeta

“emparedado” em sua pele negra e em sua poesia branca.

Na poesia Escravocratas é nítida a violência das palavras e a força irônica com que

Cruz e Sousa se refere a quem deveria lutar pelos direitos dos escravos:

(...)

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,/vermelho, colossal, d’estrépito,

gongórico,/castrar-vos como um touro – ouvindo-os urrar! (CRUZ E

SOUSA, 2001, p.145)

Finalmente, são ainda de evidente feição abolicionista os poemas Na senzala, Grito de

guerra, Entre luz e sombra e Sete de setembro.

Este último poema, Sete de setembro, ainda que singelo é dos mais representativos,

porque aos vinte anos do poeta remonta aos festivais de que participava na velha Desterro, aos

dias anteriores à sua integração na Companhia, dramática Julieta Santos, de Moreira de

15

Vasconcelos. Depois de três estrofes de exaltação à independência do Brasil, o jovem

abolicionista pondera à festiva assistência:

Mas, embora, meus senhores/se festeje a Liberdade,/a gentil

Fraternidade/não raiou de todo, não!...9

Cruz e Sousa, ao longo de sua prosa poética (na poesia também), faz várias alusões ao

Inferno de Dante. Herdou termos do poeta florentino, o que lhe rendeu a alcunha de o Dante

Negro.

A linguagem dura, violenta, cruel e dantesca serviu ao Dante Negro como formas de

denunciar a escravidão, dura realidade social brasileira à época em que viveu.

(...) Para cantar a angústia das crianças!/Não das crianças de cor de oiro e

rosa,/Mas dessas que o vergel das esperanças/Viram secar, na idade

luminosa./Das crianças que vêm da negra noite,/Dum leite de venenos e de

treva,/Dentre os dantescos círculos do açoite,/Filhas malditas da desgraça de

Eva./E que ouvem pelos séculos afora/O carrilhão da morte que regela,/A

ironia das aves rindo a aurora/E a boca aberta em uivos da procela./Das

crianças vergônteas dos escravos/Desamparadas, sobre o caos, à toa/E a cujo

pranto, de mil peitos bravos,/A harpa das emoções palpita e soa./Ó bronze

feito carne e nervos, dentro/Do peito, como em jaulas soberanas,/Ó coração!

és o supremo centro/Das avalanches das paixões humanas./Como um clarim

a gargalhada vibras,/Vibras também eternamente o pranto/E dentre o riso e o

pranto te equilibras/De forma tal que a tudo dás encanto./És tu que à piedade

vens descendo./Como quem desce do alto das estrelas/E a púrpura do amor

vais estendendo/Sobre as crianças, para protegê-las./És tu que cresces como

o oceano, e cresces/Até encher a curva dos espaços/E que lá, coração, lá

resplandeces/E todo te abres em maternos braços./Te abres em largos braços

protetores,/Em braços de carinho que as amparam,/A elas, crianças,

tenebrosas flores,/Tórridas urzes que petrificaram./As pequeninas, tristes

criaturas/Ei-las, caminham por desertos vagos,/Sob o aguilhão de todas as

torturas,/Na sede atroz de todos os afagos./Vai, coração! na imensa

cordilheira/Da Dor, florindo como um loiro fruto/Partindo toda a horrível

gargalheira/Da chorosa falange cor do luto./As crianças negras, vermes da

matéria,/Colhidas do suplício a estranha rede,/Arranca-as do presídio da

miséria/E com teu sangue mata-lhes a sede! (CRUZ E SOUSA, 2001, págs.

168-171)

4 Considerações finais

Ao longo deste artigo, aproximamo-nos um pouco mais de Cruz e Souza e sua poesia.

Agora, estamos capacitados a tirar algumas conclusões acerca de sua lírica com elementos

9 (Publicado o poema integralmente, em A Regeneração de 10-9-1882). É o mais antigo documento do abolicionismo de Cruz e Sousa.

16

que caracterizam a riqueza de sua poética. O artista preocupado com a forma, com a temática

simbolista, demonstra uma preocupação muito grande com a linguagem escolhida, recortada

uma pontuação significativa. Aí reside seu maior mérito. Espelho fiel do homem Cruz e

Souza. Escravo, somente alcançou a liberdade através da arte depois de morto. Abolicionista,

defrontou-se com a tragédia de sua raça após o fim da escravidão. Negro, mesmo depois de

morto é acusado de ser ou de querer ser branco. Genial, amargou os preconceitos devotados a

sua cor no apogeu da influência das teorias racistas no Brasil e... Imortal, tocou sua lira em

benefício da humanidade, enterrando todos aqueles que ignoraram sua obra. Cruz e Souza foi,

é e sempre será o paradigma negro da literatura brasileira. Não há na história da literatura

brasileira, outro exemplo de um poeta tão perseguido quanto Cruz e Souza. Suporte dos

martírios de Jesus até no nome (Cruz e Souza), o poeta purgou os pecados pessoais, de sua

raça, de seu tempo e da poesia brasileira, projetando-se e projetando-a no futuro.

E como disse Manuel Bandeira:

Dos sofrimentos físicos e morais de sua vida, do seu penoso esforço de

ascensão na escala social, do seu sonho místico de uma arte que seria uma

“eucarística espiritualização”, do fundo indômito do seu ser de

“emparedado” dentro de uma raça desprezada, tirou Cruz e Sousa os acentos

patéticos que lhe garantem a perpetuidade de sua obra na literatura brasileira.

não há nesta gritos mais dilacerantes, suspiros mais profundos do que os

seus. (...) (IN: MURICY, 1973, p. 52)

17

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