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1 CÁSSIO DOS SANTOS TOMAIM “JANELA DA ALMA”: Cinejornal e Estado Novo — fragmentos de um discurso totalitário FRANCA 2004

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CÁSSIO DOS SANTOS TOMAIM

“JANELA DA ALMA”: Cinejornal e Estado Novo —

fragmentos de um discurso totalitário

FRANCA 2004

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CÁSSIO DOS SANTOS TOMAIM

“JANELA DA ALMA”: Cinejornal e Estado Novo —

fragmentos de um discurso totalitário

Dissertação apresentada ao Departamento de História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista (Unesp), como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em História, sob a orientação da Profª. Dr. Márcia Regina Capelari Naxara.

FRANCA 2004

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CÁSSIO DOS SANTOS TOMAIM

“JANELA DA ALMA”: Cinejornal e Estado Novo —

fragmentos de um discurso totalitário

Dissertação apresentada ao Departamento de História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista (Unesp), como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em História, sob a orientação da Profª. Dr. Márcia Regina Capelari Naxara.

_____________________________________________________________ Orientador(a): Profª. Dr. Márcia Regina Capelari Naxara

_____________________________________________________________ Examinador(a) 1: Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin

_____________________________________________________________ Examinador(a) 2: Profª. Dr. Tânia da Costa Garcia

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Para minha querida esposa Valquiria,

minha mãe Cleuza, e minhas avós

Catarina e Alcinda (in memoriam).

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AGRADECIMENTOS

Ao término deste trabalho vejo que a contribuição de pessoas e instituições foi indispensável para que eu pudesse concretizar um sonho que durou três anos, desde que saí da graduação de jornalismo. De fato, contei com diversos “co-autores” que, direta ou indiretamente, souberam perceber o significado que as páginas seguintes têm para mim, principalmente como satisfação pessoal. O simples gesto do agradecimento não basta para expressar a gratidão que ficará impressa no meu íntimo, mas serve como um começo.

À minha orientadora, Profª. Dr. Márcia Regina Capelari Naxara, por ter reconhecido o meu trabalho, auxiliando-me a compor as idéias desenvolvidas nesta dissertação. Nossas reuniões enriqueceram o meu pensamento a respeito da história, contribuindo para a complementação de minha formação. Devo-lhe, indiscutivelmente, a continuação do meu caminhar na vida acadêmica, que sem a sua compreensão e a sua paciência a estrada seria mais longa e penosa. Tenho para mim que estes dois anos de convivência não serviram apenas para nos aproximarmos academicamente, mas forjou uma nova amizade que espero cultivar sempre.

Ao meu mestre e amigo, Prof. Ms. Silas Nogueira, pela dedicação e a confiança que se estendem até hoje, desde os últimos anos da graduação. Esta dissertação é o amadurecimento das idéias que juntos plantamos no final de 1999, por isso, quero dividir com ele os méritos deste trabalho. Devo-lhe o aprendizado dos primeiros passos no academicismo e espero que a concretização deste Mestrado possa servir como uma singela retribuição aos seus ensinamentos.

À minha esposa Valquiria, aos meus pais Paulo e Cleuza e ao meu irmão Alessandro, sou grato em todas as instâncias, especialmente por comporem a minha vida e por serem sempre o meu maior refúgio onde deparo com paz, sabedoria, amor, carinho e compreensão.

Aos meus amigos do Programa de Pós-graduação da Unesp (prefiro não citar nomes para não cometer a indelicadeza de esquecer algum), pela convivência que tivemos durante estes dois anos, trocando idéias e, principalmente, consolidando novas amizades que acredito perdurarem por um longo tempo. Em especial, agradeço ao casal Fernanda Lourdes Carvalho de Paula e Silva e Almir de Paula e Silva por me incentivarem e confiarem no meu trabalho desde o início. Aos amigos que compartilharam, mesmo que indiretamente, do meu esforço para concretizar este sonho também sou grato.

À Capes e à Unesp, pelo financiamento desta pesquisa, contribuindo para que algumas barreiras comuns ao exercício do pesquisador fossem superadas da melhor forma possível.

À Cinemateca Brasileira, por contribuir e acreditar neste trabalho, disponibilizando o seu acervo do Departamento de Imprensa e Propaganda, além de viabilizar a cópia de alguns assuntos do Cine Jornal Brasileiro e parte dos custos da ampliação e da reprodução dos fotogramas, auxiliando indiscutivelmente no desenvolvimento desta pesquisa. Em especial, sou grato à Eliana Queiroz, Kátia Dolin, Vivian De Luccia e Ana Maria Viegas.

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“... a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante.”

Marcel Proust

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RESUMO Este trabalho teve como objeto de estudo o Cine Jornal Brasileiro, produzido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo. Compreendendo o cinema como um fundamental instrumento legitimador de um projeto autoritário posto para o Brasil dos anos 30 e 40, pautado pela fantasmagoria do “Todo Orgânico”, o estudo procurou buscar em temáticas como as festas cívicas de Primeiro de Maio, a industrialização e o trabalho/trabalhador, e o atraso do campo, seguido da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, significações que, reconhecidas como uma totalidade, ofereciam à multidão uma única imagem: o Estado Novo. Ao procurar compartilhar coletivamente esta imagem a propaganda estadonovista pretendia tornar o Estado Novo algo presente e familiar no cotidiano dos trabalhadores brasileiros urbanos. Palavras-chaves: Cinejornal, Estado Novo, Getúlio Vargas, Autoritarismo, Discurso Totalitário.

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ABSTRACT

This work had as object of study the Cine Jornal Brasileiro, made by the Department of Press and Propaganda of The New State. Understanding the movie as a fundamental legitimator instrument of an authoritative project established to the Brazil of years 30 and 40, and outlined by the phantasmagoria of " The All Organic", this study aimed to extract from issues such as the civic festivals of First of May, the industrialization and the work/worker , the delay in rural activities, followed by the participation of Brazil in the Second World War, significations that, recognized as a whole, offered to the crowds a unique image: the New State. When trying to share collectively this image the propaganda of The New State intended to turn the New State into something present and familiar in the everyday lives of Brazilian urban workers. Keywords: Cinejournal, New State, Getúlio Vargas, Dictatorship, Totalitarian Discourse.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................

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1 – UMA DÚBIA VOCAÇÃO: O SONHO E A REALIDADE ................................

20

1.1 – Entre a tela e o princípio só resta o espectador ................................................ 23

1.2 – Documentário: desmistificando a objetividade do gênero ............................... 43

2 – ESTADO, CINEMA E PROPAGANDA ..............................................................

56

2.1 – Cinema e Política: os irmãos Lumière não sabiam, mas o cinema veio para dominar ............................................................................................

60

2.2 – Estado Novo e cinema .......................................................................................... 75

2.2.1 – “Pai dos pobres”: Vargas adota o cinema ...................................................... 85

2.2.2 – O DIP e o cinema ............................................................................................... 96

3 – CINEJORNAL: VESTÍGIOS DE UMA ERA .....................................................

119

3.1 – Fragmentos totalitários ........................................................................................ 130

3.2 – Cinejornal Brasileiro: em busca de significações .............................................. 143

3.2.1 – Indústria, trabalho e atraso: o urbano e o rural se confrontam nas telas do Estado Novo .....................................................................

148

3.2.2 – Esforço de guerra: (con)vencer é preciso! ...................................................... 181

3.2.3 – Primeiro de Maio: Vargas “doma” as multidões ........................................... 208

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 228

FILMOGRAFIA ........................................................................................................... 233

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 235

ANEXO A ...................................................................................................................... 249

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INTRODUÇÃO

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“Ver, assim como tocar ou mover-se, ‘não é uma decisão do espírito’, não nasce do ‘eu penso’, enunciado pela ‘coisa que pensa’, mas origina-se do corpo como um sensível que, silenciosamente, diz ‘eu posso’. A visão se faz no meio das coisas e não de fora delas. Ali onde um visível se põe a ver e se vê vendo, ali, ‘como a água mão no cristal’, persiste a carne do mundo, a indivisão irredutível do sentiente e do sentido.”

Marilena Chaui

Cinema, técnica ou arte? Antes mesmo do processo cinematográfico completar 20

anos os teóricos já procuravam responder a esta indagação, que acabou atravessando o século

XX e ainda hoje provoca discussões, mesmo que atualizada na dicotomia

entretenimento/cultura. Os primeiros anúncios desta invenção pelos irmãos Lumière, em

1895, apresentavam mais um instrumento de pesquisa do que um meio que servisse ao

espetáculo, mas que aos poucos foi conquistando as feiras populares, para só depois, já na sua

forma narrativa, introduzir uma nova linguagem e imperar como a arte deste último tempo. A

“imagem-movimento” dominara o cotidiano, fascinara os espectadores que, em um primeiro

momento, viram-se espantados com um aparelho capaz de animar as velhas projeções de

fotografias estáticas; espanto que, no entanto, derivou mais da força do aparato

cinematográfico do que da própria aparente reprodução da realidade. Não se trata de

credulidade, mas de fascinação por uma nova ilusão produzida pelo movimento projetado,

combinado com outros elementos de base do cinema: a sala escura e a tela. Assim, em uma

pequena sala do Grand Café, em Paris, arrumada com uma centena de cadeiras, uma tela e um

aparelho de projeção, os irmãos Lumière exibiam para os franceses, ao custo de 1 franco, as

maravilhas do “cinematógrafo”. O que deixaria atônitos os espectadores não era o fato de

estarem expostos diante do avanço iminente do trem, mas diante do encanto provocado pelo

efeito ilusório da ficção do cinema. Fascínio decorrente da sensação de participarem ou de

compartilharem coletivamente de um mesmo sentimento. Portanto, seja arte ou técnica,

entretenimento ou cultura, o que ninguém poderia negar era que o cinema inaugurava de vez

uma nova experiência, satisfazendo os anseios perceptivos do homem moderno: o gosto pela

realidade.

O cinema autorizava um olhar mediatizado. Por esta mediação deve-se entender não só

como uma revelação do mundo, a existência de um olhar exterior aos espectadores, que lhes

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organiza uma aparência das coisas do real, mas também algo que se interpõe entre eles e o

mundo. Ou seja, dois momentos distintos compõem um mesmo processo: o primeiro deles é o

encontro da câmera com o objeto a ser filmado e oferecido para que seja visto, enquanto o

segundo se refere à sujeição do espectador ao aparato cinematográfico. É este aparato que

coloca o espectador na condição de sujeito desta nova experiência, em que olhando o filme

ajuda-o a nascer, a viver, ou seja, o executa. Assim, é fundamental que se compreenda que o

filme é realizado para que seja dirigido à percepção de uma platéia, logo, quanto mais suas

imagens forem familiares, cotidianas, mais próximas estarão de serem fascinantes. No cinema

é o olhar do espectador que ordena o visível, que organiza a experiência advinda da sucessão

brusca e rápida de fragmentos que se impõem como uma seqüência de choques, efetivando o

que Walter Benjamin denominou de “experiência do choque”. Como o olhar, o cinema

também corresponde a um “sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Durante as

filmagens a visão depende e nasce dos olhos do cinegrafista, a objetiva amplia a sua

capacidade de exteriorizar — entretanto, não como uma simples extensão do olho humano

que nos oferece o que habitualmente não podemos ver, mas como aquela que “dirige” um

outro olhar (o do espectador), ou seja, determina o que e como a realidade deve ser vista —,

mas é no decorrer da projeção que se oferece uma visão que está e nasce das coisas, em que o

espectador traz para dentro de si o real socializado. Entretanto, a “verdade” do filme só se

realiza no olhar do espectador, é ele que autoriza o “efeito de real”. Desta forma, a arte

cinematográfica compartilha da mesma magia do olhar: “magia está em que o olhar abriga,

espontaneamente e sem qualquer dificuldade, a crença em sua atividade — a visão depende de

nós, nascendo em nossos olhos — e em sua passividade — a visão depende das coisas e nasce

lá fora, no grande teatro do mundo.”1

Desde a Renascença, metáforas como “janela da alma” e “espelho do mundo” vêem

sendo utilizadas para conotar esta dúbia crença no olhar. Se os pintores já recorriam a este

sentido e pintavam uma pequena janela nos olhos na tentativa de representar esta experiência

mágica da percepção visual, os cineastas já nas primeiras décadas da linguagem

cinematográfica também atentaram para a importância dos olhos, o que levou ao surgimento

do close-up, o plano capaz de revelar as intenções ocultas, de aproximar os espectadores da

intimidade do personagem como se, trazendo para perto os olhos, pudéssemos examiná-los.

Ainda a respeito do olhar, nota-se que diante do aparato construtor de imagens a interação

entre a platéia e o filme difere em um sentido da relação que temos com o mundo observado.

1 CHAUI, Marilena. Janela da Alma, Espelho do Mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 34.

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Trata-se de um olho que não vemos e não nos vê, mas que substitui os nossos, tornando-nos

“sujeito transcendental da visão”, aquele que tudo vê. Mesmo durante as filmagens, o cinema

não consegue satisfazer uma expectativa comum do homem, a de ter seu olhar correspondido,

uma vez que o aparelho registra a imagem do homem sem lhe devolver o olhar. Segundo

Walter Benjamin, no decorrer das transformações perceptivas da coletividade, a fotografia e,

mais tarde, o cinema, surgem como imperativos do que ele denominou de “declínio da aura”.

Para o autor estes dispositivos negaram ao olhar a experiência da aura, pois “perceber a aura

de uma coisa significa investi-la do poder de revidar o olhar”.2 Um exemplo disto pode ser

encontrado, segundo Canevacci, na maneira como as religiões ocidentais e orientais cultuam a

imagem, onde o “fluxo dos olhares estabelece as relações de poder e subordinação”:

Diferente das religiões orientais, onde o olhar é interior e olhos ficam fechados para alcançar a plenitude da visão, a religião católica se funda nos fluxos públicos do olhar social rigidamente predeterminados e imutáveis. Na arte, isso se torna ainda mais claro: Buda é representado em meditação interior, com os olhos fechados, enquanto Cristo — nos mosaicos bizantinos — aparece em pé e tem os olhos completamente abertos.3

Não se trata aqui de dizer que o cinema foi um avanço ou um retrocesso, pelo

contrário, é importante que se compreenda que é filho do século XIX e que junto com a

fotografia e tantos outros dispositivos técnicos contribuiu para a gênese de uma cultura da

imagem, logo, a visão tornava-se o sentido privilegiado da modernidade, a principal mediação

do homem moderno com a realidade. A experiência cinematográfica acompanhava as

transformações de seu tempo, o mesmo ritmo ditado na linha de produção, no transitar de

automóveis e passantes nas ruas, determinava o ritmo da receptividade no filme, ou seja, a

percepção sob a forma de choque. No cinema a experiência mágica do olhar tornava-se

fragmentada, o princípio perceptivo moderno corresponderia ao princípio de montagem, aqui

compreendido como uma forma distante, seja da manipulação ou da transparência — em que

o espectador em contato com o ilusionismo da arte é constantemente levado a acreditar que

está diante de um evento real, por mais descontínuo que ele aparente ser na tela — mas

configurando-se como a estruturação orgânica dos elementos fílmicos, ou seja, como a peça

elementar de toda a “construção fílmica”.

2 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad. e org. Paulo Sérgio Rouanet.v.3. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 140. 3 CANEVACCI, Massimo. Antropologia do cinema. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 45.

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Diante desta leitura do predomínio da imagem, posto no caminhar do século XX o

imperativo do olhar, acredito que dirigir ao cinema (ou as artes em geral, sem desprezar a

força imagética contida na literatura por meio da palavra) como objeto de estudo é um

constante desafio de um aprendizado de novos “modos de ler/ver”, mas que não estão mais

pautados pelas normas da escrita textual. Ao pesquisador cabe a compreensão de que a

abordagem de um documento fílmico exige dele a compreensão das peculiaridades desta nova

linguagem. Trata-se de um entendimento de como atua um olhar que se articula conosco (seja

observador ou espectador) como aquele que oferece um mundo, ou melhor, diversos pontos

de vista de um mundo. Assim, acredito que a relação Cinema e História implica ao

pesquisador uma postura desmistificadora do objeto. Entende-se, aqui, por desmistificação

uma análise dirigida pela “desconstrução” dos signos visuais e sonoros do filme, o que nos

permite uma abordagem estética do cinema, o que faz do “fazer cinematográfico” um

constante inventar e executar. Se o cinema é um olhar fabricado, trata-se de compreender as

condições deste olhar, evitando, ou procurando evitar, qualquer identificação com o aparato

cinematográfico, por mais árdua que seja esta tarefa. Desta forma, pode-se melhor “descobrir”

as significações que estão postas nas telas, sem esquecer que estas mesmas significações estão

sujeitas à reelaboração do espectador de acordo com seu nível social, político e cultural,

gosto, senso estético e sensibilidade.

Neste sentido, o estudo do Cine Jornal Brasileiro4, produzido pelo Departamento de

Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, propiciou-me uma busca por estas

“construções sígnicas”, revelando como o cinema documental, no tocante as particularidades

do gênero, serviu ao aparato de propaganda política do Governo Getúlio Vargas, que também

4 Cinejornal pode ser definido como um “noticiário produzido especialmente para apresentação em cinema. É geralmente um curta-metragem periódico, exibido como complemento de filmes em circuito comercial. Diz-se também atualidades ou jornal da tela” (ver RABAÇA, Carlos Alberto. Dicionário de Comunicação. São Paulo: Ática, 1987, p. 131.). O primeiro filme exibido em São Paulo, por volta de 1896, foi um cine atualidades, mas foi em 1921 que surgiu o primeiro jornal de atualidades, com regularidade, o Rossi Atualidades, produzido pela Rossi Film, com subsídios do governo estadual de Washington Luiz. O pioneirismo de Gilberto Rossi abriu caminhos para o aparecimento de outras produtoras, intensificando a produção de cinejornais em São Paulo. Mais tarde, em 1933, surgia o primeiro cinejornal falado, A Voz do Brasil, uma co-produção das firmas Rossi e Rex, especializada em coberturas políticas, documentando campanhas de Fernando Costa, Fábio Prado, Armando Salles Oliveira e outros personagens do cenário político paulista. A verdadeira intervenção estatal se deu apenas com Getúlio Vargas, ainda durante o Governo Provisório, quando ele decretou em 1932 a lei de obrigatoriedade de exibição de um filme nacional, mas que entraria em vigor em 1934. O mesmo decreto previa a produção constante de um cinejornal oficial, entretanto, somente em 1938 é que seria exibido o primeiro número do Cine Jornal Brasileiro. Assim, foi durante os anos 30 e 40 que o Estado brasileiro voltou suas atenções para o filme atualidade, servindo-lhe exclusivamente como instrumento de propaganda política. Já na década de 50 o noticiário cinematográfico começava a ser substituído pelo televisivo, que o superava em agilidade e instantaneidade, imperativos do novo jornalismo. Mas entre estas mudanças ainda surgiria em 1959 o Canal 100, que trazia uma inovação ao gênero, caracterizando-se por novas abordagens e pela introdução de uma série de tópicos variados como a vida, a ciência, a criança, etc., além de destacar-se pela filmagem criativa de jogos de futebol (ver SAMPAIO, Walter. Jornalismo Audiovisual. Rio de Janeiro: Vozes, 1971).

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compreendia outros dispositivos culturais como o rádio, a música, as festas cívicas entre

outros. A problematização era da seguinte ordem: como as imagens seqüenciais, tidas como

signos mitificadores, colaboraram para forjar (montagem) no imaginário social do brasileiro

dos anos 30 e 40 uma única imagem, o Estado Novo?

Não há dúvidas de que na concepção de um Estado forte e centralizador também

prevaleceu um caráter centralizador do poder simbólico. Porém, o simples “monopólio da

fala” não constituiria o que resolvi denominar de “discurso totalitário”. Era isso, mas não só.

Outro indício se fazia necessário: a construção das “imagens ideais” que regem um projeto

determinado ideologicamente, ainda que apareça de forma difusa. Por projeto entendo mais

uma disposição do que propriamente uma operação articulada, ou seja, qualquer que fosse o

programa posto pelo Estado este seria introduzido no plano do ideal, da intencionalidade, ou

melhor dizendo, estaria sujeito a um ignorar e a um reconhecer. Assim, é a compreensão da

lógica de uma ideologia que tem no “Todo Orgânico” a sua fantasmagoria que

definitivamente nos autoriza a pensar em um “discurso totalitário”. O Estado Novo não só

vigiava as informações circulantes e punia os meios de comunicação, como forma de manter

intacta a ordem social, mas, também, com o mesmo objetivo, construía a sua própria imagem

personificada na figura de seu líder. Getúlio Vargas era o componente simbólico do Estado

Novo. Era em Vargas que o povo deveria reconhecer o Estado, aquele dotado de vontades e

virtudes humanas, aquele capaz de “doar-se” ao povo, à Nação.

Vale ressaltar que este trabalho não tem a pretensão de definir o regime estadonovista

como uma efetiva instituição do modelo totalitário na América Latina, mas que, entretanto, é

importante compreender que há elementos em nossa cultura para que isso ocorra e a qualquer

momento podem ser ativados. Não se trata, aqui, de procurar em um regime político esta

“disposição totalitária”, uma vez que ela se encontra na matriz ideológica dos regimes

autoritários que atualizam constantemente a imagem de uma sociedade una, indivisa e

homogênea. Desta forma, tendo o totalitarismo como uma exacerbação específica do

autoritarismo, acredito, assim como Romano, que este se aplica ao Estado Novo apenas em

planos ideais e propagandísticos.

Mediante esta leitura, vê-se que o cinema, entre outros dispositivos culturais, surge

como uma peça fundamental para a propaganda política, primeiro por se tratar de uma

experiência coletiva em que a multidão de espectadores percebe que compartilha das mesmas

emoções, o que instaura um sentimento de unidade, por outro lado, por sujeitar a platéia a um

processo de dupla identificação, seja pelo representado ou pelo próprio aparato

cinematográfico, que faz do espectador um sujeito que tudo vê, mesmo que seja por meio do

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olhar do outro. Assim, o que a propaganda estadonovista faz é atualizar nas telas a

fantasmagoria do “Todo Orgânico”, que já está posta na sociedade. A multidão de

espectadores se encontra na sala escura em um “estado de carência”, propícia para se

reconhecer nas imagens fascinantes projetadas na tela-espelho. No entanto, estas significações

não atuariam em um vazio ideológico, era necessário que integrassem o mundo social em que

viviam as pessoas, pois só assim poderiam ser compartilhadas coletivamente. Desta forma,

cabia a estas significações tornar o Estado algo palpável, cotidiano e familiar.

Em relação aos cinejornais é comum deparamos com afirmações pejorativas, de que

são documentos “pobres” de significações, tendo em vista o predomínio de uma certa

objetividade da imagem registrada, favorecendo um discurso direto, com fins doutrinários,

como se a “construção sígnica” fosse algo inerente apenas à ficção. Seguros de seu caráter

objetivo, muitas das vezes os pesquisadores atribuíram a este tipo de documento fílmico a

capacidade de testemunhar o passado, enquanto era reservado ao filme de ficção um caráter

ilusório, fantasioso. Entretanto, desde o início, este trabalho teve a preocupação em

compreender a dúbia vocação do cinema, que tanto provocou discussões entre os teóricos

desta arte, na busca em desvendar o seu caráter ilusionista ou realista de imprimir o mundo.

Insisto na necessidade de desmistificar a objetividade do gênero documentário, o que leva a

concluir que o mesmo também se encontra imerso na subjetividade, uma vez que a

experiência estética (perceptiva) do cinema somente pode ocorrer sob a condição da ilusão da

realidade. Logo, tanto o filme de ficção quanto o filme documentário se apresentam sob a

égide do real, mas de um “real socializado”. Ainda vale lembrar que se trata de um discurso

articulado, de um fazer, que requer tanto um inventar quanto um executar, ou seja, não escapa

do princípio de montagem, os fragmentos da realidade são justapostos conforme a vontade do

cineasta, que projetados na tela obedecem a um único sentido: fazer-se reconhecer como

verossímil. Neste sentido, o filme documentário pode ser considerado uma ficção, uma vez

que o material bruto também deve ser transformado em material de contemplação, o que

equivale dizer que os espectadores também se encontram sujeitos a contemplarem as

significações que são postas diante deles.

Em um segundo momento, o estudo pretendeu apresentar alguns aspectos do

relacionamento do cinema com a política, que teve seus primórdios a partir do desenrolar da

Primeira Guerra Mundial. Já na Rússia, após a revolução de outubro de 1917, um modelo

maduro do cinema de propaganda podia ser encontrado, mas apenas durante a Segunda

Guerra Mundial era que definitivamente a arte cinematográfica seria incorporada ao aparato

ideológico do Estado, com o intuito de servir como mecanismo legitimador dos regimes

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reacionários instituídos na época. Como exemplo, destaco as estéticas cinematográficas russa

e nazista, tendo nas obras de seus expoentes, Sergei Eisenstein e Leni Riefenstahl,

respectivamente, a forma que melhor traduziu nas telas a relação povo e Estado. Aqui, a

compreensão de elementos estéticos do cinema de propaganda política, como o papel da

imagem da multidão, o uso da figura da criança como vítima de atrocidades, a representação

do líder e do “tempo festivo” e a criação do inimigo etc., serviram mais adiante para as

análises fílmicas, mas comprovaram, a priori, que a imagem vem reforçar e atualizar os mitos

políticos modernos, tendo em vista que o próprio mito é uma “forma simbólica” que, como

demonstrou Roland Barthes, deve ser lido também como um modo de significação. O mito é

uma potência mobilizadora respaldada no objeto de sua própria origem: as angústias e as

incertezas dos homens. Surge para preencher os “vazios sociais”, mas ao mesmo tempo

aparece como elemento construtivo de uma realidade social. O mito nada mais é que um

elemento de catarse dos sentimentos humanos e no cinema tem o seu caráter mobilizador

ampliado.

É mediante estas e outras questões que me dirijo aos filmes atualidades no intuito de

“descobrir” como o Estado Novo procurou se tornar presente no cotidiano dos trabalhadores

urbanos brasileiros. Mas antes disto, era necessário entender como se deu a relação entre

Estado e cinema durante o Governo Vargas, qual a sua importância e o seu papel

desempenhado na propaganda política estadonovista. Atribuídos dois sentidos ao cinema

oficial, um pedagógico e outro propagandístico, o Estado Novo destacou-se pela produção de

filmes educativos, por meio da criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), e

de cinejornais, produzidos pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Desde julho

de 1931, a propaganda política de Vargas ensaiava seus primeiros passos, mas apenas no final

da década de 30, de forma tardia para um regime que precisava se legitimar, é que se

consolidou um órgão à altura de um Estado forte e centralizador, como o instituído pelo golpe

de 1937. O DIP ficou encarregado de “centralizar, coordenar, orientar e superintender a

propaganda nacional”; encontravam-se sob o seu domínio diversos dispositivos culturais, o

que não sinalizava apenas uma instrumentação de vigília da sociedade, mas também uma

elaboração de uma identidade nacional. Assim, seja por meio do rádio, do cinema, da música

ou da imprensa o Estado estaria presente em todo o território nacional, difundia-se uma única

imagem: o Estado Novo.

A etapa seguinte do trabalho tratou de discutir exatamente como se operou nas telas do

país esta imagem do Estado Novo, personificada na figura do Presidente Getúlio Vargas,

compreendendo quais e como as proposições foram postas para a sociedade da época,

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lembrando que no tocante a uma atuação legitimadora e mobilizante do novo regime as

construções fílmicas integrariam um projeto ideológico, logo, as imagens estavam sujeitas a

um ignorar e a um reconhecer. Desta forma, reconhecendo a tarefa de lidar com as

significações, sendo as imagens compreendidas como signos mitificadores, tanto do Estado

Novo quanto de Getúlio Vargas, preocupei-me durante as análises não com o que os filmes

pretendiam dizer, mas com o que de fato diziam e como diziam. Tratava-se de apresentar

como as imagens e sons do mundo foram selecionadas e registradas pela objetiva do DIP e

oferecidas aos espectadores como objeto de contemplação, como imagens fascinantes,

capazes de promover a identificação.

Para o estudo do Cine Jornal Brasileiro foram selecionados 19 assuntos, reunidos em

três temáticas que acredito poderem explicar o universo simbólico da ditadura Vargas. Temas

como o da Industrialização e do Trabalho caminham juntos para construir um imaginário

social em torno de uma “modernização conquistada”, que materializava em imagens os traços

de um novo país, que aos poucos substituía seu caráter rural pelo urbano. Enquanto na cidade

(no litoral) os trabalhadores já se encontravam submergidos no ambiente fabril, no campo (no

sertão) aos poucos a “marcha civilizatória” chegava com as benesses de Getúlio Vargas, o

“homem providencial”; conduzia-se para o interior do país a modernidade, a marca indistinta

da presença do Estado Novo. O segundo momento da análise volta-se para a participação do

Brasil na Segunda Guerra Mundial, buscando apontar os traços do esforço do DIP em

mobilizar a sociedade brasileira para o “esforço de guerra”, que implicava na construção de

um “front interno”. A industrialização do país era o principal projeto econômico de Getúlio

Vargas para o Brasil, tendo na siderurgia a sua alavanca, mas necessitava-se de capital

estrangeiro para colocá-lo em prática. Assim, durante o decorrer do conflito mundial, o

governo brasileiro sinalizou uma condição de neutralidade, negociando tanto com a Alemanha

quanto com os EUA. No entanto, a entrada dos norte-americanos na guerra acelerou a

aproximação do Brasil com os Aliados, em troca de investimentos para a criação da

Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), instalada em Volta Redonda (RJ), e para a

modernização das Forças Armadas o Governo Vargas se comprometia a permitir a construção

de bases militares norte-americanas no seu litoral, além de produzir as matérias-primas

estratégicas ao abastecimento armamentista, entre outras coisas. A produção nacional,

principalmente a referente aos produtos manufaturados que interessavam ao “esforço de

guerra” dos EUA, era associada à batalha campal que se dava na Europa. Os trabalhadores

que não embarcaram com as tropas enviadas ao palco de operações lutavam no cenário fabril,

eram incorporados de forma imaginária ao exército brasileiro como “soldados da produção”.

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Ainda nesta temática foi possível trabalhar com a construção do mito do Inimigo, em que nas

telas se elaborava um apelo emocional explorando ao máximo a imagem da barbárie nazista.

O episódio dos afundamentos dos navios mercantes brasileiros pelos submarinos alemães

propiciou imagens mobilizantes das vítimas desta atrocidade, o que veio não só justificar o

envio dos pracinhas para o campo de batalha, mas também colaborar para a criação do “front

interno”.

Por último, o estudo dos cinejornais do DIP concentrou-se em um elemento que

acredito ser comum a estes filmes, a multidão. Vejo a imagem da multidão como fundadora

de um discurso pautado na fantasmagoria do “Todo Orgânico”, o que equivale ao signo

mitificador da Unidade. Assim, além de buscar entender como o Governo Vargas

“ressignificou” o discurso operário em torno do mito da “doação”, transformando o Dia do

Trabalhador em Dia do Trabalho, procurei ver como no cinema o uso sistemático do “poder

simbólico” das imagens da multidão dos trabalhadores, que se reuniam nos estádios de futebol

para festejar o Chefe da Nação e o Estado Novo, durante as comemorações de Primeiro de

Maio, combinado com o da criação do “tempo festivo”, serviram como instrumentos

legitimadores do novo regime. Se integrar a multidão é sentir-se solidário com os outros, é

compartilhar dos mesmos laços afetivos, como definiu Freud, a sua imagem reforça este

sentimento, atualiza a experiência coletiva de um mesmo sentimento, o de pertencer à

Pátria/Una.

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CAPÍTULO I

UMA DÚBIA VOCAÇÃO: O SONHO E A REALIDADE

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“No domínio da pintura e da estatuária, a doutrina vigente do homem culto mundano, em especial na França, é a seguinte: [...] ‘Eu creio que a arte é, só pode ser, a reprodução exata da natureza [...]’. Um Deus vingador ouviu as preces dessa multidão; Daguerre foi o seu messias.”

Charles Baudelaire

Percorrendo um dos ambientes de uma exposição deparamos com uma pintura em que

uma mulher se encontra em prantos, mas seu rosto não é curvilíneo, o lenço que resguarda

suas lágrimas pontiagudas não aparenta leveza, entretanto, o rosto mutilado por formas

geométricas nos surge como uma face coberta por uma grande tristeza. Ao lado, uma outra

imagem tem, em primeiro plano, uma camponesa com o rosto maltratado pela seca,

semelhante ao solo árido que atrás dela surge; segurando em seus braços uma criança, chora a

perda de um de seus sete filhos pela fome voraz, as lágrimas que caem de seus olhos pretos

são as únicas gotas que aquela terra há de receber. Andando mais um pouco dentro do

ambiente deparamos com a projeção de um filme curto, de alguns segundos; somente o tempo

de podermos ver, em plano geral na tela, uma senhora ajoelhada na calçada, agarrada ao corpo

de um homem, enquanto uma multidão se forma ao seu redor; na seqüência, a objetiva

registra um primeiro plano da mulher, que tem em seus braços o homem com as vestes todas

ensangüentadas; mas, nem demos conta desta imagem, outra surge para fechar a narrativa, em

plano detalhe, que preenche a tela com o olhar úmido da mulher que chora a perda do esposo.

Suas lágrimas tomam uma dimensão tamanha que parecem capazes de irrigar a terra árida da

segunda imagem.

Ao sairmos do ambiente fica uma pergunta: o que as imagens têm em comum? A

resposta mais direta seria: uma mulher que chora; mas este é o título de uma obra de Pablo

Picasso, feita em 1937, inspirado em sua amante Dora Maar, a que o primeiro relato se refere.

Na verdade, o que notamos é que diante das três imagens, apesar das mulheres não serem as

mesmas, o que temos é um mesmo referente, ou melhor, encontramos nos três aparatos

visuais formas distintas de significar um sentimento universal: a tristeza. Por mais que os

traços de Picasso desfigurem a imagem ainda nos remetem a uma idéia deste sentimento.

Entretanto, caminhando mais alguns passos pelo salão de exposição, uma indagação

surge como inevitável à nossa compreensão: dentre as três imagens, qual a que se aproxima

mais do real? Certamente, tenderíamos a responder que seria o filme, mas logo faríamos uma

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pausa e não duvidaríamos de que a fotografia também era muito fiel à realidade; e, quando

menos esperássemos, a forte lembrança da pintura nos traía a dizer que: como ela me pareceu

tão real! Até mesmo uma obra que rompe com as normas figurativas também nos remete a um

referente que somente pode existir na realidade “em si”, pois esta é a sua função, significar.

Na verdade, o que ocorre é que esse nosso cartesianismo não serve para interpelar um

momento tão solene como o da relação do espectador com a obra de arte, é um reducionismo

em que as respostas vêm derivadas de um imediatismo que força o observador a responder o

óbvio, a aceitar de imediato o efeito ilusório intrínseco ao objeto artístico. Assim, se

persistirmos em um método ao dirigirmos o olhar a uma obra de arte, é necessário que,

primeiro, abandonemos a condição de espectador, em seguida, as indagações não devem partir

da busca pela realidade, já que a própria função primária da arte é provocar uma percepção do

real no espectador, ou seja, não nos interessa o real “em si”, mas as interpretações, as

proposições deste real, que efeitos perceptivos nos oferecem deste real.

Diante disto, temos que a relação que se estabelece entre espectador e obra de arte já é

algo que está dado, determinado pela própria experiência perceptiva que o objeto sugere, que

o contato com a obra de arte sempre se dá no âmbito de um real construído e, que, portanto, o

observador toma sistematicamente para si a imagem como realidade, verdade; o ilusionismo

da arte é capaz de introduzir um véu sob o fazer artístico, escondendo as etapas de um

processo que é, ao mesmo tempo, um executar e um inventar. Devemos lembrar que estamos

falando de representações, que a credulidade da imagem está em que diante de nossos olhos a

realidade se materializa nas diversas formas, nos aproxima de um real, torna presente algo

distante; é somente por meio das representações, por elas serem ao mesmo tempo um tornar

presente e um projetar-se na obra, que podemos vivenciar novas realidades, nos aventurarmos,

tendo ainda o resguardo de que sairemos ilesos desta relação.

Portanto, compreender esta dúbia vocação da obra de arte, que muitas vezes é tida

como ilusória, fantasiosa, outras vezes como testemunho, realidade, é um desafio que

perpassa todos os trabalhos que enveredam pelos caminhos tortuosos de lidar com a obra de

arte. Deixar de lado a dicotomia realidade/ficção é o mesmo que tomar o objeto sob um viés

insuficiente de contemplá-lo, insistindo muitas vezes em um reducionismo que se divide ora

em uma concepção de falsidade para com os elementos de caráter ficcional, ora exacerbando

ao conceder aos elementos de caráter documental uma fidelidade ao real. Assim, a nossa

reflexão deve se dar no âmbito de buscar o entendimento de como esta dicotomia se efetiva,

de como cada caráter se comporta e como ambos se entrecruzam na constituição de uma obra

de arte. Se a imagem é ao mesmo tempo um revelar e um reformar do mundo, é

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imprescindível que nos atentemos para esta dualidade no cinema; que traços deste mundo

reformado, reportado nos é revelado, como esta arte introduz na sua relação com o espectador

um verossímil.

1.1 – Entre a tela e o princípio só resta o espectador

Sem insistirmos naquela repetida fábula do trem que invade a tela e provoca uma

debandada do público apavorado, que presenciava pela primeira vez no Grand Café, na

França do fim do século XIX, a invenção dos irmãos Auguste e Louis Lumière, o

cinematógrafo, é importante compreendermos como se deram as primeiras impressões do

cinema, ou melhor, dos primórdios de uma arte que somente mais adiante é que será

concebida como a conhecemos atualmente, pela sua narratividade. Na sua primeira sessão em

28 de dezembro de 1895 o cinematógrafo não atraiu mais do que 33 espectadores, tendo sido

desprezado pela própria imprensa parisiense que tinha sido convidada. Porém, durante alguns

dias o sucesso da propaganda boca-a-boca foi tremendo, sendo que até a polícia teve que ser

chamada para conter os mais de dois mil espectadores que se dirigiam ao salão onde estavam

sendo exibidas as preciosidades dos Lumière.

Entre as primeiras impressões a que mais chama a atenção é a de um jornalista que

dois dias após a inauguração do aparelho escreve no La Poste:

Imaginem uma tela colocada no fundo de uma sala tão grande quanto se pode conceber. Essa tela é visível para uma multidão. Aparece nela uma projeção fotográfica. Até aqui, nada de novo [...] mas, de repente, a imagem de tamanho natural ou reduzido, conforme a dimensão da cena, se anima e se torna viva. É a porta de uma fábrica que se abre e deixa sair uma torrente de operários e operárias, com bicicletas, cachorros que correm, veículos; tudo isso se agita, formiga. É a própria vida, é o movimento ao vivo.5

Nesta descrição notamos que o impacto do cinematógrafo na sociedade da época foi

transformador, suscitando algo de novo, que escapava da projeção fixa do instantâneo

fotográfico para ganhar movimento na tela, vida, além de dirigir-se a uma multidão. Se antes,

com a fotografia, o espectador se relacionava com a obra de arte individualmente e a imagem 5 TOULET, Emmanuelle (1988). O cinema e a invenção do século. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Objetiva, 2000. p. 134.

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que nela se revelava era uma vida congelada, estática, com o surgimento do cinema viu-se a

ressurreição da vida e uma nova experiência perceptiva que iria se configurar ao homem

moderno: a percepção coletiva. Na tela o movimento agregava um novo valor à imagem,

satisfazia imediatamente um anseio perceptivo antigo do homem pela realidade, em

reconhecer na obra a vida, os objetos que seus olhos eram capazes de contemplar. Se a

fotografia e a pintura já nos encantavam por capturar o movimento em um instante, o cinema

nos fascinava por ser capaz de oferecer ao delírio de nossa sensibilidade o balançar dos

arbustos pelo vento de outono, ou seja, se a invenção dos Lumière nos trouxe alguma

novidade, esta foi o movimento das coisas, dos homens e mulheres que saíam da fábrica.

Assim, o movimento do cinema foi o responsável por instaurar definitivamente a “impressão

de realidade”, que diante da tela ocorre por um fenômeno de participação, participação esta

que é ao mesmo tempo afetiva e perceptiva. Por isso, somos levados constantemente a afirmar

que um filme nos causa uma maior impressão do real do que uma fotografia ou uma pintura; o

movimento nos projeta para a cena como se reconhecêssemos e desejássemos que além dos

arbustos o vento chacoalhasse nossos cabelos e atingisse nossas faces com seu sopro frio e

tênue. Segundo Metz, se existe algo no espetáculo cinematográfico que não passa de uma

efígie, de uma representação, este é o movimento. A força do cinema não está em se

reconhecer como um vestígio do passado, como um vestígio de um movimento passado, mas

de ser percebido pelos espectadores sempre como um movimento atual. Enquanto os objetos e

personagens no espetáculo cinematográfico surgem como uma imagem, o movimento que os

anima aparece realmente. Portanto, em oposição ao teatro, os personagens do cinema só se

tornam presentes mediante a necessidade que o espectador tem de investi-los de uma

realidade que é oriunda da ficção (a função primária da arte), de projetar-se e identificar-se

neles. “Se o espetáculo cinematográfico dá uma forte impressão de realidade, é porque ele

corresponde a ‘um vazio no qual o sonho imerge facilmente’.”6

Entretanto, este sonho só é capaz de imergir devido à condição psíquica em que os

espectadores se encontram diante do espetáculo. Dentro da sala escura o espectador está

anestesiado, relega seu estado de vigilância, sabendo estar diante de um espetáculo suspende

qualquer ação e sequer se preocupa com qualquer prova de realidade. Por outro lado, é

constantemente bombardeado por uma seqüência de impressões visuais e sonoras que forçam

sua capacidade perceptiva de associar um elemento ao outro. Em relação ao primeiro aspecto

desta condição, Machado traça um interessante perfil do espectador: “anestesiamento do

6 METZ, Christian (1968). Trad. e posfácio de Jean-Claude Bernadet. Significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 23.

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espírito vigilante, suspensão de todo interesse pelo ambiente circundante, projeção da

personalidade num sujeito emprestado, adesão à impressão de realidade, desligamento,

passividade, desejo de sonhar: eis algumas das disposições regressivas do espectador

acorrentado à sua poltrona na gruta escura, simulação do ventre materno.”7

Assim, temos que o espectador não se dirige ao filme em um estado de contemplação,

ao contrário, busca no cinema a distração, o divertimento, o preenchimento de seu tempo

livre. Ou seja, o espectador não exige do espetáculo cinematográfico algo além do simples

entretenimento, o fato de ir ao cinema requer dele uma única motivação: divertir-se. Segundo

Machado, o desejo de ir ao cinema vai além de uma simples disponibilidade de se deixar

sugestionar pela “impressão de realidade”, corresponde ao relacionamento que o espectador

estabelece com a realidade construída, que pode ser definida como “voyeurista” e

“narcisista”. Diante da tela o espectador sempre se coloca na condição daquele que espia,

bisbilhoteia a intimidade do outro, enquanto o seu corpo inerte é projetado imaginariamente

na cena, onde ele se reconhece, se identifica com os personagens da trama como se fosse ele

mesmo o sujeito do filme.8 Portanto, o cinema “é o espetáculo da idade industrial e sua

vitalidade está garantida enquanto indústria do espetáculo.”9

Já a respeito da alteração perceptiva que o frenesi cinematográfico ocasionou nos

espectadores, os dois relatos de Balázs — um dos principais nomes da teoria formativa do

cinema — o primeiro de um inglês em uma colônia e o segundo de uma jovem siberiana, são

fundamentais para que possamos compreender algo que, com o passar do tempo, foi

esquecido ou negligenciado ao pensar esta arte:

Durante a Primeira Guerra Mundial, um funcionário colonial britânico encontrou-se numa fazendo no centro da África, isolado do mundo, e, mesmo em seguida, foi obrigado a permanecer lá por um certo tempo. Era um homem culto, recebia regularmente livros e revistas. Estava também a par dos progressos do cinema e pode-se dizer que conhecia, através das fotos de jornais ilustrados, todos os astros e estrelas da época. Lera enredos de filmes e críticas de cinematográficas, mas jamais fora ao cinema. Quando teve oportunidade de ir à cidade, dirigiu-se imediatamente ao cinema. O filme que estava sendo exibido era simplíssimo: os meninos que estavam sentados a seu lado

7 MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 55-56. 8 Idem, Ibidem, p. 47. 9 COLI, Jorge. O que é arte? São Paulo: Brasiliense, 1985. p.100. Por mais que a afirmação do autor seja categórica, não compreendemos que o cinema se limita ao espetáculo, restringindo qualquer possibilidade de exercer uma outra função social que não seja apenas o entretenimento. O que pretendemos demonstrar é que o primeiro impulso que conduz o espectador à sala de exibição é o divertimento, mas isto não impede que no momento da distração o filme se realize, como desejava Walter Benjamin e Bertold Brecht, de forma pedagógica invocando a emancipação das multidões.

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assistiam-no com extremo interesse. Por seu turno, o funcionário colonial — homem culto e instruído — fixava a tela com os olhos esbugalhados e fazia um visível esforço para compreender o que se passava. No final do espetáculo, estava literalmente esgotado. Um dos meus amigos moscovitas me contou o caso de sua nova empregada, que chegara à cidade pela primeira vez, vinda de um colcós siberiano. Era uma jovem inteligente, freqüentara a escola com proveito, mas — por uma série de estranhas circunstâncias — jamais vira um filme. Seus patrões mandaram-na ao cinema, onde se projetava uma comédia popular qualquer. Voltou para casa palidíssima e abatida. “Gostaste?”, perguntaram-lhe. Ela ainda estava emocionada e, por alguns minutos, não conseguiu emitir nem uma sílaba. “Horrível”, disse finalmente, indignada. “Não consigo compreender por que aqui em Moscou permitem que se assistam a tantas monstruosidades”. “Mas o que viste?”, retrucaram os patrões. “Vi” — respondeu a moça — “homens feitos de pedaços: a cabeça, os pés, as mãos, um pedaço aqui, um pedaço ali, em lugares diferentes.”10

Diante destes fatos que hoje nos surgem como anedotas, Canevacci ressalta que a

nossa civilização não leva mais em conta o quanto foi penoso e complicado o processo de

adaptação para que nos familiarizássemos com a sucessão visual, como tivemos que aprender

a “ler” os filmes, além de que em pouco tempo uma nova cultura visual se instituía no cerne

da sociedade moderna.11 Certamente figuras como a do funcionário colonial britânico e da

jovem doméstica siberiana são, senão inexistentes, no mínimo raras hoje em dia; já que por

mais que atualmente se leve pela primeira vez o cinema aos mais profundos rincões de um

país como o Brasil, um outro meio chegou primeiro a estes confins e ensinou a população

local a associar os diversos elementos visuais e sonoros: a televisão. No entanto, “a pequena

janela para o mundo em sua casa” jamais será capaz de ocupar o espaço da arte

cinematográfica no imaginário coletivo. Para as pessoas acostumadas a assistir aos programas

televisivos ir ao cinema pela primeira vez ainda resguarda um certo encantamento, um

fascínio por poder participar de um ritual que se repete a cada sessão.12 O cinema ainda é

10 BALÁZS, Béla apud CANEVACCI, Op. cit., p. 38. 11 CANEVACCI, Op. cit., p. 39. 12 Partindo da definição de rito como o conjunto dos esquemas que estruturam e organizam o modo de desenvolver certas atividades coletivas do ponto de vista simbólico do sentimento e da imaginação, caracterizando todos os elementos de uma cultura, sejam eles materiais (tecnológicos e mágicos), sociais e pessoais (institucionais, interindividuais, internalizados), Canevacci ressalta que “o rito da missa funcionou como o protótipo do cinema em-si, e para-si”. O autor evidencia que o fato da história se repetir no cinema, assim como na missa, é uma exigência indispensável para que se reproduza e reconfirme a eterna e imutável ordem das coisas. Para ele o consumo do rito pelo espectador que se dá pela compra dos ingressos, a entrada na sala escura , a reconfirmação da aventura, a saída para o ar livre e o, enfim, feliz retorno ao lar é o exemplo de como o cinema adaptou o sentido do drama divino que consiste no nascimento, na afirmação e morte do herói, no sacrifício da ressurreição, culminando na vitória do bem. Portanto, o cinema é responsável por “massificar o rito” (CANEVACCI, Op. cit., p. 39-50).

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capaz de permitir a estas pessoas a vivência de uma nova realidade, de impressionar-se com o

real e reconhecer-se de forma afetiva e perceptiva como o sujeito do filme.

Assim, temos que a relação que a sociedade estabelece com a arte e vice-versa sempre

se dá no âmbito da ficcionalidade, porém, uma ficcionalidade que constantemente responde

ao social com um real atribuído. Ou seja, a sociedade tem a necessidade de vivenciar as

ilusões como verdadeiras, clama pelo ilusionismo, fato que, para Stam, configura o ser

humano como um “animal criador de fábulas. Gosta de fingir que as ficções são verdadeiras,

mesmo sabendo que não o são.”13

Nota-se então que, para prosseguirmos nesta reflexão da dicotomia realidade/ficção,

faz-se necessário nos aproximarmos de uma definição do “real” que permita caminhar por

este assunto ardiloso que é a arte. Desta forma, concebemos o real, de acordo com Duarte

Júnior, como “o terreno que pisamos em nosso cotidiano”.14 No entanto, para o autor, é

possível falarmos em “realidades”, já que cada vez que alteramos a nossa perspectiva sobre o

mundo ele se apresenta sob uma nova forma, ou seja, sob a condição de que a construção da

realidade é um processo fundamentalmente social temos que “o homem é o construtor do

mundo, o edificador da realidade”.15 Assim, está configurada a dicotomia: de um lado a ficção

é subentendida como verdade, do outro a realidade é construída socialmente. Cabe a nós

desvendar o véu que a cobre no cinema.

Parte deste desvendamento nos revela uma preferência perceptiva do homem pela

realidade. Segundo Schwartz,16 anterior a invenção do cinematógrafo os espetáculos que se

dirigiam ao público parisiense do século XIX já atendiam a uma exigência perceptiva do

homem moderno: o gosto pela realidade. Dentre estes espetáculos o necrotério era a principal

atração popular de Paris, as pessoas não iam lá para reconhecer um cadáver, como se

cumprissem um dever cívico, mas para exercerem uma atividade essencialmente voyeurista,

ou seja, iam somente para olhar. O necrotério era incluído entre as curiosidades da cidade, era

mais uma atração, mais uma coisa para se ver, assim como a Torre Eiffel. Um outro exemplo

de popularidade na França era o museu de cera, o Museé Grévin, que diante do realismo das

peças, muitas vezes associado à autenticidade dos acessórios e das réplicas, atraía visitantes

tanto quanto o já instituído passeio pelo necrotério. Portanto, para a autora, o gosto dos

13 STAM, Robert (1970-76). O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Trad. José Eduardo Moretzsohn. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 19. 14 DUARTE JÚNIOR, João-Francisco O que é realidade?. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.8. 15 Idem, Ibidem, p. 12. 16 SCHWARTZ, Vanessa R. O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). Trad. Regina Thompson. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 411-440.

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habitantes da Paris fin-de-siècle pelo realismo podia ser explicado mediante o interesse que

nutriam pelo modo como a realidade era transformada em espetáculo e, por ventura, pela

forma como os espetáculos eram obsessivamente realistas, o que equivale dizer que os

espectadores levaram para a experiência cinematográfica os modos de ver cultivados em

diversas atividades e práticas culturais. Ou seja, o cinema incorporou para si o anseio

perceptivo do homem moderno, a busca íntima pela realidade.

Ainda procurando revelar a fina transparência da ficção que recai sobre a arte

cinematográfica, em que o espectador se dirige ao filme na expectativa de vivenciar um real,

já que o próprio elemento ficcional o autoriza, a interpretação de Kossoy17 a respeito da trama

fotográfica pode nos auxiliar nesta tarefa. Para o autor é possível pensarmos em quatro tipos

de realidade que constituem a fotografia: a “Primeira Realidade” é definida como o passado

em sua essência, ou seja, a própria dimensão da vida passada; a “Realidade Interior” é

intrínseca a toda e qualquer imagem: é a história oculta e interna, uterina, invisível

fotograficamente e inacessível fisicamente. Por originar da “Primeira Realidade” ambas se

confundem; já a “Segunda Realidade” se refere ao assunto representado, ou seja, é a

referência sempre presente de um passado inacessível, é a própria representação. Assim,

temos que a fotografia ou o cinema estarão sempre no âmbito da “Segunda Realidade”, que

nada mais é do que o registro na chapa, a imagem gravada; finalizando, a “Realidade Externa”

é entendida como a face aparente e externa de uma micro-história do passado, ou seja, o

aspecto visível, o assunto representado que configura o conteúdo explícito da linguagem

fotográfica.

A concepção destes quatro tipos de realidade contribui para que compreendamos o que

já vínhamos dizendo anteriormente: a realidade é uma construção social. Desta forma, temos

que o cinema, assim como a fotografia, é um processo construtivo em que selecionamos

fragmentos da “Primeira Realidade”, portanto, do real “em si” que, por ventura, na película se

configura em um passado inacessível, oculto ao documento (a “Realidade Interior”). Neste

instante de seleção, de registro, os fragmentos de um passado distante são transformados em

imagens, em representações, ou seja, o que pertencia ao nível da “Primeira Realidade” agora

responde a uma nova realidade, a uma “Segunda Realidade”. Assim, se o passado antes se

encontrava ausente, é por meio de uma “Realidade Exterior”, ou seja, da exterioridade da

17 KOSSOY, Boris. Realidade e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. Apesar do cinema ser, por excelência, a arte do movimento e, portanto, tendo incorporado definitivamente a percepção do real, a leitura de Boris Kossoy sobre o embate realidade/ficção na fotografia nos é reveladora desta problemática. Devemos lembrar que o cinema não passa da ressurreição dos objetos estáticos de uma fotografia, vida que ressurge no tempo em 24 fotogramas por segundo.

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relação observador e imagem que ele se torna presente. Segundo Kossoy, “a realidade da

fotografia [do cinema] não corresponde (necessariamente) à verdade histórica, apenas ao

registro expressivo da aparência ... ”.18 Portanto, a única realidade que pode ser apreendida

pela experiência cinematográfica é aquela que se realiza no nível da percepção.

Assim, temos que nossas investigações não partem do pressuposto de que o filme é o

registro puro do real, como também não lhe atribui um juízo de valor que seja pautado por

este suposto realismo. Dizer que um filme é mais realista do que um outro é o mesmo que

tomar para si como verdade as proposições que ele determina, o que se decide que seja dito de

um fato, de uma sociedade. Desta forma, o historiador não será capaz de superar no momento

da análise sua condição de espectador; a busca por uma verdade no filme é um esforço em

vão, já que o real é inacessível pela imagem. Então, compreendemos que o que está ao nosso

alcance não passa de um verossímil que o filme autoriza, como evidência Alea:

O realismo do cinema não está na sua suposta capacidade de captar a realidade “tal como ela é” (que é somente “tal com ela aparenta ser”) mas na sua capacidade de revelar, através de associações e relações de diversos aspectos isolados da realidade — isto é, através da criação de uma “nova realidade” — camadas mais profundas e essenciais da própria realidade.19

No entanto, se a “realidade fílmica” só se realiza “através de associações e relações de

diversos aspectos isolados da realidade”, para que possamos continuar desvendando este véu

do cinema, chamado “impressão de real”, é imprescindível que compreendamos um dos

fundamentais princípios da linguagem cinematográfica: a montagem. Segundo Aumont, “a

montagem é o princípio que rege a organização de elementos fílmicos visuais e sonoros, ou de

agrupamentos de tais elementos, justapondo-os, encadeando-os e/ou organizando sua

duração”.20 Assim, temos que a montagem nos aproxima da idéia de “construção fílmica”,

em que a justaposição de fragmentos do real conduz ao surgimento de uma nova noção de

tempo e espaço, que Pudovkin veio denominar de “tempo fílmico” e “espaço fílmico”. Para o

teórico russo ao somarmos um plano a outro, como peças cinematográficas, obteríamos uma

experiência temporal e espacial que difere do real. O “tempo fílmico” não equivale ao tempo

real pois não se desenrola diante da câmera,21 é uma temporalidade determinada pelo diretor

18 KOSSOY, Op. cit., p. 38. 19 ALEA, Tomás Gutiérrez. Dialética do espectador. São Paulo: Summus, 1984. p. 42-43. 20 AUMONT, Jacques. et. al. A estética do filme. Trad. Marina Appenzelle. Campinas, SP: Papirus, 1995. p. 62. 21 Devemos ressaltar que quando das concepções teóricas de Pudovkin, durante os anos 20, o cinema, longe de conceber o plano-seqüência, ainda se limitava a uma narrativa fragmentada, em que uma seqüência era

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que seleciona e monta os retalhos temporais. Da mesma maneira ocorre com o “espaço

fílmico”: vários pontos do espaço real são filmados, captados pela objetiva e, em seguida,

associados para que constituam um novo espaço. Portanto, com o auxílio da montagem o

cinema foi capaz de desenvolver seu caráter narrativo que foi o responsável para que o

reconhecessem como arte, abandonando, assim, as feiras populares.

Como vimos, o princípio de montagem foi a mola propulsora da consolidação da arte

cinematográfica, o que o coloca na condição de elemento catalisador de todo um debate

teórico a respeito do cinema. Desde o início das teorias do cinema duas tendências se afirmam

em torno de concepções distintas do papel que a montagem ocupa no fazer cinematográfico:

para uma primeira tendência o princípio de montagem é o elemento dinâmico essencial ao

cinema, é aquele capaz de provocar a catarse dos sentimentos e das emoções mais sublimes

dos espectadores — entretanto, em alguns casos extremos, chegam a ponto de exacerbar na

avaliação de suas possibilidades; ao contrário, uma segunda tendência desvaloriza a

montagem submetendo-a, rigorosamente, à instância narrativa ou à representação realista do

mundo, ou seja, quanto menor for a atuação deste princípio no fazer artístico maior o cinema

se aproxima de sua essência: o real. Assim, para que possamos melhor compreender o cinema

que se pauta ora por uma ora por outra corrente escolhemos dois dos principais teóricos que

tiveram a montagem como elemento central de seu sistema, mas que lhe reservaram sentidos

opostos. Para tal oporemos o formalismo de Sergei Eisenstein ao realismo de Andre Bazin.

Entre os principais nomes da cinematografia soviética destaca-se o teórico e cineasta

Sergei Eisenstein que, nos anos 20, mostrou o caminho do cinema de propaganda totalitária: a

montagem. Foi no seu cinema que este princípio cinematográfico tomou corpo, sendo às vezes

levado ao extremo, como um instrumento ideal para conduzir os espectadores por meio de

suas emoções à tomada de consciência, à proclamação da absoluta necessidade da revolução.

Concebendo a atividade artística como uma atividade do fazer, ou melhor, do construir,

Eisenstein via na montagem o poder criativo, o princípio vital do cinema, no qual as “células”

(os planos) isoladas são justapostas e compõem um único elemento cinemático. Para o diretor

a arte era um eterno conflito e, portanto, seu cinema só poderia derivar de uma montagem de

colisão de “células” independentes, em que a justaposição de fragmentos isolados do real ao

invés de compor uma soma, como preferia acreditar Pudovkin, consistia em uma operação de

produto de onde nasceria uma nova idéia, um novo conceito. Assim, Eisenstein conceberia sua constituída por diversos planos (médio, geral, detalhe etc.). Somente mais tarde é que poderíamos desfrutar da experiência perceptiva do plano-sequência em filmes como “Festim diabólico” de Alfred Hitchcock ou na cinematografia do Neo-realismo italiano do pós-guerra, representada por películas como “Roma cidade aberta” de Roberto Rosselini e “Ladrões de bicicletas” de Vittorio De Sica.

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teoria da montagem de atrações em que procurava provocar o êxtase em sua platéia. Foi

encontrando mecanismos perceptivos de se atingir o phatos — um sentimento que participa

das nossas emoções mais profundas, mais primárias, porém, constituído de uma simplicidade

que reside no fato de que ele toca as camadas essenciais da psique, como também de uma

complexidade por não se limitar às nossas emoções “simples”, como o medo, a alegria, a ira, a

satisfação, mas por se configurar na fusão de uma multiplicidade de diferentes emoções22 —

que o cineasta pretendia levar o espectador a “pular em sua cadeira”, a “sair de si mesmo”, o

que equivaleria dizer que diante dos filmes de Eisenstein os espectadores eram

constantementes provocados a “saírem de sua condição ordinária”: a passividade. Segundo

Andrew23, o diretor acreditava que sem a participação ativa da platéia não poderia haver

trabalho artístico, já que o filme só se realiza na mente humana, o destino da mensagem

fílmica. Assim, para o cineasta

Uma obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador. É isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado processo de criação, em vês de ser absorvido no processo à medida que este se verifica.24

Diante de um cinema conceitual ou intelectual, como concebido pelo diretor de

Outubro e A greve, inspirado nos ideogramas orientais, o espectador é conduzido a percorrer o

mesmo caminho criativo trilhado pelo autor para criar a imagem. Assim, em resposta às

críticas que atribuem ao cinema soviético um uso da montagem como uma técnica de

manipulação ou de dirigismo da consciência coletiva, Machado afirma que as articulações de

imagens construídas pelo diretor não poderiam constituir uma escravização do espectador,

pois a verdade do filme se construía à vista do espectador, ou melhor, dependia

exclusivamente de sua efetividade e de seu raciocínio. O que equivale dizer que “o espectador

de Eisenstein não é receptáculo vazio de ideologias alheias, mas é sujeito ativo (se não for, não

entenderá nada) e, por isso mesmo, intelectualmente livre para aceitar ou rejeitar” 25 qualquer

mensagem.

22 SCHNAIDERMAN, Bóris. Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 238. 23 ANDREW, J. Dudley. (1976) As principais teorias do cinema: uma introdução. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. p. 72. 24 EISENSTEIN, Sergei (1942). O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 21. 25 MACHADO, Arlindo. Serguei M. Eisenstein: geometria do êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 43.

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Como podemos notar, Eisenstein se recusava a conceber seu cinema sob o viés de um

realismo — o “realismo soviético” — tão em voga entre a intelectualidade da época, fato que

lhe custou constantes desavenças com a burocracia estatal stalinista. Enquanto o Estado

comunista exigia que o cinema fosse o “retrato fiel” da sociedade que o constituía, Eisenstein,

longe de aceitar a reprodução mecânica da natureza como princípio estético da arte, via no

cinema a forma de preencher o mundo de sentido. Segundo Andrew,26 o cineasta defendia que

o cinema só poderia capturar a realidade se fosse capaz de destruir o “realismo”, ou seja,

decompor a aparência de um fenômeno a fim de recompô-lo de acordo com um “princípio de

realidade”. Enfim, “desbastar pedaço da realidade com o machado da lente.”27

Em contrapartida às teorias eisensteinianas, Andre Bazin concebe um cinema capaz de

captar o sentido da realidade, ao invés de atribuir-lhe um sentido. Para o autor a montagem, ao

criar um sentido abstrato no filme, é a responsável por manter o espetáculo cinematográfico

em sua irrealidade necessária. Assim, se para Eisenstein ela é a essência do cinema, para

Bazin a montagem é “o procedimento literário e anti-cinematográfico por excelência”.28

Entretanto, para Andrew,29 ele jamais condenou francamente a montagem, apenas a reduziu a

uma posição mais humilde na hierarquia das técnicas cinemáticas. O teórico concebia que

para o próprio dispositivo do cinema era permitida e necessária a utilização da montagem,

porém, com limitações: a justaposição de fragmentos de imagens não poderia escapar ao

“princípio de realidade”. Encontrava no plano geral e na profundidade de campo os elementos

essenciais para o desenvolvimento de uma arte cinematográfica realista, que viria substituir o

tempo e o espaço abstratos — o que Pudovkin denominou de “tempo fílmico” e “espaço

fílmico” — antes presentes no espetáculo e que procuravam criar uma continuidade mental à

custa de uma capacidade perceptiva do espectador em associar os fragmentos descontínuos,

por uma “realidade perceptiva” (espacial). Diante dos olhos dos espectadores o cinema era

capaz de mostrar um evento desenvolvendo-se em um espaço integral, o respeito à realidade

implicava também em uma duração real. “Há todo um universo num minuto real do

sofrimento de um homem”,30 afirmava Cesare Zavattini, um dos principais expoentes teóricos

do neo-realismo italiano, que acreditava que a montagem adulterava o tempo. Ainda em

relação a um cinema de “transparência”, em que o espectador em contato com o ilusionismo

26 ANDREW, Op. cit., p. 75. 27 EISENSTEIN, Sergei (1949). A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 45. 28 BAZIN, André (1958). O cinema, ensaios. Trad. Juliana Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 59. 29 ANDREW, Op. cit., p. 166. 30 ZAVATTINI, Cesare apud AGEL, Henri (1957). Estética do cinema. Trad. Armando Ribeiro Pinto. São Paulo: Cultrix, [19-]. p. 40.

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da arte é constantemente levado a acreditar que está diante de um evento real, por mais

descontínuo que ele aparenta na tela, Bazin dispara sua crítica:

Qualquer que seja o filme, seu objetivo é dar-nos a ilusão de assistir a eventos reais que se desenvolvem diante de nós como na realidade cotidiana [grifo nosso]. Essa ilusão esconde, porém, uma fraude essencial, pois a realidade existe em um espaço contínuo, e a tela apresenta-nos de fato uma sucessão de pequenos fragmentos chamados “planos”, cuja escolha, cuja ordem e cuja duração constituem precisamente o que se chama “decupagem” de um filme. Se tentarmos, por um esforço de atenção voluntária, perceber as rupturas impostas pela câmera ao desenrolar contínuo do acontecimento representado e compreender bem por que eles nos são naturalmente insensíveis, vemos que os toleramos [grifo nosso] porque deixam substituir em nós, de algum modo, a impressão de uma realidade contínua e homogênea.31

Assim, para o teórico tanto a montagem de Kulechov32 quanto a de Eisenstein não

eram capazes de mostrar os acontecimentos, somente podiam fazer alusão a eles. Bazin não

negava que os cineastas russos retiravam da realidade a maioria dos elementos visuais e

sonoros que iriam compor seus filmes, entretanto, a significação final destes filmes derivava

da organização dos elementos ao invés do conteúdo objetivo deles. Na verdade, a convenção

deste princípio negava a natureza da arte cinematográfica. Para Bazin, o cinema veio

satisfazer definitivamente a obsessão do homem pelo realismo, portanto, a imagem

cinematográfica valeria não pelo que acrescenta mas pelo que revela da realidade.

Segundo Xavier, para que possamos compreender as idéias que circulam em torno da

teoria do realismo de Bazin temos que admitir que o cinema não é responsável apenas por

fornecer uma “aparência” do real, mas capaz de constituir um mundo “à imagem do real”.

Desta forma, podemos falar em um realismo estético que se apresenta menos como a

expressão de um pensamento do que como um exercício do olhar. Para o autor o que

realmente importa nesta concepção, e que devemos atentar, é “a manifestação de um estilo de

câmera, de uma nova narração, que não se apresenta como discurso construído, ‘tijolo por

31 BAZIN, Andre apud AUMONT (1995), Op. cit., p. 74. 32 Lev Kulechov, juntamente com Dziga Vertov, Pudovkin e o próprio Eisenstein, era um dos principais teóricos integrados à Escola Estatal de Cinema fundada em 1920 na Rússia. Foi um dos pioneiros em experiência de montagem fílmica, concebendo-a como a arrumação de “tijolos” (os planos) em série para expor uma idéia, em que o sorriso de um homem poderia mudar de expressão conforme a imagem que o precedia.

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tijolo’ (Kulechov), mas como descoberta de uma realidade virgem, que o olhar vai

encontrando e explorando.”33

Portanto, para Bazin, o fato da postura dos cineastas em relação à montagem vir sendo

alterada com o passar do tempo foi imprescindível para o avanço estético do cinema. Em um

momento superou-se a fase do cinema mudo em que a montagem evocava o que o realizador

queria dizer por uma decupagem que descrevia a mensagem fílmica, para enfim, depararmos

no realismo com uma escrita diretamente em cinema. Definitivamente, “a imagem [...]

apoiando-se num maior realismo, dispõe assim de muito mais meios para infletir, modificar

de dentro a realidade”, o que equivale dizer que, para o autor, hoje “o cineasta não é somente

o concorrente do pintor e do dramaturgo, mas se iguala enfim ao romancista.”34

Compreendido o embate entre estas duas correntes teóricas, não cabe ao historiador

escolher uma em detrimento da outra, isto somente limitaria sua análise, pois se dirigiria ao

filme com uma visão particularizada, como faz Eisenstein e Bazin, por mais fecundos que

sejam. Se o historiador procura desvendar o véu do cinema, tem que entender que esta é uma

busca estética, ao invés de poética, como desejam alguns. Guiar suas análises por um juízo de

valor, procurando determinar o que é realidade ou ficção em um documento fílmico faz dele

um mero crítico de arte, que lida com o cinema em uma condição de recolhimento. Em

contrapartida, devemos perceber que esta busca estética compreende que para o cinema todos

os “ismos” (formalismo, realismo, expressionismo etc.) são válidos, que todas as dicotomias

são aceitas, seja espetáculo ou alta cultura, seja arte ou indústria, seja diversão ou cult, o

sentido do filme já está dado: a percepção.

Entretanto, foi Eisenstein que nos apresenta uma definição do que implica a

experiência perceptiva do cinema, em que “ver um filme é como ser sacudido por uma cadeia

contínua de choques vindos de cada um dos vários elementos do espetáculo cinematográfico,

não apenas do enredo”,35 o que mais tarde encontrará respaldo na teoria estética de Walter

Benjamin, fundamental para compreendermos os rumos que esta pesquisa irá tomar. Para o

filósofo interessa refletir a respeito do impacto perceptivo da reprodução técnica na obra de

arte, a partir do século XIX, em que a arte provinda dos mecanismos técnicos abandona o

invólucro da magia, do místico, para se aproximar do espectador; o autêntico dá lugar ao

reproduzível, enquanto o culto é substituído pela exposição. A era da reprodutibilidade

técnica é o fim da “aura”, como sentenciou o filósofo alemão, é a época em que a obra de arte 33 XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 74. 34 BAZIN, Op. cit., p. 81. 35 ANDREW, Op. cit., p. 57.

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se emancipa do ritual, rompe com a dicotomia distância/proximidade que lhe regia na antiga

tradição, em que a própria obra está presente ao mesmo tempo que ausente: “o que importa,

nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas.”36

O que está em questão para o autor é a relação do público com a obra de arte, como

isso se dá diante das novas técnicas. A preocupação filosófica de Benjamin é procurar

responder à seguinte pergunta: que arte é esta que surge para satisfazer as multidões que se

formam nas metrópoles modernas?

Em resposta a esta inquietação, o autor justifica que “a forma da percepção da

coletividade humana se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”,37 ou seja,

aos passos da evolução tecnológica o caráter perceptivo da sociedade vem sofrendo

constantes alterações; com a sociedade avançam também as formas de reprodução técnica,

xilogravura, litografia, a imprensa de Gutenberg, até chegarmos à fotografia, o último aceno

da “aura”, que ainda podia ser encontrada nos retratos, o último refúgio, segundo Benjamin,

do valor de culto — nos retratos residia o culto à saudade, saudade dos amores ausentes. Se a

fotografia ainda acenava para a obra de arte aurática é o cinema que vem definitivamente

fechar as velhas janelas para a cultura tradicional. O cinema é a resposta às questões do autor,

ele inaugura uma nova relação da arte com as multidões. Segundo Walter Benjamin, o que

define o cinema é o seu caráter coletivo; o filme é uma criação coletiva e para a coletividade,

e, como veremos mais adiante, responde aos anseios perceptivos do homem moderno, do

homem-massa.

No entanto, é com base nesta relação arte/multidão que Walter Benjamin vê o cinema

como um instrumento revolucionário, como uma arte-pedagógica capaz de conduzir as

multidões ao seu autoconhecimento. Para o autor uma obra de arte emancipada, ou seja, que

não esteja a serviço de classes — um idealismo digno de um filósofo materialista —,

corresponderia a uma multidão também emancipada. Aqui, Benjamin faz alusão a um novo

rumo que a arte toma em direção à política, e vice-versa. É o caráter coletivo do cinema que o

torna um “utensílio político” valioso, mas que, para o autor, só poderá exercer esta função

quando o mesmo estiver liberto da exploração capitalista, “pois o capital cinematográfico dá

um caráter contra-revolucionário às oportunidades revolucionárias imanentes a esse controle

[das multidões]”.38 Desta forma, a utilização política do cinema pelo fascismo — assim como

tantas outras artes que são destinadas às massas (arquitetura, música, etc) — é o exemplo de 36 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Trad. e org. Paulo Sérgio Rouanet. v.1. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 173. 37 Idem, Ibidem, p. 169. 38 Idem, Ibidem, p. 180.

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como a apropriação desta moderna forma de percepção pode muito bem satisfazer aos

interesses de movimentos reacionários e materializar na tela os ideais totalitários. À esta

“estetização da política”, posta em prática pelo fascismo, Benjamin busca a contra-resposta na

“politização da arte” do comunismo. Se o fascismo oferece às multidões a sua própria

destruição como um “prazer estético de primeira ordem”, o comunismo responde com uma

arte que visa levar as massas a romperem com a sua passividade, que provoque nelas os

choques que trarão à tona faíscas de um intelecto apagado pelas cinzas da auto-alienação.

Porém, não podemos reduzir esta oposição “estetização da política” e “politização da arte” a

uma simples relação binária. Segundo Osborne,39 opor fascismo e comunismo, sob as regras

da estética e da política, é uma saída inadequada do filósofo alemão sob dois aspectos: o

primeiro, é que uma “arte politizada” não possui, suficientemente, reservas institucionais e

dinâmica social para enfrentar uma “política estetizada”; o segundo, diante da idéia de uma

“arte politizada” não há condições de distinguir o comunismo do fascismo, já que o próprio

regime fascista corresponde a uma “politização da arte”, ou seja, faz um uso político

particular da estética, no sentido de dominação das multidões — o inverso do que idealizava

Benjamin ao acreditar em uma arte emancipadora. Para Bolle,40 responder ao processo de

estetização da política fascista com a “politização da arte” foi um meio que Benjamin

encontrou para revelar o próprio conceito de cultura elaborado pelo fascismo alemão, tornar

transparente o retrocesso que o progresso tecnológico engendrou na moderna sociedade, em

que a política recuperou o culto e a magia, com seus mecanismos de mitificação e

ritualização, herdados de duas experiências eficazes com as massas: a Igreja e o Exército.

Portanto, a dicotomia arte/política, sugerida por Walter Benjamin, encontra respaldo em uma

teoria que, segundo Gagnebin,

[...] se atém aos processos sociais, culturais e artísticos de fragmentação crescente e de secularização triunfante, não para tentar tirar dali uma tendência irreversível, mas, sim, possíveis instrumentos que uma política verdadeiramente “materialista”, que deveria poder reconhecer e aproveitar em favor da maioria dos excluídos da cultura, em vez de deixar a classe dominante se apoderar deles e deles fazer novos meios de dominação.41

39 OSBORNE, Peter. Vitórias de pequena escala, derrotas de grande escala: a política do tempo de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Andrew; OSBORNE, Peter (orgs.). A filosofia de Walter Benjamin:destruição e experiência. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 107. 40 BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 1994. p. 220. 41 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 64.

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Desta forma, temos que o cinema, para Benjamin, é uma arma perigosa sob domínio

de movimentos contra-revolucionários, serve à política ritualizada como meio de tornar

presente às multidões diante da tela seus eventos mitificadores de um regime: os ritos dos

desfiles, dos jogos e dos meetings. O cinema completa o rito fascista. O espetáculo conta com

a participação das massas, entretanto, é feito para elas e, concomitantemente, espera-se que se

reconheçam na tela. Assim, segundo Benjamin, “a arte fascista é uma arte de propaganda.

Portanto, ela é executada para as massas. A propaganda fascista precisa penetrar a vida social

por inteiro. A arte fascista, portanto, não é executada apenas para as massas, mas também

pelas massas.”42

Na teoria estética de Walter Benjamin a arte pós-aurática está vinculada à atrofia da

experiência, a reprodutibilidade técnica não permite ao espectador captar qualquer vestígio do

fazer artístico.43 Assim, a esta nova relação público e obra de arte, pautada por uma obra

42 BENJAMIN, Walter apud BOLLE, Op. cit., p. 227. 43 Ao conceber o cinema como o ápice de uma era sujeita a novas percepções, em que a obra de arte rompe com o valor teológico, Walter Benjamin suscita um debate em torno da questão do valor aurático da arte sujeita ao processo de reprodução técnica. O autor é categórico em afirmar que o cinema destruiu qualquer tentativa da obra de arte configurar-se em um ritual secularizado, o público não se dirige mais a ela em uma atitude de culto, mas em uma atitude de distração diante do que foi exposto. Entretanto, persiste um grande esforço, por parte de outros teóricos, em atribuir à arte cinematográfica uma “aura”, o que, para Benjamin, corresponde a uma tentativa burguesa de conferir ao cinema uma dignidade de arte, ou melhor, de poder inseri-lo na categoria das “grandes artes”. Rouanet é um dos que vislumbram a alternativa de um cinema aurático. Para ele é nítido que o cinema que serve aos objetivos da Indústria Cultural constitui mera vivência, coibindo qualquer tentativa de reflexão por parte do espectador, porém, é o “grande cinema” aquele que irá mobilizar as camadas mais profundas da experiência, mantendo intacta a capacidade do espectador de pensar, associar e rememorar. Segundo o autor o filme de arte ao invés de excluir a liberdade associativa do público, a pressupõe. “Sua função política não está em condicionar espectadores distraídos, mas em descondicionar espectadores manipulados. O grande cinema é crítico, não mobilizador” (ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1990, p 62). Para ele a reprodutibilidade técnica não implica ao cinema um desaparecimento da aura, como acredita Benjamin, ao contrário, cada cópia poderia ser considerada autêntica. Assim, “o filme de arte tem, como toda obra de arte, a característica da unicidade e da distância ... O espectador, recolhido, mergulha nele, com toda a espessura de sua experiência” (Idem, Ibidem, p. 63). Estas reflexões de Rouanet podem ser válidas, mas enquanto não restringir a experiência cinematográfica somente aos espectadores do que ele resolveu denominar de “grande cinema”. Porém, como Walter Benjamin, não vejo no cinema nenhuma exigência em ser aurático. Assim, o fato do autor encontrar autenticidade nas cópias de filmes é algo pelo menos estranho ao conceito benjaminiano de “aura”: o aparecimento único de um objeto distante, por mais próximo que esteja. Vejamos alguns pontos desta questão: primeiramente, em um raciocínio simples, do ponto de vista material, a própria cópia aproxima o objeto, ao invés de distanciá-lo dos espectadores, posso assistir ao mesmo filme em diversas cidades, em diversos países; segundo, a sucessão dos fragmentos da realidade captados pela objetiva provoca no público do cinema a “aparência do real”, ou melhor, torna presente a realidade que estava ausente, satisfazendo, assim, o desejo das multidões de ficarem mais próximas das coisas, superando o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade; por último, qualquer que seja o filme, comprometido com a Indústria Cultural ou não, jamais será capaz de proporcionar ao espectador a contemplação da realidade “em si” ou, como prefere Benjamin, “respirar a aura”: “observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho” (BENJAMIN [1985], Op. cit., p. 170). Portanto, por mais que o “grande cinema”, como quer Rouanet, ofereça aos nossos olhos planos seqüências intermináveis dessas cadeias de montanhas ou da planície de um sertão árido, jamais poderíamos experimentá-las em suas essências; o cheiro da relva trazido pelo vento que chocalha nossos cabelos, o forte calor do sol que penetrando em nosso corpo arde como reflexo das cicatrizes daquela terra, ambos nos são negados. Se a contemplação, a percepção da “aura” em um objeto, como afirma Benjamin, requer repouso, no cinema isto é

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destinada ao consumo das massas, à percepção coletiva, resta somente a vivência. Vivência

que na modernidade, segundo o autor, corresponde a um constante exercício de interceptação

dos choques, ou seja, o homem moderno está sujeito a situações cotidianas que o levam a

proteger-se dos choques, como o simples caminhar entre as multidões das metrópoles ou o

operar uma máquina. O transeunte é um homem atento a evitar que se choque com o outro, se

assemelha à figura de um esgrimista que vai abrindo caminho na multidão ao distribuir

estocadas. No caso do operário, submetido à linha de produção em série, ele tem que adequar

o seu ritmo de trabalho ao ritmo da máquina, reagir aos estímulos da máquina, que lhe impõe

uma resposta reflexa repetida e idêntica a cada minuto. Portanto, “a vivência do choque”

sentida pelo transeunte que trafega pela multidão, como afirma Benjamin, corresponde à

vivência do operário na linha de produção. Ambos se protegem dos choques, mas ao custo de

um comportamento reflexo, em que a vivência é privilegiada enquanto a experiência é

negada. Este constante vivenciamento dos choques ao qual é submetido o homem moderno,

Benjamin, inspirado em Baudelaire, transformou-o em experiência, neste caso, “experiência

do choque”.

Walter Benjamin encontra na cultura do choque as respostas para suas inquietações. Se

na esfera da vida cotidiana do homem moderno o choque se impôs como uma realidade

onipresente, não cabe às artes negá-lo, ao contrário, se ela pretende se dirigir a um público

moderno é necessário que ofereça ao homem a “experiência do choque”. Portanto, ao oferecer

a esta nova sensibilidade, que se configura no mundo moderno, uma arte que tem por essência

a sucessão brusca e rápida de imagens, fragmentos que se impõem ao espectador como uma

seqüência de choques, interrompendo-lhe a capacidade de associação de idéias, o cinema é,

como afirma o autor, o instrumento que efetiva a estética do choque. Para Benjamin, o

princípio formal que se impõe ao cinema é a percepção sob a forma de choque, o que equivale

a dizer que “aquilo que determina o ritmo da produção na esteira rolante está subjacente ao

ritmo da receptividade, no filme.”44

Assim, mediante esta capacidade do filme em romper com as estruturas associativas

dos espectadores, por meio de seqüenciais choqui-formes, que não lhe permitem fixar o olhar

em uma imagem, pois quando a percebe, ela já não é mais a mesma, o cinema surge como o

meio de comunicação mais eficaz de dirigir-se às multidões concentradas na sala escura, de

inviável, pois, o consciente do espectador está sempre em alerta para interceptar os choques. Confesso que não me interesso em pensar o cinema sob esse aspecto de “direito ao culto”, pois nesse âmbito qualquer tentativa de desmistificação do objeto me parece falsa, pura idolatria. Assim, como a devoção religiosa, o culto ao cinema não permite criticar, questionar, portanto, o visível é somente aquilo que permite que seja visto. 44 BENJAMIN (1989), Op. cit., p. 125.

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dirigir-se a um homem que, para Baudelaire, mergulha na multidão como em um tanque de

energia elétrica, consciente de que o choque deve ser interceptado. Aqui, o fato do cinema

dissolver as estruturas associativas do público também permite a ele suscitar uma nova forma

de se relacionar com o objeto. Se o adorador da obra de arte aurática se dirige a ela de forma

contemplativa, mergulhando em seu interior, o público do filme se dirige a ele distraidamente,

por mais que reaja aos choques que o atinge, mediante uma maior atenção, sempre será um

espectador distraído. Assim, a distração está associada à forma de receptividade do cinema:

Concentração, contemplação, absorção pressupõem um único espectador, ou muito poucos que, diante da obra de arte autêntica, dotada de autoridade, perdem o poder de controlar a si mesmos, ou aos outros. O espectador de um filme, em contrapartida, não é mais um só espectador singular. É desde o início um público numeroso, um sujeito coletivo. Para a massa de indivíduos reunida no cinema, concentração ou contemplação da obra de arte estão fora de questão.45

Ainda seguindo os contornos das palavras de Gasché, a fim de persistir em nossa

perseguição às reflexões benjaminianas a respeito do cinema, temos que este público distraído

se dirige ao filme como examinador. Desinteressado por aquilo que a pintura da era aurática

pode lhe proporcionar, no tocante à percepção, não é capaz de julgá-la, ou se omite para tanto,

mas, diante de uma arte pós-aurática, logo se põem a julgar a qualidade de um filme. Assim, a

opinião de um espectador sobre um filme de Eisenstein torna-se tão valiosa quanto a de um

especialista. Segundo Gasché, este público assume o caráter de “crítico distraído”, que por

afastar o filme de qualquer atributo de obra de arte e por estar habituado em amortecer os

choques em que está submetido diante da tela do cinema, foi capaz de se livrar do feitiço da

“aura” e de seu objeto. O espectador anulou, assim, qualquer vestígio de autoridade de ambos

sobre ele, mas, em contrapartida, compreendido como um sujeito coletivo, negou-se ao direito

de um “eu”, de uma identidade; no cinema suas reações são moldadas, condicionadas pelo

coletivo, ao mesmo tempo em que elas se manifestam, são controladas mutuamente. Portanto,

a arte cinematográfica possibilita o aparecimento dessa figura do “crítico distraído”, o

“primeiro cidadão de um mundo sem magia.”46

Ao dirigir suas reflexões às experiências da modernidade, Benjamin descobriu dois

elementos que se integram na constituição desta nova sensibilidade: o momentâneo e o

45 GASCHÉ, Rodolphe. Digressões objetivas: sobre alguns temas kantianos em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” de Benjamin. In: BENJAMIN & OSBORNE, Op. cit., p. 206. 46 GASCHÉ, Op. cit., p. 210.

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fragmentário. Para Charney, a obra de Benjamin permite a interdependência entre o instante e

o fragmento:

Para Benjamin, a irrupção da modernidade surgiu nesse afastamento da experiência concebida como uma acumulação contínua em direção a uma experiência dos choques momentâneos que bombardearam e fragmentaram a experiência subjetiva como granadas de mão. ... Experimentar o choque era experimentar um instante. [...] O choque empurrava o sujeito moderno para o reconhecimento tangível da presença do presente. Na presença imediata do instante, o que podemos fazer — a única coisa que podemos fazer — é senti-lo.47

Desta forma, devido o fato do cinema ser marcado pela fragmentação, ou seja,

corresponder a uma sucessão de instantes, temos que o presente nunca pode se re-apresentar

completamente, o que não equivale dizer que ele não exista no cinema. O presente “em si” é

contínuo, portanto, temos que a descontinuidade sugestiva da justaposição de fragmentos do

cinema só pode “tornar presente, o que está ausente”, ou seja, a continuidade, por meio da

atividade lúdica do espectador. Como bem lembrou Debray, a eficácia da imagem, no nosso

caso a sua sucessão, não deve ser procurada no olho, ou seja, na imagem por si só, mas no

cérebro (consciência) que está por de trás, pois, “o olhar não é a retina”.48 Assim, diante deste

caráter perceptivo do presente que o cinema propicia aos seus espectadores, Charney conclui

que

Acima de tudo foi essa forma da experiência em movimento que ligou a experiência do cinema à experiência da vida diária na modernidade. A experiência do cinema refletiu a experiência epistemológica mais ampla da modernidade. Os sujeitos modernos (re)descobriram seus lugares como divisores entre passado e futuro ao (re)experimentar essa condição como espectadores de cinema .49

A teoria estética de Walter Benjamin, segundo Bolz,50 não se refere a uma teoria das

belas artes, nem mesmo no sentido geral de uma teoria das artes, mas, sim, a uma doutrina da

percepção, assim como os gregos concebiam a estética. Aplicada ao cinema, temos que

Benjamin não se preocupou com o conteúdo dos filmes, mas única e exclusivamente com a 47 CHARNEY, Leo. Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade. In: CHARNEY & SCHWARTZ, Op. cit., p. 394-395. 48 DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Trad. Guilherme Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 111. 49 CHARNEY, Op. cit., p. 405. 50 BOLZ, Norbert W. Onde encontrar a diferença entre uma obra de arte e uma mercadoria? In: Revista USP. Dossiê Walter Benjamin. São Paulo, Universidade de São Paulo, n.15, set.out.nov. de 1992. p. 92.

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sua forma, o que equivale dizer que para o autor a arte cinematográfica sugere uma nova

percepção, uma nova forma do público em lidar com a obra de arte. O filósofo é responsável

por apontar as enormes transformações ocorridas no mundo, como as artes vieram,

paulatinamente, sugerindo e satisfazendo os novos anseios perceptivos do homem. Para

Walter Benjamin, a arte cinematográfica corresponde à própria vida moderna, às sucessivas

reestruturações da percepção humana, motivadas pelo ritmo da modernidade, ditada pelos

avanços tecnológicos e pelo homem mergulhado nas multidões concentradas nas grandes

metrópoles. O homem moderno é um indivíduo que compreendeu que perceber o mundo ao

seu redor significa ter os choques como rotina, experimentá-los, e foi o cinema seu verdadeiro

educador. O espectador cinematográfico aprendeu que a “vivência da modernidade” é um

constante viver em descontinuidade. Segundo Bolz, “para Benjamin, o cinema não é nada

mais nada menos do que a escola de uma forma de percepção do tempo, a saber, uma

percepção do tempo para a qual não há mais continuidade, para a qual não há nenhum valor

no sentido clássico do termo.” 51

O que Walter Benjamin pretendeu demonstrar com sua teoria do choque foi que o

cinema representou o “inconsciente visual” de sua época — para usarmos um conceito de

Debray — ou seja, era a arte dominante dentre as outras, conectada aos avanços científicos foi

capaz de integrar ou modelar as outras artes à sua imagem. Então, “a mais bem sintonizada

com a midiasfera ambiente e, particularmente, com seus meios de transportes. Quando o

automobilista vai ao cinema — não chega a mudar de velocidade.”52

A cultura do choque suscitada na modernidade tem no cinema a forma ideal para

exercitar nas multidões de espectadores a interceptação dos choques. Assim, temos que a

experiência cinematográfica se dá em meio às multidões, que se dirige ao homem moderno.

Na teoria estética de Walter Benjamin “o cinema é a forma de arte correspondente aos perigos

existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo.”53

Retomando a questão de que o historiador deve se dirigir ao cinema em busca de seu

caráter estético, vemos que tudo o que foi discutido até o momento é norteador do caminho

que percorreremos mais adiante. Diante da concepção estética de Walter Benjamin, que

privilegia a forma, o que não se refere a uma particularização nossa a uma teoria formalista do

cinema, nem mesmo do filósofo, pelo contrário, o que nos interessa é compreender como o

51 BOLZ, Op. cit., p.95. 52 DEBRAY, Op. cit., p. 268-269. 53 BENJAMIN (1985), p. 192.

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cinema, um meio em si, se relaciona com os espectadores, quais são os seus mecanismos

perceptivos. Para tal, é necessário que diferenciemos dois conceitos: poética e estética.

É Pareyson que, ao procurar desvendar os problemas da estética, concebe esta

distinção. Segundo o autor a poética está diretamente relacionada com o gosto do artista ou de

uma época, é um programa de arte, ou seja, é o que se resolveu determinar enquanto ideal de

arte, o que se acredita ser arte. Já a estética se refere a um “fazer artístico”, a uma

formatividade, um fazer que é ao mesmo tempo executar, realizar, produzir, mas também

consiste em um criar, inventar, descobrir. Para Pareyson, a arte é “um tal fazer que, enquanto

faz, inventa o por fazer e o modo de fazer [grifo no original]”,54 ou seja, é uma prática em que

a execução e a invenção são simultâneas e inseparáveis.

À estética não cabe estabelecer o que deve ser a arte ou o belo, somente preocupar-se

em dar conta dos elementos que compreendem a experiência estética, o que equivale dizer que

se dirigir a um objeto artístico com reflexão é uma atividade filosófica e, por isso mesmo,

uma reflexão sobre a experiência, conclui o autor. Neste sentido, todas as poéticas (programas

de arte) são igualmente legítimas para a estética. Assim, um estudo estético se esforça ao

máximo para que não faça intervir um gosto, uma tarefa árdua já que o mesmo é histórico e

determinado.

Entretanto, deve-se ressaltar que a formatividade não é uma teoria que privilegia a

forma em detrimento do conteúdo, pelo contrário, para Pareyson, o “fazer artístico” depende

de uma inseparabilidade da forma e do conteúdo, ambas coexistem no processo.

[...] qualquer coisa, em arte, está prenhe de conteúdo, carregada de significado, densa de espiritualidade, embebida de atividades, aspirações, idéias e convicções humanas. Precisamente porque o artista resolveu toda vontade expressiva, significativa e comunicativa no fazer, no gesto formativo, na atividade operativa, precisamente por isso tudo, em arte, até a coisa aparentemente mais irrelevante diz, significa, comunica alguma coisa [grifos no original].55

Portanto, é partindo desta concepção estética que pretendo me dirigir ao cinema de

propaganda do Estado Novo, ou seja, não me interessa saber se os cinejornais satisfaziam ou

não a um ideal de cinema ou de propaganda da época, fato que se comprova afirmativo como

veremos mais adiante, mas como se deu a sua formatividade, a sua experiência perceptiva,

que elementos compõem o “fazer artístico” destes filmes que nos possam oferecer uma 54 PAREYSON, Luigi (1966). Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. 3. ed. (1ª edição 1984). São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 26. 55 Idem, Ibidem, p. 68.

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melhor compreensão de quais proposições estão postas para a sociedade brasileira sob o

regime autoritário de Getúlio Vargas. Entretanto, para isto, ainda é necessário que tratemos de

desmistificar a objetividade que acompanha o filme documentário.

1.2 – Documentário: desmistificando a objetividade do gênero

Como podemos notar, a relação do público com a obra de arte ocorre sob uma linha

tênue entre a realidade e a ficção, em que a ficção sempre se apresenta mais real do que a

própria realidade enquanto que o real muitas vezes é mais ficcional do que aquilo que se

propõe como ficção. De um lado temos uma ficção que somente se efetiva por meio de uma

relação com o observador que se dá pelo “efeito do real” e do outro uma realidade que é

socialmente construída. Assim, temos que a experiência estética somente pode ocorrer sob a

condição da ilusão da realidade. E no cinema isto não é diferente. Tanto o filme de ficção

quanto o filme documentário se apresentam sob a égide do real; porém, se o primeiro autoriza

um efeito de “impressão do real”, o segundo convencionalmente se configurou como a

própria realidade impressa na película, vale por aquilo que (re)apresenta, pela imagem que

menos interferência sofreu no momento do registro, por uma imagem “pura”. O filme

documentário se afirmou, por excelência, como um “filme verídico” em que é realizado

objetivamente com fins científicos, culturais, informativos ou até mesmo didáticos. Foi este

caráter objetivo que levou os historiadores a preferirem em seus estudos este gênero em

detrimento da ficção, procurava-se em suas imagens um correlato da realidade. Entretanto, um

equívoco quando se pensa o cinema enquanto linguagem, um discurso articulado. Se existe

uma singularidade entre os dois gêneros esta é a subjetividade e é somente por meio desta que

a experiência perceptiva (estética) pode se realizar, não esquecendo de que o filme

documentário ainda é um fazer cinematográfico, requer tanto um executar quanto um

inventar.

No entanto, o que percebemos é que há uma forte corrente que conduz o pensamento

do cinema para um filme documentário que se afirme comprometido com o real, com a

verdade, o que torna a desmistificação do gênero um debate promissor. Segundo Penafria,56 o

gênero não nasce com o cinema como se convencionou dizer, ao contrário, o que o

56 PENAFRIA, Manuela. O filme documentário - história, identidade, tecnologia. Lisboa, Portugal: Edições Cosmos, 1999. p. 38.

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cinematógrafo dos irmãos Lumière propiciou foi o surgimento do princípio de toda a não-

ficção (a reportagem televisiva, o filme institucional etc), categoria com a qual, para a autora,

o documentário não deve ser simplesmente identificado. A identidade do gênero desde os

anos 20 veio sendo construída, sendo que teve como único vínculo com os primórdios do

cinema o fascínio pelo registro das imagens em movimento, é o “registro in loco” a raiz

fundadora do documentário.

O americano Robert Flaherty e o russo Dziga Vertov foram os principais responsáveis

por definirem parâmetros para o filme documentário, os seus filmes Nanuk, o Esquimó (1922)

e O Homem da Câmara (1929), respectivamente, são os marcos da história do gênero e um

caminho aberto para afirmar a identidade do documentarismo. Enquanto Flaherty busca

revelar o cotidiano de uma comunidade de esquimós do Norte do Canadá, como pescam,

como se alimentam, como habitam, Vertov opta por dispor na tela as imagens da vida das

pessoas, dos seus gestos espontâneos, dos seus comportamentos e das suas atividades, sem

que percebam que estão sendo filmadas. Ambos os cineastas são impulsionados pelo anseio

de mostrar o mundo como ele realmente é, sem interferências, em que “a câmara deve se

colocar diretamente em contato com o real, não se deve construir mentirinha nenhuma na

frente da câmara a ser filmada”.57 Para Vertov, era fundamental para o cinema que se

recusasse o ator, o cenário, a iluminação, qualquer vestígio de ficção, a experiência

cinematográfica deveria se limitar à câmera, o olho “mais objetivo” que o próprio olho

humano. Idéias que foram teorizadas no manifesto dos Kinoks, movimento fundado em 1919

pelo cineasta russo, que defendia veementemente o que veio ser denominado de “cine-olho”.

Neste manifesto Vertov fez críticas severas ao cinema psicológico que se fazia até então na

Rússia e na Alemanha, como também aos filmes de aventura e romances norte-americanos,

negando assim todo o presente da própria arte cinematográfica; o futuro do cinema estava em

sua capacidade objetiva; funda-se, assim, um cinema em que “o olho mecânico, a câmera,

[...], tateia no caos dos acontecimentos visuais, deixando-se atrair ou repelir pelos

movimentos, buscando o caminho de seu próprio movimento ou de sua própria oscilação.”58

Entretanto, a concepção de “cine-olho” escapa à tarefa de copiar o trabalho do olho

humano, nega qualquer vestígio de um naturalismo cinematográfico, a objetiva vai além de

nossa capacidade visual, mergulha na multidão como aquela que procura o novo, um tesouro

a ser descoberto, um enigma social a ser desvendado, os detalhes que mais tarde irão compor 57 VERTOV, Dziga. apud BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 52. 58 Idem. Variação do manifesto; Resolução do Conselho dos Três em 10-04-1923; Nascimento do cine-olho; Extrato do ABC dos Kinoks. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 257.

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uma imagem da multidão. O que nos interessa em Vertov não é a câmera como a extensão do

olho humano que nos oferece o que habitualmente não podemos ver, mas o fato de que é a

câmera que “dirige” o olhar do espectador, determina o que e como a realidade deve ser vista,

fato que o princípio de montagem ainda persiste como determinante, o cineasta é um

“construtor”. Segundo Vertov, “todo filme do ‘Cine-Olho’ [...] é montagem durante todo o

processo de sua fabricação”.59 Assim, esta concepção cinematográfica se refere a uma

montagem do “eu vejo”, uma tentativa que compreendia todos os elementos do cinema para

um único fim, descobrir e mostrar a verdade. O “cine-olho” era a instrumentalização

necessária para um fim maior, o “cine-verdade”, tudo deveria caminhar na direção de mostrar

as pessoas como realmente são, sem máscaras, sem maquilagem, registrar seus gestos, ações,

atividades quando não estão representando, negava-se por completo qualquer resquício de

encenação, de ficcionalidade. Para Vertov, o cinema deveria estar comprometido com a

“possibilidade de tornar visível o invisível, de iluminar a escuridão, de desmascarar o que está

mascarado, de transformar o que é encenado em não encenado, de fazer da mentira a

verdade.”60

Novamente nos vemos diante da dualidade do cinema: que verdade é esta que deve ser

construída? Manipulação? Não acredito que precisemos ir por este caminho da manipulação,

o que não quer dizer que desmerecemos os efeitos psicológicos do cinema, mas a própria

desmistificação da objetividade do filme documentário, tendo na montagem um elemento

esclarecedor, pode nos auxiliar a trafegar por esta dicotomia sem submeter nossas análises

fílmicas a uma pré-concepção que privilegia um gênero a outro. Afirmar que o documentário

serve melhor às investigações científicas devido sua suposta objetividade é o mesmo que se

dirigir ao filme com uma postura poética, o historiador no momento se coloca em um

programa de arte, não consegue romper com a condição de espectador, ele permite que o

filme lhe autorize um “efeito de verdade”.

Segundo Penafria, uma vertente do documentarismo distingue os dois gêneros da

seguinte maneira: o documentário oferece o acesso “ao mundo” (a realidade) enquanto que a

ficção “a um mundo” (imaginário).61 Porém, esta diferença não nos parece ser tão fácil de ser

resolvida. O documentário também não nos proporciona conhecer um mundo construído?

Neste caso, a definição do documentário é dada pela sua relação com o “mundo histórico”,

compreendido aqui como aquilo que não imaginamos, o real “em si”, o solo firme que

59 VERTOV, Op. cit., p. 263. 60 Idem, Ibidem, p. 262. 61 PENAFRIA, Op. cit., p. 25.

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pisamos. Assim, temos que a discussão está posta sob o domínio do imaginário. Enquanto que

o filme de ficção não passa de um enredo sobre um mundo imaginário, o filme documentário

é a história sobre o mundo real, é um argumento. Aqui somente a ficção é compreendida

como resultado do imaginário do diretor. A partir deste ponto nos surge uma indagação: não

seria o argumento permeado por uma subjetividade do cineasta? Mais adiante Penafria nos dá

indícios de uma resposta: “a característica do documentário é apresentar-nos um argumento

sobre o mundo histórico ou, dito de outro modo, é uma representação no sentido em que

coloca perante nós uma evidência de onde constrói um determinado ponto de vista [grifo

nosso]”.62 Se assim é definido o caráter deste gênero cinematográfico, é possível pensarmos

que por mais que o documentarista mostre imagens de um mundo que transcenda a película, o

que configura uma credulidade às imagens, estas não deixam de ser representações, a natureza

“em si” captada pela câmera nunca será a mesma, o real foi apropriado, deixou de ser

imaculado. A câmera retira a realidade de sua redoma e a montagem a oferece sob um véu: a

condição de que estamos diante da verdade. Este é o pacto do espectador com a obra de arte.

Assim, o ponto de vista no filme documentário é a marca da subjetividade ou do imaginário

do cineasta.

A autora vê legítima a intersecção entre os dois gêneros, em que os elementos da não-

ficção auxiliam a tornar mais verossímeis os filmes de ficção enquanto que os elementos da

ficção em documentários contribuem para uma renovação e uma atualização do gênero.

Entretanto, esta questão não se resume a uma mera evolução técnica, pelo contrário, devemos

compreender que a objetividade e a subjetividade são coincidentes na sistemática do fazer

cinematográfico, não se anulam e nem descaracterizam a identidade de uma ou outra. O

simples gesto do posicionamento da câmera diante do fato, para não dizermos do impulso da

escolha do tema do filme, já caracteriza uma certa intencionalidade do documentarista em

dizer algo. Isto não desmerece o gênero, pelo contrário, nos demonstra que ele se aproxima da

ficção muito mais do que imaginamos, pois, antes de tudo, o cinema é arte. O cineasta já se

dirige à obra com a necessidade de exteriorizar, de tornar um ideal em matéria sensível, ou

seja, “a operação artística é, de fato, antes de tudo, construção de um objeto e formação de

uma matéria, e é arte quando tal produção é, ela própria [grifos no original], expressão.” 63

O entendimento de que o filme é, antes de tudo, a formação de uma sensibilidade, e

que, por isso, somente se dirige ao espectador pela percepção, nos auxilia a ampliar os olhares

sobre o documentário, que deixa de se apresentar como o reservatório dos vestígios do real,

62 PENAFRIA, Op. cit., p. 26. 63 PAREYSON, Op. cit., p. 65.

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para se caracterizar como uma interpretação de uma realidade. O documentarismo como

prática cinematográfica também nos dá acesso a “um mundo” que, por mais que tenha

referência direta ao “mundo histórico”, não deixa de ser uma visão do diretor a respeito deste

mesmo “mundo”. Porém, assim como a ficção, o filme documentário não deve ser reduzido à

mera falsidade, inverdade, mas posto no sentido de uma construção, de um fazer artístico que

é, concomitantemente, um executar e um inventar, que equivale dizer que compreende uma

objetividade e uma subjetividade intrínsecas ao processo.

O fato de que ainda ocorre uma certa aceitação da linguagem documental como

registro dos fatos, como índice primário do processo histórico, por parte dos historiadores,

enquanto que a ficção encontra obstáculos para determinar-se como documento, é a evidência

de que ainda nos dirigimos ao filme como se ele fosse uma fonte qualquer, que não fosse

necessário conhecer os elementos que compõem sua linguagem. Buscar uma realidade “pura”

nos documentários é uma atividade em vão, o que desfila diante de nossos olhos também é um

novo mundo, pois, a realidade que o cinema oferece à nossa percepção é descontínua,

fragmentada, diferente do real que se apresenta contínuo. Portanto, o filme documentário

também é uma ficção, ou melhor, como afirmou Lebel, “a ficção é a realidade específica do

cinema.”64

Para Lebel, que concebe a “impressão do real” como um falso problema, é

fundamental que o caráter mistificador dos signos que compõem o filme seja denunciado, que

se tenha a compreensão de que a realidade, uma vez projetada na tela dirigida à experiência

perceptiva da multidão de espectadores que se sentem acolhidos pelo “ventre materno” da sala

escura, não passa de uma correspondência com o real, ao invés de uma equivalência.65 Assim,

seguindo as reflexões do autor, podemos dizer que a realidade que o filme documentário nos

apresenta é um signo importado do real, ou seja, uma imagem de um real socializado, mas que

somente irá adquirir seu valor ideológico e significante ao ser combinado com outros signos

deste mesmo real. O que equivale dizer que o fato de nos dirigirmos ao documento fílmico

não corresponde a uma busca do real “em si”, mas como ele foi apropriado e oferecido como

uma realidade socialmente construída, ou como Lebel ressaltou:

Não se trata de julgar a maneira como um filme se refere ao real induzido por ele, visto que, de facto [sic], o filme não induz nenhuma realidade. O que interessa não é que um filme seja a imagem de

64 LEBEL, Jean-Patrick (1971). Cinema e Ideologia. Trad. Jorge Nascimento. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa, 1975. p. 21. 65 Idem, Ibidem, p. 100.

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qualquer coisa (que exista realmente), mas que seja simplesmente uma imagem. O que está em discussão, não é esta realidade da qual o filme não é senão a imagem, visto que esta realidade não existe, ou melhor visto que só existe no universo de ficção do filme, ou seja esta realidade não é literalmente outra coisa senão imaginária [grifo no original].66

Segundo Aumont, o documentário não escapa totalmente da ficção, tendo em vista que

qualquer objeto já é um signo de outra coisa e, portanto, já está preso em um imaginário

social. Além de que o espectador permanece o mesmo: ele suspende qualquer atividade

quando diante da tela e, portanto, está sujeito ao mesmo fascínio da imagem em movimento,

também integra o espetáculo, o que equivale dizer que o filme documentário também se

inscreve como a “porta aberta” para os devaneios do espectador. Entretanto, se existe um

ponto que mais nos interessa, quando se trata de discutir a objetividade deste gênero

cinematográfico, é o fato de que no documentário, assim como no filme de ficção, também há

uma preocupação estética em que “tende sempre a transformar o objeto bruto [o real] em

objeto de contemplação [o filme], em ‘visão’ que o aproxima mais do imaginário”.67. Por

objeto de contemplação não está compreendido apenas o filme que se dirige ao espectador,

mas o papel intervencionista do cineasta nesta contemplação, neste exercício prazeroso de

consumo da imagem. Assim, por mais que o documentário esteja preso à tarefa de mostrar o

mundo como ele é, ele também participa da criação e do prazer da invenção, é capaz de

proporcionar uma experiência estética que, ao mesmo tempo, se dirige tanto ao espectador

quanto ao realizador do filme, ou seja, a feitura fílmica está imbuída de um prazer de dizer

algo, por mais “realista” que se proponha o filme. Pode o documentarista se propor a mostrar

o mundo, porém, ele não escapa de revelar um mundo, pois “por qualquer ângulo que seja

considerado, o prazer da imagem é sempre, em última instância, o prazer de ter acrescentado

um objeto aos objetos do mundo.”68

Ainda a respeito da experiência estética que o filme documentário autoriza, Sorlin

amplia a discussão e procura romper definitivamente com a suposta objetividade do gênero ao

afirmar que:

a imagem “bruta” captada por uma câmera disparada ao azar já é uma imagem construída, um conjunto espacial organizado em planos

66 LEBEL, Op. cit., p. 97. 67 AUMONT (1995), Op. cit., p. 101. 68 Idem. A imagem. Trad. Estela dos Santos Abreu e Cláudio César Santoro. Campinas, SP: Papirus, 2002. p. 313.

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sucessivos que se ordenam relativo ao olhar do espectador. O que vemos no cinema, e que nos parece natural porque quase não conhecemos nada mais, depende de uma técnica, ordenada ela mesma por uma concepção do papel atribuído ao público no espetáculo [tradução nossa].69

Não se trata aqui de um esforço em transformar o documentário em ficção, é óbvio

que estes gêneros já se encontram culturalmente determinados, e não cabe a nós propormos

definições, mas compreender que a dualidade desta relação sonho/realidade ainda é uma

questão em aberto e que dificilmente será resolvida. E, provavelmente, qualquer tentativa

nesta direção tenderá a beneficiar um gênero em detrimento do outro, como se o cinema se

resumisse ora à reprodução do real ora à falsidade deste mesmo real, ora a uma excêntrica

objetividade ora a uma imitadora subjetividade.

Segundo Acioli, a união dos gêneros é algo saudável para o próprio cinema, em que o

filme documentário não deve se limitar a registrar a realidade, mas, ao fazer uso da ficção, é

capaz de ampliar-se na interpretação dessa realidade. Para o autor o processo de filmagem

pode ao mesmo tempo apenas registrar quanto influenciar, alterar o instante captado, a ponto

de não significar mais uma representação direta do real:

Se filma, por exemplo, um jogo no Maracanã ou uma passeata de protesto, a perturbação causada pela equipe é desprezível e o filme poderá retratar fielmente o evento, no seu aspecto global. Mas dentro desse evento maior poderão existir outros menores, onde a perturbação causada pela filmagem poderá ser acentuada. Se o diretor procura captar as reações psicológicas ou a privacidade dos indivíduos como, por exemplo, a certeza ou incerteza do movimento, o medo de ser preso ou morto, dúvida sobre o futuro de sua família etc., a perturbação será bastante grande e o simples registro fotográfico não refletirá a realidade.70

A preocupação de Acioli se refere ao elemento psicológico que também acompanha o

filme documentário. Dirigir a objetiva a uma multidão na intenção de registrar a mera

aglutinação de pessoas, o coletivo, é uma tarefa que o documentarista exerce com uma certa

tranqüilidade, mas quando esta objetiva penetra na multidão em busca de revelar seu interior

nos rostos, nos gestos e nos olhares do indivíduo, ou seja, romper com a própria condição que

leva à formação das multidões — a câmera mergulha na intimidade do indivíduo, na sua

69 SORLIN, Pierre (1977). Sociologia del cine: la apertura para la historia de mañana. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992. p. 118. 70 ACIOLI, José de Lima. O princípio da incerteza e o realismo do documentário cinematográfico. Revista de Humanidades. Brasília, n.40, 1995. p. 43.

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individualidade antes consumida por fazer parte de algo único e homogêneo — não é

incomum que a pessoa seja sugestionada a reagir de forma inusitada diante da câmera, pois

interferem em seu ritmo, o que propicia um registro encenado pelo personagem, sobre o qual

o próprio cineasta muitas vezes não tem controle. Assim, para Acioli, há certas situações em

que parece que a realidade nunca será fielmente retratada pelo documentário, já que nestes

casos, está lidando com a subjetividade do personagem, tendo que mergulhar no seu interior.

Para tanto, a introdução dos elementos de ficção no filme documentário seria uma saída

encontrada pelo autor para que fosse “possível voltar-se para dentro do personagem, explorar

suas intimidades, apresentar os conflitos pessoais e sociais.”71

Foi pensando o papel social do gênero que surgiu nos anos 30 a escola britânica de

documentarismo, tendo como figura mais emblemática o escocês John Grierson. Segundo

Penafria72, é a partir de Grierson e sua escola que o filme documentário ganha autonomia e

assume uma identidade própria. Identidade esta que é sustentada sob três pilares: o registro in

loco — herança de Flaherty —, o ponto de vista e a criatividade. Primeiramente, o material

que constitui o documentário somente poderia derivar do registro in loco, porém, não equivale

dizer que ficaria restrito a uma “reprodução do real”, pelo contrário, o documentarismo

britânico reivindica para si a intervenção do cineasta no material fílmico. Intervenção que

para Grierson é, ao mesmo tempo, uma revelação e uma interpretação da realidade; é o

documentarista que diante do real exerce o seu ponto de vista, escolhe e seleciona os

fragmentos que melhor irão compor, juntos, a representação do real. Por outro lado, esta

representação consiste em um “tratamento criativo da realidade”, o que legitima o caráter

autoral do filme documentário. Aqui cineasta e obra avançam em direção ao universo da arte.

Assim, o documentarismo britânico autoriza um “fazer artístico” comprometido com o social

que, antes de mais nada, deve refletir os problemas e as realidades do mundo presente. O

documentário é uma prática cinematográfica que não se reduz ao mero registro do real, exige

do cineasta que o material recolhido seja analisado, interpretado, ou seja, que abandone o seu

estado bruto para que, conseqüentemente, seja oferecido como objeto de contemplação.

Então, a partir das concepções cinematográficas de Grierson, ficou definido que

[...] para chamarmos documentário a um determinado filme, não basta que o mesmo mostre apenas o que os irmãos Lumière nos mostraram: que o mundo pode chegar até nós pelo olhar da câmara. É absolutamente necessário que o autor das imagens exerça o seu ponto

71 ACIOLI, Op. cit., p. 44. 72 PENAFRIA, Op. cit., p. 45.

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de vista sobre essas imagens. É necessário o confronto de um outro olhar: o olhar do documentarista que se constitui como ponto de vista sobre determinado assunto. É, também, necessário que o resultado final - o documentário - seja o confronto entre os dois olhares: o da câmara e o do documentarista. Para além disso, o documentário deve pautar-se pela criatividade quanto à forma como as suas imagens, sons, legendas ou quaisquer outros elementos estão organizados.73

Como vimos, as marcas da ficcionalidade estão presentes no documentário, fato que

constantemente é negado em nome de um cientificismo atribuído ao gênero, mas que se

apresenta como uma armadilha ao historiador. Transformar o caráter objetivo do filme

documentário em um respaldo que possa identificá-lo a um documento, em que o investigador

consiga manter uma certa distância do objeto para que possa observar, é um engano já que ele

não permanece inerte. O que se despreza aqui é a compreensão de que o documentário, mesmo

submetido à observação, ainda se dirige àquele que o aborda, ou seja, transfere a investigação

ao domínio da experiência cinematográfica, em que o historiador é levado a participar do

filme, onde seus desejos, anseios tendem a configurar o que deveria o filme dizer, ao invés do

que ele realmente autoriza que seja dito. Recordamos que a participação do espectador no

cinema é um misto de afetividade e percepção. Desta forma, enaltecida a objetividade do filme

documentário, a análise não ultrapassa as fronteiras da “verdade”, já que se reafirma a crença

de que as imagens que se apresentam diante dos olhos do historiador são reproduções fiéis do

real. Os elementos diegéticos74 que compõem o filme documentário contribuem para que se

faça o jogo do “efeito de verdade” e, por isso, se faz necessário que continuemos

desmistificando a objetividade deste gênero. A investigação não deve sucumbir ao espetáculo

cinematográfico, não que seja algo temeroso, mas que o historiador seja capaz , assim como na

ficção, de romper com o efeito ilusionista do real, pois, tomar as imagens como “a realidade”,

ao invés de “uma realidade”, um mundo construído, é o prenúncio de que não fomos capazes

de superar a condição de espectador, em que diante de nós temos sempre a impressão de que

os eventos que ocorrem na tela são verídicos, fato que é reforçado no filme documentário

devido a que ele se pauta pelos fragmentos recolhidos no local dos acontecimentos, como se

fossem vestígios de um tempo passado, do qual temos ou não saudades. As imagens

preenchem os nossos vazios. 73 PENAFRIA, Op. cit., p. 55. 74 Diegese: “A palavra provém do grego diegesis, significando narração e designava particularmente uma das partes obrigatórias do discurso judiciário, a exposição dos fatos. Tratando-se do cinema, o termo foi revalorizado por Étienne Souriau; designa a instância representada do filme — a que um Mikel Dufrenne oporia à instância expressa, propriamente estética — isto é, em suma, o conjunto da denotação fílmica: o enredo em si, mas também, o tempo e o espaço implicados e outros elementos narrativos, desde que tomamos no seu estado denotado” (METZ, Op. cit., p. 118).

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O que propomos aqui é que não é preciso negar a subjetividade do cinema para que se

possa introduzi-lo como uma fonte para os estudos científicos, pelo contrário, é este o

elemento do filme que mais nos interessa, na verdade, aquele que nos impulsiona dia-a-dia a

descobrir novos métodos de lidar com o meio. Antes de mais nada, devemos lembrar que é o

nosso fascínio pela arte cinematográfica ou, porque não dizer, pela capacidade dela ressuscitar

a vida que antes se encontrava congelada na fotografia, que nos faz enveredar por este

percurso tortuoso e movediço da relação ficção e realidade. Por isto, pensamos o cinema

como um objeto artístico, tendo que a compreensão de sua linguagem é imprescindível para

que não se cometa o reducionismo que acompanha o campo da relação cinema-história desde

o seu primórdio, ou seja, dirigir-se ao filme em busca da veracidade das fontes, para

determinar o que é verdade ou não no documento fílmico.

Então, a desmistificação trata de retirar em um processo cuidadoso o véu que cobre o

cinema e revelar as suas implicações enquanto discurso. Como o filme de ficção, o

documentário não é uma mera “reprodução do real”, mas a sua representação, recortes que

serão montados para compor uma idéia fílmica, no final, um simulacro. Entretanto, não uma

simulação revestida de um sentido de falsificação do real, mas uma mostra do que se

determina que seja o real. Os filmes nada mais são que proposições sobre uma sociedade.

Assim, como sugere Rossini, “aceitar que a ilusão está presente no documentário é também

aceitar que o filme de ficção, seja ele de reconstituição histórica ou não, também tem seu

caráter de documentário de uma época”.75 A desmistificação que proponho não deve ser

compreendida, em nenhum momento, como a negação do caráter artístico, ao contrário, é o

desvendamento do fascínio cinematográfico, como a obra foi construída, qual a forma

encontrada pelo cineasta para transmitir aos espectadores uma idéia a respeito de uma

temática, seja ela histórica ou não. Trata-se de apresentar qual a “construção fílmica” que nos

é oferecida a respeito da história, ou melhor, como esta história é reelaborada em um outro

suporte, que não é mais o livro, em um outro discurso, que não é mais o histórico.

Assim, o conteúdo do documentário, como o da ficção, deve ser sempre questionado

ao invés de ser considerado, a priori, a realidade impressa na película, como destaca Bernadet

e Ramos:

Diante dessa, aparentemente, perfeita reconstituição da realidade, todas as precauções metodológicas devem ser utilizadas, ainda mais

75 ROSSINI, Miriam de Souza. As marcas do passado: o filme histórico como efeito de real. Tese (Doutorado). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. p. 99.

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que os documentários e cinejornais são comumente associados à atividade histórica. Acredita-se que eles tragam consigo um alto grau de credibilidade, ou melhor, que eles se apresentem como perfeitas reconstituições da realidade.76

Segundo Vanoye e Goliot-Lété 77, ao nos dirigirmos ao filme documentário devemos

estar constantemente atentos para duas armadilhas que ele nos oferece. É comum que se

confunda forma e função do cinema, em que certas características formais do documentário,

que muitas vezes o distingue da ficção, como montagem mais entrecortada, enquadramentos

aproximativos, tomadas frontais, olhares para a câmera, incidentes visuais e sonoros etc. —

derivadas das condições da filmagem direta — são percebidas como indícios de que o gênero

exerce a função de testemunha do real. No entanto, para os autores, é importante que

atentemos para a condição de que estas mesmas características formais do cinema podem ser

fabricadas para obter um “efeito de real”, assim como podem ser colocadas a serviço de um

cinema de ficção. Uma outra armadilha consta de “ler” em um filme toda a sociedade e a

história do tempo (presente, passado e futuro), que para Vanoye e Goliot-Lété não passa de

refletir mais a intenção do analista do que a da obra ou do autor, que aqui assume muito mais

a condição de cinéfilo. Neste caso, o filme diz mais do que realmente é dito. Projetar no filme

o que desejamos que ele seja é o mesmo que nos deixarmos conduzir pela magia do cinema,

permanecer na condição de espectadores. Dirigir-se a um filme, seja documentário ou ficção,

é mergulhar nas profundezas de um olhar, que se efetiva concomitantemente como percepção

coletiva dos realizadores e da platéia da sala de exibição, o que equivale dizer que não há um

filme verdadeiro ou falso, já que, segundo Debray,78 “não há percepção sem interpretação.”

Portanto, não pretendo aqui restringir o filme documentário ao campo da

ficcionalidade, como se negássemos sua maior aproximação com o real, com a existência das

coisas, já que o fato de ser um discurso, um enunciado, não lhe tira esta característica formal

de seu “fazer artístico”. Concordo que este gênero possa servir às diversas áreas de

investigação, entretanto, não compartilho de que “do ponto de vista da defesa da possibilidade

de conhecimento através do documentário, deve-se assumir uma postura realista”,79 como

defendeu Godoy. Ao contrário, proponho que o cinema documental seja compreendido como

76 BERNADET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. p. 37. 77 VANOYE, Francis. GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Trad. Marina Appenzeller. 2. ed. (1ª edição 1994). Campinas, SP: Papirus, 2002. p. 58-59. 78 DEBRAY, Op. cit., p. 60. 79 GODOY, Hélio. Documentário, realidade e semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento. São Paulo: Annablume, 2001. p. 74.

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um misto de objetividade e subjetividade, em que não ocorra o detrimento de uma ou de outra

em função de aproximá-lo de um cientificismo ou de lhe negar qualquer relação com o real.

Para Godoy, os avanços tecnológicos do cinema na década de 60, com o surgimento

de equipamentos portáteis de som síncrono, auxiliaram na prática do documentário, como

também possibilitou uma maior veracidade aos registros dos eventos. Diante deste

aperfeiçoamento dos métodos do gênero e de um certo comprometimento ético por parte de

seus realizadores vislumbra-se, assim, sua aproximação do fazer investigativo e, portanto, da

ciência. No entanto, nosso trabalho não trilha este caminho. Longe de tomá-lo como fonte de

conhecimento, o filme documentário nos surge como um “fazer artístico”, portanto, imbuído

de uma subjetividade que deve ser compreendida, ao invés de descartada, meramente, de todo

o processo cinematográfico. Processo que também corresponde ao papel que o espectador

exerce diante do material fílmico, em que seu primeiro impulso ao ir às salas de exibição,

como dito anteriormente, é o entretenimento. Isto não equivale dizer que o cinema não possa

exercer outras funções sociais, porém, nos possibilita compreender que esta é uma condição

mais favorável à eficácia do “efeito de verdade”, em que os espectadores suspendem suas

vigílias e se projetam na tela.

Desta forma, por mais que o filme documentário possa ser visto como um adequado

instrumento às investigações científicas por se aproximar do real de forma reveladora, ainda

prefiro ser receoso até mesmo quando penso no filme etnográfico como a utilização mais

científica e investigativa do gênero hoje em dia, assim proposto pelo autor. Neste tipo de

documentário também encontramos presentes as marcas da construção, as imagens recolhidas

diretamente (objetivamente) em uma tribo indígena ainda deverão ser montadas para somente

depois ser oferecidas à contemplação do espectador, o que não desvalida seu caráter

científico, ao contrário, são imagens que retratam o cotidiano, os costumes de um povo e que

auxiliam de fato ciências, como por exemplo, a antropologia a desvendar e compreender parte

desta cultura, porém, não deixam de ser imagens de uma realidade socialmente construída,

que os espectadores somente podem conhecer por meio da fantasmagoria80 do cinema.

O fato de considerar o documentário mais próximo dos cientistas do que dos

jornalistas, atribuindo-lhe um maior comprometimento com o conhecimento, com a verdade,

como faz Godoy, é o mesmo que retirar do cinema qualquer vestígio que o aproxime de uma

atividade artística, em que exprimir e fazer, dizer e produzir são as mesmas coisas. O que

propõe o autor é que, definitivamente, “os sistemas audiovisuais já não podem ser

80 Fantasmagoria não deve ser compreendida aqui no sentido de uma falsa aparência, mas como a arte de fazer aparecer, de fazer ver figuras luminosas na escuridão. Processo que se dirige ao imaginário.

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considerados, como eram anteriormente, apenas como máquinas de enunciação; elas são, por

excelência metodológica, máquinas heurísticas também.”81

Entretanto, por mais que o documentário siga esta tendência de ser uma prática

investigativa, ficando confinado ao academicismo, ainda prefiro acreditar na capacidade

discursiva do cinema, que o coloca na condição de obra de arte e nos conduz à compreensão

do fazer cinematográfico, onde a montagem é tida como o reduto da subjetividade, sendo que

O salto estabelecido pelo corte de uma imagem e sua substituição brusca por outra imagem, é o momento em que se pode ser posta em xeque a “semelhança” da representação frente ao mundo visível e, mais decisivamente ainda, é o momento de colapso da “objetividade” contida na idexalidade da imagem. Cada imagem em particular foi impressa na película, como conseqüência de um processo físico “objetivo”, mas a justaposição de duas imagens é fruto de uma intervenção inegavelmente humana e, em princípio, não indica nada senão o ato de manipulação.82

Motivado pelo princípio de montagem, que aqui está longe de assumir um caráter de

manipulação ou transparência, mas configurando-se como a estruturação orgânica dos

elementos fílmicos, ou seja, como a peça elementar de toda a “construção fílmica”, não

acredito que seja incorreto considerarmos o filme documentário como uma possível

interpretação de um determinado fato histórico, um discurso que nos é oferecido sobre a

história, já que a própria história não é uma ciência estática e concluída. Aqui o documentário

tem a sua objetividade desmistificada ao compreendê-lo como “um filme que se assume como

uma leitura sobre este ou aquele tema do mundo, que nos faz pensar sobre o mesmo, em

suma, que é, apenas, uma de entre muitas leituras possíveis.”83

81 GODOY, Op. cit., p. 289. 82 XAVIER (1977), Op. cit., p. 17. 83 PENAFRIA, Op. cit., p. 71.

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CAPÍTULO II

ESTADO, CINEMA E PROPAGANDA

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“Originalmente lançada para explodir cerca de quinhentos metros de altitude, a primeira bomba provocou efetivamente um clarão, um flash nuclear de 1/ 15 000 000 de segundo, clarão do qual a luz se infiltrou em todos os locais, nas residências e até nos porões, deixando sua impressão nas pedras — que tinham sua coloração alterada pela fusão de certos elementos minerais —, mas curiosamente deixando intactas as superfícies protegidas. O mesmo ocorreu com as roupas e os corpos, pois o desenho dos quimonos tatuou a pele das vítimas... Se, segundo seu inventor, Nicéphore Niepce, a fotografia era nada mais do que um método de gravura através da luz, ‘fotogravura’ em que os próprios corpos inscreviam seus traços por efeito da própria luminosidade, a arma nuclear é herdeira da câmara escura de Niepece e Daguerre e da câmara escura do holofote militar. Não é mais uma silhueta que surge ao fundo das câmaras escuras, mas uma sombra, uma sombra que por vezes alcança os porões de Hiroshima. As sombras japonesas não mais se inscrevem, como antes, nas paredes de um ‘teatro de sombras’, mas sobre a tela, as paredes da cidade.”

Paul Virilio

O clima na Alemanha de 1917 já mostrava os sinais de cansaço de um conflito

mundial que ainda duraria um ano. As baixas no front não eram apenas físicas, os tiros

partiam de novas armas, os soldados abandonavam o campo de batalha moralmente e

psicologicamente abatidos. A guerra mergulhava no universo da imagem e do imaginário. É

verdade que desde as batalhas medievais as imagens já exerciam um certo fascínio, os brasões

e as cores dos reinos vinham estampados nas bandeiras, nas armaduras, mas somente a partir

dos conflitos que assolaram o século XX é que a imagem, ou melhor, a tecnologia aplicada a

essa imagem, definitivamente imperou como o principal mecanismo capaz de dar um novo

sentido à guerra: o espetáculo;84 a objetiva invade o front para em tempo real mediatizar a

morte, torná-la passível de ser tolerada.

Longe de imaginar o dia em que um conflito fosse televisionado em rede mundial, o

Chefe do Estado-Maior alemão, general Erich Ludendorff, em carta em 4 de julho de 1917 ao

Ministério de Guerra do Império em Berlim, segundo Furhammar e Isaksson, já alertava para

a força da imagem, na tentativa de constituir na Alemanha um departamento de propaganda:

84 VIRILIO, Paul (1984). Guerra e cinema. São Paulo: Scritta Editorial, 1993. p. 12.

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A guerra demonstrou a superioridade da fotografia e do cinema como meios de informação e persuasão. Infelizmente nossos inimigos têm usado sua vantagem sobre nós nesse campo de modo tão exaustivo que nos infligiram grandes estragos. Os filmes não perderão sua importância durante o resto dessa guerra como meio de convencimento político e militar. Por esta razão é da maior importância, para a conclusão vitoriosa da guerra, que os filmes sejam feitos para funcionar de modo mais efetivo possível em qualquer parte onde um trabalho alemão de persuasão possa ainda ter algum efeito.85

Este esforço de Ludendorff foi em vão, poucos foram os resultados obtidos no campo

da propaganda política pelos alemães durante a Primeira Guerra Mundial, tendo sido criado

inicialmente o Departamento de Fotografia e Cinema (Bild und Film Amt), para mais tarde,

apenas meses antes do término do conflito, surgir uma mega empresa cinematográfica a Ufa

(Universum Film Aktiengesellschaft), financiada pelo capital do Ministério de Guerra. A Ufa

serviria a uma outra batalha.

A Primeira Guerra Mundial foi o cenário dos primeiros filmes de guerra, primitivos

em alguns julgamentos, mas representantes de um artifício que depois de 1917, com a

experiência soviética, se tornou comum aos Estados-Nações, o domínio de seus próprios

meios de comunicação a fim de assegurar a ordem e legitimar o regime. Diferentemente dos

ingleses e franceses, os alemães desde o início do conflito autorizaram que a câmera invadisse

o campo de batalha, registrando imagens que iriam compor seus filmes documentários (ou de

atualidades), recebidos pelos espectadores como reportagens objetivas capazes de aproximá-

los, por meio de “cenas verídicas”, do clima da guerra. As autoridades militares anglo-

francesas receosas de que as imagens, ao revelarem a verdadeira face da guerra, pudessem

causar um efeito desmoralizante no “front interno”, na mobilização interna desses países,

mantiveram afastados seus fotógrafos e cinegrafistas, o que levou os cinemas a se

contentarem com a exibição de material de arquivo. Somente após um ano e meio de conflito,

tendo notado o sucesso dos filmes de atualidades alemães, é que a Inglaterra e a França

finalmente romperam com suas restrições.

Já os EUA, que se mantiveram afastados do conflito até 1917, procuraram adotar em

seus filmes uma postura de neutralidade e pacifismo que durou apenas até meados de 1915

quando sua indústria cinematográfica já sinalizava um desejo de que os norte-americanos

participassem da guerra. Assim, em contrapartida ao apelo tardio dos alemães e outros países

à instituição de um departamento de propaganda, os EUA davam os primeiros passos nesse

85 FURHAMMAR, Leif. ISAKSSON, Folke (1968 e 1971). Cinema e política. Trad. Júlio César Montenegro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 12-13.

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sentido, compreendendo a importância de manter estável a relação entre militares e indústria

cinematográfica, principalmente em um país que já tinha um modelo de cinema industrial

constituído. Então, foi criado o Comitê de Informação Pública (CPI), órgão que era

responsável por motivar a indústria cinematográfica norte-americana na feitura de filmes com

conteúdos patrióticos.

Desde então, os EUA já incorporaram o cinema a sua política, dando sinais de que as

próximas batalhas se dariam mais nos fronts psicológico e ideológico, por isso a necessidade

de se armarem. Entretanto, no tocante à apropriação do cinema pelo Estado, a Primeira Guerra

Mundial foi apenas a ponta de um iceberg que ainda mostraria sua magnitude durante a

Segunda Guerra Mundial, quando mergulhado em um cenário regido por uma racionalidade

tecnológica, mecanismo de coesão e dominação social, o homem definitivamente se

incorporara às multidões (de operários, de passantes, de espectadores) servindo à sociedade

industrial como objeto de opressão; neste sentido, tornaram-se dominantes aquelas linguagens

que se dirigiam às multidões. Os Estados-Nações perceberam que “a tecnologia serve para

instituir formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de controle social e coesão social”,86

ou melhor dizendo, os regimes que surgiram na primeira metade do século XX descobriram

na nova experiência perceptiva inaugurada pelo cinema um instrumento adequado para

exercerem, pelo menos na tela, suas “disposições totalitárias”.87

Algumas imagens foram incorporadas à política desses regimes reacionários com a

finalidade de servirem como mecanismos legitimadores, uma vez que sua percepção não

exigia muito esforço, sendo compreendidas com facilidade pelos diversos níveis sociais, ou

seja, era útil para uma “política de consenso”.88 Imagens como “Trabalho”, “Família”,

“Pátria”, “Novo”, “Ordem” entre outras foram difundidas no imaginário desta época,

buscando suscitar na sociedade o que ela tem de mais fantasmagórico: a idéia do “Todo”. Se

os elementos para a efetivação do modelo totalitário estão postos em nossa cultura e a

qualquer momento podem ser ativados, no caso da imagem cabe a ela desencadear em nós o

86 MARCUSE, Herbet (1964). A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiros: Zahar, 1978. p. 18. 87 Discutirei esta questão no próximo capítulo. Basta, para este momento, a idéia de que trato de uma intenção, ao invés de uma ação efetiva no social, uma vez que o “Todo” somente se materializa na tela, mas uma materialização que foi encontrada para dar forma a um “projeto totalitário” e mais nada, uma vez que a própria experiência cinematográfica abre lacunas, é discutível se o “Todo” realmente conseguiu se efetivar no instante da percepção. 88 Ver BECHELLONI, Laura Malvano. Fascismo e politica dell’immagine. Note per una ricerca. Rivista Mezzosecolo. Istituto Piemontese per la Storia della Resistenza e della Società Contemporanea. Torino, Itália, n. 6, p. 219-225. 1985/1986.

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“nosso Hitler”, o “nosso Stalin”, o grande ditador que há em cada um de nós.89 Aqui as

imagens são postas na condição de instrumentos ideológicos, logo, devem se apresentar como

leituras únicas e inequívocas de um ideal, como mensagens unidimensionais — tarefa árdua

para aquela que tem por natureza um caráter polissêmico.

Dado que o uso das imagens na propaganda política constitui uma fábrica do

consenso, temos no cinema o aparecimento de um artifício que vem atribuir maior

autenticidade a essas imagens, criando definitivamente as condições para que a multidão se

reconheça nelas: o movimento. O movimento do cinema devolve às imagens a realidade,

torna-as produto passível de identificação, uma vez que “não há massas organizadas sem

suportes visuais de adesão”.90 São as imagens que põem as multidões em movimento, que

criam condições de legitimidade a um regime que se encontra frente, principalmente, a um

contexto de contradições e crises mundiais:

As salas de cinema são igualmente campos de treinamento que criam unidade agonística insuspeitada, ensinando às massas como controlar o medo do desconhecido ou, como dizia, Hitchcock, do que nem mesmo se conhece. O cineasta dizia que “nós criamos a violência essencialmente a partir de nossas lembranças e não a partir do que vemos diretamente, do mesmo modo como na sua infância o espectador preenchia as lacunas de sua cabeça com imagens que só se produziriam posteriormente ... [grifo no original].”91

2.1- Cinema e Política: os irmãos Lumière não sabiam, mas o cinema veio para dominar

Durante a Segunda Guerra Mundial, o dispositivo cinematográfico saía

definitivamente das feiras populares para ganhar status quo de aparato ideológico do Estado,

tendo na Rússia, depois da revolução de outubro de 1917, um modelo maduro do

relacionamento entre cinema e política. O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, é

indicado por Joseph Goebbels, Chefe do Ministério da Informação e da Propaganda da

Alemanha nazista, aos realizadores do cinema alemão como a forma ideal para glorificar o

89 ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. São Paulo: Editora Unesp, 1997. p. 9-10. 90 DEBRAY, Op. cit., p. 91. 91 VIRILIO, Op. cit., p. 72.

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Terceiro Reich. Após assistir à película Goebbels declarara: “Tenho que dizer, este filme é

fabulosamente realizado. Com cenas de massa bem impressionantes. Tomadas técnicas e

paisagísticas com pungente força de impacto. E as palavras-de-ordem tão espertamente

formuladas que não admitem qualquer contradição. Isto é o que há de realmente perigoso

neste filme. Gostaria que tivéssemos um filme assim”.92 Vale ressaltar que esse mesmo filme

russo foi proibido assim que estreou em Berlim em 29 de abril de 1926, censurado pelas

Forças Armadas alemães. Somente após uma intensa campanha da imprensa a película foi

liberada, mas os soldados alemães foram advertidos oficialmente para que não vissem o filme,

uma vez que, para os militares, o mesmo encorajava a desobediência, a rebelião, a revolução.

O Encouraçado Potemkin foi censurado novamente em julho do mesmo ano, mas, desta vez, a

proibição durou apenas duas semanas, o filme já era um sucesso de crítica e de público em

toda a Alemanha. Porém, havia sofrido alguns cortes, perdendo cenas como a famosa

seqüência do carrinho de bebê e vários closes dramáticos.93

Quando se fala de cinema de propaganda política logo nos vem as imagens de filmes

de Sergei Eisenstein e Leni Riefenstahl. Não há dúvidas que são os maiores expoentes, mas a

contribuição de Hollywood para esse formato não deve ser menosprezada. Segundo

Furhammar e Isaksson, o cinema norte-americano forjara um pacto com a sociedade existente

tão rígido quanto o cinema soviético. A criação da Motion Picture Association of América

(MPAA), no início da década de 20, reunindo as maiores companhias cinematográficas dos

EUA, resultou na instituição do Código de Produção que, a priori, teria sido inspirado por

questões comerciais, mas que na prática, como acreditam os autores, “virou uma declaração

de fé num determinado sistema social”, o que não significou obrigatoriamente teses políticas,

“mas reflete e preserva as metas imaginadas e os mitos favoritos da sociedade ao mostrá-los

sob formas atraentes”.94 Antes do ataque a Pearl Harbor em dezembro de 1941, foram poucos

os filmes que romperam com o silêncio de Hollywood, uma vez que a MPAA não desafiava a

postura de neutralidade adotada pela política do país. O Grande Ditador de Charles Chaplin

de 1940 foi um deles, tendo sido alvo da censura local de Chicago. Quando os EUA

definitivamente entraram na guerra viram a necessidade de criar as condições para uma

mobilização interna, o clima de isolacionismo não interessava mais, o que resultou em uma

maior participação do cinema norte-americano nesse processo. Hollywood foi convocada para

92 GOEBBELS, Joseph. apud. NAZÁRIO, Luiz. Imaginários de destruição: o papel da imagem na preparação do Holocausto. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. p. 184. 93 FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p. 29. 94 Idem, Ibidem, p. 52-53.

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contribuir com o esforço de guerra. Foram produzidos entre os anos de 1942 a 1944 nos EUA

aproximadamente 370 filmes patrióticos, sendo que estavam nos quadros de oficiais das

Forças Armadas cineastas como Frank Capra e John Ford.95

Com o término do segundo conflito mundial, o cinema seria pensado de forma

diferente, os filmes não seriam mais os mesmos, os modelos de filmes patrióticos ganhariam

cada vez mais espaço nas telas; no clima da Guerra Fria Hollywood tinha como seus inimigos

não mais alemães e japoneses, mas os russos e os asiáticos — o comunismo de uma maneira

em geral — ou ainda tudo que poderia ser visto como um antiamericanismo. Por meio do

cinema os EUA davam início a um processo ainda maior que objetivava culminar em “um

padrão de pensamento e comportamento unidimensionais [grifo no original]”,96 difundia-se

em larga escala a cultura norte-americana. De fato, perceberam que as novas conquistas

territoriais se dariam no campo do imaginário.

O cinema pós-guerra repetiria a fórmula que regeu os filmes de propaganda, com uma

ou outra variação: a) somos apresentados a um idílio de contentamento calmo e harmonioso,

que conquista a nossa simpatia; b) uma força do exterior ameaça esse idílio, procurando

destruí-lo por meios abomináveis; c) são feitas tentativas heróicas para defendê-lo.97 Assim,

depois dos gangsters, personagens de um submundo, os cowboys dos faroestes e espiões

surgidos nos filmes dos anos 60 foram os principais mitos que alimentaram um modelo de

patriotismo para o cinema norte-americano, para não dizer das ameaças extraterrestres e das

catástrofes espaciais que invadiram as telas nos anos 90, uma vez que a fantasmagoria do

comunismo chegara ao fim com a queda do Muro de Berlim e da União Soviética.

Como se trata de cinema e política, não seria errôneo afirmar que a fórmula do filme

de propaganda política incorpora a síntese da mitologia política moderna, na tela o mito se

repete como o mais novo poder do Estado, uma vez que “entre a linguagem e o mito existe

não só uma estreita relação, mas também uma verdadeira solidariedade”.98 Assim como a

linguagem e a arte, o mito também é uma “forma simbólica”, se apresenta sob o “efeito de

real”, o que equivale dizer que as imagens sobre as quais esse mito é constituído não são

conhecidas como imagens, e nem devem; não se trata de símbolos, mas de realidade,

realidade que não pode ser negada e criticada, apenas aceitada passivamente.99 Para

Barthes, o mito é um modo de significação, uma forma, e, ao invés de ser produto da

95 FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p. 59. 96 MARCUSE, Op. cit., p. 32. 97. FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p. 52. 98 CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. Trad. Daniel Augusto Gonçalves. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 33. 99 Idem, Ibidem, p. 50; 63.

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natureza das coisas, é determinado historicamente. O mito não esconde nada, pelo

contrário, sua função é a de deformar e não fazer desaparecer. O significado mítico não é

capaz de abolir o significante, a imagem, apenas o reelabora, ou seja, atribui uma nova

significação: “o mito é uma fala roubada e restituída [grifos no original].”100

Como se vê, o pensamento mítico segue o que viemos discutindo até o momento,

as imagens do cinema de propaganda política reforçam e reproduzem o mito político

moderno, nas telas surgem as representações do povo uno, do líder, do inimigo que

conspira contra a harmonia da Nação. Se o mito é a expressão de um sentimento, segundo

Cassirer,101 a emoção tornada imagem, encontramos na arte cinematográfica a

materialização dos quatro mitos políticos: a Conspiração, o Salvador, a Idade do Ouro e a

Unidade. Tanto nos filmes ficção quanto nos jornais cinematográficos que integraram o

aparato propagandístico dos regimes autoritários é possível notar estes quatro elementos

discursivos; por exemplo, em filmes como as comemorações de Primeiro de Maio ou de

qualquer outra festividade deparamos com as imagens de um “tempo festivo” em que se

comemora a harmonia social, o fim do clima de crise e contradições em que se encontrava a

Nação, como também as multidões de trabalhadores — a imagem por excelência do “Todo”,

da “Unidade” — dão provas de gratidão ao Salvador, aquele capaz de conduzir a Pátria ao

equilíbrio, à ordem, transmitindo ao povo uma sensação de segurança, um sentido de retorno

ao “tempo de antes”. Segundo Girardet,102 o tempo presente é o instante da desordem, da

degradação moral, política e econômica, o que exige do Estado uma mitificação do “tempo de

antes”, uma vez que tornado mito é um excelente elemento mobilizador.

O mito é uma potência mobilizadora respaldada no objeto de sua própria origem:

as angústias e as incertezas dos homens. Surge para preencher os “vazios sociais”, mas ao

mesmo tempo aparece como elemento construtivo de uma realidade social, ou seja, é tão

determinante quanto determinado. Aqui se encontra o seu fundamento histórico. O mito

nada mais é que um elemento de catarse dos sentimentos humanos, logo

O sonho da Idade de Ouro, [...], é inseparável do fenômeno da nostalgia, isto é, da fixação nos valores de infância, de sua persistente presença no centro da vida adulta. O apelo ao Salvador responde a uma situação de vacuidade: é a busca de um pai ausente ou a substituição de uma paternidade recusada por uma imago [grifo no

100 BARTHES, Roland (1957). Mitologias. Trad. José Augusto Seabra. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1972. p. 195. 101 CASSIRER, Op. cit., p. 59. 102 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Cia das Letras, 1987. p. 105.

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original] paterna idealizada. A esperança da revolução messiânica traduz as pulsões da vontade megalômana que pretende moldar o mundo segundo seus próprios modelos. As imagens contraditórias da Cidade, protetora ou tentacular, correspondem à Mãe, enseada fechada de segurança ou ogra devoradora. A denúncia do complô é liberadora do medo, do ressentimento e da cólera... Basta um esforço muito elementar de introspecção para reencontrá-las todas, meio enterradas ou claramente ativas, no interior de cada um de nós.103

Segundo Cassirer, ao contrário do que sempre foi reservado ao mito — a

característica particular de ser resultado de uma atividade inconsciente, produto livre da

imaginação — o século XX o toma como “coisas artificiais fabricadas por artesões hábeis

e matreiros”,104 é intencional assim como a produção de outras armas, uma vez que as

armas, antes de serem instrumentos de destruição, são instrumentos de percepção, logo, “a

guerra consiste menos em obter vitórias materiais (territoriais, econômicos...) do que em

apropriar-se da imaterialidade [grifos no original] dos campos de percepção”.105 Portanto,

se tratando de experiência perceptiva temos que no cinema o caráter mobilizador do mito

é ampliado.

Referente ao caráter mobilizador do cinema, veremos os principais elementos

estéticos que compõem o filme de propaganda e auxiliam na tarefa de mobilizar o povo

em torno de uma ideologia totalizante. Entre esses artifícios está a imagem da CRIANÇA,

reduto de um forte apelo emocional, capaz de desarmar as pessoas. É uma constante nos

filmes de propaganda o aparecimento das crianças como vítimas de maltratos dos

inimigos, o que vem provocar nos espectadores um sentimento de revolta. O fato é que

ninguém resiste aos olhares luminosos das crianças. Tendo notado isto, o cinema russo usa

esse mecanismo com um certo rigor estético, como vejamos, a seqüência memorável das

escadarias de Odessa em O Encouraçado Potemkin quando um garoto após cair baleado é

erguido nos braços da mãe e oferecido aos espectadores, enquanto um carrinho de bebê

desce a escada aos solavancos. Inevitavelmente acompanhamos a seqüência com a

sensação de incapacidade, frustrados por não podermos decidir o destino daquela inocente

criança. Em A Greve, outro filme de Sergei Eisenstein, o apelo se repete, deparamos com

um plano geral em que um cossaco em cima de um viaduto suspende uma criança pelo pé

ameaçando jogá-la ao abismo; a cena é entrecortada com closes da mãe desesperada que

não pode evitar que a criança seja lançada. Como se vê, ambas as seqüências foram

103 GIRARDET, Op. cit., p. 186-187. 104 CASSIRER, Op. cit., p. 300. 105 VIRILIO, Op. cit., 15.

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criadas com a intenção de provocar a revolta nos espectadores, entretanto, esta imagem de

inocência não é apropriada pela propaganda política somente neste contexto de crueldade,

mas também como objeto de amor do e para o líder. Entre a criança e o líder é necessário

que haja um amor recíproco, uma vez que ela é um elemento duplicador do sentimento

patriótico — é o futuro da Pátria. Uma outra aparição da criança é o nascimento, aqui

temos a representação do “Novo”, de que novas esperanças surgirão para uma sociedade

acostumada com dor e sofrimento.

Em tempos de crise ou de guerra é imprescindível que o cinema construa a imagem

do INIMIGO, uma vez que o Estado-Nação tem a necessidade de alimentar o mito da

Conspiração. Suscitar o medo no povo é uma atitude legitimadora, já que este clima exige

a figura de um líder capaz de oferecer a segurança. Essa imagem do inimigo tem a função

de atuar nos discursos cinematográficos, assim como nos discursos políticos, como a

ameaça da ordem, do organismo social. Segundo Furhammar e Isaksson, a construção do

inimigo nos filmes de propaganda tinha maior sucesso quando acompanhada de um elemento

de excitação — a imagem da criança, por exemplo — o que permite à platéia fazer suas

descobertas, ou seja, não é o filme que deve mostrar indignação, mas os espectadores.106 Já a

imagem do LÍDER é onde o mito do Salvador encontra respaldo, trata-se de formular um

processo de identificação entre uma personalidade política e o povo. Identificação que

encontra no cinema um instrumento essencial para colocá-lo em prática, pois se apresenta

como o espaço moderno da apoteose, cria-se todas as condições para o culto ao Chefe da

Nação. Os líderes não devem ser representados como eles são, pessoas comuns como nós,

mas como deuses para que sejam passíveis de adoração. Na construção mítica do líder político

temos a personificação do Estado, a Nação é conduzida por ele, o homem onipresente e

onisciente, aquele capaz de devolver a ordem, a harmonia à sociedade, instituindo o mito da

Idade do Ouro, o tempo de comemorar o desenvolvimento econômico e social. Quando ele se

dirige à multidão é como se fosse a voz amplificada de um “Todo Orgânico”. Assim, “perder-

se nele é, sem dúvida, renunciar à identidade individual; mas é reencontrar, ao mesmo tempo,

a integralidade da identidade coletiva, a fusão íntima e indissolúvel com a comunidade

mãe”107 — discutirei isso no próximo capítulo. Para Arendt, o que ocorre é uma

interdependência entre líder e multidão, em que a permanência do primeiro no poder é

proporcional às concessões feitas à segunda, ou seja,

106 FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p. 189. 107 GIRARDET, Op. cit., p. 79-80.

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[...] essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige; não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do “desejo” das massas que ele incorpora, como as massas dependem dele. Sem ele, elas não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo; sem as massas, o líder seria uma nulidade.108

Por fim, a imagem da MULTIDÃO seria o elemento diegético da materialização do

mito político da Unidade. Mito que é a imagem de harmonia, de equilíbrio, de uma sociedade

una, indivisível, homogênea, protegida de qualquer perturbação ou discórdia, um bloco sem

fissura. Os primeiros indicativos da força simbólica das imagens das multidões nos filmes de

propaganda foram dados pela obra cinematográfica de Eisenstein. Foi o cineasta russo que

“transformou as massas, o povo, como um todo, em heróis de seus filmes: foi quem fez o

esforço mais consistente para deixar para trás os indivíduos com as massas ocupando o lugar

de honra”.109 A importância desse artifício está na própria relação filme e espectador, que

abordei anteriormente. A impressão de realidade forjada pelas imagens em movimento projeta

o espectador para a tela e como indivíduo solitário na sala escura de exibição ele passa a

sentir-se pertencente àquelas cenas. O que une a multidão de espectadores às representações

da multidão na película é a sua própria necessidade da sensação de pertencerem a algo e a

experiência de “solidariedade instintiva” pelas emoções das pessoas que ali estão registradas.

Mas esta solidariedade se dá mais pelo entusiasmo das pessoas do que necessariamente pela

proposta delas.110 O que temos é um elemento persuasivo capaz de fazer coexistir em um

mesmo objeto um duplo coletivo. Vale ressaltar que a multidão é representada no cinema de

propaganda política tanto sob o viés de seu caráter maléfico quanto seu caráter heróico. Essa

vocação dúbia que acompanha a imagem da multidão desde o final do século XIX encontra

respaldo principalmente nos filmes russos: o caráter maléfico é simbolizado nas imagens dos

soldados que de forma impiedosa e impetuosa avançam esmagando e pisoteando as pessoas,

no entanto, não passam de uma muralha de anônimos; do outro lado, o povo assume o papel

heróico das multidões, não mais amorfa, agora elas possuem um rosto. Assim, a linguagem

cinematográfica permite que das multidões surja personalidades individuais, exibidas como

108 ARENDT, Hannah (1949). Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 4. ed. (1ª edição 1989). São Paulo: Cia das Letras, 2000. p. 375. 109 FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p. 16. 110 Idem, Ibidem, p.152.

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figuras positivas e representativas de suas origens de concentrações populares, como

ressaltado por Furhammar e Isaksson:

Eisenstein, Pudovkin e outros russos colocaram o povo, as massas, firmemente no centro de seus filmes e se dirigiram a um proletariado que já declarara sua solidariedade com a revolução e conseqüentemente sentia um profundo envolvimento emocional com as revoltas de massa que eles descreviam. Em oposição direta à massa estavam os instrumentos do capitalismo, os soldados — esses também eram uma massa, mas anônima, uma muralha pisoteadora, esmagadora, impiedosa. As boas massas nunca eram impessoais, sem rosto. Controlando habilmente o intercâmbio entre cenas de multidão e close-ups, os russos conseguiram dar a rostos e gestos uma incrível agudeza evitando que os efeitos de massa se perdessem no anonimato. A vontade e os objetivos das massas eram como um só, mas as reações de cada um dos inúmeros indivíduos eram únicas e pessoais.111

No caso do cinema nazista, o motivo multidão também foi uma constante, sendo

algumas vezes contrastado com as imagens do Führer. No entanto, diria que esta apropriação

se deu de forma invertida ao modelo oferecido pelos filmes russos. Enquanto esse apresentava

ao espectador uma multidão transparente e vivaz, que permanecia unida, mas não uniforme,

digna de uma forte descarga emocional, explosiva, o cinema de propaganda alemão optava

pela imagem de uma multidão simétrica, disciplinada, a própria representação da Ordem, o

organismo social perfeitamente ordenado para o desenvolvimento da Nação. Porém, o papel

ordeiro das multidões nos filmes nazistas acabava por cristalizar mais um modelo do que um

erro, que permitia realizar nas telas uma eufórica sensação de participação. Exemplo do

quanto é expressiva esta nova significação atribuída às imagens das multidões é o filme O

Triunfo da Vontade, da cineasta Leni Riefenstahl. Como espectadores de O Triunfo da

Vontade “não só somos levados a observar as entusiásticas reações da multidão face aos seus

líderes e símbolos, como também forçados a uma espécie de participação. Estamos ali entre

os estandartes, flutuando com as bandeiras, em pé próximos a Hitler, acotovelando-nos com a

multidão. Nos misturamos com a massa”.112 Essa imagem da multidão simétrica, ordenada

militarmente, será assimilada pelos cinejornais brasileiros dos anos 30 e 40, o que não

equivale dizer que são reproduções fiéis do modelo alemão.

Como se vê, as obras de diretores como Eisenstein e Riefenstahl atravessaram as

décadas estimulando um debate entre arte e política, que acredito que poderia ter sido mais

111 FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p.184. 112 Idem, Ibidem, p. 185.

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promissor se críticos e analistas não tivessem estigmatizado esse tipo de cinema como uma

arte manipulativa, muitas vezes mais próxima da propaganda do que do próprio conceito

burguês de Obra de Arte em que acreditavam. Não se trata de dizer que esses filmes não

fossem propagandas, de fato são, mas se perdeu a noção de que estes faziam parte de um

projeto que tinha como os pilares do discurso destes regimes a cultura (leia-se cinema,

música, arquitetura, escultura etc.), a política e a propaganda, ou seja, dificilmente os regimes

autoritários (comunistas ou nacional-socialistas) delimitavam os limites entre elas. O que

ocorreu foi que as análises destes filmes perseguiram muito mais uma poética, um programa

de arte determinado sob a ótica de um contexto pós-guerra: de um lado os movimentos de

“cinema de direita” seguiram o modelo hollywoodiano com marcas discursivas advindas dos

filmes de propaganda, como vimos anteriormente, por outro lado os movimentos de “cinema

de esquerda” privilegiaram um realismo no cinema, ao invés dos espectadores terem suas

emoções dirigidas e provocadas tinham a liberdade de escolha e a oportunidade para

formarem suas próprias idéias. Certamente, uma análise do caráter estético destas obras

cinematográficas nos forneceria mais elementos para a compreensão do período, uma vez que

as questões estariam não no plano do porque mas no como este cinema foi incorporado ao

“projeto totalitário” dos regimes políticos surgidos na metade do século XX.

A busca por uma investigação estética, no entendimento de que a arte é um executar e

um inventar, de acordo com Pareyson, permite que novos olhares sejam dirigidos ao princípio

de montagem afastando-o de qualquer reducionismo como técnica de manipulação da

consciência coletiva, ou seja, os próprios filmes de propaganda tinham limitações que não nos

possibilitam afirmar que constituíam uma escravização dos espectadores, pelo contrário,

dependiam exclusivamente de atender e satisfazer aos desejos morais e políticos desses

mesmos espectadores. Portanto, o cinema de propaganda se destinava a uma platéia que já

compartilhava seus valores, ele satisfazia necessidades preexistentes. Compreendido que o

mito político preenche os vazios deixados pelas angústias e incertezas dos homens, esses

filmes não se dirigiam a um público que já se encontrava pré-disponível a crer em suas

mensagens, já que nesse caso esses sentimentos já estavam superados, mas procuravam

atingir a um outro tipo de espectador, aquele que ainda não aderira aos ideais do regime, à

idéia do “Todo Orgânico”. Logo, não se tratava de manipular, mas de fascinar as multidões,

buscar elementos visuais e sonoros que provocassem a adesão destas por meio de um

processo de identificação, uma vez que “a imagem da realidade nos filmes de propaganda é

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amplamente determinada pelo nível das idéias preconcebidas da platéia”.113 São essas idéias

preconcebidas que determinam a aceitação ou rejeição de qualquer mensagem por parte dos

espectadores, cabe ao cinema de propaganda encontrar mecanismos para dirigir-se a elas, pois

só assim ele sustenta seu caráter mobilizador.

Acreditar em um cinema/manipulação é negar o próprio caráter receptivo desse meio,

é negar os espectadores como sujeitos de um processo de comunicação, lembrando que este

nem mesmo se encerra com eles, há uma necessidade de feed-back, uma vez que se trata de

uma relação entre emissor e receptor e não uma via de mão única. E a maior autoridade da

propaganda política, Joseph Goebbels, sabia muito bem disso, para ele não havia formas de se

determinar qual propaganda é mais ou menos eficaz que outra, bastava aquela que produzia os

resultados desejados, ou seja, a função da propaganda não era divertir ou distrair, mas

produzir resultados palpáveis. “No preciso momento em que aderi a uma verdade e comecei a

falar dela no metropolitano — já estou a fazer propaganda. É o momento em que começo a

procurar outros que, como eu, reconheçam a mesma verdade”.114 Para Goebbels, a

propaganda era antecessora de uma organização, um meio que visava criar uma ordem para

um fim, o fim era o Estado nacional-socialista.

Segundo Marcuse,115 o Terceiro Reich não promoveu a totalidade do Estado, mas a do

movimento nacional-socialista, sendo que ao abolir qualquer separação entre Estado e

sociedade as funções políticas foram transferidas para os grupos sociais que de fato estavam

no poder. O Estado não representava um fim, mas um meio, uma vez que o verdadeiro fim era

a prova de que a raça ariana era capaz de produzir uma cultura humana superior. Pensando o

Terceiro Reich como o “Estado das massas”, temos que esse necessitava dirigir-se à multidão,

logo, a propaganda se instrumentalizava de uma arte de e para as massas, já que não poderia

ser a expressão de uma individualidade, ao contrário, os espectadores somente poderiam

identificar-se com esta arte enquanto multidão. Assim, a estética nazista procurava expressar

sua grandiloqüência, sua força e beleza por meio de manifestações culturais como a música, o

cinema, a arquitetura etc.; não havia espaço para uma arte degenerada, de corpos tortos,

esqueléticos e doentios, aqui o modelo estético que prevalecia era o do classicismo greco-

romano com suas esculturas de “corpos saudáveis e perfeitos” e monumentos arquitetônicos

grandiosos.

113 FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p. 203. 114 MANVELL, Roger & FRAENKEL, Heinrich. Goebbels. Lisboa, Portugal: Editorial Aster, [19-]. p. 84-85. 115 MARCUSE, Herbet (1942). Tecnologia, Guerra e fascismo. Trad. Maria Cristina Vidal Borba. Douglas Kellner (editor). São Paulo: Editora Unesp, 1999. p. 108; 111.

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Segundo Contier,116 a arquitetura nacional-socialista pretendia primeiramente

representar o poder da grande civilização e da comunidade racial nos amplos traçados das

avenidas, na grandiloqüência das colunas, na monumentalidade dos prédios. Todo novo

projeto arquitetônico deveria ter traços capazes de superar projetos anteriores concretizados, o

que sinalizava a permanência constante do ideal totalitário. No final, a arquitetura nazista

deveria ser a expressão da duração que se pretendia para o próprio regime, para a nova

civilização: a eternidade. Já a música era apropriada pelo Estado nacional-socialista devido ao

seu caráter polissêmico e coletivista, sinais de que poderia incitar as multidões tanto para

práticas ordeiras quanto perturbadoras da ordem. Assim, para o autor, o nazismo recuperou o

Romantismo do Século XIX visando uma música ordenada matematicamente, em que as

composições harmônicas, tonais representavam um mundo sem conflito, tranqüilo, ou seja,

negava-se a polissemia e as harmonias dissonantes, símbolos de uma sociedade em caos. A

música sob o regime nazista era a síntese de três elementos: povo, Estado e arte. Assim, ao

adquirir um caráter grandiloqüente, a fim de empolgar as multidões dentro de um novo

sentido, “a música, sob o nazismo, passava a simbolizar a união de todos os grupos sociais

(pacto social), de todos os homens, visando instaurar uma ‘nova Alemanha’, representada,

musicalmente, pelos compositores mais populares: Richard Wagner e Ludwig Van

Beethoven.”117

O cinema também esteve sob os olhares atentos do nacional-socialismo. Segundo

Nazário,118 Hitler e Goebbels eram grandes cinéfilos, assistiam a um ou a dois filmes todos os

dias. Entretanto, após a tomada de poder Hitler se preocupou mais com a arquitetura e a

música, sendo que o cinema foi quase uma exclusividade de Goebbels, que interferia em

argumentos, rejeitava elencos etc. Ele assistia a todos os filmes confiscados nos territórios

ocupados pela Alemanha. Essa paixão pela arte cinematográfica rendeu ao ministro de

propaganda do Terceiro Reich a denominação de “patológico cinéfilo esquizofrênico”.119

Segundo Nazário, o cinema foi a primeira mídia a ser “arianizada”, o projeto que Goebbels

tinha para essa arte era de incorporá-la ao ideal nacional-socialista; todos os seus elementos

116 CONTIER, Arnaldo. Tragédia, Festa, Guerra: os coreógrafos da modernidade conservadora. Revista USP, n. 26, jul./ago. 1995. p. 39-40. 117 Idem. Arte Estado: Música e Poder na Alemanha dos anos 30. Revista Brasileira de História, ANPUH/Marco Zero, São Paulo, v. 8, n. 15, set./fev. 1987-1988. p. 114-115. A respeito da estética nazista, ver também NAZÁRIO, Luiz. Reflexões sobre a Estética Nazista. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, v. 90, n. 3, p .33-51. maio./jun. 1996. 118 NAZÁRIO, Luiz. Imaginários de destruição: o papel da imagem na preparação do Holocausto. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. p. 244. 119 RABENALT, Arthur Maria. apud. NAZÁRIO (1994), Op. cit., p. 245.

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(produção, conteúdo, estética etc.) deveriam estar circunscritos à busca da consolidação de

uma raça superior, ou seja, atentava-se para “um cinema essencialmente alemão,

essencialmente anti-semita.”120 Essa busca não se cessava no cinema, pelo contrário,

compreendia-se que o sucesso da propaganda política dependia dela preencher o cotidiano dos

cidadãos, para isso, contava com múltiplas vozes:

Dia e noite, o cidadão é informado e esclarecido sobre os acontecimentos e seus significados. No café da manhã, os jornais apresentam-lhe fatos selecionados e comentados. Durante o dia, no trabalho, as conversas com os colegas confirmam suas idéias. Nos momentos de lazer, no cinema, no teatro, na leitura de revistas, sua visão de mundo consolida-se através de formas variadas, sublimadas, atraentes. À noite, antes de dormir, a última transmissão de notícias prepara-o para uma nova etapa de esclarecimento.121

Assim, na Alemanha nazista deu-se a mesma importância aos filmes de atualidades

que aos filmes de ficção, sendo que em um primeiro momento os documentários tiveram uma

certa preferência pelo fato de “refletirem a realidade”, tendo ganho mais força com o advento

do filme sonoro, pois agora poderiam utilizar recursos adicionais como a voz off e o

acompanhamento musical. Já o filme de ficção era uma mistura original do filme comercial

hollywoodiano e do filme político russo, do primeiro incorporava o seu sistema dos grandes

estúdios e o seu modelo do star-system enquanto do outro assimilava seu realismo

pedagógico, seu caráter épico e revolucionário.

Os alemães se atentavam para um dos princípios fundamentais de seus cinejornais, o

“refletir a realidade”. Esta preocupação em imprimir na película o real dava espaço para a

constante utilização de cenas de caráter jornalístico nesses filmes, logo, ao invés de utilizarem

cenários de guerra fabricados, procuravam filmar as tomadas na frente de batalha. Esse

artifício procurava fortalecer a confusão entre veracidade e verdade. Porém, a força dessas

imagens “verídicas” estava na associação com outros elementos discursivos do próprio

cinema, como o contraponto com a voz-off. Não se tratava de informar, mas de provocar

alusões, forma que priorizava atingir o inconsciente coletivo suprindo a capacidade de

compreensão das platéias. Apelava-se para as emoções. No entanto, segundo Kracauer,122

como o cinema de propaganda nazista visava o “Todo”, não se tratava simplesmente de

120 NAZÁRIO (1994), Op. cit., p. 226. 121 Idem, Ibidem, p. 310. 122 KRACAUER, Siegfried (1947). De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Trad. Teresa Otoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 339.

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substituir o real em si por outras instituições, uma vez que tendo feito isto a imagem da

realidade não seria destruída, mas apenas banida, logo, continuaria a existir no subconsciente,

colocando em perigo a legitimação do regime. A maior tarefa dos propagandistas nazistas era

evitar que o regime convivesse com a ameaça constante destas lembranças, por isso, melhor

do que tolerá-las, procurava-se pinçar dos mais recônditos esconderijos da alma cada opinião

independente a fim de bloquear qualquer impulso individual.

O cinema de Leni Riefenstahl foi exemplar nesse sentido. Com ela o filme de

propaganda nazista se superava, elementos diegéticos como as imagens da cidade inundada

por um mar de bandeiras esvoaçantes com a suástica, as multidões militarmente ordenadas

enquanto as câmeras exploravam muitos rostos, uniformes, objetos e detalhes arquitetônicos,

as imagens do “corpo saudável” do atleta ariano contribuíram para tornar o nacional-

socialismo parte do cotidiano dos alemães. O fascínio da diretora pelos ideais de belo, força e

saudável levaram-na a procurar em sua obra a expressão da harmonia, que foi bem sintetizada

em filmes como O Triunfo da Vontade (1934) e Olimpíadas (1938).

Foi durante a ascensão do nazismo na Alemanha que Leni Riefenstahl surgiu para o

mundo como responsável por retratar na tela a estética nazista de Força e Beleza, de

proporcionar aos espectadores de seus filmes uma visão harmônica e bela de um povo que

clama pelo seu Füher. Ainda hoje, a polêmica diretora nega qualquer envolvimento seu com o

nazismo e o caráter propagandístico de seus filmes, afirmando que seus trabalhos são

verdadeiros documentos de uma época, sempre pautados por uma busca constante pelo Belo,

acima de tudo, até mesmo da política e da história. Mas ela não escapa do estigma: “a cineasta

de Hitler”. Riefenstahl foi convidada pessoalmente pelo chefe nazista para realizar um filme

artístico sobre o II Congresso do Dia do Partido do Reich, realizado em Nuremberg entre 5 e

20 de setembro de 1934. Hitler acreditava em seu potencial artístico, não desejava apenas

registrar o evento, mas encená-lo para as objetivas, tanto que a diretora contou com um apoio

técnico capaz de invejar qualquer cineasta hollywoodiano: 18 operadores de câmera, 16

operadores de atualidade, cerca de 15 assistentes e 4 equipes de tomadas de som, como

também outros tantos de iluminadores, além de uma plataforma de oito metros acima do solo

e uma grua em forma de elevador de 30 metros de altura.123 Para aumentar a polêmica em

torno da figura de Riefenstahl, a película arrebatou vários prêmios como a Medalha de Ouro

no Festival de Veneza em 1935 e o Grand Prix no Festival de Paris em 1937, prêmios que

123 NAZÁRIO, Luiz. O eterno retorno de Leni Riefenstahl. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, v. 94, n. 4, 2000. p. 16.

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mais tarde seriam retirados durante o apogeu do nazismo, devido à sua relação com o Partido

Nacional-socialista.

Para Nazário, o que realmente impressiona em O Triunfo da Vontade não é sua técnica

cinematográfica, mas a realidade que era oferecida nas telas. Para ele as imagens dos tapetes

humanos em completa histeria são as provas de que “o filme realizou cinematograficamente a

unidade da massa no movimento nazista, com Hitler como o Führer”.124 Já Olimpíadas foi

produzida como uma espetacular reportagem cinematográfica esportiva dos XI Jogos

Olímpicos, realizados no Estádio Olímpico de Berlim, transformado em um gigantesco

estúdio cinematográfico. Esse filme nascia do bojo de uma numerosa produção de

documentários que celebravam a superioridade física e mental da “raça ariana”, com cenas

que contrapunham às imagens do torto, do deformado, do doentio, do feio. Assim, segundo o

autor, trata-se de imagens de uma insensibilidade diante do sofrimento alheio que piora

quando percebido que vem acompanhadas de uma aguda percepção do Belo, o que equivale

dizer que, de fato, a ideologia nazista e a estética de Força e Beleza, privilegiando as imagens

da vitalidade, as representações dos corpos nus musculosos, encontraram nos filmes de

Riefenstahl sua cristalização.125

Essa busca incessante de Leni Riefenstahl por tudo aquilo que era Belo ficou

registrada nas páginas da Revista Cahiers du Cinema durante uma entrevista: “Eu posso

simplesmente dizer que me sinto espontaneamente atraída por tudo que é belo. É, a beleza, a

harmonia [...]. O que quer que seja puramente realista, uma fatia da vida, que é mediano,

cotidiano, não me interessa [...]. Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, que é vivo.

Busco a harmonia. Quando a harmonia se produz, eu sou feliz”.126 Esta seria a sua defesa e a

de seus admiradores. Mas em resposta a este esteticismo declarado da cineasta alemã, Sontag

vê uma estética que reproduz o controle e a servidão. Para ela o Belo que Riefenstahl encontra

nos corpos dos homens Nuba, assim como nos dos atletas e soldados alemães, não passa de

um fascínio pela estética fascista, um fascínio pelo ideal da vida como arte, pelo culto à

beleza, pelo fetichismo da coragem, pela dissolução da alienação em sentimentos extáticos de

comunidade, pelo repúdio ao intelecto, pela família regida pelo homem. Um encanto pelo

fascismo, pelo poder, em que os nazistas se apropriam de todo um ideal romântico que tem no

sacrifício à pátria, na constituição de uma raça superior — a ariana — um sentimento sublime.

De um lado as imagens “belas” dos filmes de Riefenstahl são estímulos às multidões de 124 NAZÁRIO (2000), Op. cit., p. 19. 125 Idem, Ibidem, p. 29. 126 RIEFENSTAHL, Leni. apud. SONTAG, Susan. Fascinante fascismo. In: Sob o signo de saturno. Porto Alegre, RS: L&PM, 1986. p.68.

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alemães a participarem da construção de uma nova Nação, do outro a imagem instituída do

Terceiro Reich é aquela que comove o povo alemão a se sentir pertencente, se identificar com

algo superior a ele.127 Segundo Sontag, a força do trabalho da diretora está precisamente na

continuidade de suas idéias políticas e estéticas; ainda na década de 1970, Riefenstahl buscava

nas imagens dos Nuba, uma tribo africana, a utopia da estética fascista: a perfeição física.128

Ainda hoje os filmes de Leni Riefenstahl e a sua figura polêmica causam impacto

entre nós, a legendária “cineasta de Hitler” foi tema de inúmeros documentários para televisão

e cinema como o filme A Deusa Imperfeita — Leni Riefenstahl (1993) de Ray Müller. A

diretora alemã morreu em sua casa em Poecking, no sul de Munique, no dia 8 de setembro de

2003, aos 101 anos. Em 2001, quando do lançamento de sua autobiografia, a cineasta retornou

à mídia e atualizou o debate a respeito da relação cinema e política, o fascínio do Belo que

suas obras exercem nos espectadores continuou sendo o mote. Para Andrade, as críticas que

se fazem ao cinema de Riefenstahl descartando-o como propaganda são muito mais

reconfortantes do que reconhecer como a beleza de suas imagens pode ser perigosa, ou seja,

“o que torna seu cinema tão perturbador não é a distância entre suas convicções e as nossas; é

o fato bem mais traumático e singelo de que sua obra criou um ideal de beleza que não

podemos nem negar nem admitir”.129 Nesse sentido, um estudo recente de Rovai a respeito de

O Triunfo da Vontade aponta que uma possível explicação para a força impactante deste filme

ainda hoje em nossa sociedade seria a maneira pela qual o nazismo é associado a uma

promessa de felicidade, que também é fascinante. O autor procura demonstrar como conceitos

de harmonia, alegria, afetividade, nitidamente presentes na película que serviu de propaganda

ao nazismo, reforçaram “uma tendência ainda hoje vitoriosa, qual seja, a de transformação de

todos os conteúdos numa forma agradável de ser vista, divertida, esportiva ou triste (pouco

importa, desde que emocionante).”130

127 KANT, Emmanuel (1764). Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Trad. Vinicius de Figueiredo. 2. ed. (1ª edição 1993). Campinas, SP: Papirus, 2000. p. 22; 30. 128 SONTAG, Op. cit., p. 73; 76-77. 129 ANDRADE, Sérgio Augusto de. “O perigo da beleza: as obras de Leni têm mais poder do que supomos”. Revista Bravo. ano 4, n.44, maio 2001, p.14. Ver também CARVALHO, Olavo de. “A tensão inevitável: não há como negar o conflito entre ética e estética”. Revista Bravo. ano 4, n.44, p.22-25, maio 2001; ESTENSSORO, Hugo. “A interpretação de Leni”. Revista Bravo. ano 4, n.44, p.26-34, maio 2001; HOINEFF, Nelson “As técnicas da manipulação: como a cineasta criou, menos que documentários, extraordinárias peças de propaganda”. Revista Bravo. ano 4, n.44, p.33, maio 2001; GALISI, José “A simbologia da culpa: o autor de A Sedução do Talento, Rainer Rother, analisa a função das imagens da cineasta na Alemanha”. Revista Bravo. ano 4, n.44, p.35-37, maio 2001. 130 ROVAI, Mauro Luiz. Imagem-movimento, imagens de tempo e os afetos “Alegres” no filme O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl: um estudo de sociologia e cinema. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. p. 13.

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Para Rovai, a concepção de belo de Riefenstahl encontrou íntima afinidade não com

uma estética nazista, mas com um projeto do Reich alemão. Assim, a obra da cineasta vai

além de um instrumento de propaganda, suas imagens grandiloqüentes e clichês não nos

oferecem um filme de propaganda fascinante do nazismo, mas a própria construção do

fascínio de que hoje a imagem é capaz. A forma como os acontecimentos são captados e

montados pelas objetivas de Riefenstahl configuram uma nova maneira de reapresentá-los: o

filme tem a capacidade de aproximar estes acontecimentos dos espectadores, tornando-os

cotidianos, familiares e encantadores.131

É nesse sentido que investigo os cinejornais do Governo Vargas, procuro neles

imagens que funcionem como mecanismos de identificação entre o povo e a ideologia

estadonovista, artifícios fascinantes capazes de aproximá-los. Com que imagens os filmes de

atualidades procuravam tornar o Estado Novo presente no cotidiano dos cidadãos? Esta

resposta só pode ser dada após compreendermos como se deu a relação entre Estado e cinema

durante o Governo de Getúlio Vargas, como foram constituídas as bases para uma propaganda

política nacional.

2.2 – Estado Novo e Cinema

“O cinema brasileiro, no conjunto, ainda é um desconhecido”. Foi assim que Paulo

Emílio, um dos principais críticos de cinema do país, introduziu sua fala na I Mostra e I

Simpósio do Filme Documental Brasileiro, realizado em Recife, Pernambuco, em novembro

de 1974. Ele apontava a escassez dos estudos dedicados ao nosso cinema na época,

principalmente em relação aos filmes documentários. Pouco já se sabia sobre o ciclo primitivo

do cinema brasileiro, da produção realizada a partir dos fins do século XIX até

aproximadamente o início da Primeira Guerra Mundial, mas o que se seguiu a isso era coberto

por um completo desconhecimento, um vazio preocupante, que se agravava ainda mais tendo

em vista que foram os filmes documentários (ou “naturais” como eram conhecidos na época)

e os cinejornais que moveram a atividade cinematográfica nacional durante anos,

proporcionando até mesmo as condições para a realização de projetos de filmes de ficção. Na

maioria das vezes estes filmes documentais eram feitos por encomenda, seja publicitário ou

131 ROVAI, Op. cit., p. 307.

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de exaltação a alguma personalidade, além dos institucionais encomendados pelo Estado.

Destaca-se a contribuição do pioneirismo de Gilberto Rossi no início dos anos 20, ao decidir

filmar para o então Governador de São Paulo, Washington Luiz. O Rossi Atualidades abria o

caminho para outros jornais cinematográficos sustentados por propaganda política ou

comercial, proliferavam novas produtoras por todo o país, como a Campos Film, a Guarany

Film, a Santa Therezinha Film, a Rex Film entre outras. Mas era a Rossi Film que dominava o

setor, uma vez que ao reunir eficiência com a subvenção governamental e a distribuição

garantida Gilberto Rossi conseguia produzir seus filmes mais rápido, chegando a exibir no

mesmo dia as películas que eram rodadas à tarde.

Entretanto, o cinema de “cavação” — como denominado pela historiografia do cinema

brasileiro —, por mais que tenha realizado filmes de caráter propagandístico, tanto político

quanto comercial, não era sinônimo de uma produção cinematográfica incorporada a um

projeto de propaganda estatal. Isso só iria ocorrer a partir da instituição do Governo

Provisório, mas ainda de maneira muito sutil, para só com a criação do Estado Novo o cinema

e outros meios culturais serem incorporados definitivamente a um programa de constituição

da nacionalidade. Antes disto, este cinema se contentava em retratar basicamente dois temas

ufanistas: o Berço Esplêndido, que era o culto das belezas naturais, e o Ritual do Poder,

fundamentado em torno da figura do Presidente da República. Assim, as câmeras adentravam

no Brasil como “bandeirantes”, desvendando as mais preciosas paisagens dos rincões desse

país, como também retratando o cotidiano do homem brasileiro. No entanto, estes filmes

sofreram inúmeros ataques dos intelectuais e da imprensa da época que repudiavam a imagem

“negativa” do Brasil que eles podiam transmitir no caso de serem exibidos no exterior. Assim,

preferiam que todos os recursos fossem canalizados para o filme de ficção:

Nenhum país como o Brasil se presta mais sobejamente a ser filmado. Pode-se asseverar que ele é essencialmente fotogênico. Por que explorar somente o seu sertão e a população deste ainda inferior? [...] Precisamos de filmes que mostrem as nossas obras de arte, as nossas avenidas, todas as nossas riquezas, enfim. Todos somos mais ou menos como o nosso S. Tomé: só cremos no que vemos. E o estrangeiro, então, quando, ralado de inveja, não acredita nem mesmo no que seus olhos enxergam [...].132

De fato, os intelectuais do cinema brasileiro dos anos 20 e 30 recusavam na tela a

imagem de um Brasil mestiço, de índios, negros e brancos, muitos deles vivendo em 132 Revista Cinearte. apud. GOMES, Paulo Emílio Salles. A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930). In: CALIL, Carlos Augusto. MACHADO, Maria Teresa (org.). Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 328.

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condições de miséria. Alguns até acreditavam que o cinema documental tinha o compromisso

de levar a civilização para o interior do país, assim como pensava Mario Behring, o diretor da

Revista Cinearte, uma das principais publicações do período que, em geral, era contra o

gênero — esta visão de um cinema “civilizador” mais tarde estaria presente também no

pensamento de Getúlio Vargas. Porém, segundo Paulo Emílio, deu-se um outro sentido à

missão do filme documentário: cabia a ele “levar para o litoral a visão do atraso insuportável

do interior”.133 Como se vê, o cinema de “cavação” é a origem estética dos jornais

cinematográficos produzidos pelo Estado Novo, com uma ou outra peculiaridade. Assim,

seria necessário aguardar até os fins da década de 1930 para que houvesse, de fato, uma

relação entre o Estado e o cinema brasileiro, porém com uma ressalva, a atenção seria voltada

para os filmes de atualidades, pouco se interessaria pelos filmes de ficção.

Após o movimento de outubro de 1930, que teve uma valiosa contribuição dos

“tenentes” revoltosos em seu êxito, Getúlio Vargas assume a presidência provisoriamente.

Segundo Borges, todas as vozes envolvidas no cenário político nacional da época tinham o

conceito “revolução”, muitas vezes adjetivado como “brasileira”, como o centro de todas as

suas discussões, o que procurava sugerir aos acontecimentos um sentido de legítimas

transformações estruturais na sociedade brasileira. Aqui, a idéia-imagem de “revolução” era

apoiada pela expressão “questão social”, buscando no povo o seu legitimador. Assim, para a

autora, cada grupo de adversários daria um rumo a este conceito conforme seus objetivos

políticos:

Uma primeira posição afirma que a Revolução está terminada; foi um movimento eminentemente civil, político, que — infelizmente! — teve um momento militar e que se estruturou a partir da AL [Aliança Liberal], sua campanha e seu programa, os grandes responsáveis pela tomada de poder. [...] Esse conceito pode ser esquematizado sob o rótulo de “Revolução política”, chamada do momento de “mera troca de homens no poder”. [...] Mas segundo a posição de outra vertente cognominada de “outubrista”, a “Revolução” está longe de terminar, pois se inicia com a tomada de poder. É um movimento mais amplo de transformações de caráter social; sua mola propulsora teriam sido as rebeliões militares de 22-24 e esses dois movimentos, juntamente com o de outubro de 30, constituem as três etapas fundamentais do que é chamado muitas vezes de “A Grande Revolução Brasileira”. O conceito pode ser esquematizado sob o rótulo de “Revolução social”.134

133 GOMES (1986), Op. cit., p. 329. 134 BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1992. p. 114-115.

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Este sentido “social” atribuído ao movimento de 1930 procurava impedir que

ocorresse uma mudança radical de caráter popular, como a revolução bolchevique na Rússia

de 1917, logo, o movimento político-militar fora responsável por constituir um novo

alinhamento de forças no país e a rearticulação do poder político, o que não representou uma

mudança efetiva na estrutura de classes — ou seja, não se ascendeu ao poder uma nova classe

dominante, seja a burguesia industrial ou o operariado —, mas inaugurou uma nova fase na

relação Estado e sociedade, em que se privilegiava o papel do Estado, como garantia do bem

comum. No entender de Luiz Carlos Prestes, não teria havido “revolução” alguma: “mas o Sr.

Getúlio Vargas era um latifundiário, tal como os latifundiários paulistas e mineiros que

dominavam a política brasileira. Não poderia, portanto, haver mudança alguma. O que houve

em 1930 foi uma simples troca de oligarquias — a oligarquia gaúcha, vitoriosa, substituiu a

oligarquia paulista. Não foi mais nada do que isto. E, mais adiante, essa oligarquia gaúcha

marchou para o ‘10 de novembro’”.135 Com Getúlio Vargas no poder o novo quadro político

do Brasil exigia mudanças, visando o que se resolveu denominar de “questão social” surgia,

então, um Estado intervencionista, capaz de atuar nas diversas instâncias do organismo

econômico, político e social do país. As promoções da “justiça social”, da harmonia entre as

classes e do desenvolvimento econômico seriam as respostas para uma situação de crise que

apontava no decorrer dos primeiros anos da década de 30, em que, constantemente,

articulavam-se as imagens de “desordem”, de “anarquia”, de “caos” etc. Neste sentido, o

reconhecimento da “questão social”, tivera para Gomes um caráter revolucionário, já que

desta vez os problemas econômicos do país foram tratados sob o viés da política, uma vez que

estes exigiam e só se resolveriam por meio da intervenção do Estado. A legislação social seria

a garantia de “felicidade” dos trabalhadores.

A verdadeira democracia encontrava-se no caráter realista e humano do novo Estado, que fecunda a natureza e a cultura brasileiras como o esforço do trabalho, protegido e amparado pelo governo. Estabelecer um novo começo, estabelecer a democracia no Brasil, era avançar em direção ao trabalhador que materializava por suas potencialidades e necessidades a finalidade orientadora do Estado Nacional. 136

Esse amparo do Estado brasileiro ao trabalhador preenchia o significado que se

pretendia dar ao movimento de outubro. Do seu bojo a imagem de “revolução” se associava a 135 PRESTES, Anita Leocádia. Getúlio Vargas: depoimento de Luiz Carlos Prestes. In: SILVA, José Luiz Werneck da (org.). O Feixe: o autoritarismo como questão teórica e historiográfica. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. p. 82. 136 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Vértice, 1988. p. 215.

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uma idéia de “ruptura”, o mesmo ocorreria quando do advento do Estado Novo, logo seus

ideólogos se encarregariam de criar a sensação de que o Brasil só poderia concretizar a

ruptura anteriormente processada se instituísse um novo Estado, forte e centralizador, capaz

de garantir a segurança nacional e manter a ordem e a harmonia que o país tanto lutara desde

1930.137 O Estado Novo era concebido como um processo de transição inevitável e natural.

Neste clima de “crise” anunciada o Governo Vargas e suas autoridades procuravam

formas para legitimar a sua permanência, era necessário sustentar a imagem de que a

sociedade seria vítima de um desarranjo, de uma desordem social, que exigia de todos a

“participação” no processo edificador de uma Nação homogênea. No Brasil de Vargas, a

exemplo dos regimes reacionários europeus, também se via a necessidade da mitificação do

“tempo de antes”, aqui “a crise é usada para fazer com que surja diante dos agentes sociais o

sentimento de um perigo que ameaça igualmente a todos, dá-lhes o sentimento de uma

comunidade de interesses e de destinos e leva-os a aceitar a bandeira da salvação da sociedade

supostamente homogênea”.138 Assim, segundo Camargo, as autoridades brasileiras da época

fizeram uso da ameaça comunista como um instrumento capaz de reforçar a unidade militar e

canalizar as atenções gerais para a defesa dos “interesses nacionais”. Daí a apresentação à

Nação pelos chefes militares de um plano do Partido Comunista russo de tomar o poder, no

qual se previa até mesmo o assassinato de líderes civis e militares. Esse plano ficou conhecido

como o Plano Cohen, um trabalho elaborado pelo serviço secreto da AIB, mas que foi

rejeitado pelo chefe da organização, Plínio Salgado, devido considerá-lo um tanto fantasioso,

ou seja, não convenceria o povo de uma imagem pejorativa dos comunistas. Entretanto, não

foi assim que pensou o Estado-Maior do Exército brasileiro, que o julgou apropriado para o

momento.139

O Plano Cohen contribuiu para exacerbar os sentimentos de medo e angústia do povo,

perfeitos para alimentar a mobilização em torno dos mitos políticos, permitindo que Vargas

decretasse o estado de Segurança Nacional, o primeiro indicativo que justificaria mais tarde o

golpe de novembro de 1937. Foi criada em outubro de 1937 a Comissão Executora do Estado

de Guerra que logo divulgou suas resoluções, contidas em 14 pontos, agrupados em 4 itens

definidos da seguinte forma:

137 Ver CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional: sua estrutura seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940. p. 35-36; 72; AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 38-39. Ambos os autores enfatizam que a “revolução de 1930” somente se efetivou em 10 de novembro de 1937, quando da criação do Estado Novo. 138 CHAUI, Marilena. Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira. In: Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 129. 139 CAMARGO, Aspásia. O Golpe Silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1989. p. 214-215.

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I – Medida de caráter imediato:

1. Proceder a prisão de todos os suspeitos de atividades comunistas com devassa

sobre sua vida passada e presente.

II – Medidas de caráter preventivo:

2. Criar “colônias agrícolas” de reeducação de comunistas não perigosos;

3. Organizar “campos de concentração militares” para a reeducação dos

elementos jovens simpatizantes do marxismo;

4. Designar prisão em ilha da União para receber os chefes, insufladores e

propagandistas ostensivos da ideologia marxista;

5. Criar campos de concentração em moldes escotistas para os filhos de presos

comunistas;

6. Organizar comissões para todos os graus de ensino para o combate sistemático

ao comunismo;

7. Criar uma sistemática entre professores através dos ministérios e secretarias,

para a realização de preleções curtas diárias contra o comunismo;

8. Apresentar todo o material didático simpático ao comunismo;

9. Obrigar a imprensa a uma campanha anticomunista.

III – Medidas de caráter permanente a serem solicitadas ao presidente da República:

1. Leis que garantam, sem caráter excepcional, o cumprimento das decisões

acima;

2. Julgamento sumário, condenação e segregação dos elementos nocivos à paz e à

ordem sociais;

3. Detenção, com ou sem estado de guerra, de todos os simpatizantes do

comunismo;

4. Criação da Polícia Federal, facultando a repressão ao comunismo em qualquer

parte do território nacional.

IV – Medidas repressivas:

1. Preparar todas as condições de repressão a movimentos comunistas ou de

perturbação da ordem usando-se, nesse caso, todo o vigor da lei nacional. 140

Como se vê, todo o ambiente estava sendo preparado para que a partir dele pudesse ser

forjado um novo Estado. Segundo o discurso oficial tratava-se de uma fase transitória da

140 CAMARGO, Op. cit., p. 219-220.

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política nacional que, definitivamente, colocaria em prática os anseios e os ideais políticos

que incitaram a “revolução de 1930”. Gradualmente Getúlio Vargas ia construindo as

condições de sua permanência no poder, legitimando a necessidade de um Estado forte e

centralizador capaz de constituir uma sociedade harmônica e homogênea, diferente daquela

marcada por greves, manifestações, lutas de classe. Não havia mais espaço para conflitos

ideológicos entre os diversos grupos sociais, era tempo de todos auxiliarem na edificação de

uma nova Nação, mais “justa”, mais “democrática”. Desta forma, Francisco Campos

preparava às escondidas, a pedido de Getúlio Vargas, uma nova carta constituinte que seria

outorgada em 10 de novembro de 1937, sinalizando um golpe silencioso que, para Camargo,

“foi o desfecho quase pacífico de inúmeras tensões e conflitos que se desenvolveram no

Brasil ao longo da década de 30, e que foram se acomodando gradualmente em composições

sucessivas. Por isso mesmo foi silencioso e, quando chegou, não encontrou resistências.”141

Nas palavras lidas por Getúlio Vargas no Palácio do Guanabara e irradiadas por todo o

país, naquela noite de 10 de novembro de 1937, fica evidente a dimensão de salvação nacional

que foi atribuída ao regime que se instituía:

Para reajustar o organismo político às necessidades econômicas do país e garantir as medidas apontadas, não se oferecia outra alternativa além da que foi tomada, instaurando-se um regime forte, de paz, de justiça e de trabalho. Quando os meios de governo não correspondem mais às condições de existência de um povo, não há outra solução senão mudá-los, estabelecendo outros moldes de ação. A Constituição hoje promulgada criou uma nova estrutura legal, sem alterar o que se considera substancial nos sistemas de opinião: manteve a forma democrática, o processo representativo e a autonomia dos Estados, dentro das linhas tradicionais da federação orgânica [...].Era necessário e urgente optar pela continuação desse estado de coisas ou pela continuação do Brasil. Entre a existência nacional e a situação de caos, de irresponsabilidade e desordem em que nos encontrávamos, não podia haver meio termo ou contemporização. [...] Restauremos a Nação na sua autoridade e liberdade de ação: na sua autoridade, dando-lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa sobrepor-se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins do Governo e deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino.142

Para que se materializasse o projeto nacional-desenvolvimentista que Getúlio Vargas

tinha para esse novo Brasil, o Estado contava com o apoio das multidões de trabalhadores

141 CAMARGO, Op. cit., p. 249. 142 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. v. 5, Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 28; 31-32.

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urbanos. É durante a vigência do Estado Novo, pautado pela ideologia do trabalhismo, que o

imaginário social era preparado para conceber o “Trabalho” como elemento essencial para o

progresso da Nação. O “Trabalhador” passa a ser sinônimo de cidadão brasileiro, o novo

cidadão da “democracia social” proposta pelo regime; o vadio e a malandragem são postos

para o lado de fora do social. Uma vez nas cidades, as máquinas, os bondes e o ritmo

acelerado auxiliam na construção da redoma da modernidade, já no campo, a vastidão das

terras áridas, a lentidão em que o tempo transita denunciam o atraso, mas logo substituídos

pelos tratores que abrem as estradas que irão permitir a comunicação entre o sertão e o litoral.

Esta aproximação que o Governo Vargas fez das multidões de operários foi uma saída

política em busca da legitimação do regime que, sustentado pela legislação trabalhista, pôde

manter o governo “estável” às sombras de uma “democracia social”, em que o novo ator era o

trabalhador. Segundo Gomes, as políticas desencadeadas desde 1930 e, principalmente, após

1937, legitimaram de fato um diálogo entre a elite e o povo que, anteriormente, seria difícil de

se imaginar e, portanto, fizeram do movimento revolucionário de 30 uma “revolução

autêntica”. Ainda segundo a autora, a ideologia do trabalhismo, que estava no cerne do

projeto estadonovista, era forjada pelo mito da outorga, em que entre Estado e povo havia um

“pacto social”, ou seja, o povo revelava à autoridade suas necessidades e esta, por sua virtude

e sensibilidade, captava e executava este sinal que existia implicitamente, cabendo aos

trabalhadores, no final, retribuírem a “doação” do Chefe da Nação com o seu trabalho, pois,

somente assim, o país alcançaria o desenvolvimento. Desta forma, Gomes concebe que, no

Brasil, o trabalhador obteve por outorga do Estado — que se antecipava e elaborava a

legislação — sem lutas, os benefícios que tanto custaram a outros povos. Em troca, o

trabalhador brasileiro oferecia seu apoio e obediência ao novo Estado.

A classe trabalhadora, por conseguinte, só “obedecia” se por obediência política ficar entendido o reconhecimento de interesses e a necessidade de retribuição. Não havia, neste sentido, mera submissão e perda de identidade. Havia pacto, isto é, uma troca orientada por uma lógica que combinava os ganhos materiais com os ganhos simbólicos da reciprocidade, sendo que era esta segunda dimensão que funcionava como instrumento integrador de todo o pacto.143

Em contrapartida a esta idéia de “pacto social”, Paranhos ao propor traçar as origens

da ideologia do trabalhismo apresenta elementos fundamentais para que possamos

compreender o universo mítico criado em função da “legislação social”. Para ele o mito de 143 GOMES (1988), Op. cit., p. 195.

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doador aplicado ao Chefe da Nação, difundido durante o Estado Novo, foi o instrumento de

legitimação do regime: Getúlio Vargas era o componente simbólico do Estado Novo. Segundo

Paranhos, a ideologia do trabalhismo surgiu ligada ao culto ao “Estado autoritário” e ao seu

“criador”. Assim, o autor diverge das idéias de Gomes contrapondo ao conceito de “pacto

social” o de “reserva de mobilização”. Compreende-se, então, que não se pode falar em pacto

quando a uma das partes foi tolhido o direito de exprimir a própria voz. Trata-se que as

medidas tomadas pelo Estado Novo na área trabalhista (CLT, salário mínimo, incentivo à

sindicalização), incrementadas principalmente após a entrada do Brasil na Segunda Guerra

Mundial, buscavam a formação de uma “reserva de mobilização” para assegurar o regime em

momentos de crise. Porém, para Paranhos, o mito da “doação” só teve forças no Governo

Vargas por não agir no vazio, existiam bases concretas (a legislação) para que este mito se

fortificasse. Esta operação de mitificação de Vargas e do Estado era responsável por justificar

a incapacidade política dos trabalhadores:

De toda maneira, é inegável que a “concessão” dos direitos sociais, propagandeada como obra da “generosidade” e da “capacidade de antevisão” de Vargas, cumpriu, entre outras, a função de amortecedor do impacto das lutas de classe. [...] Nesse sentido, ao promover a glorificação do Estado — e de Vargas, sua personificação — como o agente que zela e vela pelos interesses dos trabalhadores, a ideologia do trabalhismo alimentou a reafirmação da incapacidade política das classes trabalhadoras.144

Assim, a resposta do Estado às lutas das classes trabalhadoras foi a apropriação das

palavras (as imagens) operárias, reelaborando-as a favor dos interesses dominantes. A

ideologia do trabalhismo tratava logo de se apropriar dos discursos dos trabalhadores, ou seja,

“roubavam” suas falas e as reformulavam, para só depois devolvê-las como mito. Para o

Estado Novo, o mito da doação serviria como instrumento de legitimação do regime. Desta

forma, como apontado por Lenharo, “qualquer concessão do Estado à classe trabalhadora vem

acompanhada de uma contrapartida que lhe é fatal: significa sempre uma nova volta no

parafuso da opressão e da dominação”.145 O Estado Novo caracterizava-se por um duplo

144 PARANHOS, Adalberto. O Roubo da Fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. p. 25. O autor também evidencia que a ideologia do trabalhismo não foi inteiramente absorvida pela população e que é possível encontrarmos indícios de insatisfação e resistência, tendo em vista que o discurso estatal exprime mais um projeto (uma intenção) do que propriamente uma operação. Esta concepção também se aplica aos cinejornais, compreendendo-os como instrumentos que servem a uma intencionalidade posta no projeto totalitário do Estado Novo, que se refere ao imaginário de uma sociedade una, indivisa e homogênea. 145 LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas, SP: Papirus, 1986. p. 28.

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caráter, de um lado era repressivo, autoritário, mas do outro reorganizava as imagens em torno

da sacralização de um poder que se justificava pelas idéias de “Nação”, de “Progresso” e

“Unidade”. Em um regime que pretende ser um “Todo Orgânico” a Nação é associada à

imagem do corpo uno, indivisível e harmonioso, sendo que cabia ao operário a “doação” de

seu esforço físico, de seu corpo disciplinado pelas máquinas enquanto instrumento de

trabalho, para que se alcançasse o objetivo do desenvolvimento nacional.

Em relação a este sentido mítico atribuído ao Estado Novo, veremos que, pela primeira

vez, no Brasil se operaria, com base na figura de Getúlio Vargas, a personificação do Estado.

O povo reconhecia em Vargas o Estado encarnado, o Estado dotado de vontades e de virtudes

humanas, assim acreditava Francisco Campos, ideólogo do regime: “nós podemos dizer, a

esta altura do regime, que o Estado Novo é o Presidente — a realização dos seus intuitos, o

desdobramento do seu programa, a projeção da sua vontade — e nele tem o seu mais proveito

doutrinador e o defensor mais intransigente e valioso.”146

Como se vê, imagens como “Estadista”, “Chefe onisciente e onipresente”, “Pai dos

pobres” marcam a personalidade mítica de Getúlio Vargas, a ideologia estadonovista conhecia

a fundo os mecanismos da política moderna, o Estado não passava de uma projeção simbólica

da unidade da Nação, unidade que seria composta muito mais por elementos irracionais do

que racionais, uma vez que o mito (as imagens) interage com as emoções, são interpretes de

desejos e angústias do homem. O Estado Novo se utilizava destes elementos irracionais, as

imagens, para incorporar as multidões de trabalhadores no projeto político nacional, uma vez

que “a integração política pelas forças irracionais é uma integração total, porque o absoluto é

uma categoria arcaica do espírito humano”.147 Pela primeira vez no país, o governo custeava

abertamente a sua própria propaganda, com o intuito de “educar doutrinando”; durante o

Governo Vargas arte e cultura estavam a serviço da Nação, daí a tamanha importância dada a

instrumentos como o rádio, o cinema, a imprensa: “O Estado quer fazer do rádio, do cinema,

da música instrumentos de formação de bons hábitos, de ‘civilização’, de fortalecimento do

sentimento de unidade nacional.”148

Assim, acredito que o papel exercido pelos meios de comunicação, excepcionalmente

o cinema no pós-37, era o de instrumentos legitimadores do Estado Novo, mas uma

“legitimação mobilizadora". O regime só conquistaria legitimidade política se conseguisse se

fazer reconhecer na vida cotidiana do povo, mas para isto, contaria com a força mobilizadora 146 CAMPOS, Op. cit., p. 114. 147 Idem, Ibidem, p. 13. 148 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Vargas, os intelectuais e as raízes da ordem. In: D’ARAUJO, Maria Celina (org.). As instituições da era Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 95.

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da arte e dos produtos de expressão cultural. Como apontou Oliveira, com os meios de

comunicação e as instituições educacionais sob controle, o Estado pretendia usufruir do

caráter pedagógico e “civilizador” destes dispositivos para criar uma identidade nacional, a

imagem de uma Nação Una, onde o “Nós” seria vitorioso sobre o “EU”.

2.2.1 – “Pai dos pobres”: Getúlio Vargas “adota” o cinema

É fato que a apropriação dos meios de comunicação pelo Estado brasileiro não foi uma

prática decorrente apenas do que se seguiu aos anos 30 no país, mas foram as experiências

advindas da República Velha, principalmente com a imprensa, que nortearam os primeiros

passos de um modelo de coerção e controle dos meios de comunicação para a construção da

nacionalidade, que somente ganharia um corpo consistente com a criação do Departamento de

Imprensa e Propaganda em 1939. Os anos que antecederam o movimento de 1930 eram

marcados por uma forte presença da imprensa no jogo político nacional, sendo que ao lado

dos jornais porta-vozes dos interesses políticos e econômicos dos grupos oligárquicos no

poder, conviviam uma diversidade de jornais político-partidários, como os jornais operários.

Estes sofriam constantes censuras oficiais, muitas vezes tinham suas redações e tipografias

invadidas e depredadas, tudo porque eram interpretados como transgressores da ordem. Já o

cinema, nos anos 20, não mereceu a mesma atenção do que a imprensa, ainda não se via nele

um instrumento para a política. Apesar de alguns cinejornais e documentários serem

financiados pelo Estado ou procurarem retratar as personalidades políticas da época, não

equivaleria dizer que representavam uma intervenção estatal, uma vez que os únicos sinais de

um intervencionismo se limitavam às censuras de cunho moral, às taxas e impostos. Ou seja,

ainda não se tinha uma diretriz a respeito do que o cinema deveria realmente exibir (dizer),

muito menos, quais as suas implicações ideológicas.149 O cinema neste período ficaria mais a

cargo do mercado nacional, que preferia os “enlatados” europeus e norte-americanos, na sua

maioria filmes de enredo.

149 Para um melhor detalhamento sobre a utilização dos meios de comunicação durante a República Velha cosultar SOUZA, José Inácio de Melo. Ação e imaginário de uma ditadura: controle, coerção e propaganda política nos meios de comunicação no Estado Novo. Dissertação (Mestrado). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990; SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

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Desde 1920 o meio cinematográfico brasileiro exigia do Estado uma política cultural

mais atuante, os produtores clamavam por intervenções no mercado nacional, na tentativa de

criar mecanismos de competição com o filme norte-americano que dominava as salas de

exibição do país. Mas eles somente seriam atendidos 12 anos mais tarde durante a vigência do

Governo Provisório, com Getúlio Vargas na presidência. Em 4 de abril de 1932 era

promulgado o decreto-lei nº 21.240 que criava a obrigatoriedade da exibição de um filme

nacional, mas que entraria em vigor apenas em 1934. Pela primeira vez, o Estado brasileiro

criava uma medida efetiva de proteção ao cinema nacional. Segundo Simis, embora o decreto

fizesse referência direta exclusivamente à obrigatoriedade de exibição de filmes educativos,

também deixava em aberto a possibilidade de incluir na determinação outros gêneros

cinematográficos, que não o educativo, como o filme de longa-metragem. O mesmo decreto

também mencionava a realização do Convênio Cinematográfico Educativo que tinha entre

suas finalidades “a instituição permanente de um cinejornal, com versões tanto sonoras como

silenciosas, filmado em todo o Brasil e com motivos brasileiros”. 150 Entretanto, os exibidores

não ficaram contentes com a decisão e justificaram o não-cumprimento do artigo de

obrigatoriedade na inexistente produção cinematográfica nacional, insuficiente para atender à

legislação. Do outro lado, os produtores respondiam advertindo que era inviável produzir para

um mercado fechado, sob o controle dos filmes estrangeiros. Não se tinha uma produção

nacional favorável devido não existir as condições mínimas de exibição.

Assim, com a introdução da obrigatoriedade de exibição se criava um clima de euforia

no meio cinematográfico. A Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros

alimentava as esperanças de que, diante de um Estado centralizador como o forjado no bojo

do movimento de 1930, pudessem concretizar a tão sonhada consolidação de uma indústria

cinematográfica nacional. É neste clima que, já em 1934, Getúlio Vargas seria considerado

pelos produtores o “Pai do Cinema Brasileiro”, título recebido honrosamente por ser o

primeiro presidente a ouvir as solicitações dos “intelectuais” do cinema brasileiro e por

compreender a importância deste meio para a culturalização de um país de iletrados.151

Getúlio Vargas seria, então, o responsável por atribuir um sentido à produção cinematográfica

nacional, “adotava” o cinema como um dos principais instrumentos de educação, o “livro de

imagens luminosas” que levaria para os mais diversos rincões do país a imagem que se

pretendia criar do Brasil, a de uma Nação Una:

150 SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996. p. 174-175. 151 SOUZA (1990), Op. cit., p. 137.

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Ora, entre os mais úteis fatores de instrução, de que dispõe o estado moderno, inscreve-se o cinema. Elemento de cultura, influindo diretamente sobre o raciocínio e a imaginação, ele apura as qualidades de observação, aumenta os cabedais científicos e divulga o conhecimento das coisas, sem exigir o esforço e as reservas de erudição que o livro requer e os mestres, nas suas aulas, reclamam. [...] Ele [o cinema] aproximará, pela visão incisiva dos fatos, os diferentes núcleos humanos, dispersos no território vasto da República.152

Outras medidas foram adotadas pelo Governo Provisório para satisfazer aos anseios

dos produtores cinematográficos, como a criação do serviço nacional de censura dos filmes —

antes uma ação restrita aos dispositivos municipais e estaduais, muitas vezes ao chefe de

polícia local — e a implantação da taxa alfandegária que facilitava a importação de filmes

virgens, mas, segundo Simis, “na verdade, mais do que facilitar a construção de fábricas de

filmes, os incentivos sinalizados visaram ao incremento da produção de filmes de curta-

metragem, especialmente aqueles com fins educativos”.153

Esse caráter pedagógico que o Estado brasileiro pós-30 atribuía ao cinema encontrou

um maior respaldo na criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo, o INCE, que

iniciou suas atividades em 1936, mas somente em fevereiro de 1937 era publicada a lei que

regulamentaria juridicamente as funções deste novo órgão. Idealizado por Roquette Pinto, o

Instituto Nacional do Cinema Educativo tinha como objetivo “promover e orientar a

utilização da cinematografia, especialmente como processo auxiliar do ensino, e ainda como

meio de educação popular”.154 Humberto Mauro, mineiro de Cataguases, um dos principais

nomes da cinematografia brasileira da época, foi contratado para compor a equipe do INCE,

sua colaboração rendeu uma produção de filmes ininterrupta por mais de 20 anos.

Para o ministro da educação, Gustavo Capanema, o INCE era vislumbrado como o

mecanismo que ampliaria o poder de intervenção do Ministério da Educação e Saúde sobre os

meios de comunicação que, desde a criação do Departamento de Propaganda e Difusão

Cultural, o DPDC, em julho de 1934, órgão subordinado ao Ministério da Justiça e dos

Negócios Interiores, o seu ministério perdera o controle sobre o rádio e o cinema. Todas as

atividades relacionadas com a cultura e a propaganda ficaram sobre a responsabilidade do

DPDC, como veremos mais adiante, mas Capanema ainda batalhava para que o órgão fosse

desmembrado em duas partes, sendo que o Ministério da Justiça ficaria encarregado de

152 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. v. 1, Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 187-188. 153 SIMIS, Op. cit., p. 94. 154 Idem, Ibidem, p. 34.

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questões relativas à publicidade e à propaganda, enquanto que ao Ministério da Educação

caberiam atribuições no campo da cultura. Entretanto, o sonho de Capanema em reatar sua

capacidade de intervir no rádio e no cinema por meio do INCE não foi muito longe, o próprio

decreto que oficializou as atribuições do instituto não lhe reservara nenhum poder de censura.

A criação do INCE foi inspirada em modelos europeus de cinema educativo,

principalmente no L’Union pour la cinématographie éducative, o Instituto LUCE da Itália

fascista, que além de produzir cinejornais e documentários de curta-metragem também era

responsável pela feitura dos filmes de enredo de longa-metragem da propaganda do Governo

Mussolini. A regulamentação do INCE determinava que os filmes educativos seriam

produzidos tanto no formato 35 mm, com imagem e sons sincronizados, para veiculação em

salas de exibição do circuito comercial, usufruindo da lei de obrigatoriedade de exibição de

uma película nacional, quanto no formato 16 mm, mudo e sonoro, destinados às instituições

de ensino público e particular do país. Assim, acreditava-se que no Brasil ocorreria o mesmo

que na Itália, caminharia para uma produção de longa-metragem de ficção, atendendo aos

ideais de um Estado forte e centralizador. Obviamente, esta esperança animou o mercado

cinematográfico do país, mas com o passar do tempo se veria que até mesmo com a

instituição da ditadura varguista foram poucas as investidas do Estado Novo na feitura do

filme de ficção, limitando-se à censura cinematográfica. As produções do regime, neste

sentido, priorizavam enredos baseados na literatura e na história brasileiras, destacando O

Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, que surgiu como um exemplo de filme

histórico para a época.155

Esta atitude do Estado Novo em não apresentar nenhuma “intenção clara” a respeito

das produções de filmes de ficção, distanciando sua máquina de propaganda dos sets de

filmagem, leva-nos a acreditar que teria sido uma enorme negligência do Governo Vargas, o

que tinha permitido o aparecimento de um contradiscurso na tela, seqüências inteiras de

filmes populares satirizavam a figura do Chefe da Nação e a política de seu regime. Mas antes

de qualquer afirmação, uma pergunta se faz necessária: Como a propaganda do Estado Novo

lidou com o riso e o risível? Talvez posso apresentar uma explicação que aparenta para alguns

um tanto irrealista, porém, permanece aqui como uma tentativa de compreender como em

uma estrutura complexa de propaganda que procurava atuar em todos os níveis sociais, tornar

o Estado presente no cotidiano do povo brasileiro, não se atentou para a força simbólica do

155 Sobre o filme O Descobrimento do Brasil consultar MORETTIN, Eduardo V. O tema do descobrimento do Brasil no cinema dos anos 30: uma análise de Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro. História: questões & debates. n. 32, p. 65-74. jan./jun. 2000.

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elemento ficcional. Acredito que não se trata de um mero reducionismo da ficção a um caráter

de imitação, desprovido de qualquer importância, como no pensamento clássico, mas algo que

vai além disso. Veremos primeiro qual o cenário da produção cinematográfica brasileira

durante o Governo Vargas.

É durante a década de 1930 que o cinema brasileiro vai dar os seus primeiros passos

no sentido de uma possível industrialização da atividade, anterior a esse período depararíamos

com uma produção incipiente de longa-metragem, sustentada por filmes de atualidades e

documentários de curta-metragem, como dito anteriormente. A produção cinematográfica

brasileira de ficção nas décadas de 1930 e 1940 é, basicamente, produção carioca, um ou

outro filme paulista se destacou nesse período. As principais experiências cariocas da primeira

década foram a Brasil Vita Filme (1934), a SonoFilmes (1937) e a Cinédia (1930), produtora

fundada por Adhemar Gonzaga, personalidade intimamente ligada a Getúlio Vargas e com

livre trânsito pelo Palácio Guanabara. Essa primeira fase produziu alguns filmes que

determinaram um pensamento estético para o cinema nacional daquela época: Barro Humano

(1930) de Adhemar Gonzaga, Ganga Bruta (1933) de Humberto Mauro e Limite (1931) de

Mário Peixoto. Em busca de um padrão de qualidade internacional para seus filmes, os

produtores brasileiros adotaram imediatamente o modelo de produção de Hollywood. Mas foi

em 1941 com a fundação da Atlântida que a película nacional ganhou espaço nas salas de

exibição competindo com os filmes estrangeiros e um novo incentivo foi dado ao

desenvolvimento industrial do cinema no Brasil.

A Atlântida produziu basicamente as Chanchadas, uma fórmula cinematográfica de

sucesso que contava com quatro situações básicas: 1) mocinho e mocinha se metem em

apuros; 2) cômico tenta proteger os dois; 3) vilão leva vantagem e 4) vilão perde vantagem e é

vencido. A única alteração que se aceitava era a do mocinho que, por força das circunstâncias,

revelava-se espertalhão.156 As Chanchadas conquistaram o povo brasileiro, todos iam ao

cinema para rir das mais diversas situações em que se envolviam os personagens

representados por Oscarito e Grande Otelo. Não demorou muito para que a crítica da época

rotulasse as Chanchadas como cópias inferiores dos modelos importados de Hollywood; seu

caráter popular, seja porque se dirigia ao povo ou o representava, era constantemente

associado a aspectos depreciativos, tratavam as películas como “filmes vulgares, chulos e

idiotas”, como apontado por Bernardet e Galvão: “Esta vaga acepção de popular qualificando

o filme brasileiro, que se configura no decorrer dos anos 20, ganharia força e generalidade a

156 AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro: a Chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 15.

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partir do final dos anos 30, e sobretudo nos anos 40 e 50, em que ‘popular’ — sobretudo

quando o termo é aplicado às comédias populares — é decididamente sinônimo de

‘vulgar’.”157

Mas esse tipo de crítica ao cinema produzido nos anos 30 e 40 é comum até mesmo

entre os estudiosos. Para Mourão, esses filmes envolvidos em um “sentido popular” não

passavam de produtos de um gênero “popularesco” e, ainda mais, a pesquisadora ao procurar

tratar desses filmes de comédia e dos cinejornais do Estado Novo foi categórica:

Como resultado temos, na prática, um cinema de ficção altamente descompromissado com a realidade brasileira e imitador do produto estrangeiro e documentários de uma certa ingenuidade propagandística. Isto pelo fato de não haver uma política real que conduzisse o cinema a objetivos determinados pela própria dinâmica da produção cinematográfica.158

Para a autora a produção cinematográfica deste período não possui uma unidade

ideológica que possa nos levar a detectar a presença da ideologia estadonovista, ou seja, não

poderíamos falar em um “cinema populista” que tivesse uma estrutura consolidada e, que,

portanto, tivesse um objetivo específico. Segundo Mourão, tanto o meio cinematográfico

quanto o Estado não estavam preocupados em constituir um cinema mais criativo ou mais

engajado politicamente, ambos apenas se envolveram com o debate da criação de uma

indústria cinematográfica brasileira.

Como se vê, a autora pretende denunciar o “descaso” que a propaganda estadonovista

teve com os filmes de ficção, no tocante à de um imaginário social, assim como fizeram os

regimes reacionários europeus. Por outro lado, os cine-atualidades surgem como propagandas

ingênuas do regime. Assim, realmente fica difícil de se pensar em unidade, de um projeto

posto para a sociedade por meio da arte cinematográfica. Entretanto, ao historiador não basta

menosprezar, reduzir estes documentos fílmicos. Até concordo que os cinejornais muitas

vezes aparentam uma certa ingenuidade técnica, mas que com investigações menos

preconceituosas, prevalecendo os aspectos do princípio de montagem, buscando um caráter

estético destes filmes documentais, podemos nos deparar com construções discursivas que

demonstrem, senão uma unidade ideológica, pelo menos os aspectos de um projeto ideológico

estadonovista que tinha como objetivo legitimar o novo regime. Ou seja, ao invés de um 157 BERNADET, Jean-Claude. GALVÃO, Maria Rita. Cinema, repercussões em uma caixa de eco ideológica. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 32. 158 MOURÃO, Maria Dora Genis. O Cinema Brasileiro e o Populismo na Década de 30. In: MELO, José Marques de. (org.). Populismo e Comunicação. São Paulo: Cortez, 1981. p. 148.

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projeto capaz de configurar um “cinema populista”, ou um “cinema totalitário”, temos uma

produção de cine-atualidades que integrava o aparato propagandístico do regime e em

conjunto com outros dispositivos, como o rádio, a imprensa, o filme educativo, as

comemorações, os meetings entre outros, procurava operar significações em torno da imagem

do Estado Novo, ou melhor, de um Estado personificado na figura de seu líder Getúlio

Vargas. Em filmes a respeito da seca que afligiu o Nordeste nos anos 40 não é o Estado que

surge como o responsável pelas benfeitorias, mas é o Presidente Vargas que é representado

como o “homem providencial”, aquele responsável por solucionar o grave problema daquela

região.

Agora, em relação aos filmes de ficção produzidos neste período diria que ainda é

necessário que os estudiosos de cinema se dediquem mais a desvendar suas significações, que

elementos colaboraram para a formação de uma afetividade dita “popular”; a memória das

Chanchadas exige pesquisas mais generosas como a de Sérgio Augusto que acredita que “as

chanchadas transpiravam brasilidade por quase todos os fotogramas”. Assim, procuro as

minhas respostas para a questão de como esses filmes, que até provocaram receios nos

representantes do cinema norte-americano no país, foram incorporados, mesmo que de

maneira indireta, ao “discurso totalitário” do Estado Novo, já que, segundo as palavras de

Sérgio Augusto, compreendo que as Chanchadas tinham todos os predicados necessários para

atender a uma intenção totalizante de projetar no Estado a imagem da unidade nacional:

Afinal, em nenhum momento de sua trajetória o cinema brasileiro se relacionou tão intensa e carinhosamente com o grande público como nos tempos em que Oscarito e Grande Otelo formavam uma dupla do barulho e os estúdios da Atlântida, apesar de suas notórias precariedades, eram mitificados como uma versão tropical da Metro. Seu humor mais ingênuo encantava as crianças, seu humor mais malicioso divertia os adultos, e seus interlúdios românticos e musicais fechavam o círculo da sedução familiar [grifo nosso].159

Como se vê, diante da relação que o Estado Novo estabeleceu com os meios de

comunicação de massa, surgem algumas implicações que vêm colocar em dúvida o poder de

coerção e controle do Governo Vargas. De fato, os filmes da Atlântida, as Chanchadas,

constantemente exibiam seqüências que satirizavam a figura de Getúlio Vargas, assim como

as canções da dupla caipira Alvarenga e Ranchinho eram permeadas de versos irreverentes a

respeito do Chefe da Nação e de seu regime. Entretanto, tanto os filmes quanto as músicas

159 AUGUSTO, Op. cit., p. 14.

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não tiveram sua veiculação proibida, mas a dupla foi retida algumas vezes. O episódio que

reforça essa contradição ocorreu com os próprios cantores. Uma noite, Alzira Vargas, filha do

Presidente, curiosa pelo sucesso da dupla, foi assisti-los em um circo e, no final, ficou

fascinada pelo que vira. Logo, resolveu convidá-los para uma apresentação no Palácio do

Catete, onde foram recebidos por Getúlio Vargas. O Presidente não só solicitou que

cantassem seus principais sucessos, como também as músicas que o tinham como mote. Para

o espanto de Alvarenga e Ranchinho, que acreditavam que logo que acabasse o espetáculo

sairiam do Catete direto para a carceragem do DOPS, Vargas não só passou toda a noite

dando boas gargalhadas, como também deu ordens à polícia repressora de Filinto Müller para

que não incomodasse mais os moços que, a partir daquele momento, poderiam cantar seus

versos tranqüilamente por todo o país.160 Fica, então, a pergunta: porque Vargas permitiu que

sátiras a seu respeito fossem veiculadas por meios de tamanho apelo popular, como as

Chanchadas e as músicas de Alvarenga e Ranchinho? Talvez um início de resposta esteja no

próprio apelo popular.

Fugindo da imagem “séria” que a sua propaganda estatal lhe atribuía, as letras e as

seqüências cinematográficas cômicas poderiam ser mais uma forma do Estado para dirigir-se

às multidões, por mais contraditório que possa aparentar. Se de um lado, a propaganda

política do regime utilizava as imagens “sérias” para a edificação de verdades (sociedade una,

harmônica, homogênea; desenvolvimento econômico etc.) que auxiliassem na construção do

mito Vargas — mas verdades facilmente demolidas se não tivessem como suporte ações

políticas concretas —, por outro lado, o cômico, ainda tomado como o “não-sério”, era

apropriado pelo Estado no sentido de reforçar o “discurso totalitário”, ao invés de inviabilizá-

lo ou contradizê-lo. O Estado Novo respondia aos opositores do regime com o riso, com uma

“transgressão socialmente consentida”. Essa leitura permite dizer que a repressão a esses

mecanismos só serviria para duplicá-los a favor da oposição, alimentaria qualquer vestígio de

resistência. Vargas vai além, apropria-se desses a fim de manter a ordem social, o riso aqui é

uma saída do regime para esvaziar qualquer contradiscurso.

Para que possamos melhor desenvolver esta idéia, vejamos como o riso e o risível161

vêm sendo tratados pelas teorias do pensamento Ocidental. Desde a Antiguidade, um misto de

prazer e desprazer acompanha o riso que, muitas vezes, incorpora as idéias de desordem e

desvio. Como em Platão, de acordo com Alberti, em que o riso e o risível são falsos prazeres, 160 Ver BACCARIN, Biaggio (seleção dos verbetes). Enciclopédia da música brasileira: sertaneja. São Paulo: Art Editora; Publifolha, 2000. p. 16. 161 O risível aqui deve ser entendido como objeto do riso, ou seja, aquilo do que se ri, o cômico. Ver ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 25.

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uma experiência atribuída à multidão de homens privados da razão. Para o filósofo ambos são

responsáveis por nos afastarem da verdade. Por outro lado, Aristóteles em A Poética toma a

comédia como aquela capaz de revelar o caráter universal da poesia: o verossímil; ao poeta

cômico não cabe contar a realidade como ela de fato aconteceu, mas, sim, como ela poderia

ter acontecido na ordem do verossímil, ou como já dito anteriormente, satisfaz o princípio

vital da ficção: o “efeito de real”. Segundo Alberti, o fato da oposição riso versus pensamento

sério permear a história da forma de pensar a respeito do riso e do risível induz a um

constante julgamento ético que trata de condená-los ou tolerá-los. Condena-se porque o riso

está distante da instância suprema — para Platão, a das Idéias, para a Teologia, a de Deus —,

logo, nos dificulta a ter acesso à essência fundamental do ser. Tolera-se por dois motivos

inerentes à especificidade humana: primeiro, porque o repouso é uma necessidade natural do

homem, ou seja, o risível é tolerado como distração, divertimento, assim como o sono é

importante para o corpo, o riso é para o espírito; segundo, é a própria faculdade de rir que nos

distingue de Deus.

Assim, para a autora, o fato de logo associarmos o riso e o risível à concepção de

desvio, libertação, já que se referem a um “não-sério”, a um “não-oficial” — como somos

tentados a fazer diante das “brechas” deixadas pelo Estado Novo no tocante aos filmes da

Chanchada e às músicas da dupla Alvarenga e Ranchinho — pode ser um falso caminho, pois

podemos nos deparar com “a constatação de que não raro é [o riso] a afirmação mesma da

ordem que está em jogo — as piadas racistas, por exemplo, não nos unem contra a norma”.162

Temos que o lugar atribuído ao riso e ao risível depende, exclusivamente, da forma como a

sociedade é concebida: “quando pressupõem a idéia de um sistema, de uma ordem ou de uma

norma, o lugar do riso é em geral o da desordem ou da transgressão”.163 Assim, diante de um

regime centralizador, autoritário, onde se busca a manutenção da ordem, do corpo social

homogêneo e harmônico, como se apresentou o Estado Novo, somente caberia associarmos o

riso à desordem ou à transgressão, mas Vargas optou por uma “transgressão socialmente

consentida”. Permitiu que o cômico presente nas canções da dupla Alvarenga e Ranchinho e

nas películas da Atlântida circulasse livremente, mas dentro de certos limites que não

afligissem a ordem estabelecida.

Entretanto, esse consentimento vinha acompanhado de uma outra significação

atribuída ao riso e ao risível. Seguindo as exigências do pensamento moderno, procura-se um

afastamento do pensamento sério, ou seja, tornar o “não-sério” positivo. Se para as teorias

162 ALBERTI, Op. cit., p. 29. 163 Idem, Ibidem, p. 30.

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clássicas, o sério coincidia com a verdade, uma vez que o “não-sério” (o espaço do riso) era o

“não-verdadeiro”, temos que, para os teóricos modernos, o sério não é mais associado à

verdade. Para os modernos o riso continua a ser o “não-sério”, no entanto, agora, assumindo

um caráter positivo, pois ele pode ir para além do sério e atingir uma realidade “mais real”

que a do pensado. O riso e o risível estão no domínio do entendimento, ao invés da razão. Isso

nos leva a dizer que, segundo a teoria de Schopenhauer (século XIX), os conceitos abstratos

(“representações abstratas”) formulados pela razão não são capazes de atingir as variações da

realidade, as nuanças do concreto (o real), o que equivale dizer que “o riso resulta do fracasso

da razão em apreender a realidade”.164 A verdade, resultado da busca da razão, é sempre

refutável. Antes, o fato de ridicularizar algo propiciaria uma idéia clara de falsa gravidade,

uma seriedade com aparência de verdade, ou seja, uma realidade que, mesmo ainda não

apreendida, se apresenta com status de verdade. Entretanto, diante desta teorização, que

também influenciou a forma de pensar o riso e o risível no século XX, a razão é a própria

aparência de verdade, porque não é capaz de alcançar a realidade. “Os conceitos pelos quais a

razão ‘pensa’ a realidade estão sempre sujeitos a um desnudamento que revele sua falsidade, e

esse desnudamento nada mais é do que o objeto do riso”.165 Segundo a autora, para as teorias

modernas o riso é resultante da contradição entre a realidade e a razão, o que nos demonstra

as limitações do pensamento; é a experiência do nada, do impossível, da morte, portanto,

permite pensarmos o impensável:

Já não é o objeto que nos faz rir, mas uma certa percepção do que ele significa — a verdade do não-sério. Assim, o risível não existe mais sem o sujeito que lhe empresta essa percepção [...] sem a percepção da incongruência [...], sem a percepção de que a segurança era enganadora.166

Assim, o quadro que se estabeleceu foi capaz de anular qualquer idéia que remetesse à

condenação e à tolerância do riso e do risível, uma vez que ambos não são mais incompatíveis

com o pensamento, que não é mais necessário resolver a contradição essencial entre o riso

(irracional, involuntário) e o fato de o homem ser racional por excelência, pelo contrário, é

importante ir além da razão. Uma frase do romance O nome da rosa, de Humberto Eco, citada

por Alberti, pode nos auxiliar a sintetizar as concepções modernas a respeito do riso e do

risível: “Quem ri não acredita naquilo de que está rindo, mas tampouco o odeia”. Portanto,

164 ALBERTI, Op. cit., p. 177. 165 Idem, Ibidem, p. 196. 166 Idem, Ibidem, p. 205.

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retomando a comicidade que envolvia a figura de Getúlio Vargas nos filmes e músicas

veiculadas durante o regime, poderíamos dizer que a apropriação do riso baseava-se no fato

de que, realmente, o povo iria rir das sátiras que ridicularizavam o Presidente, no entanto, “a

atitude em relação ao objeto do riso [Vargas] não era nem de aprovação (não se acredita nele)

nem de rejeição (não se o odeia), mas antes uma ‘atitude-nada’.”167

Um exemplo pode ser encontrado no próprio cinejornal do DIP. Em 4 de julho de

1942, a União Nacional dos Estudantes (UNE) realizou uma passeata no Rio de Janeiro onde

se ironizavam as figuras de Hitler e Mussolini, em uma demonstração de protesto contra os

regimes fascistas e, que, pretendia culminar em um sentimento anti-Estado Novo, uma vez

que a sociedade brasileira vivia sob uma ditadura. A manifestação sinalizava uma

reivindicação democrática. Entretanto, o tom cômico da passeata, com os estudantes

desfilando com as caricaturas dos ditadores europeus, ao ser apropriado pelo Estado Novo

esteve longe de reivindicar qualquer sentimento democrático, como acreditavam os

realizadores, pelo contrário, serviu para reafirmar o clima de euforia da Nação contra os

novos inimigos da Pátria — os nazi-fascistas —, que vinha desde os torpedeamentos dos

navios brasileiros por submarinos alemães. Uma saída para ambientar o alinhamento do Brasil

com as Forças Aliadas, fato que vinha sendo ensaiado pelo Governo Vargas.

A agitação popular dos estudantes de Direito no inverno de 1942 teve a sua versão

oficial exibida nas telas do país em um cinejornal intitulado Contra as forças do mal. Em um

sentido contrário a toda a produção cinematográfica da propaganda política do regime que,

constantemente, apresentava uma seriedade na forma de tratar os assuntos e a imagem de

Getúlio Vargas, Contra as forças do mal assumia, de forma positiva, o deboche da

manifestação. Assim, surge a questão: como podemos entender o fato de em um cinejornal do

DIP prevalecer o tom de humor e deboche, uma vez que o Governo Vargas se encontrava em

um momento frágil de busca por uma ampla mobilização social a favor da estreita relação

política-econômica-militar do Brasil com os Estados Unidos? O cômico aqui apropriado pelo

Estado Novo, segundo Cytrynowicz, não passaria de um instrumento calculado para esvaziar

o protesto dos estudantes, mas, que, no entanto, neutralizou qualquer efeito mobilizatório para

a guerra. Novamente o riso e o risível surgem como “atitude-nada”:

O humor do cinejornal do DIP é, portanto, uma tentativa de esvaziar qualquer mobilização efetiva que associasse alinhamento do Brasil com a defesa da democracia dentro do país. A questão não é a

167 ALBERTI, Op. cit., p. 203.

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eventual força que aqueles pequenos grupos de estudantes pudessem ter, mas a antecipação do governo Vargas em enquadrar os protestos como parte da sua própria estratégia política de mobilização desmobilizante [grifos nossos]. O humor da manifestação dos estudantes é compreensível, entendendo-se o humor aqui como uma estratégia política de persuasão, mas no caso do DIP tratava-se de uma estratégia de esvaziamento da oposição política autônoma.168. (Cytrynowicz , 2000, p.338).

Como podemos notar, a compreensão do cômico como uma estratégia de

esvaziamento de um contradiscurso é uma saída explicativa para a contradição posta na

relação entre Estado e meios de comunicação de massa durante o Governo Vargas, mas não a

única. É tentador a leitura de que tanto os filmes da Atlântida quanto as músicas da dupla

caipira Alvarenga e Ranchinho atuavam como elementos de desvio da ordem estabelecida.

Porém, como explicar o fato de que o próprio Vargas consentiu à dupla que cantassem os

versos que ironizavam a imagem do Presidente, sem que fossem incomodados? Ou seja, essa

atitude soa, no mínimo, estranha à prática repressiva do Estado Novo que tinha no

Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, o órgão responsável por “centralizar,

coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional”, como também fazer a censura de

todas as manifestações culturais do país, a fim de coibir qualquer veiculação de mensagens

indesejáveis ao regime.

Portanto, ao acreditar que essa contradição pode ser explicada por uma “transgressão

socialmente consentida”, o riso e o risível vão incorporar aqui a “disposição totalitária” do

Estado Novo, sendo instrumentos adequados para o reforço da ação de um “discurso

totalitário”. Se o cômico não serve para auxiliar nas construções imagéticas da Nação Una, da

“Pátria-Mãe”, do líder, da ordem, do progresso, atua em uma outra direção, buscando

completar a totalidade: o esvaziamento do discurso dos grupos opositores.

2.2.2 – O DIP e o Cinema

“Poder público implica função pública, interesse público, responsabilidade pública”. É

assim que Francisco Campos em 1940 procurou justificar o controle do Estado Novo pela

imprensa e os meios de comunicação em geral, como previsto na Constituição de 1937. No 168 CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano de São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Edusp, Geração Editorial, 2000. p. 338.

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entendimento do autor o Estado tinha se antecipado e compreendido a importância dos

instrumentos de propaganda para o novo regime, quem detivesse o controle destes

mecanismos culturais conceberia o sentido que deveria tomar a opinião pública nacional. Na

sua visão, não caberia ao novo Estado o exagero dos regimes “totalitários” europeus, que

englobavam a imprensa no governo, muito menos a negligência dos regimes liberais que

permitiam que focos de resistência e de descontentes com o governo fossem formados e

crescessem dia a dia, mas, sim, que o Estado e a imprensa unissem forças no objetivo de que

as novas estruturas sociais não fossem afetadas, uma vez que

É possível hoje, com efeito, e é o que acontece, transformar a tranqüila opinião pública do século passado em um estado de delírio ou de alucinação coletiva, mediante os instrumentos de propaganda, de intensificação e de contágio de emoções, tornado possíveis precisamente graças ao progresso que nos deu a imprensa de grande tiragem, a radiodifusão, o cinema, os recentes processos de comunicação que conferem ao homem um dom aproximador ao da ubiqüidade, e, dentro em pouco, a televisão, tornando possível a nossa presença simultânea em diferentes pontos do espaço. Não é necessário o contato físico para que haja multidão.169

Mas veremos que não foi bem assim que se deu a relação entre o novo regime que se

configurava após o golpe de 1937 e os meios de comunicação. O Estado não atuaria apenas

como censor dessas atividades culturais, mas principalmente como produtor de sua própria

imagem, apropriando-se dos mais diversos dispositivos de propaganda e reunindo-os todos

em um órgão espelhado no modelo nazi-fascista. O Estado Novo tinha os meios de

comunicação não apenas como instrumentos de vigília da sociedade, mas também como

elaboradores de uma identidade nacional, sentimento que deveria perpassar todos os níveis

sociais; na mais longínqua região do interior do país, seja por meio do rádio, do cinema, da

imprensa, o Estado estaria presente, o povo teria a sensação de estar coberto pelo manto da

“Pátria-Mãe”, as imagens o aproximariam de afetos sensíveis, identificar-se-ia com o “Todo

Orgânico”, uma vez que “não é necessário o contato físico para que haja multidão”. Portanto,

como apontado por Velloso,170 a ditadura de Vargas concebia a cultura em termos de

organização política, por isso a necessidade de se criar em 1939 um aparato propagandístico

para produzir e difundir a imagem da unidade nacional projetada no Estado Novo. Nasce daí

uma nova concepção de cultura: a “cultura política”; no contexto do projeto ideológico 169 CAMPOS, Op. cit., p. 25. 170 VELLOSO, Mônica Pimenta. Cultura e poder político: uma configuração do campo intelectual. In: OLIVEIRA, Op. cit., p. 72-74.

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estadonovista, a cultura estava subordinada à política, ao invés de se tratar de uma forma de se

“fazer política”, logo, aquilo que era da natureza do homem, o expressar-se, encontrava-se

circunscrito à permissão da política. Fora do círculo era considerado subversivo. Subversão

que era respondida com repressão. Assim, propaganda e repressão eram elementos

indissociáveis em um regime que precisava se autojustificar como o melhor modelo para

conduzir o país.171

A propaganda política de Getúlio Vargas ensaiava seus primeiros passos já em 2 de

julho de 1931, logo que se instituiu o Governo Provisório, com a criação do Departamento

Oficial de Publicidade (DOP), um apêndice da Imprensa Nacional que, por sua vez, respondia

ao Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores Esse órgão inaugurava uma nova

modalidade para os primórdios da propaganda brasileira, a utilização do rádio. Suas

experiências radiofônicas seriam mais tarde aproveitadas quando da criação da Hora do

Brasil. Segundo Goulart, “a ação do DOP não era apenas de divulgação, mas previa um

direcionamento de opinião pública para se legitimar a nova situação”.172 Mas já em 1932 os

meios de comunicação ganham destaque e atenção, uma vez que se percebe o instrumento

valioso que representavam em se tratando de difusão cultural em massa, o que provocou um

longo debate entre as autoridades que compunham o Governo Provisório, e que se estenderia

até mesmo durante o Estado Novo: qual a linha tênue que dividiria a ação cultural,

eminentemente educativa e formativa, da mobilização político-social e da propaganda

propriamente dita? Os dispositivos culturais, como o rádio, o cinema, a música ficavam entre

este fogo cruzado, uma vertente defendia o caráter educativo e outra o caráter propagandístico

destes; de um lado o Ministério da Educação e Saúde lutava para que todas as atribuições

referentes ao campo da cultura ficassem sob o seu poder, enquanto as referentes à publicidade

e propaganda caberiam ao Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores.

Mas Vargas, procurando resolver o problema da propaganda do Estado em seus novos

aspectos, preferiu concentrar tudo em um único departamento e, então, reorganizou o DOP

171 A respeito do caráter repressivo do Governo Vargas ver CANCELLI, Elizabeth. O Mundo da Violência: a polícia da era Vargas. Brasília, DF: Editora da Unb, 1994. Outra questão que não deve ser desprezada é o caráter anti-semita do período como demonstrado em CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O Anti-semitismo na Era Vargas (1930-1945) São Paulo: Brasiliense, 1995. Nos cinejornais não consegui encontrar vestígios deste caráter anti-semita, como os apontados pela autora na imprensa brasileira da época. Recentemente o historiador Roney Cytrynowicz em um ensaio levantou o debate em torno desta questão, evidenciando que durante o Estado Novo as entidades judaicas de São Paulo e do Rio de Janeiro funcionaram corriqueiramente, sendo que até viveram um boom em suas atividades sociais, culturais e econômicas (CYTRYNOWICZ, Roney. Além do Estado e da ideologia: imigração judaica, Estado Novo e Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de História. ANPUH, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 393-424, 2002.). 172 GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. São Paulo: Marco Zero, 1990. p. 56.

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criando em 10 de julho de 1934 o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC).

Esse novo órgão tinha como objetivo estudar a melhor utilização do cinema, da radiodifusão e

de outros processos técnicos na difusão dos ideais do governo, como também estimular a

produção, a circulação e a exibição de filmes educativos. Esta decisão desagradou em muito o

ministro da educação Gustavo Capanema, uma vez que desde a publicação do decreto-lei

21.240 em 1932, o mesmo que determinou a exibição obrigatória dos complementos

nacionais, criara-se o clima de que seria instituído oportunamente um órgão técnico dentro do

Ministério da Educação e Saúde, responsável por questões cinematográficas e de tantas outras

atividades culturais. Entretanto, quando da criação do DPDC, Getúlio Vargas esvaziou

qualquer pretensão neste sentido, subordinando o órgão ao Ministério da Justiça e dos

Negócios Interiores, que levou consigo o cinema e o rádio educativos. Somente em janeiro de

1937, com a reforma do ministério, é que Capanema teria, finalmente, seus desejos atendidos,

mesmo que parcialmente, com a institucionalização do Serviço de Radiodifusão Educativa e

do Instituto Nacional de Cinema Educativo.

Segundo Schwartzman,173 esta decisão estava atrelada a um esforço do Governo

Provisório em colocar os meios de comunicação de massas a serviço direto do poder

executivo, sinal de uma presente influência do Ministério de Informação e Propaganda do

nacional-socialismo na Alemanha, criado em 1933 e chefiado por Joseph Goebbels. É Luís

Simão Lopes, oficial do gabinete do governo Vargas que, impressionado com o potencial

persuasivo da propaganda nazista, em uma de suas viagens de reconhecimento na Europa,

sugere em carta enviada ao Presidente Vargas a criação de uma miniatura do modelo alemão:

O que mais me impressionou em Berlim, foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional socialista. Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diariamente o contato do “nazismo” ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através de toda a imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido ou, seja no mínimo, pelo encontro, por toda a parte dos uniformes dos AS. A organização do Ministério de Propaganda fascina tanto, que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil.174

Porém, contrariando a visão de Schwartzman, Simis afirma que esta aproximação não

é segura, o DPDC não teria sido resultado da influência do órgão alemão, somente mais tarde

173 SCHWARTZMAN, Simon. et al. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 87-88. 174 LOPES, Luís Simão. apud. ALMEIDA, Cláudio Aguiar. O cinema como “agitador de almas” — Argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo: Annablume, 1999. p. 79.

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é que a propaganda política de Vargas seria reorganizada neste sentido, mas com suas

próprias particularidades. Para a autora a justificativa estaria no fato que, desde a sua

idealização em 1932, a maior preocupação do DPDC era com o cinema educativo. Mesmo

quando Lourival Fontes assume a direção do órgão em 1935, o que sugeria uma forte

centralização dos meios de comunicação no aparato estatal, a produção cinematográfica

oficial ficou restrita ao INCE que, por sua vez, estava vinculado ao Ministério da Educação e

Saúde. Somente em 1938 é que se tem início a feitura do cinema de propaganda do Governo

Vargas. 175

Neste mesmo ano, o DPDC era reorganizado, criando-se o Departamento Nacional de

Propaganda (DNP), dirigido por Lourival Fontes, que passaria a personalizar a propaganda

estadonovista. Lourival Fontes era grande admirador de Mussolini e do fascismo, pretendia

criar todas as condições para que no Brasil surgisse um órgão capaz de centralizar todas as

atividades culturais e difundi-las nacionalmente. O primeiro indicativo desse projeto foi o

anseio de Fontes em constituir uma estação de rádio oficial que abrangesse todo o território

nacional, mas enquanto ele não conseguia vitórias nesse sentido, contentava-se com uma rede

de estações, advinda da gestão anterior de Sales Filho no DPDC, que contava com 43

emissoras interligadas na Hora do Brasil. Outro indicativo foi a criação da Agência Nacional

que tinha como finalidade distribuir o noticiário oficial aos jornais de todo o país. Assim,

segundo Souza,176 com a ampliação da palavra do Estado, por meio do rádio e da imprensa, o

ajustamento dos meios de comunicação, após o golpe de 1937, à nova ordem vigente foi

mínima. Arquitetava-se o cenário para o aparecimento do “famigerado DIP”.

Foi o decreto-lei 1.915 de 27 de dezembro de 1939 que criou o Departamento de

Imprensa e Propaganda (DIP), órgão que, subordinado apenas ao Presidente da República,

tinha como objetivos “centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional,

interna ou externa, e servir, permanentemente, como elemento auxiliar de informação dos

ministérios e entidades públicas e privadas, na parte que interessa à propaganda nacional”.177

O DIP era constituído de cinco Divisões: a) Divisão de Divulgação; b) Divisão de Rádio-

difusão; c) Divisão de Cinema e Teatro; d) Divisão de Turismo; e) Divisão de Imprensa. O

decreto também determinava a criação dos Departamentos Estaduais de Imprensa e

Propaganda (Deips) que, subordinados ao DIP, os auxiliavam na execução de seus serviços.

175 SIMIS, Op. cit., p. 50. 176 SOUZA (1990), Op. cit., p. 135. 177 Ver BRASIL. Decreto-Lei nº 1915, de 27 de dezembro de 1939. Cria o Departamento de Imprensa e Propaganda e dá outras previdências. Legislação Federal. São Paulo, v.03, p.666-669.

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O DIP surgiu em um contexto de constantes ameaças reinantes, um clima que desde a

tentativa de golpe comunista em 1935 veio propiciar ao Estado as idéias de aparelhar a sua

máquina de propaganda. Para Goulart, “além de representar a solução para a legitimação do

Estado Novo pela propaganda [...] o DIP resultou no aperfeiçoamento dos meios de

intervenção estatal na área da comunicação”.178 Porém, na visão de Carone, o DIP foi criado

em um momento tardio do Estado Novo, evidenciando que houve “um espaço de tempo

grande entre o golpe e a realização de determinados objetivos”,179 ou seja, a propaganda

política de Getúlio Vargas demorou em compreender que a legitimação do regime passava por

“fazer da presença do Estado Novo algo visível e palpável no cotidiano dos cidadãos

urbanos”.180 A respeito deste caráter tardio do surgimento de um órgão que aliasse a

propaganda política à defesa nacional, Lacerda acredita que a resposta esteja no fato de que “a

própria constituição de forças políticas dos primeiros anos do governo Vargas e a disparidade

de pensamentos e projetos políticos existentes dificultavam, de curta maneira, a formulação

de um projeto propagandístico por parte do governo”.181 Então, somente com a criação do

DIP durante o Estado Novo que a propaganda foi atrelada à concepção de manutenção da

ordem e da unidade nacional, sendo que, ao mesmo tempo, exercia a função de “educar

doutrinando”.

O DIP não passou de uma resposta brasileira a um processo que já vinha se

desenvolvendo no cenário mundial. Desde os primeiros anos da década de 1930, o Estado

atentara para a eficácia dos mass media para a legitimação de um regime que se pretendia

totalitário, acreditava-se que por meio do uso sistemático destes mecanismos culturais era

possível forjar uma identidade nacional na qual o povo se reconhecesse. Vale ressaltar que

desde os primeiros anos da década de 20 surgiram vários estudos de teoria de comunicação,

principalmente nos Estados Unidos, com a preocupação de investigar os efeitos da

comunicação de massa, sendo que a primeira iniciativa se deu sobre a questão da influência

do cinema nas crianças — ainda hoje esta tradição de estudos predomina no meio acadêmico,

com uma ou outra alteração, mas agora o alvo é a televisão, quem sabe, mais adiante, a rede

de computadores, a Internet. Estas pesquisas, principalmente de orientação empírica, tiveram

origem nos interesses técnicos do Estado, das Forças Armadas e até mesmo dos grandes

monopólios do setor de comunicação, e objetivavam compreender o funcionamento do

178 GOULART, Op. cit., p. 59. 179 CARONE, Edgar. O Estado Novo (1937-1945). Rio de Janeiro: Difel,1976. p. 171. 180 SOUZA (1990), Op.cit., p. 180. 181 LACERDA, Aline Lopes de. A “Obra getuliana” ou como as imagens comemoram o regime. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, 1994, p. 243.

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processo comunicacional para que pudessem otimizar seus resultados. O marco inicial deste

campo de estudo que ficou conhecido como Mass Communication Research foi a obra de

Lasswell, Propaganda Techniques in the World War, publicada em 1927. Foram os trabalhos

de Lasswell que orientaram a corrente funcionalista dos estudos norte-americanos, que visava

as funções exercidas pela comunicação de massa na sociedade. Este grupo tinha como

referência teórica o estrutural-funcionalismo, herdado do positivismo de Auguste Comte, e

acreditavam que, assim como a sociedade, o processo de comunicação teria uma equivalência

biológica com o organismo físico. Assim, compreendido que o organismo social é dividido

em diferentes partes que desempenham funções de integração e manutenção do sistema, os

autores desta corrente vêem os meios de comunicação como as “células sociais” que têm

como tarefa primordial coibir qualquer disfunção que ameace a ordem social.

Os estudos funcionalistas ganharão força e destaque principalmente após o

encerramento da Segunda Guerra Mundial, quando se cria um clima de alerta em relação ao

poder instrumental, tanto positivo como negativo, dos mecanismos culturais. Em 1948,

Laswell desenvolve a base de seu pensamento no ensaio A estrutura e a função da

comunicação na sociedade,182 em que nos apresenta as seguintes funções dos mass media: a)

vigilância sobre o meio ambiente (revelando tudo o que poderia ameaçar ou afetar o sistema

de valores de uma comunidade ou das partes que a compõem); b) correlação das partes da

sociedade em resposta ao meio (integração) e c) transmissão da herança social de uma

geração. Desta forma, nota-se que os processos de comunicação estão subentendidos aqui

como formas de assegurar a ordem, a harmonia da sociedade, logo, qualquer tipo de disfunção

(leia-se resistência) devia ser eliminada.

No mesmo ano, Lazarsfeld e Merton publicam o ensaio Comunicação de massa, gosto

popular e ação social organizada,183 apresentando outras funções: a) a atribuição de status

(estabilizar e dar coesão à hierarquia da sociedade); b) a execução de normas sociais

(normalização) e c) o efeito narcotizante (uma disfunção, segundo os autores). Uma outra

contribuição destes autores no campo da comunicação foi a definição do caráter de eficiência

da propaganda. Após analisar o modelo nazi-fascista, definiram três características

fundamentais para uma propaganda que se pretende eficaz: 1) a monopolização — trata-se de

uma das principais características de uma estrutura política autoritária que neutraliza qualquer

tentativa de contra-discurso, a oposição não tem acesso aos meios de comunicação; 2) a 182 LASSWELL, Harold D (1948). A estrutura e a função da comunicação na sociedade. In: COHN, Gabriel. Comunicação e indústria cultural. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985. p. 105-117. 183 LAZARSFELD, Paul F. & MERTON, Robert K. (1948). Comunicação de massa, gosto popular e ação social organizada. In: COHN, Op. cit., p. 230-253.

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canalização — ao invés de trabalhar no sentido de mudar os valores sociais, procura-se

canalizar os padrões de comportamento e de atitudes já pré-existentes e 3) a suplementação —

os meios de comunicação não podem esquecer o contato direto com a população.

Como se vê, a corrente funcionalista ao procurar estabelecer um controle dos meios de

comunicação, justificando a necessidade de uma manutenção coerente da ordem mundial,

acaba por reproduzir alguns aspectos do “projeto totalitário” aplicado às atividades culturais

pelos regimes políticos surgidos nos anos 30 e 40. Lasswell ao se referir à ideologia, ou ao

que ele resolveu denominar de “herança social”, dá as primeiras pistas ao determinar que os

principais meios que irão comunicá-la às novas gerações são o lar e a escola. No contexto dos

Estados autoritários, os conceitos de “Pátria” e “Moral” são empregados concomitantemente

no sentido de contribuir para a construção de um sentimento de nacionalidade, de defesa do

passado e da tradição, como também da preservação de valores morais e da família que,

segundo Reich, foi o meio adequado para criar a estrutura e a ideologia destes regimes: “a

criança passa pelo estado autoritário em miniatura que é a família”,184 é o pai a representação

do regime autoritário, ele assume o papel de adotar no cerne da família uma posição em que

os filhos serão constantemente sujeitados a sua autoridade, enquanto que a figura materna se

refere à Pátria numa relação de afetividade com os envolvidos.

Retomando o papel do DIP no Estado Novo, segundo Souza, veremos que no

entendimento de Lourival Fontes a centralização era o marco deste órgão para a propaganda

estadonovista, mas ele encontrou problemas para colocar em prática esse desejo. Desde a sua

criação, o DIP enfrentou o ataque de projetos divergentes por parte de membros do governo

com força junto ao poder. Um dos principais debates se deu entre o DIP e o Ministério da

Educação e da Saúde em relação à radiodifusão. Fontes via no rádio um veículo promissor

para difundir os ideais do regime, tanto que sonhava como uma estação de radiodifusão

nacional, como vimos, mas Capanema já acreditava que o rádio não deveria servir à

propaganda, mas a um projeto nacional de educação e cultura. Outra desavença que animou

os bastidores do Governo Vargas foi resultante do desejo do diretor-geral do DIP em

concentrar sob o seu poder toda a produção cinematográfica oficial, cobiçando o INCE e o

Serviço de Informação Agrícola, vinculados ao Ministério da Educação e Saúde e ao

Ministério da Agricultura, respectivamente. Obviamente, Fontes não obteve o apoio dos

ministros Capanema e Fernando Costas ao seu projeto, muito menos suas palavras tiveram

eco no Palácio Guanabara, fato que demonstrava que Getúlio Vargas não lhe pretendia

184 REICH, Wilhelm (1933). Psicologia de massa do fascismo. Trad. J. Silva Dias. Porto, Portugal: Publicações Escorpião, 1974. p. 32.

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conceder excessivo poder. Assim, a Divisão de Cinema e Teatro (DCT), dirigida por Israel

Souto, no tocante ao cinema, ficou restrita à censura prévia dos filmes e à produção do Cine

Jornal Brasileiro (CJB), como previsto por lei:

À Divisão de Cinema e Teatro compete: a) instituir, permanentemente, cine-jornal, com versões sonoras,

filmado em todo o Brasil e com motivos brasileiros, e de reportagem em número suficiente, para inclusão na programação;

b) incentivar e promover facilidades econômicas às empresas nacionais produtoras de filmes, e aos distribuidores de filmes em geral;

c) censurar os filmes, fornecendo certificado de aprovação após sua projeção perante os censores da D.C.T;

d) proibir a exibição em público de filmes sem certificado de aprovação da D.C.T.;

e) publicar, no “Diário Oficial”, a relação dos filmes censurados, suas características e o resumo do julgamento da D.C.T;

f) censurar previamente e autorizar ou interditar: 1) as representações de peças teatrais em todo o território nacional; 2) as representações de variedades; 3) as execuções de bailados, pantomimas e peças declamatórias; 4) as apresentações de préstitos, grupos, cordões, ranchos, etc., e estandartes carnavalescos; 5) as funções recreativas e esportivas de qualquer natureza.185

É importante destacar que Getúlio Vargas e Lourival Fontes, mesmo antes de

novembro de 1937, já expressavam o desejo de colocar o cinema a serviço do Estado, mas a

própria Seção de Cinema do DPDC encontrava dificuldades para suas atividades, uma vez

que o Congresso Nacional anualmente operava cortes na verba destinada a esta repartição.

Instituído o Estado Novo e fechado o Congresso, uma das barreiras para a produção

cinematográfica oficial, já se podia sonhar definitivamente em incorporar o cinema ao aparato

da propaganda estatal e em 29 de outubro de 1938 era exibido o primeiro número do Cine

Jornal Brasileiro (CJB). Como o Departamento de Propaganda Nacional ainda não contava

com uma estrutura técnica para lidar com a feitura dos filmes de atualidades, a Cinédia,

produtora de Adhemar Gonzaga, amigo íntimo de Vargas, ficou encarregada de sua produção,

enquanto que para resolver o problema da distribuição foi constituída a Distribuidora de

Filmes Brasileiros (DFB). Segundo Souza, é difícil sabermos quem dirigiu os cinejornais

nessa primeira fase, sendo que, possivelmente, Franklin de Araújo tenha sido encarregado da

Seção de Cinema até 1941, quando foi substituído por Henrique Pongetti, e Juvenal Pimentel 185 Ver BRASIL. Decreto-Lei n. 5.077, de 29 de dezembro de 1939. Aprova o regimento de Departamento de Imprensa e Propaganda (D.I.P.). Legislação Federal. São Paulo, v.03, p.673-681.

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era a ponte entre o Departamento e a Cinédia, cuidando de todos os detalhes relativos à

produção. Porém, surge também o nome de Jaime de Andrade Pinheiro, proprietário da Pan-

Filme do Brasil, como o técnico que teria orientado e dirigido os primeiros filmes de

atualidades, mas o que se sabe é que ele participou efetivamente apenas quando da criação do

DIP. Os locutores poderiam ter sido Luis Jatobá e Dilo Guardia.186

Mas com a fundação do DIP, a Divisão de Cinema e Teatro ampliou suas estruturas e

dispensou as câmeras da Cinédia, mas ainda continuou terceirizando os serviços de

laboratórios, uma vez que o seu próprio laboratório cinematográfico seria completado apenas

em 1945. Assim, a ação efetiva do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo

na produção de cinejornais alterou o cenário cinematográfico nacional. O que antes era

euforia era, agora, por parte dos produtores, o mesmo que “remar contra a maré”; era

impossível concorrer com o Estado e, assim, com a produção oficial institucionalizada — o

que estabelecia uma concorrência desigual — e a censura sistemática aos filmes, as

produtoras independentes perderam o seu mercado. Desta forma, o Estado Novo centralizava

em seu poder o trinômio produção-distribuição-exibição e, conseqüentemente, o cinema

deixava de ser uma atividade regulada apenas pelas leis de mercado. Diante desta conjuntura,

a única alternativa era o Estado, “alguns produtores e cinegrafistas conseguem transformar-se

em funcionários públicos, filmando diretamente para o DIP, ou para suas agências estaduais,

mas a maior parte é marginalizada”.187A própria Cinédia sofreou algumas perdas de

profissionais que se transferiram para o DIP, como Ramon Garcia, João e Fernando Stamato;

outros cinegrafistas vieram trabalhar no departamento: João Tinoco de Freitas, Osmar M.

Assunção, Rui Santos, Jurandir Noronha, Joaquim José Monteiro, Carlos Malerbi, Luis M.

Maia entre outros.188

A respeito das atividades do DIP, Aristheu de Achilles em Aspectos da Ação do DIP,

obra publicada pelo próprio departamento em 1941, procura nos apresentar “apenas uma

reportagem” — como o autor intitula — que possa mostrar e explicar a necessidade da

propaganda no Estado moderno. Para ele o Estado democrático, assim acreditavam os

ideólogos estadonovistas, teria duas tarefas: primeiro, de organizar suas formas democráticas,

para depois “despertar e conduzir a opinião pública para a formação [grifos nossos] de uma

186 SOUZA (1990), Op. cit., p. 332-334. 187 GALVÃO, Maria Rita. SOUZA, Carlos Roberto de. Cinema Brasileiro: 1930-1964. In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização. O Brasil republicano: economia e cultura (1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, tomo 3, v. 4, 1995. p. 473. 188 SOUZA (1990), Op. cit., p. 334.

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vontade política real, isto é, que corresponda às necessidades nacionais de cada povo”.189 A

propaganda surge como o mecanismo que autoriza o Estado a operar essa “formação”, sendo

que relegá-la a um segundo plano é o mesmo que criar as condições para que as estruturas

sociais, que tanto se prezavam, fossem abaladas e, mais tarde, demolidas. No tocante ao

cinema, Achilles o considera um meio capaz de constituir para o Estado um poderoso

instrumento de cultura, mas que, relegado ao mercado da livre concorrência, assumiria

características de um perigoso agente demolidor dos princípios culturais e morais da Nação.

“Evidentemente, um poder tão formidável [o do cinema] capaz de não só influir como de

formar a vontade política [grifo no original] das grandes massas, não poderia ficar ao sabor de

forças desordenadas, de instituições arcaicas que o Estado porfia em reajustar aos novos

imperativos da vida social”.190 Desta forma, estava definida a função da propaganda e do

cinema no Governo Vargas: “legitimar mobilizando”; cabia ao DIP semear no imaginário

social uma única imagem: o Estado Novo.

Vale ressaltar alguns aspectos desta prática aplicada aos regimes autoritários que

resolvi denominar de “legitimar mobilizando”. Primeiro, não se trata simplesmente de

acreditar que a propaganda política é sinônimo de legitimidade, o próprio caráter mobilizador

das atividades culturais, que conta com o elemento “afetividade” para lidar com as multidões,

refere-se a um modelo ideológico que, transformado em imagens, está subentendido em um

processo de sujeição ao fascínio ou tédio do público. Desta forma, a legitimação do novo

regime pode estar relacionada com a eficiência do aparato propagandístico do Estado, mas de

forma alguma se derivou dele. A propaganda procura com base na “afetividade”, que move o

carisma que as multidões têm para com os líderes, criar as condições para um clima de

aceitação de uma autoridade merecida, reunir o povo em torno de uma imagem de coesão, de

unidade nacional, ou seja, não se trata de uma mera manipulação das classes subalternas,

como preferem acreditar alguns autores, mas de fazer uso de dispositivos culturais capazes de

“poder estabelecer diálogo com os sentimentos genuinamente humanos que, invariavelmente,

dispensam os argumentos”.191 Por outro lado, é indispensável que a mensagem do regime

venha acompanhada de ações efetivas do governo no sentido de atender aos anseios

populares, pois só assim se poderia falar em legitimidade. Não basta, portanto, para a

propaganda que se quer legitimadora, se satisfazer com o fato de que suas mensagens são

consumidas passivamente por uma multidão “desordenada”, “desorientada”; pelo contrário,

189 ACHILLES, Aristheu. Aspectos da ação do DIP. Rio de Janeiro: DIP, 1941. p. 22. 190 Idem, Ibidem, p. 43. 191 ROVAI, Op. cit., p. 220.

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cabe ao novo Estado unir “vontade política”, que responda as questões sociais tão em voga

em momentos de crises, e “poder simbólico” na intenção de construir e consolidar a imagem

de uma sociedade una, indivisa, homogênea e harmônica. No tocante ao Brasil, a legitimação

do Estado Novo, como apontado por Faro, só foi possível devido as atividades do DIP virem

associadas a dois elementos fundamentais: “de um lado as concessões feitas às massas,

elemento integrante da dinâmica populista; de outro o fechamento institucional que conferia

ao conteúdo da comunicação oficial o traço autoritário responsável por sua eficácia.”192

Retomando a questão da imagem, que tanto interessa a esse trabalho, veremos como o

princípio de montagem e a reelaboração dos discursos operários eram a tônica na propaganda

política do Governo Vargas. O primeiro depoimento é um tanto extenso, mas é importante por

evidenciar como o DIP procurava atuar em todos os setores da comunicação social,

centralizando as informações na Agência Nacional que, por sua vez, decidia o que e como

seriam veiculadas as notícias. Cupertino de Gusmão, presidente do Conselho Nacional do

Trabalho do Estado Novo, escreve em maio de 1945 algumas palavras que foram oferecidas

“ao público de minha Pátria, como uma advertência à sua boa fé, de que não mais deverão

abusar os detentores do poder”, a fim de denunciar como o Estado Novo dirigia a gratidão dos

trabalhadores:

Durante a vigência do Estado Novo, o famigerado DIP controlava, de tal ordem, a imprensa, que nenhuma publicação, noticiando fatos, saída nos jornais, traduzia a verdade. Quando se anunciava uma reunião, de caráter o mais doméstico que fosse, lá aparecia a Agência Nacional, com seu papel timbrado, a forgicar frases e declarações que jamais foram pronunciadas, para lançá-las ao público, como traduzindo cenas e fatos ocorridos em louvor à ditadura. Certa vez, festejando uma data cara à classe que agremiavam, um Sindicato fez lançar a pedra fundamental de sua sede, em terreno adquirido exclusivamente pelo seu herário particular. Presidindo a cerimônia, que teve, até, a presença de uma banda de música e de um Monsenhor, o presidente da associação declarou que a obra que se iniciava estava sendo realizada com os recursos econômicos pertencentes exclusivamente ao patrimônio do Sindicato, sem qualquer favor oficial, e que, por isso, a ninguém teriam os associados de agradecer o empreendimento, se não a si mesmos. O DIP tinha enviado um representante à festa, para filmar e fotografar a cerimônia, e no dia seguinte, com surpresa geral, publicando-se as fotografias do ato, lá estava a notícia, fabricada pelo “Ministério da Propaganda”, de que, usando a palavra, o presidente da associação “manifestara a gratidão dos associados ao Presidente Vargas”. Ora essa! Nem Vargas nem outro qualquer Getúlio haviam contribuído para a realização, como é que a classe iria ser grata a quem não assinara na lista [grifo no

192 FARO, J. S. A Comunicação Populista no Brasil: o DIP e a SECOM. In: MELO, Op. cit., p. 93.

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original]? Houve o propósito de desmentir, mas a liberdade era, nessa ocasião, uma jóia preciosa guardada, a sete chaves, pelos homens do poder, e somente muito mais tarde, depois do “13 de Maio” da imprensa e da opinião pública, é que um matutino glosou a notícia, pondo os pontos nos ii e a gratidão em seu devido lugar.193

O outro depoimento é de Henrique Pongetti que conta como era a prática

cinematográfica da Divisão de Cinema e Teatro sob a sua direção desde 1941.194 Pongetti

relata dois episódios de como, até mesmo nos corriqueiros gestos do Presidente Vargas, a

objetiva do DIP era convocada para construir significações que, por mais simples e ingênuas

que possam parecer, auxiliavam na edificação da imagem de um Estado personificado na

figura de seu líder:

Getúlio gostava de jogar golfe no sítio de seu amigo Argemiro Machado na estrada de Itaipava para Teresópolis. Estava longe de ser um campeão e suas bolas não queriam nada com o buraquinho. Dei instruções a Ramon Garcia, cameramen, destacado sempre para glorificar o homem, que pedisse a um bom jogador para fazer umas espetaculares jogadas e filmasse Getúlio dando porretada na bola. Fizemos uma montagem perfeita e o povo, que tinha certa simpatia pelo baixinho risonho, bateu palmas no Metro do Passeio.

[...] Um dia filmamos um almoço de Vargas com a fina flor das Forças Armadas e fui fazer a censura de rotina. Descobri-lhe entre os dentes um palito que ele fazia voltear caprichosamente com movimentos dos lábios [...]. Meu trabalho era evitar uma cena de chanchada na austeridade do documentário.195

No plano da censura, nenhum filme podia ser exibido sem um certificado de

autorização fornecido pelo DIP. Oito disposições196 determinavam o que os espectadores

brasileiros podiam ver no cinema, censuravam os filmes que: a) contivessem qualquer ofensa

ao decoro público; b) contivessem cenas de ferocidade ou fosse capaz de sugerir a prática de

crimes; c) divulgassem ou induzissem aos maus costumes; d) fossem capazes de provocar

incitamentos contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e seus 193 GUSMÃO, Cupertino de. Do bojo do Estado Novo: memórias de um socialista na república de trinta e sete. Rio de Janeiro: Gráfica Santo Antônio, 1945. p. 108-109. 194 SOUZA (1990), Op. cit., p. 336. Segundo o autor, Henrique Pongetti era funcionário de carreira do Departamento e, por volta de 1940-42, foi o responsável por dar uma nova feição ao Cine Jornal Brasileiro. A inovação foi no sentido de produzir alguns números que tiveram ampliado a metragem e trataram de assuntos únicos e mais gerais, resultando em documentários como Debret e o Rio de hoje, Santos Dumont, o dominador dos ares e A jangada voltou só. 195 PONGETTI, Henrique. apud. MOURÃO, Op. cit., p. 149. 196 Ver BRASIL. Decreto-Lei nº 1949, de 30 de dezembro de 1939. Dispõe sobre o exercício de atividades de imprensa e propaganda no território nacional e dá outras providências. Legislação Federal. São Paulo, v.03, p.681-699.

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agentes; e) pudessem prejudicar a cordialidade das relações com outros povos; f) fossem

ofensivos às coletividades ou às religiões; g) ferissem, por qualquer forma, a dignidade ou o

interesse nacionais e h) induzissem ao desprestígio das forças armadas. Segundo Souza,197 as

decisões do que era bom ou não para o público brasileiro cabiam a uma área restrita da

burocracia estadonovista que, muitas vezes, até fugia das normas censórias, o que acabava por

dar sinais mais de um gosto pessoal do que uma ação coercitiva estatal. Entre os intelectuais

da época que exerceram a atividade de censor destaca-se o poeta Vinicius de Moraes. Em uma

de suas crônicas em A Manhã, em novembro de 1941, Vinicius de Moraes comenta a

“lástima” que era assistir aos filmes do tempo do DPDC, segundo ele os cinegrafistas tinham

“a sedução das ruas sujas, dos pantanais, das caras feias [..]”. Neste mesmo texto, o poeta

conta como colaborava para tirar das telas este aspecto “feio” do Brasil ao proibir a

veiculação de um filme sobre uma escola pública do interior do Rio de Janeiro:

[...] o fotógrafo aquele dia requintara: esperara pacientemente uma semana de chuvas fortes, tempo excelente para a miuçalha aproveitar e fazer a greve de banho. Quando estava tudo bem sujo, bem enlameado, o nosso prezado cinegrafista [...] partira para a sua filmagem. Lá chegando, fez reunir a garotada (quase todos pretinhos, positivamente imundos, resfriadíssimos, o nariz correndo) em frente a tal escola (um barracão troncho de taipas, com uma mão de cal já toda descascada) e pôs-se a fazer a sua reportagem. A “fessora” [sic], toda prosa, ia e vinha arrumando o grupo, batendo palmas, dando ordens, fazendo o pessoal marchar muito dentro do lameiro. E que alegria para eles! Metiam o dedão com vontade na terra encharcada, mostrando as cancelas da dentadura e enxugando o resfriado na manga da camisa mesmo. Nunca quis tanto bem os nossos pretinhos naquele dia.198

Vale ressaltar que este “tom pessoal” dado à censura do DIP encontrou respaldo

principalmente nos filmes nacionais, enquanto que no caso da censura feita ao cinema

estrangeiro tratava-se de atender às razões do Estado. Assim, enquanto o Brasil optou por uma

política de neutralidade, não rompendo suas relações internacionais com a Alemanha nazista,

a fim de tirar o maior proveito econômico da situação, a censura cinematográfica foi obrigada

a demonstrar a nossa “neutralidade”, proibindo inicialmente os filme norte-americanos anti-

nazistas e, logo depois, os cinejornais como Atualidades UFA e 20th Century Fox

Atualidades. O que o DIP procurava com esta postura “neutra” era, na verdade, desestimular

qualquer tipo de posição política interna em relação ao conflito mundial. A maior polêmica

197 SOUZA (1990), Op. cit., p. 212. 198 MORAIS, Vinicius de. apud. SOUZA (1990), Op. cit., p. 213.

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em relação à proibição de um filme durante o Estado Novo se deu com a película O Grande

Ditador, de Charles Chaplin, em 8 de janeiro de 1941, que chegou às telas brasileiras como a

obra de arte do antinazismo. Segundo Souza,199 o entrave que O Grande Ditador teve com a

censura brasileira da época referia-se ao fato de que a crítica que se fazia aos regimes

ditatoriais, enfocando especialmente o caso alemão e a figura de Hitler, acabava por afetar a

sua versão brasileira. Algumas das cenas foram consideradas definitivamente comunistas e

desmoralizadoras das Forças Armadas, sendo que a seqüência final, quando Chaplin vira e se

dirige aos espectadores munido de um discurso emblemático da luta contra os regimes

autoritários, provocou tamanha irritação no major Antônio José Coelhos dos Reis, então

diretor do DIP, a ponto dele exigir que fosse eliminada, caso contrário, seria cancelada a

licença da United Artists no Brasil.

Mas com o desenrolar da guerra e o fim da “neutralidade” do Brasil todos os filmes

antinazistas foram liberados, e os cinejornais passaram a auxiliar na mobilização do brasileiro

para o esforço de guerra, construindo significações em torno da figura do inimigo externo (os

alemães) — como veremos no próximo capítulo —, uma vez que o inimigo interno (os

comunistas) já se encontrava definido desde 1930. É importante destacar que, por volta de

1941, quando a política exterior brasileira começou a sinalizar novos rumos no sentido de

uma maior aproximação com os EUA, o DIP passou a colaborar mais intensamente com o

Birô Interamericano, órgão norte-americano implantado no país desde 1939 e chefiado por

Nelson Rockefeller. O Birô Interamericano fora criado com os objetivos de “minimizar a

influência européia na América Latina, manter a liderança norte-americana e encorajar a

estabilidade econômica do continente”,200 e era composto por quatro divisões: Informações,

Relações Culturais, Saúde e Comercial/Financeira; a Divisão de Informações compreendia as

seções de Imprensa, Rádio, Filme, Análises de opinião pública (produto dos estudos

funcionalistas) e Ciência/Educação. Segundo Moura, a informação, divulgada e controlada

pelo Birô, visava tanto ganhar a batalha ideológica contra o fascismo quanto afirmar um

liberalismo específico, que ficou conhecido como American way of life.

Entre as seções da Divisão de Informação a mais apreciada pelos norte-americanos foi

a de filmes, uma vez que já estavam convencidos da extraordinária capacidade de penetração

ideológica deste meio, logo, desenvolveram um programa ambicioso que abrangia os dois

gêneros cinematográficos. No tocante aos filmes de ficção, o Birô mobilizou os estúdios de 199 Sobre a censura cinematográfica no Brasil consultar também SIMÕES, Inimá. Roteiro da Intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora Senac, 1999. 200 MOURA, Gerson (1984). Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 18.

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Hollywood que passaram a produzir um cinema que atendesse à estratégia do governo

Roosevelt para a América Latina. Assim, ficava vetada a divulgação de filmes que pudessem

colocar em ridículo ou questionar qualquer instituição norte-americana ou que ferissem a

suscetibilidades dos latino-americanos. Já os filmes documentários deveriam registrar

aspectos naturais, sociais, científicos e técnicos dos Estados Unidos e da América Latina,

sendo que enquanto os filmes sobre a América Latina, a serem exibidos para os americanos,

mostravam paisagens, flores tropicais, festas, folclore, artesanato e a produção de bens

primários (os estratégicos para o esforço de guerra, como por exemplo, a borracha), por outro

lado, os sobre os Estados Unidos tratavam de evidenciar as indústrias bélica, aeronáutica,

cinematográfica e siderúrgica, como também os avanços técnico-científicos, além de suas

belezas naturais, o sistema educacional e a cultura em geral.

O Birô Interamericano intensificou suas ações de 1940 a 1946 e o DIP foi colaborador

na produção e distribuição destes filmes no Brasil, sendo que até seus funcionários

trabalharam em projetos comuns com o Birô, como por exemplo, o cinegrafista Jean Manzon

participou das filmagens de A Batalha da Borracha. Depois de 1942, quando o Brasil rompeu

definitivamente a relação com a Alemanha, enviando para o front na Itália a Força

Expedicionária Brasileira, o DIP intensificou a apreensão de filmes do Eixo em todo o país.

Nos primeiros anos da década de 1940, o Brasil sinalizava um desejo de

redemocratização, acreditava-se que combatendo o nazi-fascismo na Europa era a melhor

maneira de lutar pela democracia no país, a vitória do Bloco dos Aliados significaria uma

humanidade mais progressista e mais democrática. Uma das principais manifestações contra

as potências do Eixo realizadas no país foi a manifestação, no Rio de Janeiro, da União

Nacional dos Estudantes (UNE) em julho de 1942 — como já citado —, onde, junto às figuras

de Hitler e Mussolini, autoridades do Governo Vargas são satirizadas e acusadas de

aproximação com os regimes fascistas europeus, entre elas estavam Filinto Müller, Chefe da

Polícia do Distrito Federal, Francisco Campos, Ministro da Justiça e dos Negócios Interiores,

e Lourival Fontes, diretor-geral do DIP. A manifestação teve como painel de fundo uma grave

crise governamental, as idéias divergentes acirravam o confronto, de um lado o ministro

interino da Justiça, Leitão da Cunha, era favorável a passeata enquanto Filinto Müller era

contra. É neste clima de desavenças entre grupos rivais que Getúlio Vargas aceitou os pedidos

de exoneração de Francisco Campos, Leitão da Cunha, Filinto Müller e Lourival Fontes.

Com a saída de Fontes, o DIP assume uma nova feição, mediante uma direção

burocratizada dos militares major Antônio José Coelho dos Reis e capitão Amílcar Dutra de

Menezes o departamento abandona a política de comunicação conduzida pelo antigo diretor e

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passa a impor uma marca militarista em suas atividades. Ainda se continuaria a investir na

propagação dos pressupostos do regime, mas as atenções foram voltadas à defesa da Pátria e à

mobilização para o esforço de guerra. Mas com o término da Segunda Guerra Mundial, o

clima de redemocratização incendiava a oposição no Brasil que atuava no sentido de suprimir

todos os órgãos que expressavam a política centralizadora e intervencionista do antigo regime,

logo, “o DIP era um mamute anacrônico paralisado no caminho da redemocratização”.201 Em

25 de maio de 1945, cinco meses antes da queda de Getúlio Vargas, o decreto-lei 7.582

extingue o DIP, mas cria o Departamento Nacional de Informação (DNI), uma decisão que

apenas disfarçava, uma vez que a comunicação retornava ao controle do Ministério da Justiça

e dos Negócios Interiores, assim como os antecessores do DIP. Cabia ao DNI fazer a censura

cinematográfica, estimular a produção de filmes nacionais, conceder prêmios, entre outras

atividades. Este órgão só foi extinto meses depois do general Eurico Gaspar Dutra assumir a

presidência, entretanto, a Agência Nacional foi mantida subordinada ao mesmo Ministério do

DNI e incumbida de produzir o Cine Jornal Brasileiro e o boletim informativo radiofônico

que era transmitido por todo o Brasil pela A Hora do Brasil. A produção dos cinejornais só

cessaria em 1946.

Entre as primeiras iniciativas da redemocratização, no campo do cinema, foi a

proposta de Jorge Amado, deputado federal pela bancada paulista do PCB, para a criação do

Conselho Nacional de Cinema (CNC), órgão que regulamentaria normas para a produção,

importação, distribuição e exibição de filmes. O projeto ainda centralizava as decisões a

respeito das questões cinematográficas no âmbito do Estado, mas as transferia para o setor de

produção, uma vez que dos 11 representantes do Conselho três seriam produtores, um diretor

de filmes nacionais de curta-metragem, um artista, um representante dos empregados e

técnicos e um dos autores e cenógrafos, sendo que dois seriam representantes do Ministério da

Educação e Saúde, ministério no qual o órgão estaria vinculado, e um dos exibidores

nacionais e um dos distribuidores de filmes nacionais. Assim, “propunha-se um órgão

abrigado nas estruturas do Estado sob o controle do setor produtor, corporativizando todos os

outros setores ligados às atividades cinematográficas.”202

No entanto, durante a tramitação do projeto na Câmara dos Deputados, a criação do

CNC deixou de ser concebida como uma autarquia, logo, o órgão dependeria cada vez mais

de recursos oriundos do Estado. Por outro lado, o CNC não foi colocado em prática, as duas

versões que tramitavam foram ignoradas por Getúlio Vargas em 1951, quando assume o seu

201 SOUZA (1990), Op. cit., p. 163. 202 SIMIS, Op. cit., p. 140.

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segundo mandato na Presidência da República, por eleições diretas, e convida o cineasta

Alberto Cavalcanti para um estudo sobre a situação do cinema brasileiro, que origina o

projeto da criação do Instituto Nacional de Cinema (INC). Em 19 de novembro de 1957 o

projeto do CNC foi anexado ao projeto que criava o INC por se tratar de um “assunto

idêntico”. Novamente as sombras do Estado autoritário sobrevoavam as discussões em torno

da cinematografia brasileira, temia-se que o INC, proposto por Alberto Cavalcanti, criasse um

órgão burocrático, centralizando novamente o cinema nas mãos do Estado. Portanto, o DIP

ainda assombraria os debates a respeito das políticas cinematográficas no Brasil. Segundo

Souza, se pudéssemos encontrar alguma inventividade no DIP esta não se encontraria no

esboço do mito Vargas, nem mesmo na utilização intensiva da propaganda política do Estado

por meio dos media, tampouco na coerção extensiva e intensiva sobre a produção de bens

simbólicos. Se houve alguma inventividade, esta se encontrava na “burocratização do aparato

ideológico de propaganda, [...], onde cada funcionário-intelectual ali empregado podia chegar

ao fim do dia com a consciência tranqüila do trabalho realizado.”203

Mas antes de nos dirigirmos às análises dos cinejornais do DIP, uma questão se coloca

em relação a estes documentos fílmicos: a recepção. Os estudos de recepção dos jornais

cinematográficos do Estado Novo nos surgem muitas vezes como uma incógnita, um desafio,

tendo em vista que as informações são raras e poucos são os depoentes, sendo que os

depoimentos que se tem registro são de intelectuais da época como Vinicius de Moraes, no

jornal carioca A Manhã, Guilherme de Almeida, no O Estado de São Paulo, e Pinheiro Lemos

e Lúcio Cardoso que assinavam a coluna “Cinema” da Revista Cultura Política, publicação

do próprio Estado Novo. Ou seja, pouco se sabe dos resultados alcançados pela propaganda

política do Governo Vargas por meio do cinema, de como os espectadores brasileiros se

relacionavam com estes filmes de atualidades, uma vez que o próprio DIP não mantinha um

controle sobre seus rendimentos ideológicos com a circulação do Cine Jornal Brasileiro.

Segundo Souza, a exibição destes cinejornais era muito extensiva, realmente, porém, atrasada

e descoordenada. As exibições nas salas fora do Rio de Janeiro chegaram a ter um atraso de

um mês nos primeiros anos de produção, sendo que esta defasagem foi aumentando conforme

o sistema de distribuição foi sendo alterado em favor de uma ou outra distribuidora,

chegando, por volta de 1942-44, a um atraso de cerca de seis meses em Salvador e Porto

Alegre. Fora do circuito Rio de Janeiro/São Paulo/Belo Horizonte somente os filmes sobre a

participação da FEB na Europa teve exibição garantida.204

203 SOUZA (1990), Op. cit., p. 167. 204 Idem, Ibidem, p. 338-339.

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Entretanto, apesar de todo este aspecto desorganizacional do DIP, que não conseguia

dominar sua propaganda política estatal por meio do cinema, uma resposta direta e

contundente nos aparece como um risco, uma queda por colocar uma pedra definitivamente

em um buraco histórico que, de alguma forma, insiste em permanecer aberto à espera de um

historiador que possa se interessar por sua profundeza. Os questionamentos da eficácia ou não

destes filmes atualidades são fundamentais para o avanço dos estudos de cinema no Brasil, o

que enriquece a nossa compreensão de como se deu o fenômeno cinematográfico entre os

brasileiros. No entanto, não basta saber que o espectador brasileiro encontrou um “jeitinho”

para não assistir às imagens oficiais, ao atrasar a sua entrada na sala em 10 minutos, para que

decretemos a sua ineficácia, já que correspondia a uma prática comum no Rio de Janeiro,

porém, não se sabe se isso ocorria nos outros Estados do país. Por isso, acredito que

afirmações como a da historiadora Maria Helena Rolim Capelato são difíceis de serem

sustentadas.

Respaldada no discurso doutrinário e ufanista do cinema do DIP, a autora afirma que,

ao contrário do que representou a propaganda cinematográfica nazista para os alemães, uma

vez que priorizava filmes de divertimento nos moldes de Hollywood, com um conteúdo

ideológico sutilmente disfarçado, os cinejornais não fizeram tanto sucesso entre o público

brasileiro. Para Capelato, “os filmes brasileiros não despertaram entusiasmo nem patriótico

nem lúdico nas platéias”.205 Primeiro, é arriscado procurar comparar o filme documentário

“noticioso” de curta-metragem com o filme de ficção de longa-metragem, pois, apesar de

apresentarem um ponto em comum, o “efeito de real” — como discutido no início do trabalho

— , são gêneros cinematográficos distintos um do outro. Por outro lado, é o próprio princípio

de “efeito de real” que atribuiu às imagens dos cinejornais autenticidade, logo, credibilidade

nas mensagens governamentais, como acreditam autores como Simis, Goulart e Garcia. “Foi

valendo-se da montagem de imagens autênticas que tais filmes garantiram a credibilidade nas

mensagens governamentais, pois sem elas a propaganda não atingiria seus objetivos.”206

Também vale relembrar que a própria propaganda nazista fez uso do filme documentário em

função deste caráter autêntico das imagens captadas in loco, no intuito de que elas

autorizassem uma confusão entre veracidade e verdade.

205 CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas, SP: Papirus, 1998. p. 113. 206 SIMIS, Op. cit., p. 54-55. Ainda sobre esta questão ver GARCIA, Nelson Jahr. Estado Novo, ideologia e propaganda política — a legitimação da Estado autoritário perante as classes subalternas. São Paulo: Loyola, 1982. p. 104. e GOULART, Op. cit., p. 25.

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Não há dúvidas de que se o Estado Novo tivesse operado sua propaganda política no

sentido de unir o cinema documentário e o cinema de ficção poderíamos falar, com mais

segurança, em um “projeto totalitário” para a atividade cinematográfica, mas decorrente do

próprio preconceito cultural que os críticos da época tinham com a produção nacional de

filmes de ficção e as deficiências técnicas inerentes a ela, os cinejornais surgiram para o novo

regime como o instrumento mais adequado para a difusão de seus ideais. Segundo Pinheiro

Lemos, “a única orientação artística possível e legítima do cinema é no terreno do

documentário”.207 Para o autor a indústria cinematográfica da época era incapaz de fazer bons

filmes de longa-metragem, uma vez que até o som e a fotografia dos jornais da tela eram

precárias, verdadeiras tragédias técnicas. No entanto, com a produção oficial do DIP e da

Cinédia o cenário mudou, os novos cinejornais eram “bem fotografados, sem palavrórios

dispensáveis ou bombásticos, cheios de interesse e vivacidade”, ou seja, os shorts — assim

como eram conhecidos os filme atualidades — seriam a orientação da produção

cinematográfica brasileira. Três motivos indicavam esta tendência: 1) não exigem grandes

despesas técnicas; 2) pouco investimento e 3) pouca intuição cinematográfica. Para Lemos, o

filme documentário de curta-metragem era “[...] a célula inicial de desenvolvimento do filme

nacional, o trampolim de onde nos poderíamos aventurar a realizações seguras no campo da

Sétima Arte.”208

Nota-se que, desmotivados pela situação precária do aparato técnico do cinema

brasileiro da época, a produção do Cine Jornal Brasileiro foi a única alternativa para os

propagandistas do Governo Vargas. No entanto, retomando a questão dos efeitos destes filmes

oficiais nos espectadores brasileiros, insisto que até mesmo o caráter de autenticidade de suas

imagens não é uma prerrogativa para que afirmemos que os trabalhadores foram manipulados,

ou que os filmes provocaram um sentimento patriótico, uma vez que não se trata de

compreender o processo de comunicação como um ato mecânico que tem no instante da

recepção um mero lugar de chegada da mensagem, mas como um espaço de produção de

sentido, de interação.

Desta forma, ter a recepção como o novo lugar para o estudo dos meios de

comunicação não equivale dizer que a figura do receptor tenha plena liberdade de fazer o que 207 LEMOS, Pinheiro. Cinema VIII. Revista Cultura Política, ano 2, n. 19, set. 1942. p. 297. In: CARDOSO, LÚCIO. Cinema: coletânea de textos da revista Cultura Política. Coleta de textos por José Inácio de Melo e Souza. Rio de Janeiro, 1941-44. Incl. Textos sobre cinema de Pinheiro Lemos e relatórios publicados sobre as atividades do DNP e DIP. 208 Idem. O filme brasileiro de pequena metragem. Revista Cultura Política, ano 2, n. 11, jan. 1942. p. 201. In: CARDOSO, LÚCIO. Cinema: coletânea de textos da revista Cultura Política. Coleta de textos por José Inácio de Melo e Souza. Rio de Janeiro, 1941-44. Incl. Textos sobre cinema de Pinheiro Lemos e relatórios publicados sobre as atividades do DNP e DIP.

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quer com a mensagem, pelo contrário, é com base no conhecimento das intenções do emissor,

sejam manipulativas ou ideológicas, que nos dirigimos ao receptor no intuito de compreender

o modo de interação deste, não só com os aparatos técnicos e a mensagem, mas também com a

sociedade e os outros autores sociais, trata-se apreender a circulação da significação, como se

dá a apropriação dos discursos por ambas as partes.209

Assim, é imprescindível que não nos atentemos apenas para os meios, mas que o

debate se desloque para as mediações, ou seja, para a dupla operação de desconexão e

recomposição, ou o que Barthes, ao referir-se ao mito como uma “fala roubada”, denominou

de dessignificação e ressignificação. Tanto as classes populares quanto o Estado se interagem

em um processo de apropriação mútua, o que equivale dizer, segundo Barbero, que ao

procurarmos a eficácia ou o sentido social dos aparatos de uma cultura que se pretendia

hegemônica, como a dos regimes autoritários dos anos 30 e 40, estes não devem ser buscados

apenas na questão de sua organização industrial e em seus conteúdos ideológicos, mas no

modo de apropriação e reconhecimento210 por parte das massas populares, uma vez que “o

massivo, nesta sociedade, não é um mecanismo isolável, ou um aspecto, mas uma nova forma

de sociabilidade. [...] Assim, pensar o popular a partir do massivo não significa, ao menos não

automaticamente, alienação e manipulação, e sim novas condições de existência e luta, um

novo modo de funcionamento da hegemonia”.211 Não diferente dos outros regimes, o Estado

Novo se dirigiu às multidões convertendo-as em um “povo” integrado na imagem-Nação, mas

a eficácia de todo este processo estava em fazer com que as multidões se reconhecessem nesta

imagem, ou seja, que nela estivessem atendidas suas demandas mais básicas e a presença de

seus modos de expressão. É mediante esta necessidade que o cinema surge como o principal

209 Sobre os estudos de recepção no Brasil e na América Latina consultar MARTÍN-BARBERO, Jesús. América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunicação social. In: SOUZA, Mauro Wilton de (org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 39-68 e SOUZA, Mauro Wilton de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito. In: (org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 13-38. 210 A respeito desta mediação entre os trabalhadores urbanos e o Estado Novo consultar FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil, o imaginário popular. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997. Segundo o autor o que podemos notar nas correspondências dos trabalhadores enviadas ao Presidente Getúlio Vargas é um discurso que se apropria do arcabouço doutrinário do Estado Novo selecionando aquilo que poderia beneficiá-los com um aumento de salário ou uma promoção de cargo, como a legislação, as imagens da “Família”, do “Trabalho”, do “Progresso”, da “Justiça Social” entre outras. Portanto, “as manifestações de apoio de trabalhadores e populares a Vargas demonstram o êxito obtido pelos formuladores da imagem presidencial. No entanto, é preciso lembrar que o conjunto de imagens que deram forma ao chamado ‘mito’ Vargas não foi recebido de maneira passiva. Os trabalhadores reconheceram os benefícios obtidos e o ‘tratamento humano decente’ que passaram a receber, mas também interpretaram a simbologia presidencial de acordo com seus padrões culturais, recriaram outra imagem de Vargas — a que lhes interessava — e, a partir da leitura oferecida por sua cultura política, batalharam por suas reivindicações. O apoio que os populares manifestaram a Vargas não correspondia ao apoio que Vargas esperava deles” (1997, p. 54). 211 MARTÍN-BARBERO, Jesús (1987). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Trad. Ronald Polito e Sérgio Alcides. 2. ed. (1ª edição 1997). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. p. 322.

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meio para atender aos objetivos da propaganda estadonovista, nas mais diversas regiões do

Brasil a arte cinematográfica autorizava a primeira vivência cotidiana da Nação.

Portanto, abordar os cinejornais do DIP na tentativa de comprovar tanto um caráter

ineficaz quanto alienante de suas mensagens passa por uma interpretação do espectador não

como um sujeito da comunicação, mas como uma figura passiva, condicionada, o que não

acredito ser a melhor postura, uma vez que, segundo Prokop, os modernos meios de

comunicação não manipulam, mas “fascinam as massas”. Para o autor estar fascinado por

alguma coisa não corresponde a ser inteiramente manipulado pela mesma, porém, significa ter

a atenção fixada no objeto, mas com o ego desperto, ou seja, a consciência real do espectador

não é absorvida plenamente. A manipulação só se efetiva em um público pré-disponível a ser

atingido, caso contrário, o que temos são momentos fascinantes que podem ser positivos ou

negativos. Fascínio que se opera pela construção sígnica (não entender aqui o “signo” no

sentido da semiótica, uma mediação entre significante e significado): os signos são

compreendidos aqui como aqueles elementos que organizam os tipos de valores modais de

fantasia, de significados já existentes no imaginário social, em busca de fixar o público como

uma categoria social (ou um grupo) que possa se identificar com as significações construídas.

Signos são símbolos fixados de forma unívoca em sua significação e funcionalizados. [...] A significação precisa, fixada claramente, funcionalizada, tem sempre uma referência à realidade, aliás, mais do que possui o estereótipo: os valores psíquicos da fantasia, por exemplo, de “sensação” e de “agressão”, que transmitem as imagens, os valores, os gestos e as poses já foram testados. Trata-se de conteúdos de significação que ligam um setor representativo da população a eles.212

São essas significações que buscamos nos cinejornais do DIP, imagens que reforçam

os mitos modernos que, por suas vezes, já integram o sentimento humano. Significações que

são movidas por uma intenção, que buscam simplificar as contradições humanas, reprimir

toda e qualquer dialética, que buscam fascinar por mais objetivas que possam parecer. A

simples imagem da multidão de trabalhadores concentrados nas arquibancadas do Estádio

Januário, durante as comemorações de Primeiro de Maio, tem o seu sentido “deformado”,

reelaborado antes de ir para as telas do cinema, pois, só assim, ela pode preencher a face vazia

da forma mítica e ser devolvida aos operários de todo o país de maneira ressignificada como o

mito da Unidade. É por esta e outras significações que este trabalho não procura respaldo 212 PROKOP, Dieter. (1979). Fascinação e tédio na comunicação: produtos de monopólio e consciência. In: MARCONDES FILHO, Ciro (org.). Prokop. Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1986. p. 168.

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unicamente nos cinejornais para responder a questão da eficácia da propaganda estadonovista,

mas trata de evidenciar que qualquer tentativa de explicá-la deve compreender o “conjunto da

obra”, ou seja, o esforço do Estado Novo em cooptar jornais, rádios, filmes educativos e de

atualidades, música popular etc., para instrumentalizar o seu aparato propagandístico, como

também o fato de que a própria força pedagógica e doutrinária do DIP era somada à outras

instituições como a escola, a Igreja, os sindicatos entre outros. Desta forma, vejo que qualquer

esforço de atribuir aos cinejornais a deflagração ou não de um sentimento patriótico nos

espectadores é inóspita diante de vestígios quase nulos — são raros os depoimentos e os

estudos a respeito da recepção deste meio — o que nos levaria a incorporar a imagem do

“profeta do imaginário popular”. Neste momento, prefiro colocar o sucesso persuasivo dos

cinejornais em uma enorme interrogação, uma vez que são poucos os elementos que disponho

para comprovar qualquer afirmação, e também por acreditar que não cabe a este trabalho

responder a esta questão; fica para outros pesquisadores a evidência de que este assunto

merece uma maior e cuidadosa atenção.

Compreendendo que os cinejornais estão incorporados a um projeto ideológico

estadonovista, veremos como as imagens que compõem este programa encontram respaldo

nas imagens cinematográficas dos filmes de atualidades, que proposições foram postas para a

sociedade brasileira durante o Governo Vargas, como imagens/idéias de “Pátria”, de

“Unidade”, de “Trabalho”, de “Progresso” entre outras foram dirigidas à multidão de

espectadores com o intuito de que a partir delas fosse possível o Estado Novo forjar uma

identidade nacional.

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CAPÍTULO III

CINE JORNAL: VESTÍGIOS DE UMA ERA

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No cinema o olho não é a câmera, mas o écran. Gilles Deleuze

Quando se trata de discutir a interdisciplinaridade nos estudos de história as

linguagens em geral (cinema, teatro, música, literatura, artes plásticas, dança etc.) surgem

como um campo movediço, mas ao mesmo tempo desafiador a qualquer pesquisador por

mergulhar em um universo que, muitas vezes, se encontra restrito aos artistas e produtores

culturais. Transitar por diversas áreas exige uma dedicação extra, uma vez que não lidamos

mais com um documento inerte, pelo contrário, a linguagem mantém uma relação constante

com aquele que a aborda, é uma via de mão dupla, ela responde aos nossos anseios afetivos e

perceptivos. Para que possamos caminhar com cautela é imprescindível que compreendamos

a necessidade, a priori, de enveredar pelas peculiaridades inerentes a cada linguagem, decifrar

como esta se relaciona com o observador/espectador. Esse é o primeiro passo que nos autoriza

a dirigir a este tipo de objeto, uma vez que nos possibilita abandonar, mesmo que não seja por

completo, a condição de espectador. A desmistificação do objeto é uma ferramenta adequada

quando se trata das linguagens, evita que as análises fiquem sujeitas ao caráter ilusionista, ou

seja, tomem o documento como verdade, ao invés de tê-lo como o espaço do verossímil.

Desmistificar é desmontar o erotismo do olhar: o pesquisador procura não se

comportar mais como um voyeurista, aquele que espreita silenciosamente a intimidade do

outro pelo viés da tela, tendo prazer em “espiar” os personagens sem ser visto; ele trata de

conhecer o dispositivo técnico do cinema para fugir deste “pecado original” que tem origem

nas máquinas de espiar, nas fendas, nas cavernas e no buraco da fechadura. Diante do filme o

pesquisador não mais “olha” com recolhimento, nem mesmo com distração, aborda-o na

posição de um observador atento às associações de imagens e sons, a cada vestígio de

significação como se caçasse um tesouro perdido em meio à experiência perceptiva do

cinema. Desta forma, acredito que a desmistificação deve vir acompanhada da idéia de

experiência, pois, assim, não limitamos nossas análises ao fragmento isolado, ou a uma ou

outra associação, mas priorizamos a concepção de que o filme tem uma intenção e encontra

ou procura encontrar a melhor forma para dirigir-se aos espectadores. É certo que a própria

análise é um mecanismo que interrompe a continuidade da experiência, entretanto, o fato de

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compreendermos esse fenômeno cinematográfico, em si, já é um avanço, não centramos as

atenções somente no objeto como se ele fosse algo dissociável do mundo, uma vez que a

“verdade” do filme só se realiza no olhar do espectador. Assim, isto é um sinal de que nossos

estudos ainda têm muito que percorrer no sentido da recepção, no campo da fenomenologia

do cinema.

Entretanto, é notório que para qualquer pesquisador lidar com a “escrita fílmica” é

uma tarefa árdua, uma vez que estamos mais acostumados a interpelar os signos textuais, mas,

por outro lado, o aprendizado da relação Cinema e História demonstra que fugir do subjetivo

é negar à prática histórica o conhecimento de si mesma, de que “a história é uma arte que

supõe o aprendizado de uma experiência”.213 É em busca do que Bloch denominou de objeto

da história — os homens em seu tempo — que são investidas as reflexões no campo da

relação Cinema e História, uma vez que não é possível desvincular a obra de seu criador, são

os homens os idealizadores dos escritos, das instituições etc. No cinema não é diferente, como

uma obra coletiva o filme é resultado do que uma sociedade autoriza a dizer em imagens e

sons a respeito de determinados assuntos ou fatos históricos; o passado representado na tela,

assim como aquele registrado em um outro suporte, o livro, contém vestígios de um outro

tempo, o da época de produção. Todo filme possui as marcas de um tempo deixadas pelos

seus realizadores durante o processo de elaboração e execução da obra, cabe ao historiador

torná-las visíveis no momento da análise. Entretanto, essas marcas não nos revelam apenas o

contexto do momento em que o filme foi produzido, vão além, são índices visuais e sonoros

da interpretação, da leitura do passado feita por um grupo de profissionais, são proposições

postas para uma sociedade. Assim, nossas buscas neste campo nos levam a acreditar que “por

trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas] por trás dos

escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas

daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar.”214 A busca por uma

metodologia215 mais adequada para lidar com o documento fílmico é uma constante entre os

213 VEYNE, Paul (1971). Como se escreve a história. Trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 127. 214 BLOCH, Marc (1944). Apologia da história ou o ofício de historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 54. 215 Não iremos aqui apresentar uma revisão mais detalhada desse debate metodológico por acreditar que outros trabalhos já trazem isso bem resolvido. Consultar DUTRA, Roger Andrade. Da historicidade da imagem à historicidade do cinema. Projeto História. PUC, São Paulo, n. 21, p. 121-140, nov. 2000; KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Revista Estudos Históricos. Editora FGV, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 237-250, 1992; NOVA, Cristiane. A “História” diante dos desafios imagéticos. Projeto História. PUC, São Paulo, n. 21, p. 141-162, nov. 2000; RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos Fracos: cinema e história do Brasil. Bauru, SP: Edusc, 2002 e ROSSINI, Mirian de Souza. Cinema e história: uma abordagem historiográfica. História Unisinos. São Leopoldo, RS, n. especial, p.117-186, 2001.

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pesquisadores, porém, difícil de ser resolvida, já que o cinema sugere inúmeras interpretações.

A respeito destas interpretações vejo que são intrínsecas à obra de arte, é impossível

desassociá-las, é o ato de interpretar que propicia múltiplas vozes aos nossos estudos.

Segundo Pareyson, ler é executar, logo, uma obra de arte necessita ser contemplada, ser

retirada de sua aparente imobilidade para que volte a pulsar, reviver na experiência perceptiva

do observador/espectador. Assim, lidar com a experiência estética de uma obra de arte é

compreender, gradativamente, a experiência humana; a cada fragmento pinçado para compor

o real um outro escapa aos nossos olhos, sempre faltará uma ou mais peças para preencher o

tabuleiro, pois “a imagem e o significado se refletem em uma galeria de espelhos pela qual,

assim como por corredores cobertos de quadros, decidimos passear, sempre sabendo que não

há fim para a nossa busca — mesmo se temos um objetivo em mente”.216 Por mais subjetivo

que seja o ato interpretativo, este não altera em nada a obra, pois essa já nasce executável. É

da natureza do filme que ele seja interpretado, revivido coletivamente. Trata-se da própria

experiência perceptiva que tanto evidenciei aqui, logo, “executar a obra de arte [interpretar],

portanto, não significa acrescentar-lhe alguma coisa de estranho, nem expô-la a inevitáveis

falseamentos ou disfarces: pelo contrário, significa precisamente ‘fazê-la ser’ naquela que é a

sua realidade e na vida da qual ela própria quer viver [grifos no original].”217

Deve-se evidenciar que mesmo tendo compreendido que a análise fílmica também

autoriza um executar da obra de arte, este executar se difere do articulado pelo espectador, ou

melhor, tanto o espectador quanto o observador ocupam espaços diferentes: para o primeiro o

cinema está no campo do lazer, com o filme se relaciona de forma passiva, deixando-se guiar

em um processo de identificação; já o segundo, se encontra em uma postura ativa diante do

filme, enquanto o submete aos seus instrumentos de análises procura se distanciar dele, uma

vez que para ele o documento fílmico pertence ao campo da reflexão, do trabalho intelectual.

Ainda em relação à análise fílmica é importante ressaltar que não é aconselhável que esta seja

resultante de um primeiro contato com o documento fílmico, assistir ao filme uma única vez

colabora, sem dúvida, para erros. Mas isto não quer dizer que devemos desprezar as

experiências perceptivas obtidas a partir desse primeiro contato, pois, muitas vezes ao

permitirmo-nos “voltar a ser o espectador ‘normal’ por alguns momentos, deixar o filme falar,

procurar sem buscar: contemplar sem olhar freneticamente, prestar atenção sem aguçar os

216 MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. Trad. Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg e Cláudia Strauch. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p. 172. 217 PAREYSON, Op. cit., p 217.

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ouvidos, estar alerta sem violência”,218 podemos reunir elementos novos que escapam de

nossas preocupações particulares. Assim, analisar um filme não é simplesmente vê-lo, pelo

contrário, é um constante revê-lo e, mais ainda, examiná-lo tecnicamente; um examinar que é

manipular, por isso é indispensável o contato direto com a película ou com uma reprodução

em vídeo — o mais indicado, pois facilita o manuseio ao permitir um vaivém, a parada na

imagem, a câmera lenta, artifícios que auxiliam no processo de análise por interferirem na

projeção contínua do filme. Então, segundo Vanoye e Goliot-Lété, podemos afirmar que

Analisar um filme ou um fragmento é [...] decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não se percebem isoladamente “a olho nu”, pois se é tomado pela totalidade. Parte-se, portanto, do texto fílmico para “descontruí-lo” e obter um conjunto de elementos distintos do próprio filme. Através dessa etapa, o analista adquire um certo distanciamento do filme. [...] Uma segunda fase consiste, em seguida, em estabelecer elos entre esses elementos isolados, em compreender como eles se associam [grifos nossos] e se tornam cúmplices para fazer surgir um todo significante: reconstruir o filme ou o fragmento.219

Como se vê, a tarefa de analisar um filme não é das mais simples. Como já dito, requer

do pesquisador um esforço em enveredar por outras áreas de conhecimento, ou seja, investigar

as “construções fílmicas” escapa de qualquer julgamento com base nas normas que regem a

escrita textual, tendo em vista que cada meio possui seus próprios elementos de representação.

Isto nos leva a compreender que para a historicização das práticas culturais é imprescindível

tomar o termo “documento” em um sentido mais amplo que não contemple apenas o texto

escrito, logo, cabe ao historiador dirigir-se ao filme em uma atitude desmistificadora. No

entanto, segundo Rossini, não é difícil depararmos com alguns aspectos que se repetem nos

estudos desenvolvidos desde os anos 70 e que estão diretamente ligados com a falta de uma

atitude desmistificadora por parte dos historiadores: primeiramente, é notória a dificuldade

que muitos historiadores têm em perceber em que nível um filme documentário ou filme

histórico220 é “real” ou “ficcional”, quais as representações são colocadas no lugar do real; por

outro lado, não estão claras as diferenças e as semelhanças entre um filme de ficção e um

218 VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, Op. cit., p. 20. 219 Idem, Ibidem, p. 15. 220 De acordo com a definição de Rossini, podemos denominar de “filme histórico” aquele trabalho cinematográfico que está localizado propositalmente no passado, ou seja, trata de uma época anterior àquela em que o filme está sendo produzido e que tenha por finalidade reconstituir um fato histórico. Há a necessidade do filme estar apoiado em pesquisa histórica, o que corresponde a uma mínima exigência de coerência com o já documentado. Ver ROSSINI, Op. cit., p. 106-107.

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filme documentário, nem quanto de ficção um filme documentário apresenta, ou vice-versa;

por último, é comum alguns autores confundirem a noção de filme histórico, identificando-o,

muitas vezes, com o filme documentário e outras com o filme ficcional de reconstituição

histórica. Esta confusão é autorizada pelo “efeito de real”, o que reforça a prerrogativa de que

o desvendamento das armadilhas escondidas em ambos os gêneros cinematográficos, parte de

uma necessidade do historiador em manter um esforço no sentido de compreender a

complexidade que envolve os elementos técnicos e artísticos que compõem o cinema.

Os primeiros estudos que introduziram o cinema no campo da história limitaram-se a

enfatizar um suposto caráter objetivo do processo de obtenção das imagens cinematográficas

— como discutido no primeiro capítulo —, o que privilegiou o gênero documentário. As

visões positivistas a respeito do cinema eliminaram qualquer vestígio do trabalho humano e

muito menos se atreveram a pensar em linguagem cinematográfica. Somente nos anos 70 é

que o cinema teve alguns porta-vozes na academia, como Marc Ferro e Pierre Sorlin. Ambos

ainda hoje são referências aos estudos da relação Cinema e História, mas foi Ferro o

responsável por introduzir o filme ficção no rol dos documentos históricos. Pertencente à

terceira geração dos Annales e alinhado à tendência da Nova História, que foi responsável por

expandir o campo da história por diversas áreas, propondo novos objetos e o desenvolvimento

de novos métodos para explorá-los, o historiador viu no cinema uma leitura da “contra-análise

da sociedade”, em que o filme seria capaz de testemunhar os vestígios ideológicos de uma

sociedade. Para o autor as imagens deixam transparecer mensagens que os grupos tentaram

esconder, uma vez que alguns dos registros são involuntários. Assim, bastaria ao historiador

desvendar qual a abordagem sócio-histórica que a película autoriza.

Entretanto, apesar de Ferro abrir as portas da história para a ficção, sua leitura do filme

como testemunha da sociedade, por mais amenizada que seja, acaba invocando a objetividade

do suporte e da técnica cinematográfica, e mais uma vez privilegiando o filme documentário.

Para ele o registro do real ocorria independentemente, ou até mesmo contra a vontade do

sujeito que operava o aparelho cinematográfico. Assim, a visão de Ferro desautoriza qualquer

atitude de dirigir-se ao filme sob o viés da estética, para ele o documento fílmico não é uma

obra de arte, mas um produto, uma imagem-objeto que vale por aquilo que testemunha. O que

lhe interessa é relacionar a obra fílmica com a sociedade que o produziu/consumiu,

articulando entre si condições de produção, censura, crítica, público, regime político, ou seja,

variáveis não-cinematográficas. Essa seria, segundo o autor, a melhor forma de

compreendermos não apenas a obra, mas também a realidade que ela representa, uma vez que

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essa postura levaria o historiador “a descobrir o que está latente por trás do aparente, o não-

visível através do visível.”221

Acredito que esta não é a melhor forma de lidarmos com o documento fílmico, que a

imagem não responde apenas como reflexo da sociedade. É isso, mas não só. Como o próprio

Ferro evidenciou, o filme é rico em significações, por isso, compreendo a necessidade de

abordarmos o cinema como linguagem e, conseqüentemente, respondermos a todas as

implicações oriundas desta postura, até mesmo como condição para não nos dirigirmos a estas

significações sob o viés da manipulação, da falsificação, mas, sim, o da construção de um

sentido. Assim, se nos encontramos no campo da estética, nossas indagações feitas aos filmes

devem estar centradas no como ao invés do por que, uma vez que nos interessa localizar a

análise no espaço da relação arte e sociedade, obra e espectadores. A evidência de que os

filmes são proposições sobre a sociedade não desautoriza a concepção de que esses são

também proposições para a sociedade, cabe ao historiador questionar como foram

construídas.

Já Sorlin, mesmo partindo de alguns pressupostos em comum com Ferro, nos aponta a

necessidade que tem o historiador de aprender a ler as imagens (sejam elas estáticas ou em

movimento), pois “não pode haver estudo fílmico que não seja uma investigação da

construção” [tradução nossa].222 Segundo ele o cinema exige do historiador disposições

distintas do livro, ou seja, uma vez que se objetive estudar as sociedades do século XX a partir

dos meios que essas usam para se comunicarem, devem os historiadores renunciar a ler o

audiovisual como se lessem os textos, é fundamental que aprendam a interrogá-lo de uma

outra maneira. Aqui o autor nega que a postura do historiador possa se confundir com a de um

espectador, ao dirigir-se a um filme não se deixar envolver pelo imperativo fascinante. O

historiador deve estar sempre em alerta no tocante às construções dos filmes, não basta apenas

analisar a relação desses com o contexto de produção, é fundamental que indague como

indivíduos e grupos compreenderam o seu tempo, quais os sentidos que atribuíram à

sociedade. Se por um lado Ferro se concentra em uma análise contextual, Sorlin se apóia no

instrumental da semiótica (a ciência dos signos) para forjar, senão um método, pelo menos

uma forma de lidar com os inúmeros elementos visuais e sonoros do filme, o que faz com que

valorize a linguagem cinematográfica. No entanto, este autor considerava importante que cada

pesquisador definisse suas próprias normas de investigação, seus próprios eixos de análise.

Uma postura coerente quando se trata de uma obra aberta como o cinema, já que “não existe

221 FERRO, Marc (1977). Cinema e história. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 88. 222 SORLIN, Op. cit., p. 147.

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uma significação inerente ao filme: são as hipóteses da investigação que permitem descobrir

certos conjuntos significativos.”223

Segundo Sorlin, não se trata de uma visão simplista de que o historiador seria um

colecionador de imagens autênticas, mas de descobrir como as imagens e sons do mundo são

selecionados e registrados pela objetiva e, depois, reorganizados pelos cineastas, ou melhor,

como a construção fílmica filtra e reordena o mundo exterior, uma vez que

a construção fílmica é o processo pelo qual o cinema de uma época capta um fragmento do mundo exterior, o reorganiza, dá coerência e produz, a partir desse contínuo que é o universo sensível, um objeto determinado, fechado, descontínuo e transmissível; em outros termos, a construção funda a imagem cinematográfica da sociedade, a sociedade tal como se mostra no cinema [tradução nossa].224

Nota-se que os filmes são proposições sobre a sociedade, logo, cabe ao historiador

compreender como se constroem essas proposições. Portanto, essa tarefa que transita no

terreno da significação nos leva a “definir não o que os filmes pretendem dizer, mas o que

dizem e como dizem [tradução nossa].”225

Em uma leitura mais flexível para dirigir-se ao documento fílmico, o historiador norte-

americano Robert Rosenstone acredita que os cineastas também têm o mesmo direito que os

historiadores de refletir sobre o passado. Para ele a história pode ser “escrita” em um outro

suporte que não seja o livro, ou seja, concebe que há novas formas de nos relacionarmos com

o passado, basta que se compreenda que o filme não é uma janela aberta para o passado, que a

tarefa de plasmar a história em imagens não passa de uma aproximação do que foi dito e feito

em épocas passadas, uma leitura entre tantas outras. Não se trata aqui de dizer que história e

ficção são as mesmas coisas, que o cineasta se preocupa em “fazer história”, muito menos

defender os “erros” da maioria dos filmes históricos, o que interessa ao autor é demonstrar

que não se deve julgar uma película com as normas que regem um texto, uma vez que cada

meio tem seus próprios elementos constitutivos de representação; não se deve buscar

“verdades históricas” nos filmes, muito menos exigir da arte cinematográfica o rigor científico

da história. Segundo Rosenstone, aceitar as inversões que os filmes propõem “não significa

romper com a verdade histórica, senão aceitar outras maneiras de nos relacionarmos com o

223 SORLIN, Op. cit., p. 49. 224 Idem, Ibidem, p. 230. 225 Idem, Ibidem, p. 63.

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passado, outra forma de enfocar a reflexão sobre de onde viemos, aonde vamos e quem somos

[tradução nossa].”226

Não pretendo aqui me filiar a um ou outro estudioso, uma vez que, como já dito, o

desenvolvimento de uma metodologia para lidar com o filme ainda é uma questão em aberto.

No entanto, não tenho dúvidas de que o pesquisador ao dirigir-se a um documento fílmico

deve fazê-lo em uma atitude desmistificadora, tendo em vista que lida com uma obra de arte.

Acredito que fontes como os cinejornais não devem ser abordadas somente como testemunhos

da época que os produziram, simplesmente postos na categoria de “documento primário”

como se fossem apenas vestígios que possam nos oferecer fragmentos de um tempo perdido

para todos nós. Pelo contrário, os filmes de atualidades também são proposições postas para a

sociedade, uma vez que o cinema é construção ao invés de correlato da realidade. Assim, não

se trata de assumi-los como verdade de uma época, ou seja, não nos importa o quanto

comprovam, mas o quanto demonstram. Estamos diante de um olhar fabricado, por isso, cabe

ao pesquisador “enxergar efetivamente mais, sem recusá-lo, implica discutir os termos deste

olhar. Observar com ele o mundo, mas também colocá-lo em foco, recusando a condição de

total identificação com o aparato. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que,

fora do campo, torna visível.”227

Portanto, compreendo que todos os documentos são resultantes de uma montagem,

palavra-chave para os estudos da relação Cinema e História, logo, insisto que devemos

abandonar qualquer idéia que associe rapidamente os termos construção e montagem a uma

subjetividade deformante, uma vez que a própria escolha do tema para uma pesquisa é uma

atitude subjetiva, para não dizer da seleção das fontes que não deixa de ser um julgamento de

importância. Não vejo qualquer vantagem em contrapor aqui razão à imaginação, pois

acredito que no “fazer história”, assim como em toda operação humana, possa conviver sem

conflito o sensível e o racional, a subjetividade e a objetividade.

Vejo que negar a capacidade criativa do cinema é o mesmo que recusar a entender os

meios que satisfazem a experiência perceptiva de uma moderna sociedade ambientada no

domínio das imagens. Segundo Rossini,228 a grande recusa do cinema pelo meio acadêmico

pode ser sintetizada de acordo com três grupos básicos: a) o confronto objetividade/razão x

subjetividade/sensibilidade; b) o preconceito cultural que via o cinema como uma arte menor

226 ROSENSTONE, Robert. A. El passado en imágenes: el desafío del cine a nuestra idea de la historia. Barcelona, Espanha: Editorial Ariel, 1997. p. 63. 227 XAVIER, Ismail. Cinema: revelação e engano. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 382. 228 ROSSINI, Op. cit., p. 44-45.

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e c) a própria complexidade da imagem cinematográfica. Assim, enquanto essas três

problematizações não forem resolvidas prevalecerá a desconfiança e o descaso com o cinema.

Apesar de encontrar forte resistência, o fazer historiográfico caminha nesse sentido, já se

abrem novos espaços para o cinema — como para tantas outras linguagens —, a fim de

manter um diálogo mais permanente e maduro com a história; uma vez compreendido que um

documento escrito é tão plausível de manipulação quanto as imagens, a aceitação da inserção

do filme no campo do documento tornou-se mais flexível, porém, este não deve ser o único

fator. Para a autora, o que realmente explica essa exclusão é algo derivado da própria natureza

do cinema: a sua propriedade de fazer substituir a verdade pela verossimilhança.229 Como já

visto aqui, assim como na literatura, nas artes plásticas, o “efeito de real” também está

presente no cinema, porém, com um apelo maior: o movimento; aqui o representado é

confundido (ilusão) com o próprio real, sendo que ao invés de meramente descrevê-lo o filme

apresenta-o intacto.

Diante disto, acredito que os novos trabalhos no campo da relação Cinema e História

serão mais promissores se o pesquisador procurar educar o seu olhar, ou o que Dondis

denominou de “alfabetismo visual”.230 Para isto se faz necessário sinalizar para a

compreensão de como se dá o imperativo de uma nova experiência para o homem moderno,

que implica em um saber pressuposto pela imagem, mais especificamente pelo audiovisual. É

fato que, hoje, os indivíduos se reconhecem cada vez menos na cultura letrada, o que equivale

dizer que o mero distanciamento do pesquisador destas novas formas de identificação da

sociedade pode aparentar, em um primeiro momento, uma pequena perda, mas que, mais

adiante, pode significar um vazio em não saber lidar com essa nova escrita (a fílmica) e com

tantas outras. Autores como Martín-Barbero e Rey apontam para a importância de instituir o

ensino de um novo “modo de saber/ler”, pautado pela heterogeneidade dos meios presentes na

sociedade contemporânea. Ou seja, é incompreensível que o sistema educativo insista em

disfarçar ou desconhecer que exista um desafio proposto pela hegemonia do audiovisual, que

corresponde a encontrar maneiras de inserir no cotidiano das escolas e universidades o

229 ROSSINI, Op. cit., p. 52. 230 DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Para o autor o “alfabetismo visual” surge como um dos paradigmas fundamentais da nova educação. No Brasil este caminho foi apontado por Mourão, nos anos 80, com o intuito de dar os primeiros passos no sentido da desmistificação dos meios de comunicação de massa, mais especificamente o cinema. A autora propunha introduzir o ensino do cinema nos 1º e 2º Graus das Escolas, hoje ensino fundamental e médio, tanto a prática cinematográfica quanto o debate de sua linguagem. Ver MOURÃO, Maria Dora Genis. O filme como prática de ensino. Vozes, v. 74, n. 7, p. 21-26, set.1980. Ainda sobre esta questão também consultar NOVA, Cristiane. Novas lentes para a história: uma viagem pelo universo da construção da História e pelos discursos audio-imagéticos. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1999.

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aprendizado destas novas linguagens, tão presentes na vivência dos alunos, ao invés de

priorizar a vigência da cultura letrada como único reduto do saber. No entanto, para os

autores, este aprendizado de uma nova leitura não significa a simples substituição de um

“modo de ler” por outro, a escrita pela imagem, senão a articulação complexa de um e outro,

já que a formação dos cidadãos se dá, hoje, por meio de uma pluralidade de escritas, ou seja, é

necessário que aprendamos a ler um jornal, um noticiário televisivo, um hipertexto, e, porque

não, um filme. Segundo os autores,

Ao reivindicar a presença da cultura oral e da audiovisual, não estamos desconhecendo sua pretensão de ser a única cultura digna desse nome e o eixo cultural de nossa sociedade. O livro continua e continuará sendo a chave da primeira alfabetização formal que, em vez de se fechar sobre si mesma, deve hoje pôr as bases para essa segunda alfabetização [grifos no original] que nos abre às múltiplas escrituras, hoje conformando o mundo do audiovisual e da informática.231

Assim, situados em uma sociedade cada vez mais dominada pela imagem, é evidente

que devamos aprender a “ler” as novas linguagens, a educar o olhar, exigência comum a todos

que pretendem lidar com o passado, uma vez que este se encontra, hoje, em múltiplas práticas,

principalmente visuais, como o cinema, a fotografia, a televisão etc., sinalizando aos

historiadores que os caminhos percorridos são os dos fragmentos e ruínas.232 Essa nova

aprendizagem exige que o pesquisador abandone qualquer preconceito cultural com o cinema,

que compreenda que o filme é um trabalho feito por outros profissionais comprometidos ou

não com a história e a sociedade. Ciente de que o cinema é a autorização de um olhar, de uma

significação, não cabe ao pesquisador procurar verdades nos filmes, mas compreender que

não está diante do real e, sim, de um mundo de representações, uma entre tantas outras

interpretações.

Portanto, ao lidar com os cinejornais do Departamento de Imprensa e Propaganda não

pretendo verificar o quanto estes filmes refletem a sociedade brasileira das décadas de 30 e

40, nem vejo a necessidade de procurar neles um conteúdo ideológico “invisível”, pelo

contrário, busco nos filmes atualidades responder como o programa ideológico estadonovista

foi capaz de relacionar-se por meio de imagens e sons com a multidão de espectadores em

231 MARTÍN-BARBERO, Jesús; REY, German. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. Trad. Jacob Gorender. São Paulo: Senac, 2001. p. 62. 232 GASKELL, Ivan. A história das imagens. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história, novas perspectivas. Trad. Magda Lopes, São Paulo: Editora Unesp, 1992..p. 271

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uma tentativa de legitimação de um regime ditatorial, quais as formas que o Estado Novo

encontrou para se tornar presente entre os cidadãos brasileiros. Isto só é possível uma vez que

aqui compreendo que a melhor forma de se dirigir ao cinema implica em uma busca de seu

caráter estético, das implicações de seu “fazer artístico”: o filme vale pela experiência que

autoriza. Desta forma, vejo que as imagens dos cinejornais não devem ser tomadas como

“documento-verdade” do Brasil da época, o que não nos acrescenta nada, mas, sim, como

imagens de um Brasil proposto pelo Estado Novo e que deveriam ser compartilhadas

coletivamente. Por isso, é fundamental aqui indagar o como e não o por que destas imagens,

perceber na intencionalidade dos filmes suas construções, suas significações, ou seja, que

proposições foram postas para a multidão de trabalhadores brasileiros urbanos, o principal

público-alvo da propaganda estatal do Governo Vargas.

3.1 – Fragmentos totalitários

O estudo das formas como os meios de comunicação de massa serviram ao Estado

autoritário brasileiro de 1937 a 1945 vai nos demonstrando aos poucos uma relação um tanto

flexível, resultante do próprio convívio de idéias divergentes no interior do Governo Vargas,

como também devido à própria constituição política deste novo Estado que, apesar de uma

tendência centralizadora, tinha que compor com as diversas forças sociais da época no sentido

de legitimar o regime que se instituíra no bojo de um golpe, até mesmo com os trabalhadores

que em um momento de crise, como ocorrido a partir dos meados de 1942, quando da

participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, poderiam servir como “reserva de

mobilização”. Como dito anteriormente, não acredito que a legitimação do Estado Novo tenha

resultado exclusivamente do seu aparato propagandístico, certamente está relacionada com a

sua eficiência, entretanto, a eficácia da propaganda política só ocorre quando acompanhada de

realizações concretas no campo da política e do social, logo, as imagens forjadas pelo Estado

Novo só poderiam ser legítimas se fossem reconhecidas pelas multidões de trabalhadores.

Quando me refiro a uma relação um tanto flexível entre o Estado Novo e os meios de

comunicação de massa quero dizer que não houve uma política única implementada no campo

da comunicação e da propaganda. Não há dúvidas de que “o famigerado DIP” era a

materialização de um anseio em arquitetar um aparato de propaganda capaz de atuar em

diversas frentes para tornar o Estado Novo uma imagem visível e palpável no cotidiano dos

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trabalhadores urbanos. O próprio diretor-geral do departamento, Lourival Fontes, trabalhava

neste sentido almejando o controle das produções cinematográfica e radiofônica estatais,

porém, nem sempre com sucesso — como já ressaltado aqui. Ou seja, apesar do DIP

representar pela primeira vez a articulação de um projeto de controle e coerção dos mais

variados dispositivos culturais pelo Estado, de fato a ideologia estadonovista encontrou

algumas dificuldades para operar nos meios de comunicação de massa uma proposta

totalizante, que, a priori, na prática, realizou-se somente em alguns momentos de exacerbação

do uso destes mecanismos.

Diferentemente da Alemanha nazista que já contava com uma indústria consolidada

desde o final da Primeira Guerra Mundial, que lhe serviria como um instrumento de

propaganda e cultura sob controle do Estado, o Governo Vargas não demonstrou interesse na

construção de uma indústria cinematográfica nacional, tendo sido poucas as políticas

implementadas neste sentido — anseio mais explícito entre os produtores cinematográficos do

país. Assim, se pensarmos na maneira como o Estado autoritário alemão se apropriou do

cinema, exilando em massa produtores, atores, cineastas entre outros técnicos do país por

serem judeus, além de fazer uso tanto do filme ficção quanto do filme documentário para

difundir aos espectadores alemães a identificação com a “superioridade da raça ariana” e o

reconhecimento do seu “inimigo racial” — ou seja, deu-se um sentido “ariano” a este meio —

veremos que as investidas do Estado Novo no cinema de propaganda política foram mais

amenas, reflexo das próprias características do regime, restringindo-se aos filmes educativos

com a criação do INCE e aos filmes atualidades com a produção do Cine Jornal Brasileiro.

Esta tendência ao filme documentário encontrou respaldo na própria deficiência técnica do

cinema brasileiro da época que, na visão dos intelectuais do regime, dificultava uma produção

respeitável de longa-metragem de ficção que pudesse competir com o filme estrangeiro.

No caso do rádio, a timidez do governo em incorporar este meio aos seus objetivos

propagandísticos, criando uma grande rede de radiodifusão estatal, resultou em uma aplicação

fragmentada e isolada deste mecanismo: a Hora do Brasil ficava sob o controle de Lourival

Fontes que, por sua vez, abria espaço para o Ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes

Filho, ter a sua própria faixa de atuação dentro do horário governamental que, por sinal, era

bem aproveitada no sentido de aproximar o Estado dos trabalhadores; já o Ministro da

Educação e Saúde, Gustavo Capanema, possuía o seu sistema de radiodifusão educativa

enquanto Cassiano Ricardo acumulava a função de diretor do jornal A Manhã e do

Departamento de Divulgação Política-Cultural da Rádio Nacional. Como se vê, poucos foram

os esforços do Estado em criar um sistema nacional de radiodifusão, o que permitiu, por outro

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lado, o crescimento e o fortalecimento do rádio comercial. Para Ortiz, entre as justificativas

desta contradição encontra-se a questão do alto custo para a organização e manutenção deste

sistema de radiodifusão nacional, que não correspondia à realidade econômica do Estado

brasileiro. Assim, no entendimento de seus ideólogos, o fato do Governo Vargas somente

regulamentar a publicidade nas rádios, permitindo que o meio fosse utilizado essencialmente

como veículo publicitário, foi o melhor caminho para resolver o problema da radiodifusão no

Brasil. Já no plano da política, o autor destaca que era evidente que o novo regime, apesar de

sua tendência centralizadora, teve que compor com as forças sociais existentes, neste caso,

com o capital privado que possuía interesses concretos no setor de radiodifusão. A Rádio

Nacional, por exemplo, apesar de encampada em 1940 pelo Estado Novo, funcionava

praticamente nos mesmos moldes de uma empresa privada, até mesmo a sua programação não

se diferenciava em nada das outras emissoras, com música popular, radioteatro, programa de

auditório etc. As poucas intromissões do Governo Vargas na Rádio Nacional ficaram a cargo

dos chamados “programas culturais”, que representavam apenas 4,5% de sua programação.

Segundo Ortiz, a impossibilidade do regime, seja ela econômica ou política, acabou

favorecendo o desenvolvimento da radiodifusão local. Na época era comum que as

transmissões dos programas radiofônicos fossem feitas a partir das bases geográficas das

emissoras, até mesmo entre as de grande potência, o que ocasionava algumas limitações, uma

vez que ficavam sujeitas aos padrões de recepção de cada localidade. Por exemplo, a Rádio

Nacional não era ouvida na cidade de São Paulo, onde operavam a Rádio Record e a Difusora

numa freqüência de ondas que bloqueava sua penetração. Desta forma, não se pode pensar no

rádio durante o Estado Novo como mecanismo de integração nacional.233

O controle sobre a imprensa certamente foi o que melhor expressou o projeto

ideológico estadonovista. Anterior ao DIP, a imprensa brasileira sofria um controle policial,

poder concedido ao Chefe de Polícia Filinto Müller. Mas, a partir de 1939, a tarefa foi

transferida para a seção competente na Divisão de Imprensa do DIP, o Serviço de Controle à

Imprensa (SCI), que “era uma espécie de ‘braço armado’ do DIP, censurando tudo aquilo que

não correspondesse a uma ‘colaboração construtiva’ por parte das publicações”.234 A Divisão

de Imprensa ainda contava com um órgão normativo, o Conselho Nacional de Imprensa, que

atuava como um Tribunal de Imprensa, julgando as ações cometidas pelas empresas

jornalísticas contra a sua categoria, os leitores e a Nação. E, por último, havia um setor

233 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 52-54. 234 SOUZA (1990), Op. cit., p. 220.

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encarregado da produção do noticiário estatal, a Agência Nacional. Assim, segundo Souza, o

DIP tinha o domínio completo sobre qualquer informação veiculada em jornais e revistas, o

que atendia aos interesses do Estado, uma vez que era capaz de fragmentar a transmissão da

informação, ou seja, “os jornais passavam a transmitir informações selecionadas, concedendo-

se ao leitor letrado fatias que lhe permitiam um conhecimento incompleto sobre a realidade

circundante.”235

Diante do que já foi dito a respeito das brechas deixadas pela propaganda do Estado

Novo, poder-se-ia concluir que não houve um programa definido para os meios de

comunicação. No entanto, acredito que esta afirmação não seria a mais indicada quando se

pensa em discurso, principalmente em um discurso estatal incorporado em dispositivos

culturais como o cinema, o rádio, a imprensa entre outros. Compreendo que ao tratarmos do

campo da comunicação, especificamente da arte cinematográfica, nossas reflexões ficam

limitadas ao campo da intencionalidade, ou seja, pensar esteticamente a propaganda nos

cinejornais, no seu inventar e executar, não se trata de tomá-la como expressão do real, mas

como sujeita a uma recepção e uma reelaboração, a um ignorar e a um reconhecer, logo,

qualquer programa posto para o Estado introduziria nos seus mais variados discursos uma

intenção, uma disposição, que se encontraria no plano do ideal, ao invés de propriamente dito

articular uma operação. Entretanto, as brechas que mencionei eram marcas das disputas dos

diversos projetos hegemônicos para o novo Estado e o DIP era um deles. Segundo Paranhos,

“o exercício da hegemonia político-cultural supõe, obviamente, a existência de instituições ou

aparelhos de hegemonia, e, no caso do DIP, a partir de 1940, será um canal privilegiado

através do qual se pode captar a dimensão material da dominação ideológica”.236 Era evidente

que na concepção de um Estado forte e centralizador também prevalecesse um caráter

centralizador do poder simbólico, o que acredito que de fato ocorreu, já que “o controle

efetuado pelo DIP na tentativa de obstaculizar a divulgação dos outros discursos configura um

campo ideológico relativamente homogêneo”.237 É a partir da compreensão da constituição

deste campo ideológico homogêneo, por mais lacunas que ele tenha deixado — próprio

daquilo que se encontra restrito ao nível da intenção — é que arrisco afirmar que é possível

pensarmos em um “discurso totalitário” aplicado às práticas culturais e propagandísticas do

Estado Novo.

235 SOUZA (1990), Op. cit., p. 270. 236 PARANHOS, Op. cit., p. 103. 237 VELLOSO, Op. cit., p. 77.

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No entanto, apenas o fato de constituir-se um “monopólio da fala” em que tem no

Estado a única voz que se dirige à sociedade brasileira não basta para o entendimento do

“discurso totalitário”, outro indício se faz necessário: a construção das “imagens ideais” que

regem um projeto determinado ideologicamente. É a compreensão da lógica de uma ideologia

que tem no “Todo Orgânico” a sua fantasmagoria que definitivamente nos autoriza a pensar

em um “discurso totalitário”. O Estado Novo não só vigiava as informações circulantes e

punia os meios de comunicação, como forma de manter intacta a estrutura social, mas,

também, com o mesmo objetivo, construía a sua própria imagem personificada na figura de

seu líder. Getúlio Vargas era o componente simbólico do Estado Novo. Era em Vargas que o

povo deveria reconhecer o Estado, aquele dotado de vontades e virtudes humanas, aquele

capaz de “doar-se” ao povo, à Nação. Assim, a propaganda difundida pelo DIP foi a

responsável por semear no imaginário social uma única imagem: o Estado Novo. Era tarefa do

projeto totalizante tornar o Estado Novo presente no cotidiano das multidões de trabalhadores

urbanos, por isso, o cinema serviu-lhe tão bem. Lembrando que, diante da precariedade

técnica da produção cinematográfica nacional, os cinejornais surgem para os propagandistas

do Governo Vargas como a única alternativa. Mas, com uma ressalva: foi com o Cine Jornal

Brasileiro que pela primeira vez o Brasil se uniu por meio da imagem. Segundo Souza,

nenhum dos produtores de filmes atualidades no país tinham a viabilidade com que contava o

DIP para enviar os seus cinegrafistas aos quatro pontos do território nacional, muito menos de

elaborar uma série de filmes documentários que extrapolasse o padrão temporal de 8 a 10

minutos de duração, como fez Henrique Pongetti. Assim, o aperfeiçoamento técnico dos

cinejornais do DIP combinado com a proteção governamental dada ao cinema brasileiro, no

tocante à vigilância da obrigatoriedade de exibição, sinalizava o caminho seguro para a

difusão dos ideais estadonovistas no campo da imagem em movimento.238

A respeito desta “disposição totalitária” que atribuímos ao Estado Novo, não devemos

procurá-la em um regime político, muito menos no programa de um Partido único, que aos

moldes dos movimentos reacionários europeus representava, na figura do Partido, o povo-

Uno. Na verdade, a encontramos na matriz ideológica dos regimes autoritários que atualizam

constantemente a imagem de uma sociedade una, indivisa e homogênea. Se é no fundamento

do totalitarismo que se alcança a representação do povo-Uno, conforme afirmou Lefort,239

entendo que da mesma forma que outros regimes reacionários o Estado Novo também fez uso

238 SOUZA (1990), Op. cit., p. 342-343. 239 LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites do totalitarismo. Trad. Isabel Marva Loureiro. 2º ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 112.

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de todo um arcabouço conceitual do totalitarismo, em que palavras (imagens) como

“Unidade”, “Ordem”, “Novo”, “Nação” entre tantas outras serviram como dispositivos

legitimadores de uma “política de consenso”.

Como se vê, não se trata aqui de fazer afirmações no sentido de que no Brasil durante

as décadas de 1930 e 1940 houve uma efetiva instituição de um regime nos moldes

totalitários, o que implicaria em “uma sociedade voluntariamente unida ao poder estatal, que

apaga toda diferença no seu interior e que se afirma absolutamente diferente das outras formas

nacionais, sem fissuras entre as ordens dos dirigentes e a obediência das massas”.240 Logo,

compreendo que o totalitarismo é mais um projeto de Estado do que de fato uma prática

política. Segundo Falcon, o conceito “totalitarismo” tem a sua origem no interior dos

movimentos reacionários, o stato totalitário constituía a representação daquilo que era o

objetivo político maior tanto do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha: aglutinar todos

os cidadãos e grupos sociais tendo os partidos fascista e nacional-socialista como

instrumentos integradores.241 Assim, não emprego o termo “totalitário” para definir o regime

de Getúlio Vargas, uma vez que acredito que no Brasil o que ocorreu foi a criação de um

Estado no bojo de uma tradição conservadora, que via no autoritarismo político a única saída

para assegurar a soberania nacional, considerada condição básica para o desenvolvimento

industrial do país.

Entre os próprios intelectuais do regime acreditava-se que o reforço da autoridade

estatal permitia o estabelecimento de uma nova ordem que se diferenciava tanto dos

movimentos totalitários quanto da democracia-liberal. Segundo Azevedo Amaral, enquanto o

Estado totalitário se incumbia de organizar a sociedade vislumbrando os indivíduos como

elementos destituídos de iniciativa e liberdade, o Estado autoritário “obriga apenas o cidadão

a entregar-se à coletividade no que deve e não pode deixar de pertencer a ela, mas deixa-lhe

intacta a órbita em que impera soberana a sua consciência pessoal e na qual se concentram os

interesses especiais que só a ele dizem respeito”.242 Em defesa dos modos-operantes do

regime instituído no Brasil, logo após 10 de novembro de 1937, o autor atribui ao seu caráter

autoritário as funções de coordenação, reajuste e intervenção protetora sobre a sociedade,

tendo como meta a realização de um bem comum: o desenvolvimento industrial. Assim,

240 ROMANO, Roberto. O conceito de totalitarismo na América Latina: algumas considerações. In: DAYRELL, Eliane Garcindo. IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. América Latina Contemporânea: desafios e perspectivas. São Paulo: Edusp, 1996. p. 311. 241 FALCON, Francisco J. Calazans. Fascismo: autoritarismo e totalitarismo. In: SILVA, José Luiz Werneck da (org.). O Feixe: o autoritarismo como questão teórica e historiográfica. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. p. 34. 242 AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 156.

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fundamentado no positivismo, acreditava-se que o Estado autoritário brasileiro não restringia

a liberdade dos indivíduos, apenas adaptava o exercício de suas atividades a um

funcionamento que não afetasse a organização nacional, logo, cada cidadão deveria ser

funcionário social e subordinar-se inteiramente ao Estado. O uso indevido desta liberdade, no

sentido de contradizer a ordem social estabelecida, deveria ser punido rigorosamente. “A

felicidade do indivíduo e a segurança da coletividade entrelaçam-se em uma interdependência

indissolúvel.”243

Desta forma, no entendimento de Azevedo Amaral, o Estado Novo foi concebido sob

os ideais democrático e nacionalista, o que o levava a divergir do movimento totalitário

devido o “acatamento que consagra à posição do indivíduo como elemento irredutível na

organização social” e da democracia-liberal “pelo reconhecimento da supremacia do interesse

coletivo sobre as conveniências dos componentes individuais da Nação”.244 Para o autor o

Estado Novo combinava harmoniosamente os postulados individualistas e os interesses da

coletividade.

Ainda a respeito do Estado autoritário, outro intelectual veio em sua defesa na época.

Segundo Bresciani,245 Oliveira Vianna, um dos principais intelectuais do regime, julgando a

elite brasileira alienada da “realidade nacional”, apostava em um projeto centralizador e

autoritário para o país. Ao contrário do modelo determinado pela democracia liberal que, no

seu entender, era um ideal ultrapassado, pensado para realidades outras que não a(s) do Brasil,

logo, inadequado à nossa sociedade, acreditava em uma política pautada pela organização da

sociedade com o apoio da autoridade do Estado. “Na verdade, os dois grandes objetivos do

Estado em nosso povo são estes: organização da ordem legal e consolidação da unidade

nacional – o que se traduz nestes dois outros: organização da autoridade pública e

hegemonia do poder central [grifos no original]”.246 Na visão do autor o Estado autoritário era

a forma de assegurar a integridade da Nação e seu fortalecimento. Para Bresciani,

Amparado pelas diretrizes “do moderno conceito de evolução social”, Oliveira Vianna concluía, após exame dos três séculos de existência do Brasil, ser incompatível a “democracia de tipo federativo”, o modelo norte-americano, com a nossa “realidade nacional”. A

243 AMARAL, Op. cit., p. 277. 244 Idem, Ibidem, p. 253. 245 BRESCIANI, Stella. “Liberalismo, idéia exótica”. In: O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. Tese Titulação. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, Campinas, 2002. p. 225-283. 246 VIANNA, Oliveira. apud. BRESCIANI, Op. cit., p. 247.

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despeito de suas críticas às teorias comteanas e aos positivistas brasileiros das últimas três décadas do séc. XIX defendia a necessidade de um princípio de centralização autoritária, cuja finalidade seria impedir a força da dispersão demográfica aliada à dimensão e diversidade do território. Seu argumento desenha a imagem de um governo forte assegurando à “União” a vitória sobre as forças dispersivas e desagregadoras dos estados e do regionalismo.247

Oliveira Vianna via na autoridade uma idéia implícita no conceito de Estado. Ou seja,

ao invés de um “Estado autoritário”, o golpe de 10 de novembro tinha instituído uma

“Democracia Autoritária, isto é a democracia fundada na autoridade e não mais na liberdade,

como princípio essencial [grifos no original]”.248 Para ele o caminho para a consolidação de

uma Nação passava por um Estado com autoridade, capaz de conduzir a sociedade em um

único sentido. A superação da condição de incapacidade política dos brasileiros estava na

mobilidade do Estado em conseguir incutir na população o sentimento e a prática de

solidariedade e de cooperação. Ou seja, a formação de uma identidade nacional para o Brasil

do Estado Novo pautava-se pela condição dos trabalhadores urbanos em se reconhecerem

representados em um grupo homogêneo.

Segundo Bresciani, a saída para alcançar este objetivo comum, no pensamento de

Oliveira Vianna, estaria na substituição dos partidos políticos pelo corporativismo e pela

aproximação do governo com o povo, o que exigia “um chefe de Estado acima dos partidos e

grupos de qualquer natureza, de modo a poder dirigir a Nação do alto, num sentido totalitário,

agindo como uma força de agregação e unificação [grifo nosso].”249

Diante disto, concordo com Romano quando afirma que uma sociedade nos moldes

totalitários não apareceu e dificilmente surgirá entre nós, mas que, entretanto, os elementos

para a efetivação deste modelo estão postos em nossa cultura e a qualquer momento podem

ser ativados. Concebendo que “uma nota ideal do totalitarismo reside na união absoluta [grifo

nosso] entre massas nacionais e Estado”,250 o autor acredita que até mesmo as experiências

européias (nazismo, fascismo e stalinismo) escapam desta conceitualização, pois não se pode

dizer em relação a estes regimes que tenha desaparecido absolutamente a oposição ao poder

no interior do social. Desta forma, o que de fato pode-se constatar é que apenas em alguns

instantes de exacerbação, com base principalmente na propaganda, é que o ideal totalitário se

247 BRESCIANI, Op. cit., p. 242. 248 VIANNA, Oliveira. apud. BRESCIANI, Op. cit., p. 261. 249 Idem, Ibidem, p. 262. 250 ROMANO, Op. cit., p. 307.

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efetivou na Europa, o mesmo podendo-se dizer dos regimes reacionários instituídos na

América Latina. Portanto, se queremos pensar um caráter totalitário para o Estado Novo este

se dará no plano de uma disposição ideológica do regime, ou seja, compreendo que o

totalitarismo é uma exacerbação específica do autoritarismo, tendo no nazi-fascismo uma de

suas modalidades. Segundo Romano, “apenas em níveis ideais, propagandísticos ou tentativas

isoladas, pode-se falar em totalitarismo [grifo do autor].”251

Neste sentido, segundo Dutra, quatro pilares contribuíram para a formação do Estado

Novo: Anti-comunismo/Revolução, Trabalho, Pátria e Moral. De um lado temos o Anti-

comunismo ou a ameaça de uma Revolução como o respaldo político dos ideólogos do regime

para justificarem a necessidade da instituição de um Estado forte e centralizador capaz de

conter a ordem social e organizar o país no rumo do desenvolvimento, já a Pátria surge como

o objeto comum de desejo das multidões, contemplada como a realidade operada no cotidiano

dos cidadãos urbanos, a imagem em que o povo deve se identificar. Por outro lado, o

Trabalho, tido aqui como o valor ideal comum, ou seja, aquele que perpassa todas as condutas

sociais, era a síntese da vida do homem e não mais um mero meio de “ganhar o sustento”,

mas era a Moral a responsável por ajustar e fechar o canal que ligava o povo e o Estado, logo,

todos os valores impostos tinham como finalidade o bem e a felicidade da Nação.252

Se a imagem da “Pátria” é o objeto comum de desejo do povo, a propaganda política

de Vargas se encarregava da árdua tarefa de oferecer-lhe um “mundo imaginário”. Segundo

Arendt, “a força da propaganda totalitária [...] reside na sua capacidade de isolar as massas do

mundo real”,253 uma vez que esta busca por se afastar da realidade, o que é proporcionado

pelo “falso mundo de coerências” invocado pelos movimentos reacionários, é a principal

característica que define as “massas modernas”. Para as multidões, subjugarem-se à

“coerência mais rígida e fantasticamente mais fictícia de uma ideologia”, é mais vantajoso do

que enfrentar “a crescente decadência, com a sua anarquia e total arbitrariedade” pois, diante

de um desastre geral, o primeiro lhe permite manter um mínimo de dignidade.254 Dignidade

esta que o Estado Novo ofereceu como resposta ao modelo liberal da Primeira República, à

crise de autoridade. Em um regime em que prevalecia a sociedade una e orgânica, como

pretendia o ideal estadonovista de Nação, o povo encontrava a tão sonhada “coerência”,

escapava do momento de desconforto social ocasionado pelos interesses divergentes, pela 251 ROMANO, Op. cit., p. 310. 252 DUTRA, Eliana Regina de Freitas. O ardil totalitário ou a dupla face na construção do Estado Novo. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990. p. 50-53; 68. 253 ARENDT, Op. cit., p. 402. 254 Idem, Ibidem, p. 402.

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oposição de classes que permeava a sociedade brasileira da época. O que temos é o ideal

totalitário que se materializava na propaganda do Governo Vargas, em que o “mundo

imaginário” nada mais era que uma troca simbólica entre Estado e povo. O sentimento de

insegurança que antes comprimia as multidões agora era apaziguado, tudo porque “em troca

dessa devoção [à Vargas], acena-se com a garantia simbólica: a proteção, com a idéia-imagem

da Pátria/Mãe; da integralidade, com a idéia-imagem da Pátria/una; e da identidade social e ou

nacional, com a idéia-imagem da Pátria/Moral”.255 Portanto, são estas significações postas

pela propaganda que traçam a confiança e a crença das multidões em um regime que se

pretendia legitimar, e que a eficácia se dava, entre outros fatores, por meio da própria

excentricidade das “massas modernas” que se apresentavam como aquelas que

Não acreditam em nada visível, nem na realidade de sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si. O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte. O que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de que a realidade é feita. Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples exemplos de leis e ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo atinge e que supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária prospera neste clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a coerência.256

A concepção de que destas imagens emana um “mundo coerente”, uma integração

imaginada da sociedade, só é possível mediante a compreensão de que se trata de uma força

capaz de dar um sentido imediato ao mundo social, desmobilizando os grupos que não

compõem o poder. No caso do Estado Novo, aproximar o Estado dos trabalhadores dependia

exclusivamente de uma reelaboração dos discursos operários. Segundo Bourdieu, “é enquanto

instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas

simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação

da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra

(violência simbólica) [...]”.257 Entretanto, esta força invisível de que faz uso a classe

dominante não passa de um capital simbólico objetivado, ou como dito anteriormente,

255 DUTRA, Op. cit., p. 222. 256 ARENDT, Op. cit., p. 401. 257 BOURDIEU, Pierre (1989). O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 11.

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permeado por uma intencionalidade, logo, a sua eficácia está sujeita a um ignorar-reconhecer.

O “poder simbólico” é exercido enquanto houver uma cumplicidade daqueles que não querem

saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. Trata-se de um efeito mobilizador que

“só se exerce se for reconhecido [grifo do autor].”258

Vê-se que, aqui, o entendimento de como lidar com os fragmentos totalitários

indiscutivelmente passa pela questão do reconhecer, da identificação, por isso acredito que o

cinema foi um dispositivo imprescindível para a difusão das significações postas pelo Estado

Novo à multidão de trabalhadores, uma vez que autoriza aos espectadores uma dupla

identificação. Aqui, compreende-se por identificação, segundo Freud, a forma mais primitiva

do apego afetivo, que encontra nos elementos de base que constituem a experiência perceptiva

do cinema — a tela, a sala escura e o projetor —, além da reprodução da mise en scène da

caverna, a consolidação do dispositivo necessário para desencadear no espectador a “fase do

espelho”, descrita por Lacan como um momento fundamental na formação da criança que

pela primeira vez se identifica como sujeito, o primeiro esboço do “eu” como formação

imaginária. Esta analogia feita entre a tela do cinema e o espelho, mesmo tendo como ressalva

o fato que a tela-espelho jamais poderá refletir a imagem do corpo do espectador, serve aos

estudos de Jean-Louis Baudry, a respeito do que denominou de “aparelho de base” no cinema,

que nos aponta o jogo da dupla identificação.

Ainda hoje é comum o uso corrente do termo “identificação” para designar a

experiência do espectador em compartilhar os desejos, as angústias do personagem, de

colocar-se em seu lugar, em suma, resulta em uma identificação com o personagem, isto é,

com a figura do outro. Mas, segundo Baudry, trata-se de uma “identificação secundária”,

incapaz de revelar o verdadeiro fascínio do espectador pelas imagens em movimento:

O espectador identifica-se, pois, menos com o representado — o próprio espetáculo — do que com aquilo que anima ou encena o espetáculo, do que com aquilo que não é visível, mas faz ver, faz ver a partir do mover que o anima — obrigando-o a ver aquilo que ele, espectador, vê, sendo esta decerto a função assegurada ao lugar (variável — de posições sucessivas) da câmera.259

Esta capacidade de identificar-se com o lugar ou o olhar do outro, com o sujeito da

visão, denomina-se “identificação primária”. Logo, está posta a dupla identificação no

258 BOURDIEU, Op. cit., p. 14. 259 BAUDRY, Jean-Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 397.

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cinema: o que fundamenta a possibilidade de uma “identificação secundária”, isto é, com o

representado, é, em primeira instância, esta “identificação primária”. Aqui o espectador se

encontra como sujeito privilegiado da experiência cinematográfica, como “sujeito

transcendental da visão”, ou seja, o filme não existe sem seu olhar. Ele se identifica com o seu

próprio olhar e se sente como foco da representação, presente na sala-escura como um sujeito

que tudo vê:

É ele que vê essa paisagem a partir desse ponto de vista único, seria possível dizer também que a representação dessa paisagem se organiza por inteiro para um lugar preciso e único que é precisamente o de seu olho. No travelling, é ele que acompanha com o olhar, sem nem mesmo ter de mexer a cabeça, o cavaleiro a galope na pradaria; é seu olhar que constituí o centro exato desse passeio circular pela cena, no caso de uma panorâmica. 260

Vale também mencionar que o espectador de cinema é um sujeito em “estado de

carência”, ele busca na sala escura fugir do mundo, nem que seja por algumas horas, nela

reencontra a solidão. Assim, a identificação no cinema também passa por um caráter

narcísico, na medida em que permite restaurar no “eu” o objeto ausente ou perdido, logo,

nega-se a perda e a ausência. O espectador tem a possibilidade de se satisfazer sem recorrer ao

objeto exterior, tira proveito da identificação com o universo imaginário da ficção. No

entanto, o cinema é uma experiência perceptiva consentida, relativamente consciente, logo, a

identificação também se trata de uma regressão narcísica consentida. Por isso, o cinema

sempre implicará em um espectador em “estado de carência”, isto é, retirado do mundo na

própria condição de espectador.

Foi percebendo esta situação que os regimes reacionários do século XX procuraram

incorporar o cinema aos seus aparatos de propaganda. Era aproveitando-se deste estado

regressivo em que se encontravam as multidões de espectadores, propícias para se

reconhecerem nas imagens projetadas na tela-espelho, que a propaganda política se esforçou

para construir as significações mais adequadas a uma identificação do povo com o Estado.

Estas significações não atuavam em um vazio ideológico, pelo contrário, tinham a

necessidade de integrarem o mundo social em que viviam as pessoas, pois só assim poderiam

ser compartilhadas coletivamente. Cabia a estas significações tornar o Estado algo palpável,

cotidiano e familiar.

260 BERGALA, Alan. Espectador de cinema e a identificação com o filme. In: AUMONT (1995), Op. cit., p. 260.

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Isto nos autoriza a dizer que toda a discussão a respeito da impressão do real no

cinema não só pode ser explicada pelo próprio dispositivo cinematográfico, como vimos,

como também pela capacidade que tem o mesmo de convencer, ou seja, o filme vale por suas

construções sígnicas. Os espectadores serão convencidos ou não do realismo do filme de

acordo com as convenções que ele adotar, então, quanto mais próximas estas convenções

estiverem dos tipos de valores modais de fantasia, preexistentes no imaginário social, maiores

serão as chances de fazerem das significações algo em que as multidões possam se identificar,

identificação que transita por um fascínio dos indivíduos em perceberem que compartilham de

um mesmo sentido que viram, de uma mesma experiência perceptiva. É neste instante que se

instaura um sentimento de unidade. Por isso, qualquer investida nas imagens cinematográficas

não deve se limitar a discutir se as mesmas convencem ou não, uma vez que a crença e a

legitimação não derivam da imagem, mas de uma combinação determinada entre aquele que

exerce o poder e os que lhe estão sujeitos. Neste sentido, ao dirigir-me aos cinejornais do DIP

acredito ser mais promissor saber como certas construções fílmicas foram elaboradas na

intenção de organizar as multidões de espectadores em torno de imagens fascinantes, como

aquelas já postas na sociedade pela fantasmagoria do “Todo Orgânico” e que foram

atualizadas pelos regimes autoritários.

Porém, mesmo se tratando de um exercício edificante, estruturante de uma “realidade

coerente”, tendo na imagem um instrumento da “fábrica do consenso”, insisto em ressaltar

que a capacidade mobilizadora do “poder simbólico” do Estado Novo só se realizaria

mediante a existência de elementos concretos. Um exemplo era a maneira como Getúlio

Vargas e o ministro Marcondes Filho faziam uso do rádio combinado com as verbas do

Ministério do Trabalho. Os discursos radiofônicos de ambos eram acompanhados de ações

concretas no campo da legislação trabalhista, ao se dirigirem aos operários reforçavam o mito

da doação. O mesmo ocorria nas festividades cívicas de Primeiro de Maio. A respeito dos

programas de rádio de Marcondes Filho, Paranhos evidencia que “a ressonância da fala

ministerial foi inegável, convertendo-a numa poderosa alavanca da palavra estatal. Esta,

colada à propagação das imagens, símbolos e mitos de legitimação de Vargas e do ‘Estado

Novo’, adquiria uma proeminência sem igual na sociedade brasileira, em que pese a sua

incapacidade de suprimir as vozes dissonantes.”261

Como se sabe, o “mundo imaginário” do Estado Novo começou a desmoronar-se em

meados de 1942; a imagem de uma Nação Una, antes projetada para a sociedade, sofria

261 PARANHOS, Op. cit., p. 138.

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constantes ataques do mundo real. Neste momento Vargas apela para os trabalhadores

incorporados ao seu “exército de reserva de mobilização”, mas ficava difícil a cada instante

sustentar o mito da Unidade quando confrontado com a dura realidade do aumento do horário

de trabalho, devido ao esforço de guerra, como também em meio à desvalorização dos

salários e à queda precoce do valor relativo do mínimo, consumido pela inflação. De fato, o

desejo do Estado Novo em construir uma Nação próspera chegava ao seu fim em 1945.

3.2 — Cine Jornal Brasileiro: em busca de significações

Foram diversos os assuntos que ambientaram as imagens do Cine Jornal Brasileiro,

entre eles saúde, política, relações internacionais, industrialização, artes, festas cívicas, o

“esforço de guerra” e etc., sendo que, na maioria das vezes, um mesmo cinejornal veiculava

assuntos diferentes. Por exemplo, em um destes filmes atualidades os espectadores brasileiros

da época puderam presenciar na tela a visita da Missão Cultural francesa ao Presidente da

República, acompanhar a inauguração de uma exposição a respeito dos atos heróicos do povo

polonês sob a ocupação germânica e o passeio dos nossos soldados feridos na guerra pela Ilha

de Brocoió, além de serem informados de uma nota esportiva sobre as provas preliminares da

temporada de veleiros na enseada de Botafogo no Rio de Janeiro. O encerramento ficava a

cargo das imagens triunfantes de Vargas nas comemorações de Primeiro de Maio de 1945, em

que os operários saudavam euforicamente o Chefe da Nação. O clima de entusiasmo cívico

que coroava a película deveria contagiar os espectadores acomodados nas poltronas da sala

escura.

A indexação do Cine Jornal Brasileiro, elaborada por Souza em 1990, foi

imprescindível para as pesquisas posteriores, inclusive para esta, resultando em um trabalho

mais detalhado das temáticas apresentadas nestes filmes, uma vez que de outubro de 1938 a

setembro de 1946 foram produzidos 607 números, mas apenas 414 foram recuperados e

indexados pela Cinemateca Brasileira.262 Lembrando que antes da criação do DIP era a

Cinédia a encarregada da produção deste cinejornal, o que resultou nos primeiros 127

números, por outro lado, mesmo depois da extinção do DIP, em maio de 1945, foi mantida a

sua produção ainda por mais de um ano pelo Departamento Nacional de Informação (DNI)

262 SOUZA (1990), Op. cit., p. 306-307.

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Segundo Souza, dentre todos os assuntos exibidos, as imagens das Forças Armadas e

de Getúlio Vargas são temas dominantes na produção cinematográfica oficial do Estado

Novo. Enquanto a primeira representava a manutenção da segurança e da ordem da Nação, a

figura onipresente de Vargas, do líder atento e capaz de solucionar os mais diversos

problemas que assolavam o povo brasileiro, tornava-se o símbolo maior da Unidade Nacional.

Onde quer que Getúlio Vargas estivesse presente visitando ou inaugurando uma obra,

presidindo ou assistindo a uma cerimônia, lá estava o Estado Novo corporificado

(representado). Um outro tema que encontrou grande respaldo nos cinejornais foi o das Festas

Cívicas (Sete de Setembro, Aniversário de Vargas, Aniversário do Estado Novo, Dia do

Trabalho etc.); em seguida, em uma proporção menos acentuada, surge a temática da

Industrialização. O grande mote aqui é a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN); as imagens

acompanham desde o lançamento do projeto até a corrida do primeiro aço. Enfatiza-se

também a indústria naval de guerra, a fabricação de aviões para uso civil e militar, as fábricas

de tecelagens, de pneus e cerâmica. A pujança econômica conquistada pelo parque industrial

de São Paulo tem espaço reservado nas películas do DIP, tendo sido produzido um filme

atualidade especialmente em 1941, o São Paulo Industrial. Ao contrário da imprensa, os

cinejornais dedicaram um espaço maior à Indústria do que à Agricultura, o que acredito tenha

ocorrido devido o Ministério da Agricultura já contar com o Serviço de Informação Agrícola,

uma produção cinematográfica paralela ao do DIP. Já a temática do Trabalho não teve a

atenção merecida dos propagandistas do Estado Novo, conforme determinava a ideologia do

trabalhismo. Poucas foram as investidas do cinema estatal no mito da “doação”, tendo sido os

filmes de Primeiro de Maio o único espaço reservado a esta ritualização, pelo contrário, a

imagem do operário ficava circunscrita ao seu ambiente de trabalho, submetida ao contexto

fabril.263 É verdade que as imagens dos trabalhadores ganharam um maior destaque nas

películas do que as imagens difundidas da burguesia industrial e da classe média, mas não o

suficiente para expressarem a política trabalhista de Getúlio Vargas, como era esperado. Ao

contrário do cinema, o DIP fez uso sistemático da música popular no sentido de transformar a

idéia-imagem “Trabalho” em um capital simbólico do Estado Novo, em que a malandragem

antes invocada nas canções perdia espaço para a exaltação do trabalhador, o novo cidadão da

“democracia social”.

Os resultados desta indexação definiram não só os assuntos dos cinejornais a serem

analisados a seguir, como também deram um outro indicativo do que venho denominando de

263 Para uma melhor compreensão dos assuntos dominantes no cinejornal do DIP consultar “A propaganda política do Estado e seus temas”. In: SOUZA (1990), Op. cit., p. 303-322.

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“discurso totalitário”. Diante da vasta produção do Cine Jornal Brasileiro, nota-se o

predomínio da imagem do Estado que incorporara os destinos econômicos, políticos e sociais

do Brasil, fazendo-se presente por meio das duas instituições do regime, uma militar (as

Forças Armadas) e outra civil (Getúlio Vargas). Logo, só interessava ao DIP a construção

sígnica do Estado; os cinejornais se encarregavam de tornar o Estado Novo algo cotidiano e

familiar ao povo brasileiro que, por sua vez, encontrava dificuldade de veicular a sua própria

imagem, seja por questões econômicas ou por perseguições da censura estatal — como é o

caso dos jornais operários que circulavam na época, mas constantemente tinham suas gráficas

depredadas. Toda as vezes que o discurso cinematográfico se referia a uma ou outra classe

social era na forma de uma reelaboração da fala do outro, circunscrevendo-a a uma única

imagem: o Estado Novo. Um exemplo disto foi a ressignificação que o DIP operou no

Primeiro de Maio: abandonando o caráter de manifesto, o Dia do Trabalhador é transfigurado

em Dia do Trabalho, uma data para comemorar as benesses concedidas aos operários pelo

Chefe da Nação. Segundo Souza, era possível afirmar que também no campo das imagens o

que imperava era uma “ditadura de instituições”, em que o Estado não reconhecia a

organização social de nenhuma classe. “Burguesia industrial e agrária, classes médias ou

trabalhadores não conseguem se fazer representar enquanto tais. Elas não conseguem veicular

a imagem que fazem de si mesmo para as outras classes, como estão diminuídas pelos signos

que engrandecem a presença onipotente do Estado e de seus órgãos técnicos e provedores.”264

É em busca das significações postas para o Estado Novo que selecionei 19 assuntos

dos cinejornais, reunindo-os em três temáticas que acredito poderem explicar o universo

simbólico da ditadura Vargas. Primeiramente, é importante destacar que apesar da imagem de

Getúlio Vargas ser um dos temas dominantes nos cinejornais não vi a necessidade de discuti-

la isoladamente, uma vez que não havia uma preocupação tanto de Vargas quanto dos

cinegrafistas do DIP de como o Presidente deveria se comportar diante das câmeras. Isto

acabou ocasionando situações não muito favoráveis à propaganda estadonovista, como as

cenas em que Vargas aparece de costas para os espectadores. Também eram comuns os

constantes pigarros que acometiam o Chefe da Nação durante os seus discursos e que,

ritualmente, não deixava de limpar-se diante dos microfones, sendo este gesto flagrado pelas

câmeras. Nota-se, então, que o DIP não procurou criar uma imagem de Getúlio Vargas

adequada para ser veiculada no cinema. Segundo Souza, esta despreocupação revela que “o

ditador não força para si as atenções da objetiva porque ele é naturalmente o centro das

264 SOUZA (1990), Op.cit., p. 320-321.

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atenções”.265 Isto explica porque até mesmo quando o Presidente não aparecia nos cinejornais,

são inevitáveis as menções honrosas feitas a ele por meio do artifício da voz off, lembrando

que “a voz off é a voz do Saber e do Poder no cinema”.266 Como se vê, acredito que pinçar a

imagem de Getúlio Vargas das películas não nos reservaria muitos atrativos, seria mais

indicado analisarmos como ela é abordada como componente simbólico do Estado Novo, em

que

[...] é possível perceber uma projeção da pessoa de Getúlio a um plano de divinização, desdobrável em uma trindade de imagens que se interpenetram e se contém em uma só: Getúlio ora corresponde à imagem do Pai, que vela e protege pelos filhos, imagem que recebe seu acabamento principal na figura do grande legislador social; ora identifica-se mais com a imagem do Filho, líder que intervém na estória, predestinadamente, o Messias que veio para mudar seu fluxo e afastar outros intermediários; ora corresponde à figura do Espírito a iluminar os caminhos dos seus subordinados para uma nova ordem, amparada por outras luzes.267

Assim, os temas da Industrialização e do Trabalho caminham juntos para construir um

imaginário social em torno de uma “modernização conquistada”, em imagens se materializava

os traços de um novo país, que aos poucos substituía seu caráter rural pelo urbano. A cidade

com suas largas ruas por onde trafegavam os bondes e os automóveis, enquanto nas calçadas

os passantes iam de um lado para o outro ao som, no final da tarde, do apito da fábrica, servia

de inspiração não só para poetas e pintores, mas também para os cinegrafistas do Estado Novo

na tentativa de transportar para as telas o pensamento dominante na época. O projeto

nacional-desenvolvimentista de Vargas desejava ser a marca da passagem deste “Brasil

Rural” para o “Brasil Urbano”, tendo no setor da siderurgia a alavanca da ascensão econômica

do país. Se nas cidades os trabalhadores surgiam submergidos no cenário das máquinas, dos

grandes barracões, e o tempo era marcado pelo ritmo compassado da produção, aos poucos

nos rincões do Brasil aquela sensação de tranqüilidade, do homem lidando com a natureza era

substituída pela chegada da “civilização”, o Estado Novo marchava em sentido ao interior

com o objetivo de conduzir a modernidade em todo o território nacional. Enquanto no cenário

fabril a câmera do DIP sugeria um elogio à grandiosidade dos pavilhões e procurava nas

chaminés o signo do progresso do país, no sertão ela invadia a vastidão do semi-árido para

265 SOUZA (1990), Op.cit., p. 345. 266 VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, Op. cit, p. 109. 267 LENHARO (1986), Op. cit., p. 194-195.

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retratar o cotidiano dos homens no campo, onde logo surgiam as benfeitorias, ou seja, as

marcas da presença do Estado Novo no interior do Brasil.

Já a escolha da temática da Segunda Guerra Mundial busca revelar o sentido

mobilizante que os cinejornais procuraram atribuir às imagens do Brasil neste conflito

mundial, uma vez que o Estado Novo tinha a necessidade de criar um “front interno”, um

clima de guerra, que não só justificasse o envio dos pracinhas brasileiros ao campo de batalha

em Nápoles, na Itália, mas principalmente respaldasse medidas como o aumento das horas de

trabalho, os salários reduzidos entre outras adotadas pelo governo, que acabavam por confinar

os trabalhadores brasileiros nas fábricas sob o pretexto de produzir em maior escala para

atender ao “esforço de guerra”. Como se vê, temas como Industrialização e Segunda Guerra

habitaram a mesma película a partir de 1942, quando o Brasil declarou guerra aos países do

Eixo, o que não poderia ser diferente, já que a aproximação do Governo Vargas com os EUA,

ao mesmo tempo em que proporcionou investimentos para a construção da primeira indústria

siderúrgica brasileira, também resultou em um compromisso do país em enviar tropas para a

Europa e permitir a construção de bases militares norte-americanas no Nordeste, além de

fornecer as matérias-primas estratégicas ao abastecimento armamentista dos Aliados. Era este

o preço da política econômica nacionalista de Getúlio Vargas.

Vale destacar que a construção discursiva dos cinejornais a respeito do tema da

participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial não passa pelas imagens dos pracinhas em

combate. Apesar do DIP ter enviado cinegrafistas ao front na Itália, nas telas do Brasil não

foram exibidas as imagens do conflito, apenas aquelas que antecederam o envio das tropas —

os treinamentos dos soldados e enfermeiras e o desfile do primeiro contingente que embarcou

para a Europa. Até mesmo em um cinejornal especial intitulado O Esforço de Guerra do

Brasil o único indício dos soldados brasileiros em território inimigo era a seqüência em que

recebiam a visita do Ministro da Guerra do Estado Novo, Eurico Dutra. Assim, se outros

pesquisadores desejarem enveredar por este tema em busca de imagens não sancionadas pela

ditadura de Getúlio Vargas terão um longo caminho a percorrer por diversas cinematecas na

Europa e nos EUA, assim como o fez o cineasta Sylvio Back para compor o seu polêmico

filme documentário Rádio Auriverde (1990).

Se por um lado as temáticas escolhidas apresentam marcas discursivas distintas,

acredito que um elemento é comum a elas: a imagem da multidão. Compreendo aqui que não

basta ter na multidão organizada o referente à idéia-imagem da “Pátria/Una”, mas é

necessário que este artifício venha acompanhado da idéia de sacrifício do indivíduo em

função do coletivo, do “Eu” sendo substituído pelo “Nós”, pois só assim a imagem da

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multidão torna-se mobilizadora. Era neste sentido que surgiam nos cinejornais os

trabalhadores concentrados nas fábricas ao ritmo da linha de produção ou o povo reunido para

saudar os soldados brasileiros enviados ao campo de batalha, “todos” integravam um único

corpo.

Desta forma, acredito que a multidão surge como elemento fundamental para um

discurso pautado na fantasmagoria do “Todo Orgânico”, logo, segue como o signo do

fundamento do totalitarismo: a Unidade. Por isso, a escolha da terceira temática resultar nas

Festas Cívicas organizadas pelo DIP, mais especificamente as comemorações de Primeiro de

Maio. Além de buscar entender como o Governo Vargas reelaborou o discurso operário em

torno do mito da “doação”, transformando o Dia do Trabalhador em Dia do Trabalho,

procurei ver como o uso sistemático do poder simbólico das imagens da multidão nos

cinejornais, combinado com o da criação do “tempo festivo”, serviram como instrumentos

legitimadores do novo regime. Como as significações da Unidade e do nascimento de uma

nova ordem social forjaram o mito “Estado Novo”?

3.2.1 – Indústria, Trabalho e Atraso: o urbano e o rural se confrontam nas telas do

Estado Novo

Agora vou mudar minha conduta/ Eu vou pra luta,/ Pois eu quero me aprumar./ Vou tratar você com força bruta/ Pra poder me reabilitar,/ Pois esta vida não está sopa/ E eu pergunto: com que roupa?/ Com que roupa que eu vou/ Pro samba que você me convidou?/ Com que roupa que eu vou/ Pro samba que você me convidou?/ Agora eu não ando mais fagueiro,/ Pois o dinheiro/ Não é fácil de ganhar./ Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro/ Não consigo ter nem pra gastar,/ Eu já corri de vento em popa/ Mas agora com que roupa?/ Eu hoje estou pulando como sapo/ Pra ver se escapo/ Desta praga de urubu./ Já estou coberto de farrapo,/ Eu vou acabar ficando nu,/ Meu terno já virou estopa/ E eu nem sei mais com que roupa.268

Em fins de 1929, Com que roupa? soa como uma cantiga de musicalidade original aos

ouvidos do Tio Eduardo, composta pelo jovem sobrinho de apenas 19 anos, que procurava

retratar em seus versos, ainda que metaforicamente, um país consumido em farrapos pela

pobreza, a fome e a miséria. Este samba consagrou nos anos 30 o jovem compositor Noel

268 Com que roupa? Noel Rosa, 1929. In: MÁXIMO, João; DIDER, Carlos. Noel Rosa, uma biografia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990. p. 116-117.

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Rosa, que mais tarde seria imortalizado como o Poeta da Vila (Isabel). Apaixonado pela

boêmia, reduto dos personagens e das histórias que costuravam em agulhas finas seus sambas,

Noel era o intérprete do malandro e da malandragem, apesar de não ser este o seu mundo.

Filho de família de classe média baixa carioca ele, no entanto, o compreendia bem, tanto que

era capaz de versos como “eu devo, não quero negar, mas te pagarei quando puder, se o jogo

permitir, se a polícia consentir e se Deus quiser ... Não pensa que eu fui ingrato, nem que fiz

triste papel, hoje vi que o medo é um fato e eu não quero um pugilato com teu velho

coronel”.269 Suas canções são hinos de um “malandro medroso” e esquivo, no dizer dos

biógrafos, que em versos escorregadios, contemplava a vadiagem da cidade e do morro,

cantando seus códigos sociais.

A música de Noel Rosa era o retrato “cruel”, para a elite brasileira, da gênesis da nossa

música popular, que desde o final do Império dialogava com a malandragem, oscilando entre

a ordem e a desordem.270 E o samba incorporara definitivamente o modo de vida boêmia e do

não trabalho, o que não afastava o seu caráter político, como encontrado na poesia popular de

Noel, composta em homenagem às suas origens, uma alusão à política da Primeira República,

superada pela revolução de 1930: “Quem nasce lá na Vila/ Nem sequer vacila/ Ao abraçar o

samba/ Que faz dançar os galhos/ Do arvoredo/ E faz a lua nascer mais cedo./ Lá em Vila

Isabel/ Quem é bacharel/ Não tem medo de bamba./ São Paulo dá café/ Minas dá leite/ e a

Vila Isabel dá samba [..].”271

Entretanto, a maestria do poeta cessou na noite de 4 de maio de 1937, vítima das

complicações de uma tuberculose, o que provocou o luto da Vila e de todo o país, assim como

também da música popular brasileira que perdia a chance de acompanhar no cancioneiro

popular de Noel Rosa as possíveis contra-respostas ou não ao projeto nacional-

desenvolvimentista de Getúlio Vargas, instaurado com o Estado Novo, seis meses depois da

morte do sambista. Na vigência do novo regime o tradicional elogio à malandragem fora

excluído das rodas de samba, das rádios, do imaginário popular, substituído pelo culto ao

trabalho. Um exemplo disto foi a censura do DIP ao samba O Bonde de São Januário, de

Ataulfo Alves e Wilson Baptista em 1940. Alegando “promoção à vadiagem”, o DIP proibia a

canção que na letra original dizia: “O Bonde de São Januário/ leva mais um sócio otário/ Sou

269 Malandro Medroso. Noel Rosa, 1930. In: MÁXIMO, João; DIDER, Carlos. Noel Rosa, uma biografia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990. p. 133. 270 A respeito da malandragem como a gênesis da música popular brasileira consultar VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI JR., Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização. O Brasil republicano: economia e cultura (1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, tomo 3, v. 4, 1995. p. 501-523. 271 Feitiço da Vila. Noel Rosa, 1934. MÁXIMO, João; DIDER, Carlos. Op. cit., p.329.

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eu, que não vou trabalhar”. E só seria liberada, um tempo depois, com uma nova letra: “Quem

trabalha é que tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde São Januário/ Leva

mais um operário: sou eu que vou trabalhar./ Antigamente eu não tinha juízo/ Mas resolvi

garantir meu futuro/ Vejam vocês: sou feliz, vivo muito bem /A boemia não dá camisa a

ninguém./ É, digo bem”. Assim, a reação de Noel Rosa à domesticação do samba pelo Estado

Novo ficaria como um exercício lúdico aos seus admiradores, porém, outros compositores

populares sutilmente reagiram às intenções “educativas” e “civilizadoras” do governo da

época, apesar do forte aparato propagandístico do Departamento de Imprensa e Propaganda

(DIP), como demonstrou Paranhos: “se, de um lado, há um número elevado de composições e

compositores populares afinados com o regime estado-novista e a valorização do trabalho, de

outro despontam, como uma espécie de contradiscurso, canções (sambas, em sua maioria) que

traçam linha de fuga em relação à ‘palavra estatal’.”272

O cinema, assim como a música popular, também foi alvo da censura e da propaganda

do Governo Vargas, mas como vimos, o DIP ao difundir a idéia-imagem do “Trabalho”, tendo

no trabalhador o modelo de cidadão brasileiro, não fez um uso sistemático deste meio, como

se esperava dos mecanismos de propaganda de um regime pautado pela ideologia do

trabalhismo. Neste caso, as benesses concedidas pelo Estado aos operários, como a Lei do

Salário Mínimo, a instalação da Justiça do Trabalho ou o Abono Familiar, não receberam

maior atenção dos propagandistas do DIP, poucas foram as referências feitas a elas no Cine

Jornal Brasileiro. Entretanto, as câmeras do regime optaram por traduzir em imagens a

importância que, naquele momento, dava-se ao desenvolvimento industrial do país. As

imagens do ambiente fabril incorporavam o sentido da superação do Brasil atrasado, das

oligarquias, e o mesmo se projetava para o interior do país, a câmera percorria as benfeitorias

realizadas pelo Estado Novo fazendo alusão a uma modernidade que somente chegava a estas

localidades, antes abandonadas e desprovidas, pelas mãos do Chefe da Nação. Assim, o

projeto nacional-desenvolvimentista de Getúlio Vargas quando posto nas telas do país tratava

de circunscrever as imagens a um imaginário que confrontava a moderna industrialização

urbana e o atraso rural, logo, a construção discursiva dos cinejornais pretendia convencer que

o Estado Novo, personificado na figura de seu líder, era o autor de uma “modernização

conquistada”.

De fato, é notória a contribuição que o cinema desempenhou na transformação do

arcaico para o moderno a partir dos anos 30 em países da América Latina, principalmente no

272 PARANHOS, Adalberto. O samba na contramão: música popular no “Estado Novo”. Revista Cultura Vozes. v. 95, n. 1, jan./fev. 2001. p. 71.

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Brasil, que, sob ditaduras de cunho populista, era o meio de comunicação responsável por

aproximar os recém chegados trabalhadores, que migravam do campo para a cidade, dos

costumes e da vida citadina. Era a arte cinematográfica que fazia a mediação entre a cultura

urbana e a cultura rural, o tradicionalismo do interior deveria se render à modernidade da

capital, os novos trabalhadores teriam que se adequar aos códigos do operário urbano. Isto

não quer dizer que a cultura do campo não resistiu aos apelos da modernidade, ao contrário,

soube também encontrar mecanismos de interação, como a introdução de elementos da

oralidade e da expressividade na apreensão do outro sobre ela, o que não significa uma forma

negativa ou pejorativa desta relação entre o urbano e o rural, mas uma nota transparente que

aponta para a interseção entre essas duas culturas e demonstra o quanto é difícil pensar em

níveis de superioridade, de atraso e civilização, de arcaico e moderno, ou seja, de formas

eqüidistantes, enquanto uma dicotomia, já que tratamos de culturas e, cada vez mais,

percebemos o quanto e como elas se tornam híbridas.

Nota-se, então, que o cinema, assim como tantos outros meios de comunicação de

massas, foi incorporado ao Estado pelos regimes autoritários na tentativa de legitimar um

projeto nacional-desenvolvimentista, ou seja, tratava-se de representar nas telas as imagens de

uma identidade nacional, que, em países da América Latina, inclusive o Brasil de Getúlio

Vargas, se referia a uma necessidade indubitável de superar o arcaico, a barbárie pela

civilização, encontrando respaldo na modernização do país, na industrialização da economia,

marcas de um pensamento do nacional que, sob a égide das teorias deterministas e

evolucionistas (positivismo, darwinismo social), perdura ainda hoje no Brasil.273 No final do

século XIX e na primeira metade do XX, ainda debaixo do véu das teorias raciais, o

pensamento brasileiro indicava a mestiçagem como elemento definidor da nossa

nacionalidade, como propôs Ortiz, muito tempo depois, que “o elemento da mestiçagem

contém justamente os traços que naturalmente definem a de identidade brasileira: unidade na

diversidade. Esta fórmula ideológica condensa duas dimensões: a variedade das culturas e a

unidade do nacional”, para concluir que “a identidade nacional é uma entidade abstrata e

como tal não pode ser apreendida em sua essência”.274 Longe disto, a mestiçagem,

interpretada como uma sub-raça, era o indício da barbárie que acometia a brasilidade e, 273 A respeito da questão da busca por uma identidade nacional no Brasil do século XIX e início do XX consultar NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998. Para a autora o pensamento desta época contribuiu para forjar na memória coletiva a imagem de um povo brasileiro imaturo, despreparado e indolente, identidade que, ainda hoje, habita a nossa cultura. Ainda nesta temática, consultar da autora Sobre campo e cidade — olhar, sensibilidade e imaginário: em busca de um sentido explicativo para o Brasil do século XIX. Tese (Doutorado). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 1999. 274 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 93; 138.

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portanto, necessitava de ser transformada ou extinta para que surgisse de suas cinzas a Fênix

verde-amarelo, o novo Brasil. E o progresso do litoral levado aos rincões deste país seria

fundamental para começarmos a esconder as cinzas de um passado marcado pela escravidão

e, a posteriori, pela marginalização da sociedade brasileira, encontrando no trabalho, seja do

imigrante europeu — devido ao estereótipo do brasileiro preguiçoso e indolente, avesso ao

trabalho — ou do trabalhador do campo que migrava para as cidades, a resposta para superar

todos os traumas de país primitivo.

Em se tratando de cinema e identidade nacionais no pós-30, vejo que não é

inverossímil falar da predominância da dicotomia “Brasil Urbano” e “Brasil Rural”, já que,

segundo Bernadet e Galvão, o “nosso” nas películas era tanto a representação do rural quanto

a do urbano, o primeiro como a exaltação da natureza e dos usos e costumes do interior, e o

segundo como exaltação do progresso e da civilização. Entretanto, os autores ressaltam que

“esse Brasil sertanejo é evidentemente uma das representações do ‘popular’ que o cinema

brasileiro apresentou no decorrer de sua história (e até hoje). No entanto, ele nunca é

reivindicado nos anos 10, 20 e 30 como popular, mas sim como brasileiro ou nacional, ou

‘nosso’”,275 já que o sentido que era dado ao termo “popular” até a primeira metade do século

era pejorativo, sinônimo de vulgar; os filmes nacionais tinham o desprezo da elite brasileira,

mas agradavam o povo, seja porque falavam ou se dirigiam a este mesmo povo. O

menosprezo aos “filmes populares” encontrava respaldo nas páginas de publicações da época,

como a revista Cinearte, que, ao repudiar completamente as imagens do Brasil rural e

atrasado, reivindicava para a cinematografia do país o retrato de um Brasil urbano e moderno,

cosmopolita, negando às telas qualquer vestígio da barbárie: não caberia ao cinema brasileiro

apresentar “aqui um bando de cangaceiros, ali um mestiço vendendo garapa em um purungo,

acolá, um bando de negrotes se banhando num rio, e coisas desse jaez.”276

Este anseio de colocar o Brasil entre as grandes potências econômicas encontrava no

“Trabalho” o dispositivo simbólico que suspendia o estigma do Brasil arcaico, primitivo,

atrasado, do povo preguiçoso, incapaz e indolente. Na ideologia do trabalhismo a valorização

do “Trabalho” era sinal de um novo caminho por onde transitava a ordem social, a

estabilidade econômica. Para Dutra, é por meio de uma associação direta do “Trabalho” aos

sentimentos de bem comum, ascensão social, dignidade, moralidade, solidariedade, progresso,

ordem e tantas outros que o Estado Novo exercia a sua dominação oculta — representações,

que segundo a autora, também podem ser encontradas nas construções discursivas dos

275 BERNADET & GALVÃO, Op. cit., p. 28-29. 276 Revista Cinearte, 28.04.1926. apud. BERNADET & GALVÃO, 1983. p. 36.

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comunistas, o inimigo interno do regime. Portanto, segundo Dutra, o imaginário coletivo que

se procurou projetar a respeito dos trabalhadores foi o sustento das estratégias ideológicas de

enquadramento do proletariado postas no cenário político dos anos 30 e 40:

A solução para a manutenção da ordem social e para a resolução dos males do país é, pois, o trabalho, o esforço dos brasileiros que racionalmente orientados redundarão na conquista do progresso. O remédio para a falta da densidade populacional, para a deficiência da produção, enfim, para os problemas econômicos e sociais, não está na destruição da organização política e social e sim no fator-homem, pelo trabalho e pelo comando dos mais capazes e mais patriotas. E o trabalho vai ser a pedra de toque do empreendimento do progresso e da paz social, por irmanar todos os brasileiros numa única categoria — a daqueles que se esforçam pelo Brasil. É ele o valor dominante projetado pelo que almejam uma sociedade una, para lhe dar o arremate final e assim concluir o edifício da dominação totalitária.277

Como se vê, o “Trabalho” incorporava definitivamente parte da “disposição

totalitária” do regime autoritário de Vargas, canalizava o esforço do brasileiro em um único

destino, o desenvolvimento da Nação. Getúlio Vargas em discurso pronunciado por ocasião

da assinatura do decreto-lei referente ao direito dos trabalhadores ao Salário Mínimo, no

Palácio Guanabara, em Primeiro de Maio de 1938, reconheceu que, naquele momento, diante

do cenário político mundial que era projetado, não seria possível governar sem satisfazer as

justas aspirações das multidões de operários. Entretanto, insistia na valorização do “Trabalho”

enquanto fator da elevação da dignidade humana, por isso, o Salário Mínimo, no

entendimento do Estado Novo, vinha assinalar um marco fundamental para a evolução da

legislação social. Se ninguém poderia viver sem trabalhar, a remuneração do operário deveria

ser justa, ao contrário de apenas o indispensável para não morrer de fome. Em um mesmo

discurso o Presidente sintetizava as imagens (“Trabalho”, “Unidade”, “Progresso”, “Ordem” e

“Moral”) que estimulariam o espírito de cooperação do povo brasileiro na formação de um

novo Estado: “é preciso, portanto, para a realização desse ideal supremo, que todos marchem

unidos, em ascensão prodigiosa, heróica e vibrante, no sentido da colaboração comum e do

esforço homogêneo pela prosperidade e pela grandeza do Brasil”.278 Portanto, o empenho dos

trabalhadores, em coro uníssono na linha de montagem das fábricas, sinalizava para o Brasil

proposto pelo projeto nacional-desenvolvimentista do Estado Novo, que encontrava na

exploração de minérios o principal problema da economia brasileira.

277 DUTRA, Op. cit., p. 370-371. 278 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. v. 5. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 205.

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Desde a instituição do Governo Provisório, Getúlio Vargas declarava que o progresso

do Brasil somente iria encontrar respostas nos investimentos no campo da siderurgia, a idade

do ferro marcaria, definitivamente, a ascensão econômica do país. Em visita a Belo Horizonte

(MG), em fevereiro de 1931, o Presidente foi recebido com um banquete oferecido pelo

governo do Estado e lá demonstrara, entre outras coisas, o quanto a exploração mineral fazia

parte do projeto político e econômico para o Brasil futuro:

[...] Mas o problema máximo, pode dizer-se, básico da nossa economia, é o siderúrgico. Para o Brasil, a idade do ferro marcará o período da sua opulência econômica. No amplo emprego desse metal, sobre tudo precioso, se expressa a equação do nosso progresso. [...] O ferro é fortuna, conforto, cultura e padrão, mesmo, da via em sociedade. [...] Creio poder, portanto, afirmar que a grandeza futura do Brasil depende, principalmente, da exploração das suas jazidas de ferro. E o ferro é Minas Gerais.279

Nota-se, então, que, aliado ao imaginário coletivo que era forjado a respeito do

Trabalho, o empenho de Vargas em instituir um programa industrializante para o país era

plausível, já no início dos anos 30, tendo em vista que a superação da crise e a manutenção do

crescimento econômico eram fatores essenciais para a sua sustentação política. Com o

objetivo de manter-se no poder, Getúlio Vargas via na industrialização do Brasil a fonte de

sua legitimação. Entretanto, segundo Corsi,280 no período de 1930 a 1937, não estava nítido

um projeto nacional de desenvolvimento, a política econômica demonstrava caminhar em

direção ao estímulo do setor industrial, mas, as medidas adotadas pelo governo se davam de

formas isoladas e parciais. Em 1935 os primeiros passos são dados para o amadurecimento da

idéia de desenvolvimento industrial quando as disputas entre os blocos imperialistas são

intensificadas. Somente com o advento do Estado Novo, a implantação de uma moderna usina

siderúrgica, considerada a chave do progresso e da segurança nacional, no momento, torna-se

o alvo das ações do regime.

Se por um lado a questão siderúrgica tornava-se a grande prioridade governamental,

indício do amadurecimento da idéia da necessidade do Estado em agir incisivamente no

estímulo e na criação das condições para o desenvolvimento industrial, por outro lado criava-

se uma barreira para o sucesso do projeto nacional de Vargas. O Estado Novo tinha uma

questão para resolver: como financiar um desenvolvimento autônomo e modernizar as Forças

279 VARGAS, Op. cit., v. 1, p. 100. 280 CORSI, Op. cit., p. 49.

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Armadas? Ou seja, como assegurar as bases do regime? A resposta vinha no financiamento

internacional.

Assim, estava claro que a política nacionalista de Getúlio Vargas estaria

comprometida, dificilmente o progresso do país poderia ocorrer de forma autônoma ao capital

estrangeiro. Em pleno cenário mundial conturbado, ameaça de uma segunda guerra, o Brasil

se colocava entre os dois blocos imperialistas. De início, para resolver seus problemas

financeiros, o Governo Vargas dialogava com as duas opções de aliança que ele possuía no

momento, Estados Unidos e Alemanha, buscando tirar o maior proveito da situação. Naquele

final dos anos 30 não era certo que um alinhamento com um dos blocos seria vantajoso para o

país. Articulava-se, então, concomitantemente, a participação do capital alemão e norte-

americano no processo de desenvolvimento, sem comprometer-se definitivamente com

nenhum deles, o que também dificultava atrair capitais. Portanto, a questão siderúrgica estava

exposta ao desenrolar do embate entre os blocos imperialistas.281

Os Estados Unidos percebendo a localização estratégica do Brasil para uma ofensiva

alemã em território norte-americano, além da forte inclinação de Vargas e das Forças

Armadas brasileiras — as instituições estadonovistas — ao fascismo, resolvia aproximar suas

relações políticas, econômicas, militares e até culturais com o país por meio da Política de

Boa Vizinhança. É nesta época que a portuguesa radicada no Brasil, Carmem Miranda, em

trajes exagerados de baiana, cantando os sambas de Ari Barroso e Dorival Caymmi entre

outros, encantava a todos com seu canto e expressividade nos palcos cariocas do Cassino da

Urca. O fascínio que a figura de Carmem Miranda provocava nas platéias chamou a atenção

de um produtor norte-americano que buscava no país um artista que pudesse representar a

cultura latina na Broadway, então, lá foi a atração da noite carioca seduzir os habitantes da

terra do Tio Sam. Obviamente a Política de Boa Vizinhança não parava por aí, o Brasil

também receberia em seu solo as celebridades de Hollywood, como Wall Disney e Orson

Welles, que tanto alimentaram as fantasias dos espectadores brasileiros.

O próprio Presidente Franklin Roosevelt visitou o Brasil a fim de discutir o auxílio

financeiro que os Estados Unidos daria ao processo de desenvolvimento industrial do país.

Apesar de ver com ressalvas a implantação da indústria de base no Brasil, o governo norte-

americano, em nenhum momento, ameaçava encerrar o assunto em uma posição desagradável

ao Estado Novo, boicotando as intenções políticas e econômicas do Presidente Vargas. Os

Estados Unidos sabiam dos riscos que correriam se não soubessem tratar coerentemente de

281 CORSI, Op. cit., p. 142.

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um assunto importantíssimo para o governo brasileiro. Foram várias as negociações entre os

dois países até que em um discurso proferido no navio “Minas Gerais”, em junho de 1940,

Getúlio Vargas declarava um desejo de uma possível aproximação com os “povos fortes”,

com o fascismo europeu:

Atravessamos nós, a humanidade inteira transpõe, um momento histórico de graves repercussões, resultante de rápida e violenta mutação de valores. Marchamos para um futuro diverso do quanto conhecíamos em matéria de organização econômica, social ou política, e sentimos que os velhos sistemas e fórmulas antiquadas entram em declínio. Não é, porém, como pretendem os pessimistas e os conservadores empedernidos, o fim da civilização, mas o início, tumultuoso e fecundo, de uma nova era. Os povos vigorosos, aptos à vida, necessitam seguir o rumo de suas aspirações, em vez de se deterem na contemplação do que desmorona e tomba em ruína. É preciso, portanto, compreender a nossa época e remover o entulho das idéias mortas e dos ideais estéreis [...]. Passou a época dos liberalismos imprevidentes, das democracias estéreis, dos personalismos inúteis e semeadores de desordem.282

Este discurso de Vargas provocou uma reação imediata e definitiva dos Estados

Unidos em relação à questão siderúrgica. Em setembro do mesmo ano foi finalmente assinado

o acordo entre Brasil e Estados Unidos para a construção da Companhia Siderúrgica

Nacional, que seria instalada em Volta Redonda. Para alguns autores, Vargas soube agir no

momento certo, já que, com o avanço alemão na Europa e a ampliação do domínio do Japão

no Oriente, o Brasil assumia cada vez mais um papel estratégico para os Estados Unidos que

precisava consolidar sua força no Atlântico e na América do Sul. Desta forma, o Brasil

explorava as contradições entre os blocos imperialistas e forçava os norte-americanos a

financiarem a moderna siderurgia.

Definitivamente, foi a entrada dos Estados Unidos no conflito mundial que acelerou o

processo de alinhamento do Brasil, que ficou condicionado ao fornecimento de armamentos e

ao auxílio econômico para o desenvolvimento industrial do país. Porém, do ponto de vista

norte-americano, os créditos concedidos à siderurgia e o incremento das relações militares não

representavam o alinhamento político-militar dos brasileiros, ainda objetivavam que o país

permitisse a construção de bases militares no Nordeste, conseqüentemente, o estacionamento

de tropas e, por fim, o término da influência alemã e a plena cooperação política e econômica.

No caso da cooperação econômica, tratava-se de colocar a produção industrial brasileira a

282 VARGAS, Getúlio. apud. CORSI, Op. cit., p. 158.

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serviço do “esforço de guerra”, o que propiciava ao governo Roosevelt o controle dos rumos

do desenvolvimento do Brasil para a produção de produtos primários, uma vez que tinha um

grande interesse nas matérias-primas estratégicas ao abastecimento armamentista. Portanto,

por mais que Vargas projetasse uma política econômica nacionalista, ele não via saídas senão

recorrer ao capital estrangeiro, o que considerava legítimo e imprescindível para alcançar os

seus fins que, como vimos anteriormente, era a sua manutenção no poder. Portanto, seu

governo demonstrava que não tinha a consciência de que os acordos implicavam em um

maior controle da economia nacional pelos norte-americanos, o que equivale dizer que o

projeto nacional-desenvolvimentista teria algumas incoerências:

[...] seu projeto de industrialização [...] fundava-se, desde pelo menos 1939, [...], no financiamento e no fornecimento de tecnologias estrangeiras. Vargas tinha um projeto nacional, embora nunca o tenha definido claramente. Oscilou entre um desenvolvimento autônomo e um desenvolvimento integrado ao capital estrangeiro. Esperava ser possível industrializar o país, garantir a sua soberania nacional e conseguir um papel de destaque na América Latina, contando com apoio político e financiamento norte-americano.283

Desta forma, temos que o Estado Novo sempre procurou se manter, enquanto possível,

em uma posição eqüidistante e lucrativa referente aos Estados Unidos e a Alemanha, mas

gradativamente foi cedendo espaço à crescente inclinação ao bloco dos Aliados, significando

um sacrifício da economia nacional, que ficou à mercê dos interesses norte-americanos —

política externa que foi denominada de “autonomia na dependência” por Gerson Moura. A

criação da Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda dependeu exclusivamente do

capital estrangeiro, apesar das jazidas e das exportações estarem sob o controle do governo

brasileiro.

Esta aproximidade do Brasil com os países que compunham o bloco dos Aliados,

principalmente os Estados Unidos, foi o elemento deflagrador, conseqüentemente, da

participação do país no conflito mundial. Como se vê, no final dos anos 40, é difícil não

associar a imagem do Estado Novo à Segunda Guerra Mundial, o que levou o imaginário em

torno do “Trabalho” tomar novos rumos: o desenvolvimento industrial assumia um caráter

bélico, de batalha. A produção nacional, principalmente a referente aos produtos

manufaturados que interessavam ao “esforço de guerra” norte-americano, era associada à

batalha campal que se dava na Europa. Os trabalhadores que não embarcaram com as tropas

283 CORSI, Op. cit., p. 282.

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enviadas ao palco de operações lutariam no cenário fabril, seriam incorporados de forma

imaginária ao exército brasileiro como “soldados da produção”. Se da Itália o Brasil voltasse

vitorioso, eram prometidas aos trabalhadores as mesmas honras concedidas aos pracinhas.

Neste caso, as promessas foram compridas pelo Estado Novo, pois, antes mesmo da heróica

Força Expedicionária Brasileira desembarcar em território nacional ela já se encontrava

dissolvida, extinta, sendo que nem mesmo os soldados puderam retomar seus cotidianos como

militares nos quartéis. Ou seja, como a FEB, os operários chegavam do front de batalha

industrial sem qualquer representatividade política, o regime de Vargas tinha conseguido

forjar um imaginário coletivo do Trabalho associado ao Estado. Com a desestruturação do

Estado Novo as multidões de trabalhadores deveriam se sentir abandonadas.

Esta relação Estado Novo/Trabalho/Segunda Guerra tem nos seringais do Amazonas o

cenário ideal para ilustrar a incorporação do operário brasileiro ao “soldado da produção”. A

região era a principal fornecedora de borracha, produto indispensável aos pneus e

instrumentos bélicos. Assim, o Amazonas ao assumir a “Batalha da Borracha” transformava-

se em um front econômico, onde os seringueiros eram os soldados que adentrando na mata

densa resgatavam o látex, imprescindível para a economia de “esforço de guerra” nacional. O

trabalhador ao empenhar-se na atividade extrativa exercia o seu dever militar.

Em uma publicação de 1943, do próprio DEIP de Manaus — Departamento Estadual

de Imprensa e Propaganda, subsidiado ao DIP — escrita pelo Interventor Federal do

Amazonas, Alvaro Maia, deparamos com uma significativa demonstração do discurso do

Estado frente à relação Produção/Batalha. Em Na vanguarda da retaguarda (campanha da

produção da borracha) o interventor enfatizava aos comerciantes, seringueiros e agricultores

que foi o Estado Novo que lhes amparou reforçando o valor de suas atividades, e, portanto,

deviam gratidão a Getúlio Vargas. Maia reafirmava o esforço dos seringueiros, “operário-

anfíbios”, em suas empreitadas pela floresta, porém, alertava que cada dia perdido de trabalho

representava o esquecimento dos compromissos assumidos para com a Pátria. A infelicidade

do trabalhador era nada produzir, entregar-se a um “comodismo criminoso”, enquanto o país

“todo” atendia aos apelos do Presidente Vargas. Segundo o autor os vencedores da guerra

seriam aqueles que, além de heroísmo e resistência, possuíssem ferro, petróleo e borracha. O

vitorioso seria aquele que detivesse “o último galão de petróleo e o último quilo de borracha”,

por isso, ele clamava a todos para que cumprissem “o seu dever militar nos seringais, onde a

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vareta do tambor, na safra decisiva, foi substituída pela faca no córtex das árvores —

produzir, produzir, produzir!”284

O interventor que era também membro da Academia Amazonense de Letras e do

Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas, influente na região, sabia da força da palavra

dirigida às multidões. “Orador de raça”, como o definiu Assis Chateaubriand em uma

primeira impressão, Maia discursara em junho de 1943 para uma concentração de milhares de

trabalhadores em Manaus enaltecendo a dedicação, sem igual, dos seringueiros na luta da

produção de borracha, uma resposta destes ao apelo do Chefe da Nação. Em pleno Mês

Nacional da Borracha conclamava a todos que jurassem à sombra da bandeira nacional

cumprir, em gratidão ao Presidente Getúlio Vargas, os mandamentos que sintetizavam o

“Decálogo do Seringueiro”:

1º — Cumpriremos todas as instruções que nos forem legalmente enviadas, sempre recebidas com entusiasmo, procurando produzir mais borracha, porque a extraordinária ação do Presidente Vargas, como uma voltagem de potencial infinito tem o milagre e a força de contagiar todos os brasileiros para a unidade e a salvação da Pátria; 2º — Cumpriremos essas instruções, ingressando alegremente nas selvas, porque a palavra do Presidente Vargas, descendo do Catete, e o nosso labor, subindo dos seringais, formam o mesmo Hino da Raça, que distribui igualmente o seu sangue e os seus benefícios nos palácios, nas usinas e nas barracas; 3º — Cumpriremos essas instruções, explorando e defendendo imensidade de árvores, porque o Presidente Vargas é um apóstolo da Humanidade redimida, porque pertencemos aos 300. 000. 000 de americanos que transformaram o seu Continente num Sinal para as novas tábuas da lei e os novos direitos do homem; 4º — Prometemos convergir todos os nossos esforços na vitória da produção, certos de que a nossa inércia seria uma traição aos Aliados que batem pela liberdade, a irmãos que foram sacrificados pela vilania adversária, aos nossos aeronautas e marinheiros que exercem vigilância no litoral contra a tocaia dos submarinos; 5º — Prometemos trilhar diariamente as estradas de seringueiras, porque, enquanto honramos os compromissos do Brasil, que o Presidente Vargas firmou perante o mundo, também realizamos uma outra obra de economia, integrando o Amazonas à economia nacional; 6º — Prometemos cumprir as ordens do Governo da República, porque, arregimentados como soldados, trabalhamos como homens livres, à luz de contratos assinados no Ministério do Trabalho, com as garantias das leis sociais, benemerência do Estado-Nacional; 7º — Juramos permanecer nos seringais para que fomos designados, porque são quartéis do Brasil, e deles não sairemos, cometendo crimes de deserção, com não sairíamos de uma frente de batalha;

284 MAIA, Álvaro. Na vanguarda da retaguarda: campanha da produção da borracha. Manaus, Amazonas: DEIP (Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda), 1943. p. 59.

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8º — Juramos viver em máxima harmonia e disciplina, ao lado de seringalistas e seringueiros veteranos, porque são soldados da mesma batalha e brasileiros das mesmas idéias, porque descendem de pioneiros e desbravadores que souberam resistir e vencer, abrindo caminhos para as investidas de hoje; 9º — Queremos proclamar em juramento perante Deus, ante a Bandeira e o Hino da Pátria, o nosso espírito de sacrifício e lealdade ao Presidente Vargas, de quem cumpriremos as ordens, sejam quais forem as circunstâncias; 10º — Queremos tornar bem claro que, pela vida ou pela morte, tudo faremos e aceitaremos em bem do Brasil, do Continente Americano, das Nações Unidas, na guerra universal contra a tirania e a opressão [grifos nossos].285

Em coro uníssono os trabalhadores amazonenses juravam profissão de fé aos Estados

Unidos e ao Presidente Vargas, “apóstolo da Humanidade redimida”. Os seringueiros

ingressariam alegres nas selvas por pertencerem ao grupo de americanos responsáveis por

colocar o seu continente nos trilhos da lei e dos direitos humanos, conscientes de que qualquer

vestígio de inércia na produção seria um ato de traição aos Aliados. Concentrados nos quartéis

da mata não podiam desertar, na “Batalha da Borracha” seringueiros e seringalistas deveriam

se unir, compor a unicidade que pretendia o Estado, pois, sob as nuvens escuras da Segunda

Guerra Mundial, todos eram “soldados da mesma batalha e brasileiros das mesmas idéias” e,

juntos, seriam responsáveis por integrar de vez o Amazonas à economia nacional, fator

imprescindível para a política de centralização do Estado Novo. Portanto, ao final do

juramento, os trabalhadores reunidos diante da bandeira e ao som do hino nacional

reafirmavam a vitória da ideologia do trabalhismo, sua solidariedade patriótica responderia

aos esforços de guerra contra a tirania e a opressão na Europa, enquanto que no seu próprio

país viviam sob o véu da ditadura nacionalista de Vargas.

Assim, os cinejornais ao conceberem a imagem do operário em seu local de

trabalho/produção, imerso ao universo das máquinas ou dos seringais, priorizavam uma

construção discursiva que seguia a risca as diretrizes do projeto nacional-desenvolvimentista

do regime, compunha-se nas telas a imagem do trabalhador urbano relacionada ao progresso

industrial do país. Nos cinejornais as máquinas, o ritmo das linhas de montagem que ditam o

“choque” no homem moderno, a grandiosidade dos barracões adequados para o

armazenamento de uma produção expressiva, são todos signos de uma modernidade

pretendida pelo Estado Novo para o Brasil.

285 MAIA, Op. cit., p. 341-343.

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Na primeira seqüência de imagens que deparamos em Fabricação de Alumínio —

Minas Gerais: O aproveitamento de nossas riquezas naturais: fator decisivo para a economia

nacional286 notamos a importância que os filmes desta temática dão ao sentido do crescimento

econômico. A objetiva contempla em cadência lenta uma panorâmica das redondezas da

fábrica responsável por produzir “alumínio nacional” em larga escala, que instalada em uma

“zona rica de bauxita no Planalto Central” era o primeiro marco de uma vasta área a ser

explorada no futuro, novas indústrias como a mostrada na tela iriam ocupar este espaço a fim

de contribuir com o desenvolvimento do país.

A sincronização de imagem e som dita o ritmo do curta-metragem. Inicialmente, as

primeiras imagens da fábrica em plano geral, acompanhadas por uma sonoridade empolgante

e envolvente, em alto som, prendiam o olhar dos espectadores que passavam a atentar para a

voz off que traçava o caminho do discurso, momento em que a música era apenas um detalhe

suave, amortecedor para os impactos das mensagens no inconsciente coletivo. A câmera

penetrava no interior de um dos barracões e registrava os operários que auxiliavam na

construção de parte da fábrica: os homens soldavam peças, carregavam outras, demonstrações

imagéticas do esforço do trabalhador para o progresso do Brasil. Durante esta seqüência a voz

off evidenciava que “no interior de um dos grandes pavilhões a objetiva surpreende momento

de atividade intensa”, e continua “é mais um setor que aqui se abre para a reconhecida

capacidade de energia dos técnicos e operários patrícios no aproveitamento” quando, de

repente, a sonora começa lentamente a subir para que, somente, no final de “e industrialização

dos recursos naturais do país” alcançasse a altura necessária para retomar a eloqüência de

antes. Este artifício, comum neste e em outros cinejornais, tem a intenção de provocar um

“choque” nos espectadores, desviando suas atenções para que, em seguida, regressem à

condição de origem: a percepção afetiva de participação.

Após a seqüência mencionada, novamente a música retomava seu caráter de

transparência, a câmera começava a percorrer o interior de parte da fábrica que já se

encontrava em funcionamento, demonstrando o trabalho de um grupo de fundição. Aqui as

imagens cercam a preocupação do filme em apresentar como as riquezas naturais do Brasil

estavam sendo bem aproveitadas, em um plano geral a objetiva capta uma corrida de ferro

manganês que, segundo a voz-off, oferecia aspectos bastante impressivos — esta era a

intenção que se tinha das imagens, provocar um impacto emocional para que o trabalhador se

identificasse com o outro representado e reconhecesse em seu empenho o desenvolvimento

286 CJB, v. 3, n. 28, 1943.

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nacional. Para finalizar, a voz-off vinha na cadência do projeto estadonovista, a validez do

empreendimento estava no fato de que sua produção correspondia às necessidades do

mercado nacional. Sobe sonora.

Outro cinejornal que merece atenção é o Resolver o Problema Siderúrgico é

Encaminhar a Salvação de Todos os Problemas Brasileiros: Subscrevam ações da

Companhia Siderúrgica Nacional287. Apesar de sua curtíssima duração, que para alguns seria

motivo para descartá-lo de qualquer análise, vejo que reforça as significações postas pelo

programa industrializante do Brasil de Vargas, como mencionado anteriormente. As imagens

são das atividades da Companhia Siderúrgica Nacional, com destaque para a produção de aço

e ferro que recebem um tratamento enobrecedor de uma breve sonora, novamente incisiva,

enquanto a voz off é taxativa em destacar a importância da indústria de base para um país

como o nosso que perseguia o progresso: “nenhuma Nação se emancipa economicamente sem

produzir ferro e aço.”

Ainda a respeito da questão da implantação da indústria de base, o cinejornal Uma

Nova Era Econômica — Volta Redonda: Trabalha-se sem tréguas para a instalação das

usinas siderúrgicas288 vem complementar e reforçar o discurso da película anterior. Se em

1941 o Estado Novo precisava confirmar por meio do cinema o apoio da Nação às ações da

Companhia Siderúrgica Nacional, em que se alojava a solução para todos os problemas

brasileiros, logo um ano depois, as imagens anunciavam a nova era econômica do país. Em

Volta Redonda os operários trabalhavam sem cessar para que o maior objeto de desejo da

Pátria, do povo brasileiro, assim como acreditava o Estado Novo, pudesse finalmente ser

erguido e mostrar toda sua pujança e modernidade. O filme insistia em repetir o artifício

discursivo da primeira seqüência de Fabricação de Alumínio ..., em que uma panorâmica

contempla as redondezas do local onde seria construída a usina siderúrgica, a objetiva

demarca o espaço de onde a economia nacional iria emergir, onde as imagens do Brasil

atrasado, primitivo e do trabalhador brasileiro indolente e incapaz começariam a serem

sepultadas. Isto demonstra, ao mesmo tempo, um padrão cinematográfico para tratar de uma

mesma temática ou uma falta de criatividade por parte da Divisão de Cinema do DIP, o que

era comum para uma época em que a cinematografia no país ainda suspirava os anseios de

uma industrialização, enfrentava problemas técnicos e não tinha encontrado uma identidade

nacional para suas películas, que somente ocorreria no início dos anos 50, com o cinema

afastado das artimanhas do Estado e procurando retratar nas telas os problemas sociais do

287 CJB, v. 2, n. 15, 1941. 288 CJB, v. 2, n. 119, 1942.

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país.289 Ainda a respeito deste cinejornal, veremos que há a predominância de uma construção

fílmica que priorizava a imagem benevolente do “Trabalho”, em que o esforço solidário dos

operários nas obras da siderúrgica encontrava forma na justaposição de cenas de trabalhadores

em conjunto transportando madeiramento e tijolos de um lado para o outro, de máquinas

auxiliando todo o processo e nos primeiros alicerces da fábrica. Reunidos os planos auxiliam

a compor o imaginário que tem na relação Trabalho/Produção/Progresso um elemento

fundador da ideologia do trabalhismo. No final, o filme retoma uma seqüência semelhante à

inicial.

Entre as imagens dos trabalhadores forjadas pelo regime encontramos uma reserva de

fantasia, um instante lúdico em meio ao mito da “doação”. Em Operários Brasileiros — Rio:

A curiosa história da construção de uma pequena locomotiva290 o DIP abandonava,

momentaneamente, aquela imagem de seriedade, de comprometimento com o progresso

atribuída aos trabalhadores, que antes estavam circunscritos ao universo das fábricas, para

entrar na intimidade da casa do operário João Ferreira Cardoso. Transitava-se, então, do

público ao privado. Assim, ao som de uma música alegre, contente, como aquelas que ditam o

clima das festividades nos circos e feiras populares, surgem na tela, em plano médio, o criador

e a sua criação; alegre por demonstrar no que sua gratidão ao Presidente Vargas tomou forma,

ao longo de cerca de 2300 horas de folga, João Ferreira Cardoso era exemplo, para as

multidões de trabalhadores que assistiam ao filme, do sentido onisciente e onipresente que a

figura do líder assumia ao povo brasileiro, de como o mito da “doação” era reafirmado na

necessidade do operário em retribuir as dádivas do Chefe da Nação. A locomotiva em

miniatura (escala média) era perfeita e completa aos olhos (objetiva) do Estado, como

destacava a voz off, um presente em homenagem a Getúlio Vargas, batizada com o seu nome.

Durante o desenvolvimento do filme deparamos com cenas lúdicas, aparentemente incomuns

para as películas do DIP, a seriedade do esforço físico empregado no trabalhado é substituída

por imagens do próprio operário brincando com sua invenção pelos cômodos da casa. Para

surpreender os espectadores, a câmera acompanhava a pequena locomotiva que desfilava pela

sala transportando uma criança em pé, reforçando em imagens a perfeição da máquina. A

homenagem estava feita. Na tela a representação da devoção dos trabalhadores ao Chefe da

Nação encontrava sua síntese nesta curiosa história, em que “quis ele [o operário] concretizar

289 Esta afirmativa só é reproduzida aqui para que não se cometa erros históricos, pois, acredito que a questão do nacional no cinema brasileiro, assim como para qualquer outra manifestação artística, é mais complexo do que imaginamos e não cabe a esse trabalho desenvolvê-la. 290 CJB, v. 2, n. 127, 1942.

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uma homenagem de gratidão, por tudo que quis [o líder] para seu bem estar e amparo [...] Os

trabalhadores nacionais devem ao Presidente Getúlio Vargas”. Sobe música alegre.

Em outra película, As Comemorações do Dia do Marítimo: Durante a manifestação

que recebeu dos trabalhadores do mar, na Ilha do Viana, o Chefe do Governo pronuncia

importante discurso,291 deparamos com uma possível confirmação de que os diversos meios

de comunicação eram utilizados pela máquina de propaganda do Estado Novo como meros

reprodutores dos discursos de Vargas, neste caso, pelo menos o cinema. Para Garcia,292 o eixo

de toda propaganda do Estado Novo era constituído pela palavra falada, os discursos de

Vargas proferidos em inaugurações, comemorações e visitas eram reproduzidos nos mais

diversos meios, como uma forma de reforçar e esclarecer o conteúdo ideológico dos mesmos.

Já Souza293 não concorda com esta vertente e se apóia no expressivo número de volumes de

textos produzidos pelos ideólogos do regime, reunidos em jornais, livros e revistas, além da

Revista Cultura Política, para afirmar que o eixo seria a palavra impressa. O fato é que neste

filme as poucas imagens disponíveis são de Vargas em um palanque, cercado de oficiais e

ministros, e da multidão de trabalhadores que estavam atentas ao discurso do líder. Assim,

pode até parecer que a forma dada à película, a contraposição das imagens do Presidente no

ato do discurso à da multidão de trabalhadores, durante uns longos 13 minutos, seja um lugar

comum para os olhares críticos da atualidade, mas devemos recordar da precariedade técnica

que dispunham os cinegrafistas da época, assim, como também, de perguntarmo-nos se esta

não era a construção fílmica adequada para responder aos ideais totalitários estadonovistas, já

que se tinha na força diegética das imagens das multidões a representação do Estado uno,

homogêneo e harmônico.

Acredito, porém, que a saída encontrada pelo DIP se tornava cansativa aos olhares dos

espectadores — o que prejudicava a eficácia da mensagem — já que a imagem de Vargas, em

primeiro plano, era constantemente mantida enquanto ele discursava. As imagens dos

trabalhadores surgiam, na maioria das vezes, em momentos de aplausos (confirmações) às

palavras do líder, o que vinha quebrar a monotonia visual existente, mas logo a montagem

devolvia o lugar de destaque ao Presidente. Então, podemos dizer que o DIP não levou em

consideração que assistir atentamente a um discurso político no “calor” dos acontecimentos e

a um filme deste mesmo discurso são experiências perceptivas distintas, cada uma exige uma

linguagem específica. É somente na última seqüência que a construção fílmica é invertida. Ao

291 CJB, v. 1, n. 126, 1940. 292 GARCIA, Op. cit., p. 101-102. 293 SOUZA (1990), Op. cit., p. 304-305.

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fim do discurso do Chefe da Nação surgia a imagem das multidões de operários que o

aplaudiam, seguida de um plano da bandeira nacional que bailava no ar ao som do hino do

Brasil. Finalmente o círculo era fechado: a representação da identidade nacional era marcada

pela justaposição das imagens de Vargas e da multidão que, ao final da película, encontrava

na bandeira e no hino os elementos da nacionalidade que construiriam a relação

Vargas/Trabalhadores/Nação.

Figuras 1 e 2: Multidão concentrada para ouvir o pronunciamento do Presidente Getúlio Vargas. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 100.

Figura 3: Getúlio Vargas em discurso proferido durante as comemorações do Dia do Marítimo, na Ilha do Viana. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 101.

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No tocante ao discurso do Presidente proferido na Ilha do Viana, em junho de 1940, na

festa dedicada ao Dia do Marítimo, solenidade de congraçamento dos trabalhadores do mar, é

importante destacar alguns pontos. Homenageado naquela concentração, Vagas ressaltara que

encontrava na Federação dos Marítimos a legítima expressão da cooperação de diversos

grupos profissionais, o que era motivo para reconfortá-lo e renovar a solidariedade que

depositava nos trabalhadores brasileiros. Vargas acreditava que os operários estavam

dispostos, mais do que nunca, a apoiarem o governo em um momento de inquietação e

apreensão, como ele mesmo evidenciara, em que seria necessário o máximo de vigilância e

coragem serena para definir os rumos da nacionalidade. Para Vargas, o cenário mundial

colocava os povos em alerta para a mobilização de todas as suas energias para que não fossem

sucumbidos pelos acontecimentos e insistia em reafirmar que os brasileiros tinham somente o

propósito de colaboração pacífica e solidariedade com os povos irmãos do continente,

seguindo sua missão histórica idêntica às nações de progresso. Entretanto, ainda em clima de

neutralidade, negociando tanto com os países Aliados quanto com os do Eixo, na tentativa de

financiar as instalações da usina siderúrgica, ele não poderia deixar de ressaltar que “não há,

presentemente, motivos de espécie alguma, de ordem moral e material que nos aconselha a

tomar partido por qualquer dos povos em luta. O que nos cumpre é manter escrita a

neutralidade, neutralidade ativa e vigilante na defesa do Brasil”, que seguido de palmas

continuava dizendo que “ninguém pode dominar a consciência alheia e em consciência cada

qual pode ter a sua simpatia, mas a obrigação de todo brasileiro patriota é conduzir-se, de

modo, a preservar o Brasil da guerra” — novamente acompanhado dos aplausos das

multidões de trabalhadores do mar.

Ao reafirmar suas palavras proferidas em 10 de novembro de 1937, quando da

instituição do Estado Novo, considerando o regime como aquele que mais se adaptou às

circunstâncias da vida contemporânea, Getúlio Vargas ainda destacava que somente pela paz

e pela união de todos o Brasil conseguiria construir o seu engrandecimento e conquistar o

espaço entre as poderosas nações, logo, “os brasileiros poderiam continuar entregues as suas

atividades, certos de que o governo manterá a ordem e assegurará a tranqüilidade elementar

ao trabalho e ao desenvolvimento das nossas fontes de produção e meio de comércio”. No

entanto, o Presidente insistiria em afirmar que o país continuaria cultivando a paz, mas que

estava solidário à defesa comum do continente e disposto a repudiar as ameaças e

intromissões estranhas. Assim, o seu discurso percorria um caminho que pretendia afastar o

Brasil da guerra, mas, justificava o empenho do mesmo em colaborar com a paz mundial,

clima que se acreditava proporcionar o desenvolvimento econômico do país. Portanto,

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enquanto o governo lutava para manter a ordem e a segurança nacionais, caberia ao

trabalhador brasileiro a salvaguarda do progresso do Brasil, que estava circunscrito a um

futuro “esforço de guerra”, o que levava Vargas a conclamar no final de seu discurso, diante

dos microfones e das câmeras da Cinédia (produzindo filmes inicialmente para o DIP), as

seguintes palavras:

Trabalhadores! Sejam alimentos de colaboração suficiente na obra da reconstrução a que devotamos, na paz juntai os fossos esforços ao ver todos os brasileiros para desenvolver e consolidar o progresso nacional. Na guerra, como reserva das forças militares, terá fosso lugar na sua fileira, quando as circunstâncias exigirem a repulsa pela força contra qualquer atentado ao nosso patrimônio moral e material. [...] E preparemo-nos, com ânimo, para unir, para cumprir o nosso destino de construtores de uma nova civilização, sempre mais irmanados no pensamento e na ação, dispostos a correr os mesmos riscos e sofrer as mesmas ilicitudes, pois é um dever e uma honra o sacrifício pela Pátria.

Segue os aplausos das multidões de trabalhadores e sobe o Hino Nacional.

Para finalizar as análises dos filmes que tratam da temática do urbano no imaginário

do “Trabalho”, encontramos no cinejornal São Paulo Industrial294 as marcas de um discurso

que atentava para a imagem de um desenvolvimento industrial brasileiro como o signo da

modernidade, rompendo-se com o estigma do Brasil arcaico, primitivo e atrasado que lhe

acompanhava durante muitas décadas. Um dos sinais de que a modernidade era um objetivo

claro e inevitável para o Brasil daquela época, ou para a sua classe média e sua elite, foi a

reação que houve à restrição ao uso do automóvel durante a Segunda Guerra Mundial. Como

parte das ações para o “esforço de guerra” e a necessidade da criação de um front interno, o

governo decretou em 1944 a produção de gasogênios como resposta à escassez de

combustível, o que não provocou nos proprietários de automóveis uma mobilização, como

desejava o regime. Esta recusa fora inevitável, uma vez que o automóvel já incorporara o

significado do moderno e era o objeto de desejo urbano mais cobiçado, sua restrição seria o

mesmo que impor limites ao próprio progresso, principalmente à circulação rápida em cidades

como São Paulo que já começavam a despontar como metrópoles.295

294 CJB, v. 1, n. 200, 1941. 295 CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano de São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Edusp, Geração Editorial, 2000. p. 81.

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O cinejornal tem início com uma seqüência de cenas aéreas de São Paulo seguidas de

imagens de automóveis, do bonde elétrico e de uma primária multidão de transeuntes que

circulavam pelas ruas, tendo todos os planos cobertos por uma sonora de cadência rápida e de

evolução que ditava o ritmo do progresso. Aqui, a construção fílmica procurava mostrar a

grandiosidade da cidade que se apresentava “aos olhos dos forasteiros, pouco informado,

como produto inequívoco de extraordinárias virtudes humanas”, para depois destacar um

plano das linhas ferroviárias que cortavam as zonas industriais da região, mecanismos que

permitiam o escoamento da produção. A maior preocupação do filme era de informar os

espectadores dos índices que justificavam um Brasil industrializado ou em fase de um

desenvolvimento econômico. As imagens da produção paulista surgiam para completar as

estatísticas e dados fornecidos pela voz off, sendo que havia o predomínio de planos gerais

das máquinas em funcionamento, enquanto as imagens dos trabalhadores apareciam,

casualmente, submergidas no ambiente fabril. Na terceira seqüência do filme, tendo

apresentado a cidade e as linhas de escoamento, a objetiva inclinada percorria as dimensões

de uma chaminé até alcançar o seu ápice, procurando construir a idéia de superioridade,

grandiosidade, amplitude para a indústria nacional, enquanto a voz off afirmava: “o Brasil

possui o maior parque industrial da América Latina. São Paulo figura em primeiro lugar nas

estatísticas de nossa produção [...]”. Em seguida, no interior de uma fábrica de sacos de juta, a

Figura 4: O frenesi das ruas de São Paulo dita o ritmo do desenvolvimento econômico do Brasil. Fonte: Reprodução - Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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Figura 5: Os trabalhadores e as máquinas, um cenário de “batalha”. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

câmera mostrava em planos gerais as máquinas em funcionamento e, sutilmente, os

trabalhadores começavam a surgir até que na tela, em plano conjunto, suas imagens se

confundiam em meio ao ritmo da linha de montagem, ritmo que os disciplinavam. Logo após

dar destaque à produção de sacos de juta para o abastecimento do mercado nacional de

produtores de café, a locução anunciava, para breve, o surgimento da indústria pesada no

Brasil, até mesmo como um avanço no setor, assegurando o engrandecimento do nosso parque

industrial com a fabricação de máquinas.

Em uma outra seqüência o cinejornal continuava dando ênfase aos produtos nacionais,

neste caso, à indústria de preparo de metais. Segundo a voz-off, o Estado estava muito

satisfeito e alegre por saber que os artefatos de ferro esmaltado produzidos no país eram a

preferência dos construtores de edifícios de luxo. De forma didática e ilustrativa, a seqüência

justapõem vários planos de uma banheira que girava enquanto era esmaltada pelos

trabalhadores para que depois fosse levada ao forno com o auxílio de enorme pegador.

Repete-se o artifício da sonora de cadência rápida. As próximas cenas que surgiam eram da

banheira sendo retirada do forno e novamente colocada em giro para esfriar, justapostas com

imagens dos produtos finais (pias para cozinha e banheiro, privadas, banheiras).

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Quando se trata da produção paulista de cerâmica a película nos oferece uma

construção fílmica interessante; aqui a música é utilizada como síntese sonora de dois

ambientes distintos encontrados na fábrica. Em um primeiro momento, deparamos com

imagens externas da indústria, onde trabalhadores descarregam a matéria-prima; em seguida,

no interior de um dos pavilhões uma multidão de operários exerce as mais diversas atividades

que são registradas pela câmera, até que a objetiva depara, em primeiro plano, com as mãos

habilidosas e ágeis de um trabalhador que molda os pratos rapidamente. Todas estas imagens

são sobrepostas por uma sonora envolvente, frenética que, ao encontrar o seu ápice, diminui a

cadência, automaticamente, para acompanhar o ritmo lento e cauteloso das imagens do

trabalho feminino na fábrica, em que as operárias eram encarregadas de pintar e dar o

acabamento nas peças (xícaras, pratos). Por meio deste artifício, o filme pretendia propiciar

aos espectadores a percepção do ritmo do trabalho, como se participassem daquela produção

e, conseqüentemente, contribuíssem para o desenvolvimento do país.

Figuras 6, 7 e 8: A habilidade e a delicadeza como “armas” da produção. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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No final, a última seqüência se refere à indústria têxtil nacional que, naquele

momento, começava a conquistar o mercado internacional. Novamente, as imagens dos

trabalhadores não surgem como destaque, são sucumbidas pelas das máquinas em

funcionamento. Um plano seqüência chama a atenção entre todas as imagens do interior da

fábrica: a câmera parte de um plano em que as máquinas de fiação ocupam todo o lado direito

do quadro, mas quando ela começa a percorrer o barracão faz com que o quadro seja invadido

por completo; continuando o movimento a objetiva fixa em um plano que, por meio da

perspectiva, cria um campo de profundidade, propiciando uma imagem de infinitude aos

equipamentos, o que sugere a dimensão do aparato industrial brasileiro, a sensação de

grandiosidade que vem representar o progresso do país. Aqui o artifício adotado para

“(des)escrever” a cena gera um misto de infinitude e grandiosidade que procura remeter o

espectador a um sentimento de sublime, no cinejornal as imagens das máquinas enfileiradas

no interior do pavilhão sugerem um tom de magnífico ao projeto nacional-desenvolvimentista

de Getúlio Vargas.

Por outro lado, pouco espaço foi concedido aos trabalhadores nesta película, sendo que

quando se referiu ao esforço destes para o engrandecimento da Nação sobrepôs suas imagens

em meio às máquinas a uma voz off que reafirmava o “mito da doação”:

Figura 9: O infinito como síntese do progresso. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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Nesta fábrica trabalham 3 mil operários protegidos, como todos os operários do Brasil, pelas humanitárias leis de trabalho criadas pelo Presidente Getúlio Vargas. Assegurados seus direitos, eles cumprem seus deveres sem vacilações, certos de que o engrandecimento material de sua Pátria está sendo realizado dentro dos mais belos princípios de justiça social.

As últimas cenas do cinejornal são da saída dos operários da fábrica que repetem o

artifício da câmera em campo de profundidade, sugerindo a força simbólica das multidões de

trabalhadores. Talvez pudéssemos sugerir uma alusão aos primórdios do cinema, aos

primeiros registros de operários feitos pelos irmãos Lumière em Sorties des Usines Lumière

(Saída das fábricas Lumière, 1895).

Já em oposição às imagens do urbano destacava-se o rural nos cinejornais do DIP. Se

no litoral (na cidade) as imagens correspondiam às máquinas, ao universo fabril, ao ritmo

acelerado das metrópoles ditado pelos automóveis e pelo bonde elétrico, como signos de uma

“modernização conquistada”, no sertão (no campo) as imagens da vastidão árida e inabitada

são signos do atraso, da barbárie, mas, ao mesmo tempo, representações que o Estado Novo

quer superar, por isso a presença de elementos do moderno, do avanço no interior do país.

Para os ideólogos do regime o sertão é a “reserva de brasilidade” — a Nação está no sertão —

Figura 10: A “marcha” dos trabalhadores. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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ou melhor, é o isolamento, a pobreza, o atraso que garante ao campo sua pureza original de

onde o Estado partiria para forjar uma nova Nação, com base em seu projeto nacional-

desenvolvimentista.

Assim, a figura do bandeirante é recuperada como símbolo do nacional. Mito que

representa a “vis propulsiva” da atração que o sertão exerce no homem, mediante sua

exploração econômica e social; a bandeira é sinônimo de mobilização social, de pioneirismo,

de empreendimento. O bandeirante é aquele que atende à voz do Oeste, só por meio de

bandeiras que os recursos técnicos e culturais da capital poderiam chegar aos rincões do

Brasil. O Estado Novo reconhece, portanto, que “o verdadeiro sentido da brasilidade está na

marcha para o Oeste”.296 Veremos como esta proposição esta posta para a sociedade brasileira

da época nos cinejornais analisados.

Em A Marcha para Oeste — O Presidente Getúlio Vargas chega a Goiânia, iniciando

uma excursão pelas regiões em que o Brasil guarda, ainda, sua selva primitiva297 as

primeiras cenas são do interventor do Estado de Goiás, Pedro Ludovico, que, acompanhado

por outras autoridades, aguardava a chegada do Chefe da Nação no Aeroporto de Goiânia.

Ainda nesta imagem, vemos em segundo plano uma faixa de saudação ao Presidente: “Salve o

Presidente Vargas”. A seqüência seguinte era composta por uma panorâmica de Goiânia,

destacando o desenvolvimento da cidade, surgindo então um plano geral de Vargas que

caminhava rodeado por uma multidão que pretendia saudar o líder, um misto de autoridades e

populares. Esta imagem era acompanhada da seguinte voz off: “a presença do Chefe da Nação

dá às populações espalhadas no vastíssimo território a certeza de que não estão ao desamparo

e de que a União partira-se em prejuízo exclusivistas a sorte dos Estados”. A visita de Vargas

a Goiás era tomada como a marca de sua onipresença, de um governo que reconhecia a

necessidade de também se dirigir aos povos do interior do país, não os abandonando à sorte.

Com a presença do líder chegava a modernidade, o desenvolvimento, portanto, as próximas

imagens a serem exibidas são de Vargas percorrendo as construções, seguido por uma

pequena multidão. Durante uma seqüência de imagens do Chefe da Nação discursando e

sendo aplaudido por aqueles que o acompanhavam é que deparamos com o projeto

estadonovista declarado: “Interrompe-se desde modo, século de uma descentralização

psicológica que condenou regiões ricas e imensas de população puramente brasileira ao

abandono, ao esquecimento, ao desvio das correntes substanciais da nacionalidade.” É

296 RICARDO, Cassiano. Marcha para o Oeste: a influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil. v. 2, 3ª ed. (1ª edição 1940). Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p. 382. 297 CJB, v. 1, n. 133, 1940.

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importante ressaltar que todo o filme está permeado por uma música alegre e envolvente que

cria um clima de comemoração, o sentido que o Estado Novo pretendia dar aos seus

empreendimentos no interior do Brasil.

O Presidente visitava as obras da cidade em construção enquanto a voz off destacava

as qualidades da região, não esquecendo de enfatizar “o moderno plano urbanístico” que veio

superar os erros de outros municípios antigos. Nesta seqüência temos imagens das obras da

Santa Casa que, como é ressaltado no filme, ainda não estava completamente construída, mas

já prestava serviços à comunidade local. Outra obra evidenciada em imagens é o Leprosário

que ainda estava em construção, e recebia ninguém. No cinejornal o Leprosário aparecia

como uma ação social do governo frente às precariedades das regiões afastadas, como

demonstrado: “o leprosário que se está construindo é bem o significativo exemplo de como se

estende por todo o Brasil o plano de assistência social do governo”, e se seguia afirmando que

“isto mostra igualmente um dos aspectos do verdadeiro sentido de brasilidade da Marcha para

Oeste”. Ainda percorrendo a cidade, a câmera acompanhava, em um plano geral, Vargas que

transitava pelas obras do Liceu de Artes e Ofícios de Goiânia, instituto de ensino composto

por núcleos de instrução profissional, responsável pela formação dos novos cidadãos daquele

Estado, enquanto a locução destacava o crescimento acelerado de Goiás, que “em dois séculos

de governo próprio foi o receptor dos influxos progressistas do litoral, mas as suas condições

geográficas lhe reservam no futuro uma situação privilegiada de centro irradiador do

progresso”. No Liceu de Goiás o Chefe da Nação era homenageado pelo Prefeito de Goiânia e

encerrava suas visitas sendo recebido pelas altas autoridades e pela sociedade local.

Continuando em ritmo de festividade, ditado pela sonora, o filme tinha como última seqüência

imagens de jovens moças estudantes que, diante de Vargas, efetuavam demonstrações de

cultura física. Imagens que enalteciam a “docilização coletiva dos corpos” em uma sociedade

interiormente identificada com a organização militar.

No tocante à questão da seca no Nordeste, os cinejornais empenhavam em sustentar

um imaginário coletivo em torno da figura de um Estado interventor, que vinha substituir e

repudiar as políticas liberais de amenização dos graves problemas daquela região, que sequer

eram executadas. Segundo Neves,298 o Governo de Vargas enfrentou duas secas, 1932 e 1942,

porém, cada flagelo exigiu ações emergenciais distintas, conforme as circunstâncias do

contexto histórico nacional e internacional e de acordo com o pacto estabelecido com as

oligarquias locais. Em relação ao Ceará, o autor evidencia que, durante o Governo Provisório,

298 NEVES, Frederico de Castro. Getúlio e a seca: políticas emergenciais na era Vargas. Revista Brasileira de História. ANPUH, São Paulo, v. 21, n. 40, 2001. p. 108.

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a assistência aos retirantes da seca ocupou um evidente segundo plano nas prioridades

governamentais, mas as ações foram sintetizadas em uma maior intervenção nas relações de

mercado e na regulamentação das atividades, substituindo progressivamente a visão liberal de

livre mercado pela noção de que o Estado deveria agir em resposta à desigualdade social,

solucionando os problemas advindos dos saques e das cidades invadidas. Uma nova forma de

ação estabelecida por um novo sujeito coletivo: a multidão. Já em 1942, a política

emergencial aplicada pelo Estado Novo na região contava com a demanda por trabalho para

solucionar o problema da seca e ampliar suas relações com o povo que, apesar da fome e do

desespero, esperava a salvação, pois aquele que o governava era o mesmo que o salvou em

1932. Assim, uma das soluções encontradas foi a emigração. Do semi-árido nordestino,

especialmente do Ceará, o governo arregimentava os trabalhadores que marchariam, nos

moldes da Marcha para o Oeste, para a Amazônia onde formariam o “Exército da Borracha” e

lutariam nos seringais pelo “esforço de guerra”. Em um discurso pronunciado em setembro de

1933 em Fortaleza, quando de sua excursão pelo Norte do Brasil, Vargas destacava a força

produtiva do nordestino:

Pela primeira vez, em grande escala, dispensou-se assistência aos flagelados, sem o caráter de simples sustento caridoso e sim como remuneração de trabalho útil. Digna de registro é a admirável atividade dêsses nordestinos de aço, que, combalidos, fisicamente, pela miséria e, moralmente, abatidos pela perda do lar e pelas torturas, a que assistiram, se transformaram em trabalhadores modelares, realizando, com insignificante aprendizado, obras técnicas em condições de provocar louvores aos profissionais que as têm examinado.299

Entretanto, para Neves, o regime autoritário do pós-30 não pensava diferente de outros

governos que sempre viram as ações da multidão de retirantes sob o viés de um “instinto” que

deveria ser suprimido e, conseqüentemente, extinto. Entretanto, havia uma única e importante

diferença: ao contrário de todos os outros não hesitava no momento de intervir na ordem

econômica, pois, sabia que o desequilíbrio social representava ameaça à ordem política, ao

próprio regime, portanto, à segurança nacional.300

Assim, veremos como em Flagelo das Secas: O governo do Presidente Getúlio

Vargas soluciona o mais grave problema do Nordeste Brasileiro301 esta legitimidade buscada

299 VARGAS, Op. cit., v. 2, p. 167. 300 NEVES, Op. cit., p. 114-115. 301 CJB, v. 2, n. 31, 1941.

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no semi-árido nordestino era transformada em imagens. Inicialmente, a sonora em ritmo

frenético e melancólico determinava o “clima” do filme, sugeria que a tecnologia oriunda da

cidade, por isso, o frenesi, vinha ditar o novo modelo econômico e social dos rincões do

Brasil que viviam, constantemente, assolados pela triste realidade da seca. O filme tinha início

com uma panorâmica de João Pessoa acompanhada por uma voz off que afirmava que, desde

1930, a capital nordestina vinha sendo beneficiada pela ação decisiva da Inspetoria Federal de

Obras Contra a Seca realizada no interior do Estado. Projetos parecidos estariam sendo

desenvolvidos em todas as cidades do Nordeste, o que refletia a determinação do Presidente

Vargas em combater o flagelo das secas.

Logo, a partir da seqüência seguinte o cinejornal evidenciaria, até mesmo como uma

forma didática e informativa, as soluções encontradas pelo Estado Novo para levar

prosperidade e bem-estar ao sertão. Como Vargas tinha apontado em 1933, uma dessas

soluções era a construção de açudes e barragens que poderiam armazenar, nos anos chuvosos,

água suficiente para atender, na época de escassez, às necessidades das populações sertanejas

e manter a fertilidade do solo por meio da irrigação da terra. Assim, as imagens dos açudes

com grande destaque nos cinejornais, eram representações das benfeitorias do regime.

Quando surgiam, na maioria das vezes em plano geral, estavam acompanhadas por um

didatismo que pretendia reafirmar a importância e a grandiosidade de tal obra realizada pelo

Estado Novo:

Figura 11: Uma imagem sublime como resposta ao flagelo dos sertanistas. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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O açude Purema é uma das realizações mais significativas daquela inspetoria. Este gigantesco reservatório tem uma capacidade total de 720 milhões de metros cúbicos. Esta aparelhado com que há de mais moderno na construção de barragem de seu tipo. Os trabalhados para instalação de sua construção foram iniciados em 1936. Este açude pertence ao sistema do Alto Piranha que compreende o conjunto de obras destinadas a irrigar aproximadamente 20 mil hectares de terras do Vale do Rio Piranhas nas imediações da cidade de Sousa. As águas do Purema destinam-se a alimentação dos canais de várzeas de Sousa. A altura de suas barragens é de 50 metros, sendo de 14 mil metros cúbicos a sua capacidade de irrigação por hectare.

O artifício que ligava esta seqüência do açude à próxima era a sonora que partia de

uma cadência moderada para, ao som de tambores e cordas, anunciar uma nova construção

fílmica. Desfilavam pela tela tratores transportando terra em uma larga avenida, um deles

passava diante da objetiva invadindo todo o quadro — novamente no cinejornal procura-se

atribuir às imagens um sentimento de sublime, em que opera a sensação de grandiosidade —

para depois abandoná-lo e deixar, em breves instantes, o predomínio geral da paisagem árida.

Outras máquinas têm destaque na película, como escavadeiras e tratores de rolo

compressores. Em uma cena a objetiva fechava o quadro no primeiro plano de três rolos

compressores puxados por um trator que, assim que se movimentava, distanciava-se do plano

em uma interessante demonstração dos preparativos para a construção das estradas de

Figura 12: As máquinas abriam as primeiras estradas por onde o interior vislumbraria a “civilização”. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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rodagem que ligariam o nordeste do país com a capital. A estrada resolveria os problemas de

comunicação da região e, segundo os ideólogos do regime, seria o elemento civilizador, além

de contribuir para a unidade nacional, “extinguindo” quaisquer desejos regionalistas.

Para ilustrar como o Estado Novo conseguia se projetar no imaginário do trabalhador

brasileiro, criando nele a necessidade de empenho e solidariedade para que o Brasil pudesse

alcançar o desenvolvimento econômico, como relata o Interventor do Amazonas Alvaro Maia

em Na Vanguarda da Retaguarda um “causo” exemplar. Nele fica evidente que,

independentemente das circunstâncias, o esforço do operário na construção de estradas era

uma obrigação, um dever para com a Pátria:

No hospital de Humaitá, em leito confortável, encontrei um jovem seringueiro de “Muanense”, florestário atlético e brônzeo, que se ferira dias antes, num golpe falso, quando reabria uma ‘estrada’: — Você ficará bom. Pense que é um soldado ferido, quando combatia heroicamente. Terá de voltar às seringueiras [...]. — Só fiquei danado, porque o golpe foi no joelho e eu não posso andar. Se fosse no peito, estava na volta da estrada uma hora desta [...].302

Assim, concentrando as imagens nas benfeitorias Flagelo das Secas... procurava

reafirmar que “o presidente Getúlio Vargas não tem poupado esforços no sentido de combater

energicamente o terrível defeito da seca”. Assim, após uma seqüência que justapõe os

diversos planos de homens medindo estradas, de pontes, de açudes e da cidade, surgia uma

nova seqüência que era marcada por uma sonora de cadência envolvente, nela as benfeitorias

voltavam a ser destacadas. Um plano seqüência tinha início com a objetiva aberta em um

açude, contemplando sua vastidão (mais uma vez procurava-se operar o sentimento de

sublime); a câmera começava a movimentar e percorrer rapidamente o caminho do açude até

deparar com um plano geral de uma ponte, logo substituído por dois primeiros planos de um

casal de sertanista que abastecia seus latões de água; primeiramente a mulher que erguia a saia

para que não se molhasse e, em seguida, o homem que saía do canto esquerdo do quadro para

acomodar os latões de água em um jegue. Aqui, o açude era a representação de prosperidade

para aquela região e uma solução para o problema da seca, reforçada com as imagens

seguintes de um plano geral do açude, retratando a grandiosidade de sua dimensão.

302 MAIA, Op. cit., p. 131.

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Figuras 13 e 14: A prosperidade chega ao sertão pelas ações do “salvador” Getúlio Vargas. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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Em outra seqüência, a objetiva percorria os canais de um açude que conduzia os

olhares dos espectadores a uma área irrigada onde se plantava e colhia laranja e algodão; as

imagens dos canais justapostas às imagens das plantações novamente buscavam enaltecer as

ações emergenciais aplicadas pelo governo na região. Em imagens aparecia a resposta àqueles

que não acreditavam ser possível dar frutos em uma terra tão árida e inóspita como o sertão

nordestino. No final, o cinejornal retomava algumas cenas de máquinas trabalhando na

construção das estradas de rodagem e, novamente, insistia nas imagens grandiosas dos açudes,

destacando sua capacidade de armazenamento e abastecimento das famílias sertanejas. Para

acompanhar estas cenas, uma voz off apontava os gastos do governo com as obras contra a

seca, mas tratava de evidenciar que as cifras de nada representavam diante da riqueza que as

obras subsidiadas produziriam à Nação, como também “diante do bem-estar e da elevação do

padrão de vida de milhares de brasileiros que se vêem agora em seu ritmo progressista que

anima o nosso país, sob a orientação suprema do presidente Getúlio Vargas”. Aqui, imagens e

voz off, mais uma vez sobrepostas por uma sonora envolvente evoluindo gradativamente,

encerravam o cinejornal como signos visuais e sonoros de um programa nacional-

desenvolvimentista para o Brasil dos anos 40, que encontrava na solução dos problemas da

seca um instrumento legitimador do regime.

Figura 15: O Estado Novo se refugia na grandiosidade dos açudes. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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Resolver o problema siderúrgico e dar respostas ao flagelo das secas constituíam os

dois lados de uma mesma moeda para o Estado Novo: a legitimação. Transformados em

imagens cinematográficas alimentavam o imaginário social dos brasileiros, o empenho do

“Todo” à industrialização correspondia à superação do estereótipo do Brasil atrasado e ao

único caminho para que o país conquistasse seu lugar de destaque entre as poderosas nações,

já o sertão era retomado pelo Estado como o reduto do nacional, mas uma brasilidade que

deveria ser moldada segundo o olhar civilizador do litoral. Desta forma, ambas as imagens

correspondiam à via propulsora que elevaria o país à condição de potência econômica.

Portanto, mesmo que não contemos com uma presença marcante dos trabalhadores no

cinema estatal — como era comum esperarmos que o DIP representasse nas telas a política

trabalhista de Vargas — temos que diante das imagens do “Trabalho” e do “Trabalhador”

construídas pela propaganda estadonovista, era comum tanto na temática urbana quanto na

rural a predominância do elemento do “Novo”, do “moderno”; imagens que buscavam

projetar nas multidões de espectadores o desejo de um objeto comum: a modernização da

Nação.

3.2.2 – Esforço de guerra: (con)vencer é preciso!

A guerra não pode jamais ser separada deste espetáculo mágico porque sua principal finalidade é justamente a produção deste espetáculo: abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir, antes da morte, o pânico da morte. [...] Não existe, portanto, guerra sem representação ou arma sofisticada sem mistificação psicológica, pois, antes de serem instrumentos de destruição, as armas são instrumentos de percepção, ou seja, estimulantes que provocam fenômenos químicos e neurológicos sobre órgãos do sentido e o sistema nervoso central, afetando as reações e a identificação e diferenciação dos objetos percebidos.303

Assim, como em Paul Virilio, a idéia de percepção perpassa todo este trabalho, aqui o

cinema é tido como um dos principais dispositivos legitimadores de que fizeram uso os

regimes autoritários, fundamentalmente, por ser capaz de provocar na multidão de

espectadores um processo de identificação, porém, não apenas com o representado, mas com

o próprio espetáculo cinematográfico. É o olhar do espectador que autoriza a identificação.

Segundo o autor a objetiva levada para o front transformou o campo de tiro em campo de

303 VIRILIO, Op. cit., p. 12.

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filmagem, capturava-se nas películas um cenário que, normalmente, estaria fora do alcance

dos civis, mas que na condição de espectadores seriam capazes de desfrutar de alguns

instantes de um “terror tolerável”. Nas telas a própria idéia (imagem) da morte tornava-se

amena, passível de ser consumida, pelos acomodados espectadores que, nas poltronas da sala

escura, experimentavam as mais diversas sensações encontradas em um campo de batalha —

por mais que se tratem de tempo e espaço diferentes — conscientes de que não corriam

nenhum risco, de que não seriam vítimas das crueldades dos inimigos. Neste caso, todos os

elementos que compõem a experiência perceptiva do cinema — sala escura, projeção e tela —

auxiliavam os espectadores a se identificarem com imagens sublimes da guerra, uma vez que,

segundo Burke, tudo que seja de algum modo capaz de incitar as idéias de dor e de perigo, ou

que sejam análogos à idéia de terror (tolerável), produzem “a mais forte emoção de que o

espírito é capaz”: o sublime. “Quando o perigo ou a dor se apresentam como uma ameaça

decididamente iminente, não podem proporcionar nenhum deleite e são meramente terríveis;

mas quando são menos prováveis e de certo modo atenuadas, podem ser — e são —

deliciosas [...].”304

Entretanto, ao público brasileiro das salas de cinema não foi proporcionado este deleite

— não por esse viés — o DIP enviara cinegrafistas e fotógrafos para o teatro de operações na

Itália, mas de lá as únicas imagens que atravessaram os mares mostravam os pracinhas em

pose de combates. Os cinejornais do Estado Novo procurariam outro tipo de imagem para

suscitar o sentimento de sublime entre o povo brasileiro e, por outro lado, investiriam em

imagens belas, uma vez que são “capazes de despertar em nós um sentimento de afeto e

ternura [...]”,305 afetividade que, como vimos, provoca-nos um desejo de participação, de nos

tornarmos mais próximo do outro, de compartilharmos com o outro um mesmo sentimento.

No caso do Estado Novo, a idéia-imagem da Pátria/Una.

Para Bonalume,306 com a formação da Força Expedicionária Brasileira, FEB, surgiu

um novo alvo para as objetivas do DIP. Em um primeiro momento, o Governo Vargas

manteve o interesse em controlar tudo que se publicava no país sobre a participação do Brasil

na Segunda Guerra Mundial, proibindo até os jornais de enviarem correspondentes ao cenário

da guerra, mas, logo cedeu às pressões. Assim, acompanhando os repórteres encarregados do

texto, o DIP enviou cinegrafistas e fotógrafos, entre eles Fernando Stamato e Horácio de

304 BURKE, Edmund (1757) Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, 1993. p. 48. 305 Idem, Ibidem, p. 58. 306 BONALUME NETO, Ricardo. A nossa Segunda Guerra: os brasileiros em combate, 1942-1945. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1995. p. 24-25.

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Gusmão Coelho Sobrinho. A equipe de imagem era composta, ainda, pelo norte-americano

Alan Fisher, da Coordenação de Assuntos Americanos — todas as fotografias da FEB

publicadas na imprensa brasileira durante o desenrolar do conflito mundial que possuem o

carimbo com as iniciais SHI pertencem às objetivas do Serviço de Informação do Hemisfério,

departamento que integrava a agência de divulgação dos EUA. No entanto, segundo o autor,

não há fotografias que mostrem os soldados brasileiros em ação, seja por que os fotógrafos

brasileiros não eram autorizados pelo comando militar a acompanharem as tropas em patrulha

ou porque os mesmos não tinham coragem de se arriscarem na linha de frente da batalha. “Há

muitas fotos que mostram soldados da FEB em poses de combate. São geralmente isso: poses,

fotos montadas feitas na retaguarda para mostrar à população no país como lutavam seus

soldados. [...] Em algumas das piores dessas fotos é fácil perceber a armação. Um soldado

aponta a metralhadora por sobre um monte de neve; atrás dele outros soldados conversam.”307

O mesmo se repetiu com as imagens cinematográficas do DIP, como já mencionado.

As poucas referências aos soldados brasileiros são de quando eles ainda se encontravam em

terras brasileiras; em algumas cenas eles aparecem em movimentos de treinamentos, jogam-se

no chão, atiram, rastejam, pilotam tanques, jipes e aviões, tudo na tentativa de demonstrarem

que o Brasil já se encontrava apto para integrar as forças aliadas. Quando o soldado brasileiro

parte para o palco de guerra na Europa vê-se a necessidade de apresentar, em imagens, o

surgimento de novos atores:

Antes da ida para a Europa, as manobras envolvendo soldados, marinheiros, oficiais das diversas Regiões, cadetes de Realengo ou das esquadras naval e fluvial, evoluirão do plano estático da exibição de força [...], para demonstrações mais complexas do preparo para o ataque [...] ou da defesa nacional (Fábrica de Projéteis do Andaraí, [...], patrulhamento aéreo do Atlântico, [...], etc.). Mas, quando o CJB [Cine Jornal Brasileiro] chega aos preparativos para o ataque, passando da guerra de posições para o uso extensivo dos blindados e aviação, é hora de esquecermos as imagens anteriores e prestarmos atenção à nova unidade de guerra que surge: a Força Expedicionária Brasileira — FEB.308

Para Souza, o que os cinejornais pretendiam destacar era o aparecimento da imagem

do “guerreiro”, daquele que estava preparado para combater os inimigos externos. Nas telas as

demonstrações de cultura física dos recrutas tratavam de assegurar a capacidade das Forças

Armadas do Brasil em equipar e forjar os seus soldados. Aqui, a pedagogia militar implicava, 307 BONALUME NETO, Op. cit., p. 26. 308 SOUZA (1990), Op. cit., p. 360.

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segundo o autor, em não mencionar, de forma alguma, a palavra “guerra” aos recrutas

enquanto estes estivessem nos quartéis em fase de treinamento. Podia-se falar em

“organização defensiva”, ou então, que os recrutas teriam oportunidades de “repelir qualquer

ameaça às conquistas pacíficas da nação”. Neste caso, a mobilização para a guerra tinha um

grande significado para os ideólogos estadonovistas, uma vez que acreditavam que a adesão

às instituições do Estado, como a Força Armada, representava a solução para vários

problemas sociais do país. Ou seja, os recrutas que, na sua maioria, eram oriundos das classes

populares ao ingressarem nos quartéis espalhados por todo o território nacional não seriam

mais vítimas da desnutrição, da fome e do analfabetismo que assolavam a sociedade

brasileira, além de que submetidos à educação militar os soldados brasileiros se tornariam

verdadeiros “guerreiros”, conhecedores das mais modernas estratégias de guerra.309

Desta forma, os cinejornais ao exibirem imagens dos soldados em plenas atividades de

cultura física, enaltecendo seus corpos saudáveis, anunciavam o desejo do Estado, segundo

Lenharo, de atribuir às suas instituições militares a missão de criar o homem brasileiro, dirigi-

lo e governá-lo integralmente. As imagens sugeriam um único caminho: a docilização coletiva

dos corpos e a identificação da sociedade brasileira com a organização militar.310 Logo,

enquanto a metáfora do corpo era utilizada pelos propagandistas do Estado Novo como forma

de justificar a subjugação das partes em relação ao todo, a idéia de organização se

manifestava como totalidade negadora das autonomias das partes, ou seja, procurava-se

plantar no terreno do imaginário social o impulso pelo sacrifício. Sacrifício pela Pátria que,

por sua vez, sugeria um sentimento sublime. Aqui, novamente o Estado valia-se da

fantasmagoria do “Todo Orgânico”. Inspirada nas imagens dos soldados a sociedade brasileira

compunha um único corpo saudável, que a qualquer sinal de moléstia deveria eliminá-la, pois,

desta forma, a estrutura orgânica social seria preservada. Por isso, a ênfase do regime ao tema

do corporativismo, em que os sindicatos e as associações aparecem como redutos inibidores

da condição de classe do trabalhador. “A ordem corporativa proposta vinha confirmar, como

se declarava então, a substituição do negativo conceito de luta de classes pelo conceito

positivo de colaboração de classes.”311

Então, o que se viu depois da criação da FEB foi a difusão da imagem do soldado

brasileiro como modelo a ser imitado como padrão de comportamento para o trabalhador e

para o cidadão comum. Em 1942, o sacrifício de horas, a mais, exaustivas, de serviço dos

309 SOUZA (1990), Op. cit., p. 365-368. 310 LENHARO, Op. cit., p. 80. 311 Idem, Ibidem, p. 22.

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trabalhadores nas fábricas, que interessavam à produção e à defesa nacional, conforme

critérios do próprio governo, era uma medida que vinha auxiliar ao “esforço de guerra” do

Brasil. Para Lenharo,312 havia uma preocupação com o corpo enquanto instrumento de

trabalho, transformava-se o trabalhador no “soldado da produção” objetivando a ampliação

progressiva da produtividade. Os operários militarmente disciplinados caminhavam para uma

nova condição, a de consumidores, na qual não teriam o direito a politizar a sua própria

realidade. Segundo Paranhos, não era permitido aos operários pensar em greves e qualquer

sinal de ociosidade ou malandragem seria interpretado como crime contra a Pátria/Una e os

indivíduos considerados desertores; no caso de estrangeiros, eram vistos como sabotadores.

No entender do Governo Vargas, o dever das classes trabalhadoras era de engajar-se na

“mobilização econômica”.313 Assim, as imagens do trabalhador e do soldado se completavam

uma na outra, enquanto a primeira “doava-se” na linha de produção, a segunda não media

esforços no combate às tropas do Eixo.

Nos cinejornais esta mesma associação Trabalhador/Soldado se repetiu, até mesmo

como substituta das inexistentes imagens dos pracinhas em combate. Ao invés de mobilizar

por meio de um “terror tolerável”, como preferiram os alemães em seus filmes de guerra, o

Estado brasileiro procurou uma mobilização no cinema que contasse com um outro cenário e

um outro som: ao invés de cenas eloqüentes dos campos de batalhas e dos ruídos da artilharia,

explorava as imagens das fábricas com suas máquinas, ditando o ritmo da produção aos

operários nelas submergidos. A intenção do Estado Novo era de criar um clima interno de

guerra favorável à decisão do governo de enviar os soldados brasileiros à Itália para lutar

contra as “forças inimigas”. Procurava-se, então, consolidar entre os trabalhadores uma

“reserva de mobilização”, uma vez que, segundo Paranhos,314 na hipótese de agravamento da

crise política das instituições estadonovistas, acreditava-se na necessidade de recorrer às bases

de apoio do governo, representadas pelas classes trabalhadoras, aqui despolitizadas. Desta

forma, várias medidas foram adotadas pelo Estado Novo neste sentido, entre elas o chamado à

sindicalização reforçava a estratégia estatal para a formação desta “reserva de mobilização”.

Assim, assegurava-se uma transição para o regime democrático de maneira conveniente a

Getúlio Vargas e seus seguidores.

Entre outras imagens mobilizantes no cinema do DIP destaca-se a criação do inimigo

externo, os alemães em especial. Os indicativos imagéticos deste apelo ao mito político do

312 LENHARO, Op. cit., p. 84. 313 PARANHOS (1999), Op. cit., p. 184-185. 314 Idem, Ibidem, p. 185.

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“Inimigo” nos cinejornais — como veremos mais adiante — vinham oferecer ao povo um

objeto para odiar, logo, era com base neste sentimento de ódio pelo outro que se procurava

motivar a consolidação de um front interno no Brasil. Na verdade, o Estado Novo optava por

uma prática um tanto comum, uma vez que

Em época de guerra, a propaganda no cinema se volta primeiro para a frente interna, onde não se travam batalhas mas há uma necessidade definida de agressividade. Isso é satisfeito fornecendo na tela objetos legítimos e concretos para odiar. Quaisquer sentimentos de culpa latentes são diluídos pela indignação que justifica o ódio. Finalmente, a equanimidade e o equilíbrio da platéia são restabelecidos pela execução gráfica de atos de violência que ela gostaria de ver cometidos contra o objeto de ódio.315

E os brasileiros tinham muitos motivos para odiar. Como vimos, a posição de

“neutralidade” do Governo Vargas diante do conturbado cenário mundial foi mantida como

forma de negociar entre os dois países imperialistas, os EUA e a Alemanha, o financiamento

da instalação da primeira indústria siderúrgica no país, item indispensável para o projeto

político-econômico desenvolvimentista do Estado Novo. A Política de Boa Vizinhança

adotada pelos norte-americanos no Brasil tratou de aproximar os interesses de ambos os

países, logo, em 1940, o Governo Vargas começava a receber os incentivos para a construção

da Companhia Siderúrgica Nacional. Entretanto, a suposta “neutralidade” do Estado Novo

começava a desmoronar-se com os atentados dos submarinos alemães aos navios brasileiros.

Como saldo da guerra que o Eixo decretara ao comércio dos Aliados, o Brasil, em meados de

julho de 1942, já tinha perdido 13 embarcações. Tudo já indicava a entrada do Brasil na

Segunda Guerra Mundial, os EUA já tinham fixado bases militares no Nordeste e

reaparelhado as Forças Armadas brasileiras, mas ainda restava um último golpe dos alemães

que causaria comoção nacional. Segundo Bonalume,316 no mês seguinte, um único submarino

nazista, o U-507, afundou em poucos dias cinco navios e um pequeno veleiro, contabilizando

cerca de 600 mortos. Entre as vítimas dos navios torpedeados, 270 mortos eram soldados do

Exército que embarcaram no Baependy com destino ao Nordeste. Já o Araraquara e o Aníbal

Benévolo tiveram 131 e 150 mortos, respectivamente. O U-507 ainda afundara uma outra

embarcação, o Itagiba, resultando em 36 mortos, e enquanto o Arará socorria os

sobreviventes ele também virara alvo dos torpedos alemães, tendo 26 mortos. Já o pequeno

veleiro Jacira, com seus seis tripulantes, foi o único que não teve vítimas fatais. 315 FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p. 204. 316 BONALUME NETO, Op. cit., p. 43.

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Não há dúvidas de que este fato motivou na época uma repulsa popular aos alemães no

Brasil, o povo cobrava do Estado uma retaliação, mas que só veria ocorrer em 2 de julho de

1944 quando 5081 soldados brasileiros embarcaram no navio transporte de tropas americano

General W. A. Mann, com destino à Itália. Portanto, a propaganda do Governo Vargas, ao

fazer uso de imagens sublimes, procurava explorar nos cinejornais sentimentos latentes nos

indivíduos, como o ódio e a compaixão, canalizando-os para a figura do inimigo político

externo, os alemães. Ou seja, bastava ao dispositivo cinematográfico atualizá-los.

Em 1942, já surgiam sinais das primeiras manifestações das forças de oposição que

pretendiam pressionar o governo pela entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados, como a

mencionada passeata antitotalitária da UNE, no Rio de Janeiro, em 4 de julho. A luta pela

“democratização” no país aproveitava-se da própria ruptura no Governo Vargas, de um lado

havia um grupo liderado pelo Ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, que era

favorável aos Aliados, e um outro que tendia para o Eixo e que tinha como líder o Ministro da

Justiça, Francisco Campos. Esta situação conflituosa entre os dirigentes da ditadura

estadonovista, acompanhada das constantes acusações de que a cúpula do governo contava

com adeptos do fascismo, forçou Getúlio Vargas a demitir Francisco Campos, o Chefe de

Polícia do Distrito Federal, Filinto Müller, e o diretor-geral do DIP, Lourival Fontes.

Então, decretada a entrada do Brasil no conflito mundial eram iniciados os

preparativos para o envio do primeiro contingente de soldados brasileiros que enfrentariam as

tropas inimigas do Eixo. Segundo Corsi,317 a criação da FEB em 1943 não passou de uma

estratégia política do Governo Vargas de conseguir dos EUA um maior fornecimento de

armamentos para a modernização das Forças Armadas e de projetar o Brasil

internacionalmente. No entender de Pinheiro, o envio dos pracinhas para a Itália significou a

continuidade do “esforço de guerra” que o Brasil já vinha realizando no campo da política, da

economia e do ideológico. Mas, agora, tratava-se da participação militar dos brasileiros

diretamente no conflito, o que buscava reafirmar o desejo tão sonhado pelo Estado Novo de

projetar o país no rol das grandes potências mundiais. Ou seja, “o envio da FEB ao teatro de

operações veio coroar um processo que se iniciara quase quatro anos antes, mas que se

constituiu igualmente em ponto de partida para uma nova etapa, qual seja, a da busca por

parte do governo brasileiro de participação nos arranjos do pós-guerra, em função da

instituição da nova ordem mundial.”318

317 CORSI, Op. cit., p. 230. 318 PINHEIRO, Letícia. A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Revista USP, n. 26, jul./ago. 1995. p. 117.

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Para a autora a participação militar do Brasil na Segunda Guerra Mundial viabilizou o

reequipamento das Forças Armadas, como também fortaleceu o Governo Vargas, mesmo que

momentaneamente, além de ampliar o poder e o prestígio das suas instituições civil e militar.

No entanto, não correspondeu ao objetivo maior de influir na construção da nova ordem

internacional. Logo após o término do conflito foram dados alguns créditos ao Brasil

enquanto potência aliada, o país participou da Conferência de Paz de Paris em 1946 e obteve

um assento no Conselho de Segurança na recém-criada Organização das Nações Unidas

(ONU), mas nada disto indicava um verdadeiro poder ao Brasil em compartilhar das decisões

mundiais.

Em relação à tentativa do Estado Novo em mobilizar a sociedade brasileira para a

criação de um front interno vê-se que se tratava de um efeito legitimador do regime que já

sofrera as suas primeiras baixas ministeriais. O governo percebendo o clamor do país a um

retorno à democracia pressentia que, com o fim do conflito mundial, seria difícil manter

estável uma ditadura no país. Logo, buscavam-se diversos mecanismos para atingir o objetivo

de construir uma base sólida que assegurasse uma transição tranqüila para o Presidente

Getúlio Vargas. Para Luiz Carlos Prestes, em um de seus últimos depoimentos, Getúlio

Vargas demonstrou ser um político hábil ao enviar a FEB ao campo de batalha na Europa,

uma vez que naquele momento já se configurava uma intenção, tanto nacional quanto

mundial, de liquidar com o nazi-fascismo. Prestes não compartilhava da posição adotada pela

União Democrática Nacional (UDN) que acreditava que antes de mandar os soldados

brasileiros era preciso acabar com o fascismo no Brasil, pelo contrário, no seu entender, a

própria conjuntura exigia que os países olhassem para a humanidade que, por sua vez,

desejava se libertar da peste nazista.

Ou seja, com a derrota do nazi-fascismo mudanças seriam operadas na política

brasileira, Vargas teria que “pagar a conta” renunciando ao cargo, pois no pós-guerra não

caberia uma ditadura de cunho fascista. Mas, segundo Prestes, o Presidente Vargas

prevenindo-se de uma derrocada encontrou nas imagens das tropas da FEB um instrumento

propício, naquele momento, para tornar a sociedade brasileira solidária com uma causa

nacional, forjando no seu cerne um “exército de reserva de mobilização”. O Governo Vargas

seria definitivamente o governo dos pracinhas.319

Para sustentar a imagem do Estado Novo associada à da FEB, como a representação da

contribuição do povo brasileiro na solução da paz mundial, o governo procurava transformar a

319 PRESTES, Anita Leocádia. Getúlio Vargas: depoimento de Luiz Carlos Prestes. In: SILVA (1991), Op. cit., p. 96-97.

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escassez relativa, seja a do pão ou do petróleo — aqui instrumentalizada politicamente — em

uma sensação de escassez objetiva, assim como a ocasionada pelo conflito na Europa,

acreditando que, desta forma, propiciaria uma experiência coletiva da guerra. Assim, segundo

Cytrynowicz, as iniciativas do governo para a criação do front interno procuravam mobilizar a

população segundo os ideais do Estado Novo, no entanto, quando o autor procurou vestígios

desta frente de batalha interna em São Paulo deparou com uma realidade bastante distinta: “A

escassez de pão não significou fome em São Paulo e predomina um registro de memória leve

e divertido na lembrança das filas, mais atento aos causos do cotidiano e mecanismos para

burlar as restrições à venda, como os padeiros ‘amigos’ que entregam pão por fora”.320 O que

houve foi que alguns fatores como a própria inexistência de combates militares dentro do país,

a ida dos soldados para combates reais na distante Europa, além do governo recusar-se a um

alinhamento total para não pôr em risco o regime, apontavam para uma sensação de

irrealidade da guerra, ou seja, dificilmente o brasileiro se mobilizaria mediante privações. O

Governo Vargas utilizaria de outros mecanismos. Entre as tentativas do governo de

implementar políticas de mobilização ou efeitos de mobilização, destaca-se a apropriação da

imagem da multidão pelo Estado Novo que, em todas as suas instâncias representativas, os

indivíduos nos surgem como “cristais de massa”, ou seja, necessitam de ser reconhecidos em

sua totalidade, como um objeto duradouro e jamais alterado (tratarei deste conceito mais

adiante). Assim, segundo Cytrynowicz, o Governo Vargas aproveitou-se da estrutura sindical

e dos comícios de Primeiro de Maio, aqui ritualizados no mito da “doação”, para convencer o

país de que havia uma adesão ao regime e uma mobilização para a guerra. Para isto, a

montagem estatal operava com a seguinte imagem, no entender do autor:

A multidão era disciplinada na rua, nas filas cooptada pela máquina previdenciária dos sindicatos oficiais, organizada nos desfiles das escolas de samba evocando temas nacionais, submetida à disciplina militar no interior das fábricas, educada para usar sapatos e marchar, tomar vitaminas e ter saúde eugênica, adestrada nos quartéis preparados para lutar na Europa, a percepção da multidão era sentida como uma ameaça, mas também era o que possibilitava a imposição de uma certa ordem — econômica — e de um certo modelo político, em que a mobilização, a fila, a apologia do trabalho militarizado, o desfile organizado e o alinhamento foram impostos, criando o que se pode considerar o “front interno” paulistano na Segunda Guerra Mundial.321

320 CYTRYNOWICZ, Op. cit., p. 54. 321 Idem, Ibidem, p. 87.

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Ainda em relação à Força Expedicionária Brasileira, nota-se que o único momento em

que o Estado Novo não se interessou pela imagem mobilizadora da FEB foi quando do seu

retorno vitorioso da Itália. Ao contrário do que se esperava, a propaganda do DIP preferiu não

fazer um alarde da imagem gloriosa dos pracinhas, restringindo-se à recepção calorosa do

povo brasileiro aos soldados patrícios e a uma ou outra condecoração ou homenagem do

Presidente Vargas aos feridos de guerra. A justificativa desta atitude, um tanto contraditória,

estava no próprio significado atribuído à volta da FEB. Segundo Bonalume, o Governo

Vargas acreditava que o retorno dos expedicionários ocasionaria um choque político no país,

temia-se que eles tramassem contra o regime. Mediante esta suposta ameaça, o primeiro

contingente de soldados brasileiros a desembarcarem no Rio de Janeiro em 18 de julho 1945

já não mais integrava a Força Expedicionária Brasileira, que tinha sido extinta em 6 de julho,

quando as tropas ainda estavam na Europa.322

Diante disto, os assuntos dos cinejornais aqui analisados demonstram, primeiramente,

a preocupação do Estado Novo em criar o inimigo externo, uma vez que já havia investido

muito na idéia-imagem do Anticomunismo, e, em seguida, a busca por projetar nas telas mais

o esforço operado pelos trabalhadores militarmente disciplinados nas fábricas — a imagem do

“soldado da produção” — do que a participação militar direta do Brasil no conflito mundial.

Assim, ao justapor os fragmentos das crueldades “totalitárias” de que tinham sido vítimas os

navios brasileiros aos da “batalha” efetuada no campo da produção industrial — sinalizando o

caminho do progresso nacional —como aos das demonstrações de cultura física dos soldados

brasileiros e do aparelhamento das Forças Armadas, o Estado Novo por meio dos cinejornais

não só criava o front interno, mas pretendia se fazer, mais uma vez, presente no cotidiano dos

brasileiros. Por um lado, as imagens objetivavam reafirmar a idéia de que a entrada do Brasil

na Segunda Guerra Mundial era mais um resultado da sensibilidade do Presidente Getúlio

Vargas aos anseios populares do que um alinhamento com os EUA, motivado pelo

financiamento do projeto econômico estadonovista e pela modernização das Forças Armadas;

por outro lado, o envio dos pracinhas era a confirmação de que as Forças Armadas cumpriam

a sua tarefa de forjar o homem brasileiro, o “guerreiro” viril, aquele que conhecendo as

modernas técnicas de guerra lutaria na Europa com o “mais profundo patriótico espírito de

sacrifício”. Aqui, as instituições civil e militar representavam um Estado que, não apenas

intervinha nas questões nacionais, mas que também participava ativamente como uma das

Nações responsáveis por eliminar qualquer vestígio das “forças cegas e brutais da barbárie”.

322 BONALUME, Op. cit., p. 217.

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Figuras 16 e 17: Uma multidão de brasileiros revoltosos saiu às ruas em protesto contra as atrocidades dos alemães. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 127.

Quando o povo saía às ruas para manifestar a sua repulsa às agressões “totalitárias”, lá

estava a câmera do DIP pronta para registrar cada fragmento de um protesto que, ao ser

reconstruído nas telas, ganhava um sentido de comoção nacional. As seqüências iniciais de

Afundamentos em Águas Brasileiras! — Rio: As Primeiras manifestações do povo contra os

brutais atentados dos submarinos do Eixo,323 cinejornal exibido em 1942, buscam

exaustivamente, em planos gerais, diferentes imagens das multidões concentradas na praça,

sugerindo aos espectadores a grandiosidade que alcançava aquele movimento popular. Aqui a

montagem estatal priorizava os diversos ângulos da multidão, não queria perder nenhuma

cena que pudesse demonstrar a espontaneidade com que afloravam os sentimentos de dor e

repulsa dos brasileiros, como reforçava a voz off: “Grandes multidões, em vibrante exaltação

patriótica, manifestam na Capital da República os sentimentos nacionais de repulsa veemente

contra brutais e traiçoeiras agressões totalitárias ao Brasil.”324

Em uma destas seqüências surge a imagem de alguns manifestantes que ao passarem

em frente da objetiva não temem em gesticular euforicamente, como se estivessem diante de

um canal direto com o Presidente Vargas. Mas o DIP via nestes gestos e em outras cenas, em

que os civis usavam máscaras ou pintavam os rostos na tentativa de representarem a figura de

Hitler, formas discursivas ideais para procurar deflagrar no público do cinema os mesmos

sentimentos que incendiavam as ruas da capital do país. Tratava-se de fazer com que os 323 CJB, v.2, n. 144, 1942. 324 Apesar de ter consultado no acervo da Cinemateca Brasileira um documento fílmico, disponível em VHS, referente a este assunto do Cine Jornal Brasileiro, que não foi possível preservar sua banda sonora, optei por citá-la, aqui, conforme a transcrição apresentada no catálogo publicado pela instituição. Ver FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 127.

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Figura 18: Os gestos e a face da revolta “patriótica”. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 127.

espectadores se identificassem com aquela multidão e, portanto, reconhecessem o protesto

legítimo, pois, era nestas mesmas imagens que o Estado Novo pretendia fazer se reconhecer,

uma vez que “nesses significativos atos públicos revela-se também o pesar da Nação pela

perda de vidas conseqüente do torpedeamento de navios brasileiros entregues a serviço

pacífico ao longo das costas do país”. Para coroar esta significação o cinejornal recorria a um

plano do símbolo máximo da unidade nacional: em meio à multidão, a câmera atenta “pinça”

a imagem da bandeira brasileira sendo carregada pelos populares, dispositivo que projetava

nas telas, mesmo que por alguns instantes, a representação da proteção da “Pátria-Mãe”. Aqui,

o Estado ao materializar-se entre os manifestantes, naquela que simbolizava um único corpo

político e social, vinha afirmar que compartilhava do mesmo pesar.

Durante o protesto o DIP flagrava diante do Palácio Tiradentes um grupo de pessoas

que se organizava para atenciosamente ouvir os oradores que surgiam entre o povo revoltado.

A câmera não perdia tempo, fechava o quadro no rosto de um dos homens que, em um

palanque improvisado e em um tom ríspido, discursava contra as atrocidades cometidas pelos

alemães. Entretanto, por algum motivo técnico ou estratégico, o DIP preferiu restringir aos

interlocutores que ali se encontravam aquilo que parecia ser uma fala contundente. Eram os

gestos agressivos com o braço direito e as feições de seu rosto, justapostos às imagens da

multidão, os recursos visuais propícios para aludir ao clima de revolta em que se encontrava

envolta a sociedade brasileira. Aqui, a seqüência variava entre a multidão que, registrada em

planos gerais do alto crescia na tela, oferecendo uma idéia da vastidão de pessoas que

participavam da manifestação, e os primeiros planos do orador que destacavam a sua agitação.

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Figura 19: O povo brasileiro exigia uma retaliação por parte do Estado. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 127.

Já a última seqüência retomava as cenas do povo reunido que, em um corte seco,

passava a protestar ao Presidente Getúlio Vargas diante do Palácio Guanabara. Assim, ao

término do cinejornal insistia-se na idéia de que os brasileiros desejavam, de qualquer

maneira, a retaliação aos inimigos recentemente declarados, o que caberia apenas ao Estado

responder.

Ainda em 1942, o tema da reação popular aos afundamentos dos navios nacionais

circularia nas salas de cinema, em Vítimas da Crueldade dos Totalitários! Primeiros

flagrantes dos sobreviventes do “Itagiba” e do “Arara” na cidade de Salvador325 onde, mais

uma vez, o Estado Novo recorria à criação do mito político do “Inimigo”. Nas telas era

oferecida uma única imagem para odiar: os alemães; para isto, os cinejornais do DIP

operavam com os próprios signos de violência e atrocidade cometidos pelos nazifascistas nas

costas brasileiras. A propaganda política de Vargas traduzia o acontecido como “um dos

grandes crimes internacionais deste século”. Enquanto os soldados sobreviventes aos

torpedeamentos dos submarinos alemães transitavam descontraídos pelo porto, uns até

brincavam com a câmera— cenas que não condiziam com o tom de seriedade atribuído ao

filme, mas que poderiam ser explicadas pela própria denúncia dos críticos de cinema da época

a respeito do despreparo do brasileiro em lidar com a câmera, que também ficará nítido nas

325 CJB, v.2, n. 146, 1942.

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Figura 20: Os sobreviventes dos ataques dos submarinos alemães. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 129.

imagens das multidões de trabalhadores, como veremos mais adiante — a voz off

encarregava-se de apresentá-los, acompanhada de uma melancólica melodia:

A desumana pirataria, desencadeada pelas Potências do Eixo no Atlântico, atinge as águas brasileiras. Eis aqui na cidade do Salvador, soldados sobreviventes de um dos cinco navios nacionais torpedeados por submarinos totalitários diante da costa sergipana, em condições que fugiram inteiramente a qualquer norma de ação entre os povos civilizados. Também nesta embarcação ancorada no porto da capital baiana vamos encontrar muitos náufragos dos vapores Itagiba e Arara.

Em seguida, as grafias nas películas dos primeiros flagrantes dos sobreviventes feridos

no naufrágio agregavam ao filme um potencial diegético difícil de ser negado, a objetiva do

DIP se esforçava para captar em cada olhar, em cada rosto o sentimento sublime da tragédia

de que foram vítimas os brasileiros. É que estas imagens satisfaziam o aparente deleite

(prazer) dos espectadores pelos infortúnios de seus semelhantes, haja visto que “não há

espetáculo que busquemos com tanta avidez quanto o de alguma desgraça incomum e

atroz”.326 Segundo Burke, este sentimento ganha mais força quando as dores são

representadas pela arte, assim como feito pelos cinejornais, pois o prazer resulta do próprio

326 BURKE, Op. cit., p. 54.

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princípio de imitação do real, uma vez que “deliciamo-nos ao ver coisas que nunca faríamos e

que, pelo contrário, desejaríamos veementemente impedir”.327 Assim, a câmera percorria os

vários leitos onde repousavam os sobreviventes hospitalizados, mas durante a incursão fixava

o plano, fechando o quadro no rosto de um dos oficiais feridos gravemente. Era o comandante

do Itagiba, José Ricardo Nunes, que ali deitado dirigia um olhar terno à câmera, como se

fitasse o espectador, que preso a sua poltrona não tinha para onde ir, não escaparia à sujeição

de sentir-se compartilhar com a Nação de uma mesma sensação de revolta. O mesmo artifício

era repetido com o taifeiro do Itagiba que “viu-se vítima do segundo torpedeamento, quando

já a salvo no Arará”; no filme ele aparece deitado com o braço imobilizado enquanto a

objetiva registrava um olhar um tanto distante, perdido. Mas ainda havia um elemento que

acrescentaria a estas imagens um sentido melancólico, reforçando os olhares que exigiam que

fossem retribuídos: enquanto a voz off apresentava os sobreviventes, uma música de fundo

tratava de criar o ambiente propício para a comoção nacional e a cada passagem de um ferido

a outro a melodia invadia a sala de exibição, tomava conta da seqüência como se imperasse o

temor no país. No entanto, o povo contava com Getúlio Vargas para expulsar este sentimento.

327 BURKE, Op. cit., p. 55.

Figuras 20 e 21: Nas telas a atualização do sentimento de ódio e compaixão. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 129.

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O que o Estado Novo pretendia com estas imagens mobilizantes era convencer a

sociedade brasileira de que o Brasil vinha sendo forçado a reconhecer um estado de guerra

que não provocara, tendo que romper com sua condição de país “neutro” aos assuntos

referentes ao conflito desencadeado na Europa. Porém, os sinais de um alinhamento com os

EUA já vinham sendo demonstrados desde 1940, quando o Governo Vargas concedeu

permissão aos norte-americanos para a construção de bases militares no Nordeste. Neste

sentido, ao mesmo tempo em que o cinejornal reconhecia a revolta popular, também recorria

ao episódio dos afundamentos dos navios brasileiros como uma ameaça à soberania nacional,

que, por sua vez, cobrava do Estado uma reação, como destacado na locução:

A estupidez que caracterizou este atentado, provocando a mais justa e veemente revolta, não feriu apenas o Brasil, mas a consciência da América inteira e de todas as Nações em geral que combatem as forças cegas e brutais da barbárie. Esta mesma revolta resultou, como tinha que ser, na reação altiva da Nação, reconhecendo o estado de guerra que não provocara, mas que será enfrentado com honra, com dignidade viril e com o mais profundo patriótico espírito de sacrifício [sobe música melódica].

Mas o ápice do filme ainda estava por vir. Duas seqüências ainda se encarregariam de

arrebatar a compaixão do povo brasileiro com os sobreviventes aos atentados, procurando

suscitar um sentimento que já se encontrava presente na sociedade. Diante da tela, por um

instante, os espectadores se sentem desarmados, entre os sobreviventes registrados (in loco)

pela objetiva do DIP surge uma pequena e dócil criança que era descrita no cinejornal da

seguinte maneira: “Valderez Cavalcanti, uma encantadora garotinha de quatro anos, viveu,

Figura 22: Os espectadores se perdem em um olhar. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 129.

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entretanto, um dos mais impressionantes episódios do afundamento do Itagiba. Atirada ao mar

com a explosão do torpedo conseguiu agarrar-se a uma caixa vazia, ficando assim ao sabor

das ondas até ser salva”. A encantadora Valderez aparecia no quadro, depois de um corte

seco, com um dos braços imobilizados, o que fortalecia ainda mais o apelo emocional daquela

cena. Quando a câmera aproximou-se dela, ali quieta e sentada no canto, parecia que a

incomodava: em um primeiro momento transparecia o seu rosto um ar de seriedade, logo

substituído por um sorriso. Sorriso que poderia ser interpretado como um elemento diegético

de “catarse” da comoção nacional, da revolta do povo contra os atos cometidos contra a

integridade física e moral da Nação. Portanto, a propaganda do Estado Novo apropriava-se da

delicadeza e da aparência angelical desta garotinha para tornar a imagem do nazista ainda

mais propícia para ser oferecida aos espectadores como um objeto a ser odiado, uma vez que

se tratava de artifícios que por compreenderem uma idéia de belo poderiam despertar um

sentimento de afeto.

Valderez era filha de um dos tripulantes do Itagiba, Otávio Barros Cavalcanti, que

também se feriu e estava hospitalizado. Antes de ser apresentada ao lado do pai, em uma

última cena, a menina é recepcionada e homenageada com flores pelos alunos da Escola

Conselheiro Dantas, de Salvador. Na cena, as outras crianças a rodeavam e abraçavam em

Figura 23: A sobrevivência da docilidade. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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uma demonstração de solidariedade, gesto que no cinema era ampliado, pois os espectadores

reconheceriam a atitude como nobre. No decorrer da imagem transcorria a voz off se

encarregava de afirmar que “justa e tocante é, pois, a homenagem que aqui prestam as

crianças baianas”, para depois subir uma música alegre, objetivando sugerir, por alguns

segundos, um clima de comemoração. Mas logo a montagem da fita retomava o tom original,

para encerrar com uma melodia melancólica que acompanhava a imagem da indefesa criança

que aparecia ao lado do leito onde o pai se recuperava dos ferimentos. Nas telas a propaganda

estadonovista conseguia reatar a unidade familiar, uma vez afetada pela tragédia que acometia

a Nação pai e filha novamente se reencontravam. Esta última seqüência vinha reafirmar o

poder simbólico da idéia-imagem da “Família”, um micro-Estado responsável por preservar a

Moral, um dos pilares da formação do Estado Novo.

Enquanto nos bastidores do Governo Vargas a formação da FEB representava uma

tentativa de projetar internacionalmente o Brasil, nas telas o envio dos pracinhas ao teatro de

operações na Itália era para o Estado Novo o momento de comemorar e compartilhar com o

povo a satisfação de poder cumprir “a missão histórica que lhe coube diante dos

acontecimentos decisivos do presente”. A encenação do “tempo festivo” em Forças

Expedicionárias do Brasil — Rio: Desfile das forças militares que o Brasil enviará à luta

Figura 24: A unidade restabelecida. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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Figura 25: A multidão de brasileiros reúne-se para festejar e aclamar a sua força expedicionária. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 137.

contra os totalitários328 ganhava força com o artifício da imagem da multidão, as primeiras

cenas contemplavam o desfile da banda marcial que abria o espetáculo, logo, em seguida,

substituídas por planos gerais das multidões concentradas para acompanhar o desfile da tropa.

A objetiva recorria a este dispositivo na tentativa de convencer os espectadores da adesão

popular à guerra, entretanto, as imagens dos soldados, adequadamente uniformizados e

disciplinarmente organizados em um só ritmo, o da marcha militar, seriam ainda mais úteis ao

cinema estatal, pois desencadeariam na própria multidão ali reunida e na acomodada nas

poltronas da sala escura o sentimento de unidade, uma vez reconhecidas como a instância

militar da Pátria/Una.

Entretanto, vale destacar que, segundo Bonalume,329 os veteranos em depoimentos

lembram que durante os exercícios e desfiles públicos no Brasil os negros eram excluídos ou

colocados no meio da tropa para que não fossem visualizados. Neste sentido, os

propagandistas do regime recorriam, principalmente, a planos gerais dos soldados, destacando

mais a grandiosidade do desfile da tropa do que as peculiaridades raciais de sua formação, que

328 CJB, v.3, n. 56, 1944. 329 BONALUME, Op. cit., p. 130.

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Figuras 26 e 27: Os soldados e as enfermeiras atuavam nas telas e na rua como “cristais de massa”. Deviam ser percebidos na sua totalidade, como a representação da unidade. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 137.

na visão dos militares sugeria uma imagem pejorativa da FEB. Em uma das cenas os soldados

passam ao lado da câmera, o que provocava nos espectadores uma impressão de infinitude, ou

seja, mais uma vez o recurso à perspectiva no cinema possibilitava que as imagens dos

soldados se repetissem automaticamente, multiplicando-os, ou seja, sugerindo a sensação de

que realmente o brasileiro compreendera a missão colocando-se à disposição do sacrifício

pela Nação. Associada a esta imagem, a figura da enfermeira aparece para completar a

seqüência, aludindo à participação da brasileira no combate contra “as forças do mal”.

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A imponência da marcha os tornava um objeto inalterável, duradouro, que merecia ser

celebrado; por isso, enquanto a tropa desfilava, a câmera se voltava para as massas deixando

que a sonora do local preenchesse a sala escura, na tentativa de reproduzir a euforia e a

aclamação popular, como depois descrevia a voz off :

Enormes multidões celebram com as mais vibrantes demonstrações patrióticas o desfile de unidades do corpo expedicionário brasileiro na Capital da República. É este o primeiro contato direto do povo com as forças militares que o Brasil enviará contra os totalitários e resulta em festa magnífica, bem traduzindo a intensa comunhão nacional em que o país encontra sólido apoio e estimulo para todos os seus grandes cometimentos de ordem material ou espiritual.

Porém, a película não deixaria de enfatizar o momento glorioso do desfile militar, nas

telas também transitavam os jipes e os armamentos pesados de guerra que seriam utilizados

pelos soldados brasileiros, demonstrações do poderio bélico nacional, mesmo que conquistado

com financiamento norte-americano. Assim, estas imagens vinham aludir à modernização das

Forças Armadas, que naquele momento reafirmava a sua capacidade de atender aos destinos

do país na formação de seus expedicionários. O que se celebrava durante o envio do primeiro

contingente de combatentes era a imagem de um Brasil de grandes tradições e progresso,

identificava-se o brasileiro com os povos de grande prestígio no mundo, uma vez que

Preparar combatentes capazes para uma guerra como a atual é tarefa que só os povos de grande tradição e progresso, de extraordinárias energias físicas e morais conseguem realizar. O Brasil, forte e unido, afirma aqui essas virtudes e essa capacidade com a preparação exemplar de suas forças expedicionárias. Formando deste cedo na defesa dos princípios sagrados, fornecendo seus grandes cursos estratégicos, operando já nos ares e nos mares, oferece agora seus contingentes militares para a luta pela vitória da boa causa.

Assim, como não poderia ser diferente, para encerrar este cinejornal, mais uma vez se

insistia no sentido de uma adesão popular à decisão do Governo Vargas pela participação do

Brasil na guerra. Logo após as últimas cenas do desfile da FEB surgia um plano geral de uma

multidão que carregava placas, cartazes com dizeres favoráveis ao alinhamento, enquanto a

sonora dos populares, novamente, ganhava destaque no filme comprovando o que o Estado

Novo já esperava, “o desfile termina em meio ao mesmo ambiente de grande vibração

patriótica.”

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Figura 28: O povo comemora o envio das tropas brasileiras para combater as “forças do mal”. Fonte: FUNDAÇÃO Cinemateca Brasileira. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda 1938-1946. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira/Imprensa Oficial do Estado, 1982. p. 138.

Entre os assuntos exibidos pelo Cine Jornal Brasileiro a respeito do tema da

participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial destaca-se uma edição especial do DIP,

Esforço de Guerra do Brasil,330 o que demonstra a importância que o Governo Vargas dava

ao episódio. Inicialmente, a primeira seqüência era introduzida aos espectadores

acompanhada do tema musical O Guarani, de Carlos Gomes, que harmoniosamente

procurava envolvê-los em um ambiente de pura nacionalidade — eles já estavam

acostumados a ouvir o tema durante a abertura da A Hora do Brasil. Novamente o cinema de

propaganda política de Vargas recorreria à imagem do “Inimigo”, na tentativa de aludir a uma

participação “forçada” do país no cenário mundial de guerra. Assim, as primeiras cenas

tratavam de criar o clima de comoção em que se envolveu a Nação quando das notícias dos

primeiros afundamentos dos navios mercantes nacionais. Justapunha-se um close de um

aparelho de rádio e vários planos de pessoas lendo jornais, enquanto os nomes das

embarcações torpedeadas eram sobrepostos a estes quadros. Além das cenas mencionarem a

forma como os brasileiros receberam as notícias dos atentados — uma referência aos

330 CJB, v.3, n. 92, 1944.

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populares meios de comunicação social da época — o recurso fictício de um fundo preto que

envolvia as pessoas sugeria aos espectadores uma sensação de medo, de terror pelo qual a

Nação passava, uma vez que “é o nosso desconhecimento das coisas que dá origem a toda e

qualquer admiração de nossa parte e principalmente incita nossas paixões”.331 Ou seja, a

propaganda estadonovista desejava incitar nos brasileiros uma paixão nacionalista, que os

motivassem a se sacrificarem nos mais diversos campos, seja no front de batalha na Itália ou

na produção, pela Pátria.

Para fechar esta seqüência uma imagem dos diversos materiais de espionagem nazista

apreendidos pela polícia de Vargas era apresentada, seguida por planos sucessivos de botes

salva-vidas sendo jogados ao mar. Aqui, cada bote com a inscrição dos navios torpedeados

vinha construir um forte apelo emocional, as vítimas da crueldade “totalitária” estavam ali

subentendidas. Reforçando estas imagens a voz off evidenciava: “as agressões continuam,

alcançam as próprias águas cruzeiras. Os navios nacionais, navegando pacificamente ao longo

das costas do país, são torpedeados. Centenas de brasileiros perdem a vida, inclusive mulheres

e crianças. [...] O povo quer a desafronta, quer vingar seus mortos. Ergue-se para a defesa da

honra e da integridade da Pátria.”

Nota-se que O Esforço de Guerra do Brasil foi uma das mais criativas produções do

DIP, no tocante aos filmes de atualidades. Fugindo do mero registro in loco utilizou-se de

elementos ficcionais para compor um discurso cinematográfico a respeito da participação do

Brasil na Segunda Guerra Mundial, alternativa pouco usual no cinema oficial da época, como

percebido pelos documentos fílmicos aqui consultados. Nem mesmo nas representações das

expoentes celebrações de Primeiro de Maio do Estado Novo viu-se tamanho apelo ao

ficcional, restringindo-se à próprias encenações programadas pelo DIP para abrilhantarem a

festa de gratidão dos trabalhadores ao Chefe da Nação. Entre as inovações do filme destaca-se

a utilização de recursos gráficos para ilustrar na tela como se dava a defesa antiaérea do

Brasil, apresentando mapas dos continentes sul-americano e africano. Sob a ameaça das

forças do Eixo usarem a costa da África para dominarem o Atlântico, o Brasil surgia como um

grande aliado, uma vez que “contra este propósito, porém, age esmagadoramente a atitude

brasileira, preservando o novo mundo de tremendas ameaças, porque a decisão do país é de

enfrentar o agressor totalitário com todos os recursos nacionais e em qualquer terreno, como

ao mesmo tempo por suas admiráveis posições estratégicas a serviço da defesa do continente

e da vitória sobre os eixistas”. Tratava-se de reafirmar a importância para a segurança

331 BURKE, Op. cit., p. 69.

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nacional da permissão brasileira para a construção de bases navais norte-americanos no seu

litoral.

Ainda recorrendo aos artifícios gráficos, o cinejornal destacava o arsenal bélico da

marinha brasileira na tentativa de demonstrar que o país estava preparado militarmente para

qualquer ofensiva alemã. Segundo o que foi apresentado na tela, em 31 de julho de 1944, o

Brasil contava com cerca de 2460 navios comboiados. Apresentado o poder militar nacional,

cabia ao filme comprovar a capacidade das Forças Armadas na preparação dos combatentes.

Entre as imagens dos soldados em treinamento eram justapostas cenas das enfermeiras que

simulavam situações de socorros aos feridos de guerra, adversidades que elas certamente

deparariam no campo de batalha. Segundo Cytrynowicz, a imagem da enfermeira também

representou para o Governo Vargas um mecanismo mobilizador para instituir a vivência da

guerra no front interno, como também uma forma de expressar a adesão política ao Estado

Novo:

A utilização do governo Getúlio Vargas da enfermagem e das enfermeiras — como profissão enquadrada pelo Estado e como modelo de uma certa condição de mulher classe média (e, em muitos casos, classe alta) — constitui peça importante da mobilização das mulheres pelo Estado Novo e, já como enfermeiras da FEB e da FAB, representou uma persuasiva imagem de mobilização civil engendrada durante a Segunda Guerra Mundial no Brasil: a imagem da pátria-mãe, que estendia os cuidados (maternos) aos soldados no front de guerra, aos filhos da pátria.332

Assim, como noticiava na tela, para o Estado Novo “a preparação dos contingentes e

enfermeiras de guerra é outro setor que merece especial cuidado. Estas cenas nos mostram

enfermeiras entregando-se em intenso adestramento físico indispensável para as condições no

teatro de luta armada. A legião brasileira de assistência e a Cruz Vermelha brasileira armam

os grandes centros de iniciativa a que se dedica a mulher patrícia [...].”

No entanto, neste filme não seriam apenas os expedicionários e as enfermeiras que

mereciam destaque, para o DIP o “esforço de guerra” brasileiro também se concentrava no

desenvolvimento econômico do país, principalmente na produção que atendia ao

abastecimento de guerra. Assim, na tentativa de criar um front interno, o que impulsionaria o

crescimento industrial brasileiro, as imagens do interior dos pavilhões justapostas às cenas dos

trabalhadores imersos no cenário fabril são apresentadas acompanhadas de uma melodia

332 CYTRYNOWICZ, Op. cit., p. 100.

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envolvente, o que vinha sugerir a imponência e a força econômica do país, que desejava se

inserir entre as grandes potências mundiais. O Estado Novo ao convocar todos os operários

brasileiros para a “batalha da produção” excluía das telas, definitivamente, a imagem do

Brasil arcaico. Destaque para as produções nacionais da indústria bélica, da fábrica de

motores e da produção de ferro. Na primeira seqüência, enquanto a câmera percorria as

instalações de uma fábrica de projeteis, registrando o trabalho cauteloso dos operários no

manuseio das munições, uma melodia tratava de sugerir uma certa tensão aos espectadores.

Aqui, as imagens procuravam sugerir o grande poderio bélico do país para enfrentar os

inimigos alemães. Em seguida, as cenas de outros setores industriais, com planos aéreos de

suas instalações, procuravam enaltecer o significado destes para o Governo Vargas:

A fábrica nacional de motores, cuja instalação se inicia com rapidez, oferece um dos índices mais significativos da maneira como o Brasil, enfrentando as contingências de uma situação de guerra, ao mesmo tempo constrói, em caráter definitivo, para o seu desenvolvimento em geral e em particular para o progresso de suas indústrias, inclusive as relacionadas com os problemas da defesa nacional [sobe música envolvente]. O ferro, material estratégico por excelência é outra contribuição valiosa oferecida pelo Brasil para a construção da vitória aliada [...]. Volta Redonda ergue-se como índice supremo da dinâmica empreendora do Governo do Presidente Vargas. Aqui as instalações da grande usina siderúrgica plantam as bases de uma nova era para o progresso brasileiro.

Após estas seqüências, o filme retomava as imagens dos bravos soldados em

treinamento e do desfile da tropa que seria enviada para a Itália, uma referência visual ao

Forças Expedicionárias do Brasil — Rio: Desfile das forças militares... . E, mais uma vez,

surgiam as cenas dos botes salva-vidas jogados ao mar. Assim, atualizada a imagem do

“Inimigo” exigia-se do Estado Novo uma resposta, desta vez dada na forma de uma

composição poética. Enquanto o locutor oficial do Cine Jornal Brasileiro declarava

entusiasmado “já agora, atravessando o Atlântico, os soldados expedicionários seguem em

pelotão”, uma imagem destes mesmos soldados correndo surgia em fusão com a imagem do

mar, seguida de uma outra fusão, a do mar e da bandeira nacional, que era reforçada pelos

dizeres “é a presença do Brasil como parte decisiva da maior de todas as guerras, pelos mais

altos princípios que regem a existência dos povos. Tanto de Norte à Sul do país, como através

dos mares, acompanhando os combatentes patrícios a palavra do Presidente Vargas soa como

força de encorajamento, de incentivo e de orientação [...]: ‘Brasileiros, estou certo de vossa

lealdade, da vossa coragem, de vosso ânimo para enfrentar a luta...’”. As imagens aqui

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fundidas com a do mar vinham reforçar a tão explorada idéia-imagem da “Pátria/Una”, de que

se acreditava que “o povo inteiro participa do financiamento do esforço célebre do país”, pois,

segundo Canetti,

O mar tem uma voz que é bastante mutável e que se ouve sempre. Trata-se de uma voz que soa como milhares de vozes. A ela atribuem-se muitas características: paciência, dor, ira. Mas o que essa voz possui de mais impressionante é sua tenacidade. O mar nunca dorme. Pode ser ouvido continuamente, de dia, de noite, anos a fio, décadas; sabe-se que séculos atrás já o ouviam. Em seu ímpeto como em seu protesto, ele lembra a única criatura que com ele compartilha essas qualidades nas mesmas proporções: a massa.333

De fato os pracinhas brasileiros demonstrariam esta lealdade e coragem no front de

combate a serviço da Pátria, recebendo até a admiração dos próprios inimigos alemães que os

reconheciam como bravos soldados. Mas enquanto as forças aliadas avançavam terreno na

Itália, os primeiros feridos de guerra retornavam ao Brasil e recebiam a visita do Presidente

Getúlio Vargas. No cinema o assunto não ganhava um merecido destaque, tinha que disputar

a atenção dos espectadores com os mais diversos assuntos, como a visita ao país do Secretário

de Estado dos EUA, Edward Stetinius Jr., descrita no cinejornal como “acontecimento de alta

expressão”, o que lhe rendia um pouco mais de um minuto de duração.

Em Brasil e a Guerra — Rio: O Presidente da República Visita os Primeiros

Combatentes Brasileiros Feridos nos Campos de Batalha334 rapidamente a câmera registrava

as primeiras cenas dos sobreviventes hospitalizados, para só depois fixar o quadro em um

plano médio de Vargas que se aproximava de um dos combatentes para cumprimentá-lo pela

bravura e o mesmo ouvia atentamente as palavras do Presidente. Por alguns instantes, a

dedicação de Vargas ao sorrir ou ao estender a mão, enquanto percorria os leitos onde

descansavam os feridos, deixava as marcas de uma simpatia e de um carisma inconfundível

nas telas. Enquanto isto, o conhecido apelo aos closes destacava os olhares perdidos e tristes

dos soldados afligidos pelas atrocidades da guerra, entretanto, desta vez, não seria com o

intuito de incitar um sentimento de revolta, mas de compaixão. Justapõe a estas imagens as

últimas cenas de Vargas parabenizando a equipe médica pelo atendimento prestado aos

feridos no campo de batalha e entrando no carro presidencial que cortava o quadro. Mesmo

que curtíssimo, o assunto da visita do Presidente aos sobreviventes brasileiros tratava de

reafirmar a presença do Estado Novo no cotidiano do cidadão brasileiro. 333 CANETTI, Elias (1960). Massa e Poder. Trad. Sérgio Pellarola. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 80. 334 CJB, v.4, n. 09, 1945.

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Já em Por Atos de Bravura — Rio: Feridos de Guerra Condecorados no Hospital

Central do Exército, em Cerimônia Presidida pelo Chefe da Nação335 as primeiras cenas são

de Getúlio Vargas chegando ao hospital acompanhado por oficiais e membros do governo, o

que confirmava que esta visita do Presidente não seria breve, como da última vez. Ele presidia

a cerimônia de condecoração que não dispensava a rígida organização militar até mesmos aos

soldados que padeciam em seus leitos. Assim, em uma das seqüências podemos contemplar

um plano geral das dependências externas do hospital onde se encontravam vários

sobreviventes deitados em macas enfileiradas e, ao lado deles, as enfermeiras que os

acompanhavam em pé, ambos aguardando o início das solenidades. Aqui, como vimos, cada

enfermeira representava a extensão do corpo uno da Nação, ao lado de cada combatente a

“Pátria-Mãe” estendia o seu cuidado materno, materializava-se entre eles o Estado Novo.

No transcorrer da película esta cena era intercalada com planos de um oficial e Getúlio

Vargas discursando em homenagem aos médicos, seguidos de imagens de autoridades e

oficiais aplaudindo as palavras do Chefe da Nação. A solenidade prosseguia com a

condecoração dos soldados. Enquanto o Presidente Vargas condecorava alguns combatentes,

justapõe-se a esta imagem cenas de pessoas aplaudindo o gesto do líder, uma referência ao

papel da multidão neste tipo de cerimônia. Apesar de não apresentar uma imagem da multidão

nos moldes como deparamos nos estádios de futebol, quando das celebrações do Dia do

Trabalho, ainda aqui o discurso cinematográfico persistia em uma imagem legitimadora, que

reafirmasse o apoio popular ao Estado Novo, principalmente neste final de 1945 quando o

clima de “democratização” era efervescente.

Durante a cerimônia a objetiva buscava a participação dos homenageados, em um

flagrando o close de um soldado já condecorado com a medalha no peito que, no entanto, não

aparece com uma feição alegre, sorridente. Pelo contrário, este plano não contribuiria em nada

para a propaganda estadonovista. Aqui, a seriedade estampada no rosto do pracinha

denunciava a encenação para as câmeras do DIP, para a qual restava apenas recorrer a um big

close da medalha, o objeto símbolo de toda aquela comemoração. Na última seqüência Vargas

aparecia cumprimentando os civis e, mais uma vez, ao sair do Hospital Central do Exército

era aplaudido calorosamente pela multidão ali presente.

335 CJB, v.4, n. 31, 1945.

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3.2.3 – Primeiro de Maio: Vargas “doma” as multidões

A multidão anônima de homens no burburinho citadino é impelida pelo ímpeto do ritmo produtivo e pela ansiedade que todo homem carrega em seu semblante como traço de sua época. Essas ondas humanas movimentam-se apressadas como as esteiras e êmbolos das máquinas produtivas das fábricas. Como o “Angelus Novus” de Paul Klee, analisado por Benjamin, essa massa afoita das multidões é empurrada para frente pelas tempestades e ventos fortes do mundo do progresso. Nos seus olhos, a pressa, a indiferença, a solidão e o amedrontamento do progresso.336

Diante da vastidão do mar, observamos o seu movimento, as ondas que, de forma

abrupta, se chocam com o beira-mar; cautelosamente nos aproximamos para sentir a água que

corre ao nosso encontro. O ruído que ouvimos são os gritos de um passado longínquo, difícil

de ser alcançado, apenas podemos imaginá-lo carregado pela ira do mar, mas, quando vem a

calmaria, o presente desmorona na praia. Ao erguemos a mão mergulhada na água o que

estava coeso escapa entre nossos dedos. Contemplamos as gotas que, antes unidas, agora

escorregam isoladas e débeis pela nossa mão. É a união que se desmancha em um simples

gesto. O que era um todo na vastidão, agora, é um elemento sozinho que corre

desesperadamente sem destino, busca retornar à totalidade, pretende novamente tornar-se uno.

Esta metáfora do Mar, como já mencionada anteriormente, era propícia para aludir às

imagens cinematográficas das multidões nas Festas Cívicas de Primeiro de Maio do Estado

Novo. Como o mar, a multidão é contemplada no seu todo; nela, o indivíduo não tem

significado, a individualidade é sucumbida pelo o ideal do coletivo. Na multidão, todos são

iguais, tudo se passa como envolvido por um único corpo. Mas, quando este corpo forte e

sólido perde a direção e a desagregação ocorre, o que temos são pessoas desesperadamente

sós, perdidas. O corpo uno é o que as conduzia; sem ele, perde-se o sentido. Assim, nota-se

que a imagem da multidão é um signo que se repete nas películas estatais, um artifício

diegético que sobrepõe, ao mesmo tempo, no discurso cinematográfico, os ideais de “Unidade

Nacional”, “Ordem” e “Novo”, tão difundidos pela ideologia estadonovista. A forte presença

imagética das multidões nos filmes de atualidades é um índice da relação entre o líder e o

povo, uma vez que sem delas aproximar-se e com elas manter uma relação afetiva o líder não

se perpetua no poder.

336 CARVALHO, Sérgio Lage T. A saturação do olhar e a vertigem dos sentidos. Revista USP, n. 32, dez./jan./fev. 1996/1997. p. 135.

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Desta forma acredito que, como objetos, estes cinejornais assumem o caráter

legitimador do aparato propagandístico do regime, pois o cinema é, por excelência, um meio

de comunicação de massa e, portanto, é pensado e produzido para as multidões que esperam

na sala escura diante da tela branca o surgimento do espetáculo que dá vida (movimento) ao

outro e a ele que como espectador se projeta no filme a fim de participar e dividir a cena com

o registrado. Assim, por todos os ângulos a que nos propomos olhar os cinejornais de

Primeiro de Maio, contemplaremos o coletivo, pois são a projeção e incorporação das

multidões no objeto fílmico. É a própria multidão. Mas estes cinejornais ainda reúnem dois

elementos que auxiliam na construção do mito Vargas. A princípio, há a preocupação em

retratar a “Festa Cívica” que, a priori, já pertence ao imaginário popular, ou seja, já se

encontra imbuída de uma significação — a do novo e da possibilidade da felicidade —

significações de que o Estado Novo irá se apropriar. Um segundo elemento é a própria

motivação do encontro comemorativo: o Primeiro de Maio que, durante o regime, deixa de

ocupar o lugar simbólico da manifestação trabalhista para metamorfosear-se em um dia

festivo para o trabalhador, momento em que se concretiza a passagem do Dia do Trabalhador

para o Dia do Trabalho.

Buscando compreender o conceito de massa,337 Arendt afirma que o que une os

indivíduos em uma determinada formação coletiva não é um ideal ou a consciência por um

interesse comum, mas, sim, a ausência desta consciência. A multidão, no entender da autora, é

neutra, amorfa, só cabe a ela concentrar no seu seio o homem isolado, pois “a principal

característica do homem da massa não é a brutalidade nem é a rudeza, mas o seu isolamento e

a sua falta de relações sociais normais”.338 Assim, no cerne das multidões, encontramos

aquele indivíduo que não pertence a nada, nem mesmo à própria multidão, pois, nela, apenas

encontra o seu igual, o conforto de seu temor do contato com o outro; ali todas as diversidades

são anuladas, até mesmo a dos sexos, o homem isolado não se importa em ser comprimido, já

que o contato não provém do outro, mas do seu igual. Senti-lo é como sentir a si mesmo.339

O que Arendt nos propõe, talvez seja escapar das tradicionais definições que os

primeiros teóricos da Psicologia das Multidões atribuíram à multidão a partir de 1895, quando

o conceito era apenas forjado com base nas suas ações maléficas. Teóricos como Le Bon,

Tarde e Sighele viam as multidões como capazes dos piores excessos, extremamente 337 Mesmo que se utilize constantemente a palavra massa como sinônimo de multidão, preferimos aqui apenas utilizarmos o segundo como uma medida para evitar reducionismos metodológicos ao estudarmos as imagens das multidões no cinema do Estado Novo. Assim, cabe ao leitor sempre que se deparar com a palavra massa em uma determinada citação de um autor substituí-la por multidão. 338 ARENDT, Op. cit., p. 367. 339 CANETTI, Op. cit., p. 14.

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perigosas ao agirem sob a total ausência da razão e manipuladas por líderes. Mas, como

ressalta Cochart, esta visão serviu apenas como reafirmação de um estereótipo que

acompanha, ainda hoje, os movimentos populares e acaba por definir os grupos de

trabalhadores como perigosos.340 Assim, o que Arendt encontrou nas multidões era a

neutralidade das individualidades, a simples aglomeração da condição humana de isolamento,

o que talvez tenha levado Le Bon a formular a possibilidade de um caráter heróico destas em

detrimento do maléfico: “não há dúvida que existem multidões criminosas, mas há também as

multidões virtuosas, as multidões heróicas e tantas outras”.341 Para o autor o indivíduo

inserido na multidão é um ser motivado por um sentimento de poder invencível, nela é capaz

de ceder aos seus instintos que, se estivesse sozinho, teria reprimido. “O indivíduo em

multidão é um grão de areia no meio de outros grãos que o vento arrasta a seu bel-prazer.”342

Entretanto, ao revisitar a obra de Le Bon, Freud nos oferece uma outra leitura em que

a formação da multidão consistia na exaltação ou intensificação da emotividade dos

indivíduos que a integram, logo, seria indispensável que entre eles existissem algo de comum,

que experimentassem os mesmos sentimentos em uma determinada situação — como vimos,

no cinema isto é possível. Assim, o homem só é capaz de negar a sua individualidade se ao

integrar a multidão sentir-se solidário com os demais, se compartilhar com eles dos mesmos

laços afetivos. Para o autor a formação coletiva se baseia no estabelecimento de novos laços

libidinosos entre os indivíduos que a compõem, e são estes laços libidinosos que atribuem a

cada indivíduo entranhado na multidão uma impressão que se reveste de um misto de poder

ilimitado e de um perigo invencível. Segundo Freud, é a afetividade que os une, que realiza

um processo de identificação recíproca entre os membros da multidão, o que equivale dizer

que “a identificação constitui a forma mais precoce e primitiva da ligação coletiva”.343 E é

desta identificação, como vimos, que procurei tratar em todo este trabalho, uma vez que

acredito que no cinema o olhar está nas coisas,344 portanto, como tantos outros significantes a

imagem da multidão é posta para que seja reconhecida, é um objeto que autoriza aos

espectadores uma experiência perceptiva do coletivo, de compartilharem de um mesmo

sentimento, de uma mesma unidade: a Pátria.

340 COCHART, Dominique. As multidões e a Comuna: análise dos primeiros escritos sobre psicologia das multidões. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v. 10, n. 20, mar./ago. 1991. p. 119-126. 341 LE BON, Gustave (1895). Psicologia das multidões. Trad. Ivone Moura. Lisboa, Portugal: Edições Roger Delraux, 1980. p. 16-17. 342 Idem, Ibidem, p. 32. 343 FREUD, Sigmund (1921) Psicologia das massas e análise do eu. In: Obras completas de Sigmund Freud. Trad. Odilon Gallotti, Isaac Izecksohn e Moysés Gikovate. v. 9, Rio de Janeiro: Editora Delta, [19-]. p. 03-161. p. 55. 344 Ver DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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Pensando nos tipos de massas definidos por Canetti345 podemos fazer uma analogia

entre os conceitos de “massas de inversão” e “massas festivas” com as imagens das multidões

nos filmes de atualidades do Estado Novo. Concebendo as “massas de inversão” como

aquelas em que os indivíduos se reúnem para alcançar um fim que antes não conseguiam,

estando isolados, como é o caso de uma situação revolucionária em que os revoltosos tomam

o poder e invertem a situação de dominação, podemos pensar nas imagens das multidões da

era Vargas como negativas desta inversão. O que o Estado Novo faz é se apropriar das

multidões de trabalhadores que vão se formando em torno das manifestações grevistas, dando-

lhes um novo sentido. Ao invés de estarem unidos para contrapor o seu estado de dominação,

unem-se no sentido de legitimar uma outra revolução, a do golpe de 1930. A “massa inversa”

de operários que antes se reuniam para lutar por melhores direitos trabalhistas, agora, era

suplantada pela “legislação social” instituída pelo governo Vargas. A direção da massa era

outra.

O que surge durante o Estado Novo são as “massas festivas”, os trabalhadores que

comemoram as doações promovidas pelo líder clarividente. O que temos no seio desta massa

não é a descarga, ou seja, a meta a ser alcançada, mas a descontração. A festa é a própria meta

e ela já foi alcançada. O que importa para o regime nas “massas festivas” não é o motivo da

comemoração, mas a consciência de que ocasiões semelhantes irão se repetir, de que “as

festas chamam outras festas, e, graças à densidade de coisas e pessoas, a vida se

multiplica”.346 Segundo Bakhtin, as festas populares representam o nascimento de uma nova

ordem, pois “têm os olhos voltados para o futuro e apresentam a sua vitória sobre o passado”,

festeja-se o mito político da “Idade do Ouro”, onde “o nascimento de algo novo, maior e

melhor é tão indispensável quanto a morte do velho”.347 Assim, as imagens das multidões

festivas registradas nas películas multiplicam o próprio Estado Novo, que encontra nas

“Festas Cívicas” um elemento legitimador.348 Porém, se as festas populares antes eram o

tempo e o espaço que renovava o cotidiano, onde os indivíduos periodicamente recarregavam

suas energias novamente no sentido de pertencimento à comunidade,349 durante o Estado

Novo este sentido é ressignificado, a festa é transformada em espetáculo, ou seja, não é algo

345 CANETTI, Op. cit., p. 57-62. 346 Idem, Ibidem, p. 61-62. 347 BAKHTIN, Mikhail. As formas e imagens da festa popular na obra de Rabelais. In: A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, Annablume, 2002.. p. 223. 348 Para uma análise das “Festas Cívicas” promovidas pelo Estado Novo consultar SCHEMES, Cláudia. Festas cívicas e esportivas no populismo: um estudo comparativo dos governos Vargas (1937-1945) e Perón (1946-1955). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. 349 MARTÍN-BARBERO (2001), Op. cit., p. 142-143.

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que deve ser vivido, mas visto e admirado. O sentimento de pertencer já não é mais oferecido

como vivência, mas como encenações que devem ser reconhecidas como legítimas, por isso a

ênfase nas imagens da multidão. A importância da imagem da multidão para os regimes

autoritários pode ser traduzida pelas palavras de Goebbels, em seu pronunciamento em um

Congresso celebrado em Ruhr, na Alemanha, em 1927, antes do Partido Nacional-Socialista

assumir o poder. No entender de Goebbels, “quem conseguir conquistar a rua, um dia

conquistará o Estado, pois todas as formas do poder político e toda a conquista ditatorial do

Estado mergulham as suas raízes na rua. As manifestações públicas nunca serão demais,

porque esta é, de longe, a maneira mais expressiva de demonstrarmos a nossa vontade de

governar.”350

Mas o Estado Novo não se apropriou apenas das “Festas Cívicas”, outras sistemáticas

pautaram a dessignificação e a ressignificação dos símbolos operários, entre eles o Primeiro

de Maio. Segundo Paranhos, “o 1º de maio passava por um processo de descaracterização

como dia de luta. [...] Vargas, identificado como ‘o trabalhador nº 1’ do país, roubava a cena e

galvanizava as atenções gerais, transformando-se no principal ator político de um evento que

deveria ter nos trabalhadores seu centro simbólico”.351 O surgimento das comemorações do

Primeiro de Maio tem relações diretas com a mobilização de operários que ocorreu nos

Estados Unidos nesta data no ano de 1886. Nesta manifestação era reivindicada a redução da

jornada de dez para oito horas de trabalho. Após um incidente ocorrido em Chicago, dois dias

depois do início das greves e em plena intensificação, houve o confronto entre manifestantes e

policiais que resultou na morte de dois trabalhadores. Então, segundo Perrot,352 foi em julho

de 1889, no congresso organizado pela Federação Nacional de Sindicatos de Paris, que nasceu

oficialmente o Primeiro de Maio e se decidiu realizar, no próximo ano, um protesto

internacional em favor da jornada máxima de oito horas. Diante da boa repercussão do

protesto de 1889, a comemoração do Primeiro de Maio tornava-se permanente na resolução

do congresso da Segunda Internacional em 1891.

Mas no Brasil demorariam a surgir os primeiros reflexos desta mobilização. Segundo

Arêas,353 no Rio de Janeiro de 1890 não houve nenhum registro de que o movimento operário

tivesse realizado algum evento em prol da jornada. Nos anos seguintes esta indiferença

perpetuaria e somente na primeira década do século XX, com uma constante adesão às causas 350 MANVELL & FRAENKEL, Op. cit.,. p. 82. 351 PARANHOS (1999), Op. cit., p. 97-98. 352 PERROT, Michelle. O primeiro Primeiro de Maio na França (1890): nascimento de um rito operário. In: Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 129-130. 353 ARÊAS, Luciana Barbosa. As comemorações do Primeiro de Maio no Rio de Janeiro (1890-1930). Revista História Social, Campinas, São Paulo, Unicamp, n.4/5, dez./jan. 1997/1998. p. 12.

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operárias, é que a data iria adquirir um significado cada vez maior para os trabalhadores. No

entanto, é neste momento em que se percebe as primeiras iniciativas do Estado em compor a

sua própria “festa do trabalho”. Entre 1911 e 1914, durante o governo do Marechal Hermes da

Fonseca, ocorreram os primeiros atos oficiais em homenagem à data, tentativas progressivas

de transformar o Primeiro de Maio em um feriado nacional, que somente se concretizaria em

26 de setembro de 1924, com o decreto do Presidente Artur Bernardes. Com isso, objetivava-

se anular qualquer iniciativa de paralisação dos operários, que não mais se reuniam para

protestar contra o seu patrão, mas para festejar a folga concedida pelo governo. Mas, como

apontado pela autora, mesmo que uma significativa parcela dos trabalhadores tenha adotada o

Primeiro de Maio como a “festa do trabalho”, a data ainda persistiria com seu caráter de

protesto.354 Tanto que durante a década de 20 comunistas e anarquistas divergiam a respeito

do sentido que dariam ao Primeiro de Maio, chegando a ocorrer comícios separados. Para

Perrot, a diferença estava na concepção e duração atribuídas à data, que “para os guesdistas

[comunistas], trata-se de uma manifestação limitada a um dia. Essa noção disciplinada da

ação militante, na verdade totalmente moderna, choca-se com a visão anarquista da

Revolução como um processo dinâmico de greve geral. Para eles, o Primeiro de Maio é um

começo, um ponto de partida possível para uma ação cuja importância e duração dependerão

da vitalidade das massas em movimento.”355

Entretanto, na década de 30 a data seria reelaborada, mais especificamente a partir da

instituição do Estado Novo que a incorporou no conjunto das comemorações oficiais do

regime. Assim, independentemente das diversas interpretações dadas ao Primeiro de Maio,

seja um dia de lembrança e de luto pelos militantes mortos em Chicago em 1886, ou um dia

para celebrar a conquista da jornada de oito horas de trabalho, ou ainda o dia do despertar da

consciência de classe, o que de fato predominou no imaginário do trabalhador foi o sentido de

“festa do trabalho”. No Estado Novo não havia mais espaço para protestos, greves e

conquistas; era a hora de festejar o novo regime e as doações feitas aos trabalhadores pelo

líder. O Governo Vargas assumia para si a responsabilidade por este novo sentido conferido à

data, como comprova a propaganda publicada no O Estado de São Paulo em homenagem às

comemorações de 1940:

[...] o 1º de maio tem em todo o mundo um sentido de reivindicações conquistadas com luta e sangue. No Brasil, entretanto, o 1º de maio é

354 ARÊAS, Op. cit., p. 17. 355 PERROT, Op. cit., p. 159.

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uma grande oportunidade, um grande dia de festa, de harmonia e de colaboração das classes trabalhadoras com o governo e com as outras classes [...] a sua festa de hoje tem outro sentido, um sentido de harmonia, de problemas resolvidos, de compreensão mútua [...] o 1º de maio no Brasil deixou, portanto, de ser uma data exclusivamente proletária, para ser uma comemoração de caráter nacional, onde o proletário, antes que o governo, se sente feliz em demonstrar que não há mais no Brasil nenhum clima para a luta de classes.356

O Primeiro de Maio ressignificado por Vargas encontrava nas “Festas Cívicas” mais

um elemento legitimador do Estado Novo. As multidões de trabalhadores reunidas nas

arquibancadas ou em desfile pelas raias do São Januário eram as imagens ideais para

cristalizar e incorporar o “ideal totalitário” da Unidade Nacional, pois “a festa provoca

emoção, trazendo consigo um sentimento de exaltação, de engrandecimento que leva à

comunhão de todos. Como espetáculo cívico, ela torna seus participantes ‘iguais’, criando em

cada pessoa a figura do cidadão membro da comunidade.”357 Mas, vale ressaltar que não se

trata aqui de uma operação inovadora da propaganda política do Estado Novo, traços deste

mesmo mecanismo mobilizador também podem ser encontrados na Alemanha do Terceiro

Reich, como ressaltam os biógrafos de Goebbels:

Uma das decisões mais sagazes tomadas por Goebbels nessa altura, foi adotar, no dia 1º de Maio, o tradicional dia de festa dos comunistas como dia de Festa Nacional dos Nazis. Os comunistas, diante da supressão, podiam ter tentado explorá-la, mas Goebbels estava decidido a levar a festa tão longe quanto possível. Fez desta celebração coletiva o ponto culminante do seu Diário publicado. O festival organizado em grande escala, foi planejado em 26 de abril, ensaiado em 28, e montado com a grandiosidade que ele tão bem sabia dar às manifestações. Preparou-se tudo para que fosse uma manifestação dos operários! Foram enviadas delegações a todos os pontos do Reich e, é claro, o dia foi declarado Feriado Nacional por uma lei especial do Reichstag, redigida pessoalmente por Goebbels, em 24 de março.358

No Brasil de 1940, os críticos da ditadura estadonovista não cansavam de denunciar as

manipulações que os Primeiros de Maio sofriam. Segundo Afonso Henriques, era usual um

funcionário do Ministério do Trabalho convocar os presidentes dos sindicatos para com eles

organizar uma lista, em que cada um se comprometia a levar para a parada trabalhista um

certo número de operários. Mas não conseguindo arrastar o número prometido o líder sindical

356 OESP, 01.05.1940. apud SCHEMES, Op. cit., p. 44. 357 SCHEMES, Op. cit., p. 60. 358 MANVELL & FRAENKEL, Op. cit., p. 121-122.

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era advertido e ameaçado com represálias, o que o levava a praticar com os trabalhadores

métodos pouco ortodoxos como a apreensão de carteiras de trabalho antes do evento ou as

facilidades de transporte ao local da manifestação.

O grosso das manifestações de fidelidade ao Estado Novo repousava, porém, nos estivadores e nos operários das fábricas de tecidos de Bangu. Os estivadores porque, como é sabido, estavam sujeitos a um estrito controle policial e ministerial. As carteiras profissionais eram apreendidas até a terminação da parada e só podiam trabalhar no dia seguinte se tivessem passado pelo visto do comparecimento. Quanto os operários de Bangu, todos conheciam o íntimo grau de relações existentes entre seus patrões e o Estado Novo. Havia livro de ponto e punição para os faltosos. Um verdadeiro comboio de caminhões se encarregava de trazê-los e levá-los depois da “parada trabalhista espontânea”.359

Então, o que se percebe é que, por mais manipuladas que tenham sido as mobilizações

populares pelo Estado Novo, a apropriação do rito operário foi gradativamente evoluindo

durante os anos do regime a ponto de termos, justamente no seu ocaso, em 1945, uma

significativa participação dos trabalhadores nas festividades de Primeiro de Maio. A forma

como Vargas conduziu este processo de mobilização pode ser explicada pela análise de seus

discursos proferidos nas solenidades de Primeiro de Maio. Segundo Lima,360 o fio condutor

era dado pela “legislação social” e a “organização dos trabalhadores”. No primeiro discurso

em maio de 1938 o líder proclamava ao povo que festejasse o trabalho, que comemorasse a

dádiva da Lei do Salário Mínimo. O tom de exaltação dos trabalhadores iria se repetir nos

discursos dos próximos anos.

Neste primeiro encontro com os trabalhadores, Vargas se abstém de falar do povo ou dos povos, para falar somente dos operários, em conexão implícita com o discurso anarquista [grifo da autora]; retoma assim a herança discursiva no interior do movimento operário [a apropriação], a partir de suas origens anarquistas, para lhes dirigir a palavra. Ele vai então construir discursivamente o povo brasileiro, apoiando-se na questão operária para se distanciar dela progressivamente, contornando a queda do Estado Novo.361

359 HENRIQUES, Afonso. Ascensão e queda de Getúlio Vargas — O Estado Novo. v. 2. Rio de Janeiro: Record, [19-]. p. 197. Outras críticas a respeito desta “gratidão dirigida” durante o Estado Novo podem ser encontradas em GUSMÃO, Cupertino de. Do bojo do Estado Novo: memórias de um socialista na república de trinta e sete. Rio de Janeiro: Gráfica Santo Antônio, 1945. p. 106-110. 360 LIMA, Maria Emília A. T. A construção discursiva do povo brasileiro: os discursos de 1º de Maio de Getúlio Vargas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990. 116. 361 Idem, Ibidem, p. 119.

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Em 1942, o discurso do Chefe da Nação dá os primeiros passos a caminho do “povo

brasileiro”. Já no clima de integrar o bloco dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, o tom

discursivo de Vargas evidenciava uma espécie de instabilidade do regime e se, no início do

Estado Novo, a palavra de ordem era FESTEJAR, na nova conjuntura o povo era convocado a

PRODUZIR. Agora, os “trabalhadores do Brasil” são os soldados da produção, aqueles que

conduziriam o país para o desenvolvimento industrial e a modernidade. Enquanto os

pracinhas, que integravam a FEB, eram enviados à Itália para combater as tropas do Eixo, o

“povo brasileiro” lutava contra o tempo nas linhas de montagem das indústrias do Brasil.

Identificadas as peculiaridades que envolvem as multidões e a sua participação na

encenação do Primeiro de Maio, podemos nos reportar à relação líder e multidão como forma

de compreender o universo mítico, ou até mesmo místico, que se construiu em torno da figura

de um único homem. Como bem ressaltou Arendt, um regime totalitário e um líder forjado no

cerne do mesmo dependem exclusivamente da confiança das massas. O que ocorre é uma

interdependência entre líder e multidão em que a permanência do primeiro no poder é

proporcional às concessões feitas à segunda, como evidencia a autora ao afirmar que

[...] essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige; não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do ‘desejo’ das massas que ele incorpora, como as massas dependem dele. Sem ele, elas não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo; sem as massas, o líder seria uma nulidade.362

Como vimos, a clarividência de Getúlio Vargas não é o dom de um único governante,

mas de todos aqueles que decidem governar com as multidões. Devo lembrar que o tema da

clarividência do Chefe, de que tanto tratou a propaganda estadonovista, nada mais foi que um

dos elementos mitificadores dos mitos da “doação” e de Vargas. Para Silva, a devoção a

Vargas, conduzida por uma política sacralizada, teria explicação no fato de que o líder “andou

com a multidão”, ou melhor, ele encarnava a figura do “dominador das multidões” ao ter a

sabedoria de que “um povo deve ter as características das multidões homogêneas. Criando a

unidade nacional, com uma só bandeira e um só hino, o Brasil não pode mais estar dividido,

perdendo, portanto, certas feições de regionalismos que tanto prejudicavam a harmonia do

362 ARENDT, Op. cit., p. 375.

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pensamento coletivo, o qual, como vimos, deve ser um só e indivisível”.363 Portanto, como

apontou Souza, não teria sido por acaso a forma feliz como foi utilizada a imagem da bandeira

nacional na abertura do Cine Jornal Brasileiro. Ao apresentar o plano da bandeira como o

plano da unidade de todas as forças políticas, sociais e econômicas, afirmava-se a passagem

da fragmentação para o uno, onde “agricultura, siderurgia, matas e cachoeiras, o Palácio do

Catete e as forças de terra, mar e ar desenrolam-se sob os olhos do espectador, alternando-se

cada uma destas partes dentro do todo da bandeira nacional.”364

Assim, tanto a imagem da bandeira quanto a da multidão organizada durante as

festividades são construções sígnicas que, apoiadas no caráter coletivo deste novo estímulo

perceptivo, procuraram multiplicar o sentimento de unidade entre os trabalhadores brasileiros.

Segundo Benjamin, “deve-se observar aqui, especialmente se pensarmos nas atualidades

cinematográficas, cuja significação propagandística não pode ser superestimada, que a

reprodução em massa corresponde de perto à reprodução das massas [grifo do autor]”.365

Logo, o que a câmera captava nos grandes desfiles e comícios, nos espetáculos esportivos era

uma multidão que via o seu próprio rosto. Trata-se, aqui, do próprio dispositivo do cinema

que permite que as “massas de espectadores” se identifiquem com esta imagem, reconheçam-

se presentes nelas a ponto destas não serem mais percebidas como representações, simulacros,

mas imagens autênticas de um registro in loco.

Se existe um elemento comum entre os cinejornais de Primeiro de Maio, é a imagem

das multidões. Nos filmes, é ela que marca o início e o término das comemorações do

trabalho, é também a que estabelece os dois tempos narrativos predominantes neste tipo de

película: antes do Estádio e no Estádio. Concentradas na arena as multidões de trabalhadores

celebravam o Dia do Trabalho, logo, ao invés de individualizar o trabalhador, aquele que

deveria ser o centro das atenções, o DIP preferiu os planos gerais das multidões como forma

de atribuir um sentido de grandiosidade para a parada trabalhista do Estado Novo. Das poucas

vezes que a montagem procurou valorizar as reações individuais elas se tornaram desastrosas

para a propaganda do Governo Vargas. Em A Festa do Trabalhador na Capital do País366, há

um exemplo que, talvez, pudesse ser interpretado como uma falta de preparo dos

propagandistas do DIP. Em uma seqüência em que a objetiva era direcionada à platéia nas

arquibancadas, buscando gestos de comoção individual, o que vemos, no entanto, são cenas

363 SILVA, Gastão Pereira da. Getúlio Vargas e a psicanálise das multidões. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, [19-]. p. 75. 364 SOUZA (1990), Op. cit., p. 311. 365 BENJAMIN (1985), Op. cit., p. 194. 366 CJB, v. 2, n. 123, 1942.

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que denunciam a insatisfação popular no evento, as pessoas captadas pela objetiva da câmera

se levantam rapidamente e começam a aplaudir o desfile dos operários e jovens escolares que

homenageavam o Chefe da Nação. É como se a objetiva fosse o imperativo da devoção. O

que fica na tela é a impressão de imaturidade do cinema de propaganda do DIP que não

aprendeu a lidar com a falta de intimidade das multidões com o cinema, como denunciava

Pinheiro Lemos na Revista Cultura Política:

Nada comove tanto ou entristece mais quem deseja e sonha com o cinema brasileiro do que ver na tela uma multidão surpreendida pela câmera. Este levanta o braço e agita a mão, aquele faz caretas, um outro assume uma pose melancólica de galã romântica [...]. Tudo isso prova a nossa falta de intimidade com o cinema e dá testemunho de um estado de espírito que, pertencendo à multidão, deve também ser encontrado, em menor proporção no âmbito daqueles mais de perto ligados ao cinema brasileiro, produtores ou artistas [...].Ainda não nos habituamos à câmera. Ela continua a nos infundir aquele medo misturado de respeitosa admiração que sempre acompanha, para toda a gente, as novidades das técnicas [...]. De fato, o gesto do homem do povo que quer aparecer no jornal cinematográfico é parente próximo da atitude desengonçada do artista num filme de longa metragem. Ambos temem e respeitam a câmera, consideram o cinema um mundo diferente, que deve refletir uma realidade bem diversa da comum e quotidiana [sic].367

Em outro momento, para representar a relação líder e multidão, o Cine Jornal

Brasileiro insistia em um artifício de montagem em que planos de Vargas discursando são

justapostos a planos das multidões, mas que, na visão de Souza, “o resultado que se tira dele é

pobre. A massa popular permanece estática, à espera do benefício sabido que será

concedido”.368 Assim ocorre em 1º de Maio — Rio: Cem Mil Operários Aclamam o

Presidente Getúlio Vargas na Esplanada do Castelo369, as primeiras cenas são de Vargas

saudando, com seu característico gesto, as multidões de operários que, em seguida, aparecem

retribuindo com aplausos a aparição do líder, mas, durante o seu discurso, as imagens do

Chefe em ação são postas em contraste com as da multidão e, no plano final, fica a figura de

Vargas que encerra o filme, sem dar aos participantes populares o direito a uma nova aparição.

O mínimo que se esperava da montagem era um último plano que fechasse a diegese com uma

367 LEMOS, Pinheiro. Cinema XIII. Revista Cultura Política, ano 2, n. 16, jun. 1942. p. 378. In: CARDOSO, LÚCIO. Cinema: coletânea de textos da revista Cultura Política. Coleta de textos por José Inácio de Melo e Souza. Rio de Janeiro, 1941-44. Incl. Textos sobre cinema de Pinheiro Lemos e relatórios publicados sobre as atividades do DNP e DIP. 368 SOUZA (1990), Op. cit., p. 384. 369 CJB, v.2, n.195, 1943.

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multidão que eufórica saudasse o líder pela promulgação da Consolidação das Leis do

Trabalho.

Mas entre as significações que encontramos nos cinejornais nem todas revelam o que

não deveria ser transparente nos aspectos doutrinários da propaganda estadonovista, como é o

caso da utilização da imagem das crianças, uma prática constante nos filmes de propaganda.

Se as crianças aparecem sendo maltratas barbaramente nas películas que tratam em representar

o “Inimigo”, nos cinejornais que retratam as comemorações de Primeiro de Maio elas

aparecem como elemento condutor à adesão das multidões ao regime. Entre os vários

instrumentos doutrinários e legitimadores da ditadura encontrava-se o ensino oficializado do

Canto Coral. Segundo Schwartzman, a música teria, ao lado do rádio e do cinema, um papel

central no esforço educativo e de mobilização das multidões, além de contar com a presença

ativa do maestro Heitor Villa-Lobos, que tinha a tarefa de desenvolver a educação musical

artística através do canto coral popular. Como representante do governo brasileiro em um

Congresso de Educação Musical realizado em Praga, em 1936, Villa-Lobos defendia esta

apropriação do canto orfeônico pelo Estado Novo:

Nenhuma arte exerce sobre as massas uma influência tão grande quanto a música. Ela é capaz de tocar os espíritos menos desenvolvidos, até mesmo os animais. Ao mesmo tempo, nenhuma arte leva às massas mais substância. Tantas belas composições corais, profanas ou litúrgicas, têm somente esta origem — o povo”. [...] O canto orfeônico, praticado pelas crianças e por elas propagado até os lares, nos dará gerações renovadas por uma bela disciplina da vida social, em benefício do país, cantando e trabalhando, e, ao cantar, devotando-se à pátria!370

Neste sentido, para Iuskow,371 a massa coral vinha representar o triunfo do Governo

Vargas em conseguir formar uma Nação “harmoniosamente composta, num uníssono de tons e

idéias”, onde a figura do regente, como a do Chefe da Nação, era percebida como provedora

da disciplina e da sensibilidade musical das crianças para a música erudita, que no entender

dos idealizadores do ensino do canto era o caminho para moralizar os indivíduos. Era no canto

orfeônico que as crianças compartilhavam da imagem da Unidade Nacional, era uma multidão

de pequenos cidadãos do Estado Novo que cantava em homenagem ao líder e,

conseqüentemente, desarmava o consciente de uma outra multidão: as de trabalhadores-

familiares que acompanhavam atentamente o espetáculo musical. “Além de buscar formar

370 VILLA-LOBOS, Heitor. apud. SCHWARTZMAN (1984), Op. cit., p. 90. 371 IUSKOW, Cristina. Multidões em coro. Esboços. UFSC, Florianópolis, Santa Catarina, n. 8, v. 8, 2000. p. 66.

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estas crianças para um futuro de serviço à pátria, buscava-se atingir também o público que

observava as apresentações nas datas cívicas nacionais.”372

Nos filmes Dia do Trabalho: As Grandes Manifestações de 1º de Maio na Capital da

República373 e 1º de Maio: Rio — Presididas pelo Chefe do Governo Imponentes celebrações

ao Dia do Trabalho374 encontramos exemplos deste artifício propagandístico. No primeiro, as

cenas iniciais são de Vargas descendo de um avião e sendo cumprimentado por oficiais e

membros do governo e seguindo para um automóvel de onde parte para uma parada oficial

pelas ruas do Rio de Janeiro. Nas cenas seguintes a comitiva do líder é acompanhada por

outros veículos e por onde passa é aplaudida pelo povo. É no meio da multidão de pessoas que

aclamam a figura de Vargas que a objetiva do DIP registra em plano médio a imagem de

crianças que contemplam e aplaudem entusiasticamente a passagem da comitiva presidencial.

Já no filme de 1945, o último produzido para as festividades de maio, a apropriação das

imagens das crianças confirma a singela influência das técnicas de propaganda do cinema

russo. São contrastadas cenas dos filhos de operários que desfilam de forma ordenada nas raias

do Estádio São Januário com imagens em plano geral das multidões, que, das arquibancadas,

chacoalham pequenas bandeiras nacionais e aplaudem o espetáculo de patriotismo das

crianças (ver anexo A).

Para evidenciar a participação declarada das multidões de trabalhadores nas

comemorações de Primeiro de Maio, os cinejornais contaram com várias atividades em que o

próprio povo era a atração. Deve-se ressaltar que toda a festividade era preparada

exclusivamente pelos propagandistas do DIP. Em desfile marcado pelo modelo militar, passo

a passo ordenados, operários e jovens colegiais caminhavam para saudar o líder, como

podemos notar em A Festa do Trabalhador na Capital do País, em que jovens moças

desfilam carregando individualmente a bandeira nacional seguidas, ao lado, por trabalhadores

vestidos de macacão que levam, apoiado nos braços, um enorme retrato de Vargas. É o

onipresente que se materializa entre o povo. Outro momento do filme prezava por destacar o

projeto nacional desenvolvimentista do Estado Novo nas imagens dos trabalhadores da

Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda (CSN) que desfilam imponentes e

militarmente, impostando uma faixa com os seguintes dizeres: “Salve Getúlio Vargas, criador

da grande siderúrgica”. Todos estes planos são entrecortados por imagens das multidões que

das arquibancadas acompanham os novos ritos operários.

372 IUSKOW, Op. cit., p. 69. 373 CJB, v. 2, n. 25, 1941. 374 CJB, v. 4, n. 22, 1945.

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Figuras 29 e 30: No Estádio São Januário operários e jovens colegiais “marchavam” em homenagem ao Chefe da Nação, Getúlio Vargas. Mais uma vez o Estado Novo recorria aos “cristais de massa”, reforçando a idéia-imagem da Pátria-Una. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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Estas imagens e as das orquestras e espetáculos de dança colaboravam para criar o

ambiente festivo e lúdico das comemorações de Primeiro de Maio. Reunia-se em torno das

multidões de músicos e dançarinos, novamente, a representação da Nação una, que ali se

encontrava em perfeita harmonia e alegria. Os espetáculos de dança, juntamente com algumas

exibições de atividades esportivas, vinham demonstrar o valor que a propaganda

estadonovista dava ao corpo saudável e a multidão de operários devia seguir o exemplo e

manter-se em perfeitas condições de saúde, pois era dela que o Estado necessitava para

incentivar a sua produção.

Mas é em 1º de Maio — A Festa do Trabalho no Estádio do Pacaembu375 que

encontramos um dos momentos mais idílicos de todas as festividades de Primeiro de Maio.

Em pleno apogeu da narrativa cinematográfica, as justaposições de imagens que reuniam

planos gerais e close-ups de uma orquestra e bailarinos, seguidas das imagens das multidões

que aplaudem o espetáculo que se realiza diante de seus olhos, expressavam o tom festivo

preconizado por Vargas ao evento que antes simbolizava luto. Assim que Vargas chega ao

palanque oficial, de onde assistiria à festividade, tem início a seqüência que marcava todo o

375 CJB, v.3, n.61, 1944, assunto único, 7’19” aprox.

Figura 31: A imagem da multidão de trabalhadores urbanos foi um dos principais elementos diegéticos utilizados para sugerir a imagem da Unidade Nacional. Fonte: Reprodução/ Laboratório de Fotografia da Fundação Cinemateca Brasileira. Arquivo do autor.

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filme: do campo do Estádio parte em vôo disparado um bando (ou uma multidão) de pombas

brancas que são acompanhadas em um plano seqüência pela objetiva do DIP e pelos olhares

atentos das multidões, que em outro plano, a seguir, acena com lenços brancos em

homenagem ao líder. Ainda, na apoteose desta seqüência são exibidas, em planos gerais,

cenas do público que, das arquibancas, ergue placas que irão formar a imagem da bandeira

nacional. O símbolo uno da Pátria agora se materializava como aquele que cobria as

multidões; a “Pátria-Mãe” dá proteção àqueles que se encontravam desorientados no

momento da crise, o Estado Novo surgia nas telas como a única solução para o Brasil da

época.

Este cinejornal, uma edição especial do DIP, também vale por uma outra significação

atribuída à adesão dos trabalhadores a esta festividade oficial do Trabalho. Com o intuito de

narrar cinematograficamente o novo cenário onde as festas serão realizadas, o cinejornal se

preocupava em registrar os antecedentes e preparativos para a participação popular.

Inicialmente o que temos são imagens de Vargas que, abandonando a capital da República,

chega de avião a São Paulo (cenas que se repetem em outros filmes). O pouso calmo no solo

paulista e o desembarque da aeronave precedida por cumprimentos de militares, autoridades

locais e aplausos do povo, podem sugerir aqui uma leitura religiosa da figura do líder, assim

como Furhammar e Isaksson demonstraram ao pensar as imagens de Hitler em O Triunfo da

Vontade: “e quando Adolf Hitler, no começo do Triunfo da Vontade, sai de seu avião, ele é o

deus descendo dos céus para seu povo”.376 Encerrando as imagens da devoção ao líder, que

desce santificado dos céus para anunciar as novas “bênçãos” aos trabalhadores, o que temos é

uma seqüência de imagens da comitiva de Vargas que segue pelas ruas de São Paulo e é

aplaudida pelas multidões que contentes aguardavam a chegada do Chefe da Nação. Assim

que Vargas chega ao Pacaembu, vários planos se incumbem de reafirmar a confiança que os

operários depositavam no líder; as imagens do povo que formava duas filas em direção à

entrada do Estádio são reunidas para demonstrar o poder mobilizador que as comemorações de

Primeiro de Maio possuíam — mesmo que se saiba que muitos operários participavam deste

evento cívico mediante a apreensão de suas carteiras de trabalho. Entre cenas desta multidão

que se aproximava do Estádio, destacava-se, neste momento, um plano seqüência realizado em

travelling (o mesmo que o olhar sendo deslocado) em que a objetiva acompanhava lentamente

a fila de trabalhadores que se formava diante do Pacaembu. Assim, por meio da perspectiva, a

imagem que os espectadores tinham diante deles adquire uma profundidade, a ponto de

376 FURHAMMAR & ISAKSSON, Op. cit., p. 214.

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atribuir à multidão que se prepara para as comemorações uma idéia de infinitude. Infinitude

esta que é fonte do sublime, assim como a grandiosidade; aqui a percepção do infinito propicia

que uma mesma imagem se reproduza automaticamente no imaginário da multidão de

espectadores, permanecendo durante uma longa sucessão. Essa construção fílmica

multiplicava a imagem dos trabalhadores. Já para o plano de passagem para dentro das

festividades, os propagandistas optavam pela imagem do Estádio em que, na fachada,

podemos notar uma faixa de onde podia se ler “Glória ao criador do Direito Social Brasileiro”.

Outro momento nos cinejornais que representa esta adesão popular ao regime

estadonovista é encontrado em 1º de Maio: Rio — Presididas pelo Chefe do Governo

Imponentes celebrações ao Dia do Trabalho, as imagens com que nos deparamos aqui são a

síntese do que foi o caminho percorrido pela construção mítica de Vargas pela propaganda do

Estado Novo (ver anexo A). Como mencionado por Souza, o reconhecimento da liderança de

Getúlio Vargas e de sua política é construído de forma lenta, e, portanto, somente no Primeiro

de Maio do último ano do regime é que se traduz nas telas do Brasil as imagens de uma

magnífica manifestação popular. Segundo o autor, a ditadura estadonovista, ao retirar do

trabalhador o direito à comemoração livre e combativa da data, elaborava uma série de

experimentos no sentido de construir um espetáculo comemorativo operário, cujo modelo

acabado só apareceria em 1945. Assim, o que as imagens das multidões nos cinejornais nos

demonstram é a passagem triunfal de um sentimento de total apatia para o de entusiasmo

participante dos operários. 377

A primeira seqüência do filme reunia imagens que antecediam às comemorações, em

que o Presidente Vargas, acompanhado de ministros, altas autoridades e representantes

trabalhistas, inaugurava a galeria “Presidente Vargas”, no prédio do Ministério do Trabalho,

que segundo o locutor do cinejornal fora “assim denominada em homenagem à sua obra em

prol da emancipação econômica do país”. Em outro momento, em que o Chefe da Nação

também inaugurava o novo restaurante do ministério, cenas flagram a espontaneidade de

Getúlio Vargas durante um almoço. Interrompida a primeira seqüência, surge uma cartela que

anunciava ao espectador a atração (distração) principal: “A Grande Concentração Trabalhista

no Estádio São Januário”. A voz off tratava de dar a dimensão da festividade:

No Estádio do Vasco da Gama a concentração trabalhista em comemoração à data assume uma imponência sem precedentes. É uma das maiores demonstrações públicas já realizadas no país. Massa

377 SOUZA (1990), Op. cit., p. 379.

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incalculável de trabalhadores enche rapidamente a imensa praça de esportes. As representações de fábricas e serviços continuam a chegar e a vibração sempre crescendo asseguram logo uma expressão de extraordinário entusiasmo à magnífica festa.

Acompanhavam estes dizeres as primeiras cenas da festa em que eram apresentadas

imagens das multidões de operários que lotavam as arquibancadas e dos que desfilavam nas

raias olímpicas chacoalhando aos quatro ventos miniaturas da bandeira nacional, o mesmo

símbolo que, ampliado, estaria presente em um plano que se repetiria em dois momentos

diferentes. Primeiramente, a imagem da bandeira nacional sacudida pelo vento sobre um

plano com imagens das multidões que também portam a pequena bandeirinha; novamente a

idéia da “Pátria-Mãe” era colocada em uma simples justaposição. No segundo momento, a

imagem da bandeira seria utilizada para encerrar o cinejornal, uma técnica de montagem

muito comum nos cinejornais do DIP, que pretendia reunir em um mesmo plano o símbolo

máximo do país e o vento que o movimenta, um “símbolo de massa”, como definiu Canetti ao

evidenciar que “as bandeiras são o vento [as multidões] tornado visível. [...] É em seu

movimento que elas realmente chamam a atenção. Qual lograssem repartir o vento, os povos

se servem das bandeiras a fim de chamar seu o ar que paira sobre suas cabeças [grifo no

original].”378

Mas o que cataliza a atenção neste filme é o instante em que o Presidente Vargas

chega ao Estádio e dando início à grande apoteose do cinema de propaganda varguista que

tinha como tema as comemorações do Primeiro de Maio. Esta seqüência era composta,

primeiramente, por planos gerais em que multidões de trabalhadores em pé nas arquibancadas

dão provas de gratidão ao Chefe da Nação. A partir destas imagens se reafirmava o “ideal

totalitário” da propaganda estadonovista:

A chegada do Presidente Getúlio Vargas entre estrondosas manifestações [Back-ground/BG da multidão de trabalhadores em ovação nas arquibancadas] marcam um dos instantes máximos da grande concentração trabalhista [sobe BG e música]. O Chefe do Governo dirige a palavra aos trabalhadores do Brasil. Em seguida, fim da cerimônia [BG, que perdura por um longo tempo], o Presidente da República retira-se [sobe BG].

O que também surpreende neste momento é o elemento diegético de que os

propagandistas se apropriaram: ao término da locução o que ouvimos é a participação popular

378 CANETTI, Op. cit., p. 86.

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registrada na sonora do filme, a ovação da multidão. Aqui este ingrediente sonoro atua na

película agregando-lhe um aspecto sublime, uma vez que, como lembrou Burke, não é

somente a visão o único órgão dos sentidos capaz de gerar uma paixão sublime, os sons

também exercem uma grande influência sobre essas paixões. Para o autor o alarido de

multidões, pela força do som apenas, “aturde e perturba de tal modo a imaginação que, nessa

vacilação e açodamento do espírito, os temperamentos mais equilibrados mal podem pôr-se a

salvo de sua influência e juntar-se à gritaria e ao objetivo da turba”.379 Na seqüência, segue

imagens de Vargas atravessando o Estádio em um automóvel aberto e acenando ao público,

sorrindo. Continuando a seqüência apoteótica, deparamos com imagens das multidões que

retribuem o aceno a Vargas, enquanto chacoalham a pequena bandeira nacional. E mais

ovação. Neste momento do filme a atenção é toda voltada para as multidões de operários que

participam da festividade em estado de euforia com a chegada do líder, em tomada de planos

gerais do Estádio São Januário coberto por uma mancha de trabalhadores que aplaudem e

acenam ao Presidente. Aqui se comprova, em imagens, a máxima que levou o militante

trotskista Hilcar Leite, que presenciou os vários encontros dos trabalhadores com Getúlio

Vargas, a afirmar que, infelizmente, os aplausos eram produto de “palmas espontâneas, não

eram puxadas por claque não”380: as imagens das multidões contribuíram para modelar a

legitimação do Estado Novo e o mito Vargas perante os trabalhadores.

Ainda em busca de compreender o papel legitimador das imagens das multidões, vale

evidenciar que o Governo Vargas, ao decidir por realizar as comemorações cívico-sociais em

estádios de futebol, tinha a intenção de conceber a multidão como algo fechado, concentrando

todas as atividades dentro do recinto, ou seja, propondo uma multidão nos moldes do conceito

de “massa como anel”, forjado por Canetti. Segundo o autor é dentro da arena que nos

deparamos com uma multidão duplamente fechada, em que os indivíduos voltam as costas ao

exterior, não se interessando por nada que não se refira à circunscrição da arena – abandonam

seu cotidiano, esquecem os problemas que, por algumas horas, deixam do lado de fora. No

interior, dentro da arena, a multidão forma uma muralha de gente – corpo uno e indivisível.

Como ressalta Canetti, “sua reunião em grande número encontra-se assegurada por um certo

tempo; foi-lhes prometido excitação, mas sob uma condição assaz decisiva: a descarga da

massa tem de se dar para dentro [grifo no original]”.381 Porém, para que ocorresse esta

“descarga para dentro” era necessário que os propagandistas encontrassem meios atraentes e

379 BURKE, Op. cit. p. 89. 380 LEITE, Hilcar. apud. PARANHOS (1999), Op. cit., p. 99. 381 CANETTI, Op. cit., p. 27.

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persuasivos para as multidões que se reuniam nos estádios. As imagens de colegiais e

operários desfilando nas raias olímpicas, carregando bandeiras e faixas, cenas de orquestras e

bailarinos em plena execução, jovens atletas desfilando ou apresentando demonstrações de

cultura física são todos modelos de “cristais de massa”. Os “cristais de massa” são definidos

pelo autor como “grupos pequenos e rígidos de homens, muito bem delimitados e de grande

durabilidade, os quais servem para desencadear as massas”,382 mas para que possam

proporcionar o desencadeamento das multidões — no nosso caso, para a festividade e a

legitimação da ditadura — era necessário que elas pudessem vê-los, sempre, como

representações de uma totalidade que jamais se dispersaria. Aqui se explica o caráter

militarista dos desfiles de Primeiro de Maio.

Assim, toda vez que o Estado Novo desejava direcionar o seu discurso às multidões de

operários era necessário que buscasse elementos para transmitir a idéia totalizante presente no

cerne das mesmas. Todas as imagens das multidões que iriam ser exibidas para as “massas de

espectadores” deveriam ser contempladas em sua totalidade, por isso, o predomínio de planos

de conjuntos e gerais; assim como os primeiros planos que fazem com que as multidões

preencham a tela, além do destaque das atividades festivas (dança, música, etc) que também

deveriam acompanhar esta direção propagandística do Estado Novo. Para a multidão, nas

salas de exibição, só se podia oferecer ela mesma, ou melhor, só se podiam oferecer

elementos que a projetassem para o interior da película, o que seria capaz de levar cada

espectador a ser mais um trabalhador coberto pelo manto sagrado da “Pátria-Mãe”.

382 CANETTI, Op.cit., p. 72.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Certo de que as significações apontadas por este trabalho nos mais diversos temas

abordados pelo Cine Jornal Brasileiro estão sujeitas a um ignorar e a um reconhecer, vejo que

o caminho percorrido foi de “desconstruí-las” para compreender como, nas telas do Estado

Novo, uma composição de imagens e sons foi capaz de criar um sentido fílmico que pudesse

atuar nos campos da identificação e da fascinação. Tratava-se de encontrar os elementos

diegéticos contidos no cinema de propaganda política de Getúlio Vargas que pretendiam

tornar o Estado Novo um símbolo presente no cotidiano dos trabalhadores brasileiros urbanos.

Vê-se, então, que o caráter mobilizador do cinema era instrumentalizado na direção de uma

legitimação do novo regime, que necessitava fazer-se reconhecer pelo povo como uma

autoridade merecida, reunindo os espectadores em torno de uma mesma imagem que fosse

capaz de representar uma sociedade que se construía e se consolidava como una, indivisiva,

homogênea e harmônica. Ou seja, atualizava-se nas telas a fantasmagoria do “Todo

Orgânico”.

Para tal, o elemento multidão foi imprescindível para traduzir nos cinejornais do DIP a

idéia-imagem de “Pátria-Una", uma vez que reconhecida como “real”, logo, legitimada pela

platéia na sala escura, sugeria uma identidade que poderia ser compartilhada coletivamente.

Assim, no cinema este signo atuava como um duplo coletivo, o que reforçava o seu “poder

simbólico”; cabia à propaganda política oferecer à multidão de espectadores ela mesma,

artifício que, com o auxílio do aparato técnico cinematográfico — a sala escura, a projeção e a

tela —, era capaz de satisfazer as carências do espectador solitário, pois lhe oferecia a

sensação de pertencer a algo, de poder compartilhar das mesmas emoções das pessoas

registradas nas películas.

Como vimos, este signo visual esteve presente em todas as temáticas escolhidas,

apesar destas apresentarem marcas discursivas distintas, como procurei demonstrar, sendo

que, além de atualizar o mito político da Unidade, vinha acompanhado da idéia de sacrifício

do indivíduo em função do coletivo, ou seja, a força mobilizadora desta imagem estava

concentrada na sua capacidade de negar o “Eu”, substituindo-o pelo “Nós”. Sejam

concentradas nos estádios de futebol ou em meio ao cenário fabril, as imagens das multidões

de trabalhadores forjavam nas telas o corpo uno da Nação.

De fato, nos cinejornais de Primeiro de Maio é marcante a presença deste elemento

que, combinado com a criação do “tempo festivo”, compreendia uma ação legitimadora do

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novo regime. Mas, ainda na intenção de se legitimar, o Governo Vargas encontrou na questão

da industrialização, especialmente nos investimentos da grande siderurgia, e nas benfeitorias

estatais levadas ao interior do país, outros aspectos a serem explorados pelas câmeras do DIP.

Tanto as imagens do potencial industrial brasileiro em desenvolvimento quanto das benesses

concedidas às localidades antes abandonadas pelos regimes liberais anteriores, como sugeria o

governo da época, colaboravam para que se criasse um cenário de onde emergiria um “Novo”

Brasil. Desta forma, seja no urbano ou no rural, o Estado Novo conseguia se fazer presente.

O trabalhador transformado no cidadão da “democracia social” e incorporado aos

sindicatos não só correspondia como uma “reserva de mobilização” para o regime, como

também agregava uma nova concepção à idéia-imagem do “Trabalho”, aqui muitas vezes

associada ao progresso, à ordem, à ascensão social entre outros, que instrumentalizada como

dispositivo simbólico procurava romper com o estigma de um Brasil atrasado, primitivo,

formado por um povo preguiçoso e incapaz. A nova ordem social constituída pelo Estado

Novo tinha no “Trabalho” a resposta ao desejo de Getúlio Vargas em modernizar o país que,

conseqüentemente, deveria ser compartilhado por todos. Assim, procurava canalizar o esforço

do brasileiro em um único fim, o desenvolvimento econômico da Nação.

No entanto, mediante a deflagração do conflito mundial o Brasil, como um dos

principais produtores de matérias-primas estratégicas para a guerra, especialmente a borracha,

teve que fazer uma associação que acabou por transfigurar o trabalhador em “soldado da

produção”. Mais uma vez o Estado Novo convocava o povo brasileiro para um sacrifício

coletivo, aumentando horas de serviço nas indústrias, principalmente naquelas em que os

produtos abasteciam os Aliados, além de retirar alguns direitos antes “doados” pelo governo

aos trabalhadores. Assim, se em um primeiro momento as imagens da indústria nacional e do

trabalhador brasileiro sugerem uma “modernização conquistada”, por outro lado, no contexto

da Segunda Guerra Mundial estas mesmas imagens incorporam o sentido da batalha. Mesmo

que distante do front na Itália, os esforços dos operários são dirigidos ao combate à barbárie

nazista.

A objetiva do DIP não explorou a participação do Brasil no conflito mundial como

seria esperado da propaganda política de um país em guerra. No entanto, decepções à parte, o

Estado Novo preferiu transferir esta participação brasileira para a consolidação de um front

interno, em que se projetava para o cenário fabril o “esforço de guerra”. O alinhamento com

os Estados Unidos favoreceu o financiamento da indústria siderúrgica no país, vista como o

ponto fundamental do projeto nacional-desenvolvimentista do Governo Vargas, além de

acelerar a modernização das Forças Armadas. Então, o Estado Novo via na criação do front

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interno um caminho para a sua legitimidade, uma vez que no início dos anos 40 o regime já

sofria as suas primeiras baixas. Para isso, utilizava-se de uma outra imagem mobilizante, a do

Inimigo. Aproveitando as cenas das atrocidades cometidas pelos submarinos alemães na costa

brasileira, vitimando centenas de pessoas, entre civis e oficiais, o DIP conseguiu justapor em

suas películas elementos de forte apelo simbólico, como a imagem da criança, no intuito de

oferecer ao povo um objeto para odiar. Como vimos, a propaganda estadonovista procurou

explorar nos cinejornais sentimentos latentes nos indivíduos, como o ódio e a compaixão,

canalizando-os para a figura do inimigo político externo, os alemães. Mais uma vez

conseguia-se projetar nas telas imagens capazes de suscitar emoções de que os espectadores

poderiam compartilhar coletivamente.

Neste aspecto, as significações postas pelo Cine Jornal Brasileiro, compreendendo os

seus diversos assuntos, além de indicar uma personificação do Estado na figura do seu líder

Getúlio Vargas, também foram compostas para que fossem reconhecidas como representações

de uma totalidade. No meu entender, projetava-se para o Estado Novo uma “disposição

totalitária”, que concebida nas mais diversas práticas culturais, inclusive no cinema, difundia-

se em um discurso que pretendia articular os mais diversos grupos sociais, fazendo do Estado

Novo a única imagem a ser reconhecida como familiar, cotidiana.

Portanto, esta investida no cinema de propaganda estadonovista procurou demonstrar

o como certas significações traduziram uma disposição ideológica do novo regime ao

totalitarismo que, no meu entender, estava posta apenas em planos ideais, ou seja, sujeita ou

não a uma reelaboração pelos espectadores. A busca por estas construções fílmicas resultou

na compreensão de como o cinema, um dispositivo que opera no campo da identificação e da

fascinação, pode ser útil como um instrumento legitimador de um projeto reacionário, pautado

pela fantasmagoria do “Todo Orgânico”. Mas também nada impede que opere a favor de um

projeto revolucionário, tendo em vista que, segundo Lebel, “a identificação e a fascinação só

são uma mistificação ideológica em função do conteúdo [grifo do autor] desta identificação e

desta fascinação”, o que equivale dizer que

Se o cinema nos ensina a falar do mundo de uma maneira falsa, ou seja a ver no real signos de um universo falsamente reconciliado, de uma ordem [grifo do autor] falsamente estabelecida, de uma transparência enganadora; ou seja se procura fazer do real o signo da ideologia dominante, em vez de nos ensinar a ler os signos que nos permitem decifrar o real; então efetivamente a identificação e a fascinação são reacionárias. Mas, se, pelo contrário, o cinema nos ensina a falar do mundo de uma maneira mais justa, a ver no real os signos das relações sociais reais, ensina-nos a falar com o real (ou

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seja ao mesmo tempo para o compreender e servirmo-nos dele para comunicar). Nestas condições, a identificação e a fascinação já não são reacionárias e o prazer do reconhecimento que adquirem não é senão alegria desalienada de um conhecimento verdadeiro.383

No entanto, não se trata de determinar este cinema, reacionário ou revolucionário,

como negativo ou positivo, uma vez que não é possível pensar em um filme perfeitamente

reacionário ou perfeitamente revolucionário, ambos os aspectos convivem em uma mesma

obra cinematográfica. Logo, cabe ao pesquisador desmistificá-los.

O simples fato de atribuir-lhes um caráter ou outro não lhes nega a condição de obra

de arte, ainda permanecem como objetos estéticos, ou seja, postos a uma contemplação. Por

isso, qualquer estudo de cinema não deve desprezar a relação filme/espectador, seja para

amparar uma atitude desmistificadora do observador, ou para fornecer respostas em função

dos níveis de recepção. No caso dos cinejornais do Estado Novo, ou o filme documentário de

propaganda em geral, são comuns afirmativas diretas que depreciam o documento fílmico ora

por atrelá-lo a um aspecto manipulativo, ora por negar qualquer eficiência doutrinária, sem ao

menos um estudo de recepção.

Consciente disto, procurei nessa pesquisa apontar como o cinema, inaugurando uma

moderna forma de percepção estética, foi um fundamental dispositivo técnico posto a serviço

de projetos autoritários, como o que surgiu no Brasil durante a vigência do Estado Novo, uma

vez que se dirigia às multidões buscando legitimar o Estado nas imagens do “Uno” e do

“Novo”, materializando nas telas um discurso totalitário.

383 LEBEL, Op. cit., p. 238-239.

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FILMOGRAFIA

AFUNDAMENTOS em águas brasileiras! — Rio: As primeiras manifestações do povo contra os brutais atentados dos submarinos do Eixo. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 144, 3º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1942. VHS, mudo, pb, 1’12” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). BRASIL e a guerra — Rio: O Presidente da República visita os primeiros combatentes brasileiros feridos nos campos de batalha. Cine Jornal Brasileiro, v. 4, n. 9, 3º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1945. VHS, mudo, pb, 1’06” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). COMEMORAÇÕES do dia do Marítimo: Durante a manifestação que recebeu dos trabalhadores do mar, na Ilha do Viana, o Chefe do Governo pronuncia importante discurso. Cine Jornal Brasileiro, v. 1, n. 126, assunto único. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1940. VHS, son., pb, 13’44” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). DIA DO TRABALHO: As grandes manifestações de 1º de maio na Capital da República. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 25, assunto único. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1941. VHS, mudo, pb, 9’08” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). ESFORÇO de guerra do Brasil, O. Cine Jornal Brasileiro, v. 3, n. 92, assunto único. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1944. VHS, son., pb, 24’36” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). FABRICAÇÃO de alumínio — Minas Gerais: O aproveitamento de nossas riquezas naturais; fator decisivo para a economia nacional. Cine Jornal Brasileiro, v. 3, n. 28, 1º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1943. VHS, son., pb, 1’38” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). FESTA do trabalho na capital do país, A. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 123, 4º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1942. VHS, mudo, pb, 5’38” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). FLAGELO das secas: O governo do Presidente Getúlio Vargas soluciona o mais grave problema do nordeste brasileiro. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 31, assunto único. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1941. VHS, son., pb, 7’22” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). FORÇAS Expedicionárias do Brasil — Rio: Desfile das forças militares que o Brasil enviará à luta contra os totalitários. Cine Jornal Brasileiro, v. 3, n. 56, 5º assunto. Departamento de

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Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1944. VHS, son., pb, 2’47” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). MARCHA para Oeste, A — O Presidente Getúlio Vargas chega a Goiânia, iniciando uma excursão pelas regiões em que o Brasil guarda, ainda, sua selva primitiva. Cine Jornal Brasileiro, v. 1, n. 133, assunto único. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1940. VHS, son., pb, 7’ aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). NOVA era econômica, Uma — Volta Redonda: Trabalha-se sem tréguas para a instalação das usinas siderúrgicas. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 119, 3º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1942. VHS, mudo, pb, 1’31” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). OPERÁRIOS brasileiros — Rio: A curiosa história da construção de uma pequena locomotiva. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 127, 2º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1942. VHS, son., pb, 54” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). POR ATOS de bravura — Rio: Feridos de guerra condecorados no Hospital Central do Exército, em cerimônia presidida pelo Chefe da Nação. Cine Jornal Brasileiro, v. 4, n. 31, 8º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1945. VHS, mudo, pb, 2’50” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). RESOLVER o problema siderúrgico é encaminhar a aolução de todos os problemas brasileiros: Subscrevam ações da Companhia Siderúrgica Nacional. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 15, 2º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1941. VHS, son., pb, 29” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). SÃO PAULO industrial. Cine Jornal Brasileiro, v. 1, n. 200, assunto único. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1941. VHS, son., pb, 9’09” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). VÍTIMAS da crueldade dos totalitários! Primeiros flagrantes dos sobreviventes do “Itagiba” e do “Arara” na cidade de Salvador. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 146, 1º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1942. VHS, son., pb, 3’35” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). 1º DE MAIO — Rio: Cem mil operários aclamam o Presidente Getúlio Vargas na Esplanada do Castelo. Cine Jornal Brasileiro, v. 2, n. 195, 5º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1943. VHS, mudo, pb, 2’21” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). 1º DE MAIO — A festa do trabalho no estádio do Pacaembu. Cine Jornal Brasileiro, v. 3, n. 61, assunto único. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1944. VHS, mudo, pb, 7’19” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira). 1º DE MAIO: Rio — Presididas pelo Chefe do Governo imponentes celebrações ao Dia do Trabalho. Cine Jornal Brasileiro, v. 4, n. 22, 5º assunto. Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Estado Novo, 1945. VHS, son., pb, ) 4’10” aprox. (Acervo Fundação Cinemateca Brasileira).

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