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346 Cuidar do cuidador: transbordamento e carência Ligia Py Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tanatologia do Instituto de Psicologia/UFRJ. E-mail: [email protected] Resumo Este texto é produto de uma comunicação realizada na Jornada de Bioética promovida pelo Conselho de Bioética do INCA, no dia 06 de julho de 2004. Trata de dificuldades emocionais de familiares cuidadores de pacientes com câncer, carentes eles mesmos de cuidados especiais. Lembra que, na grande maioria das vezes, a mulher é protagonista do cuidado. Partindo de um convite à reflexão dos profissionais, considera a sua responsabilidade por esse cuidado, no campo de trabalho que lida com a situação de seres humanos que criam uma dependência gradativa, podendo chegar à dependência integral, no percurso inexorável de uma doença incurável, com piora progressiva, aproximando- se da morte. Alerta para a necessidade de uma formação profissional peculiar, fundamentada na práxis ontocriativa, propondo a inclusão de um trabalho reflexivo e vivencial, integrado ao exercício contínuo de capacitação teórico- prática. Na abordagem da dinâmica da relação paciente-familiar cuidador, chama a atenção para o fato de que também esse cuidador, quase sempre mulher, se implica numa forma de dependência, na dinâmica do cuidado que presta ao paciente. Ressalta possibilidades de construção da interdependência solidária nessa relação. A argumentação baseia-se em recursos conceituais referentes à vivência do desamparo e à ambivalência de sentimentos vividos no par amor e ódio, que domina a relação paciente-familiar cuidador. Concluindo, aponta para possibilidades de reconstrução contínua dessa relação de dependência quando gestada em figurações do ódio, para um estilo de relação de interdependência solidária, como proposta libertadora. Introdução A primeira experiência radical do ser humano é o nascer. A outra é o morrer. O nascimento de uma criança tem significações de alegria e esperança, na renovação da vida. A celebração do Natal continua comovendo o mundo inteiro, imerso na barbárie que se adensa e aprofunda. Entre nós, brasileiros, a radicalidade de "Morte e Vida Severina" insiste em nos lembrar o nascimento do filho, na miséria, embora, superando a decisão desesperada da morte do pai. Percorrer os caminhos de uma doença incurável, com piora progressiva até a morte, nos cânones de uma sociedade que valoriza o vigor e a beleza, a produção e o consumo, exige do ser humano formas de superações sucessivas, difíceis de alcançar, na sua condição de doente, dependente, carente, diferente, ele mesmo, tornado ente supremo de um saber sobre a vida que se acaba. A chegada da morte, com implicações gestadas no medo, na recusa, na negação, nos sentimentos de fracasso, ameaça e culpa, deve ser considerada como a solenidade final de uma existência. Vemos em Mauksch 1 que "morrer é uma experiência total e na hora de morrer o órgão afetado deixa de ser o item básico." Cuidar de bebês que nos anunciam a vida e a esperança, tanto quanto cuidar de pessoas doentes que nos anunciam o sofrimento e a morte, é um privilégio. Podemos dizer que 'no princípio era' o cuidado, que viabilizou a vida neste planeta, pela aproximação dos homens na defesa contra os perigos e na gênese das descobertas que continuam... como nos fala Boff 2 , inspirado, também, na concepção freudiana de desamparo. Dentre a multiplicidade de questões que se apresentam no cuidado com os cuidadores, destacamos, para este trabalho: um convite aos profissionais desse campo a uma reflexão sobre a sua própria finitude, para, então, tratarem das possibilidades de os familiares que cuidam dos seus, se entenderem numa relação de dependência, vivendo o desamparo, o amor e o ódio; a reafirmação de que as mulheres aparecem em esmagadora maioria como protagonistas no ato de cuidar; a proposta de chegarmos à interdependência solidária que pode libertar todos os Revista Brasileira de Cancerologia 2004; 50(4): 346-350

Cuidar Do Cuidador

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Como posso cuidar daqueles que cuidam

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    Cuidar do cuidador: transbordamento e carncia

    Ligia PyPesquisadora do Ncleo de Estudos e Pesquisas em Tanatologia do Instituto de Psicologia/UFRJ. E-mail: [email protected]

    ResumoEste texto produto de uma comunicao realizada na Jornada de Biotica promovida pelo Conselho de Bioticado INCA, no dia 06 de julho de 2004. Trata de dificuldades emocionais de familiares cuidadores de pacientes comcncer, carentes eles mesmos de cuidados especiais. Lembra que, na grande maioria das vezes, a mulher protagonistado cuidado. Partindo de um convite reflexo dos profissionais, considera a sua responsabilidade por esse cuidado,no campo de trabalho que lida com a situao de seres humanos que criam uma dependncia gradativa, podendochegar dependncia integral, no percurso inexorvel de uma doena incurvel, com piora progressiva, aproximando-se da morte. Alerta para a necessidade de uma formao profissional peculiar, fundamentada na prxis ontocriativa,propondo a incluso de um trabalho reflexivo e vivencial, integrado ao exerccio contnuo de capacitao terico-prtica. Na abordagem da dinmica da relao paciente-familiar cuidador, chama a ateno para o fato de quetambm esse cuidador, quase sempre mulher, se implica numa forma de dependncia, na dinmica do cuidado quepresta ao paciente. Ressalta possibilidades de construo da interdependncia solidria nessa relao. A argumentaobaseia-se em recursos conceituais referentes vivncia do desamparo e ambivalncia de sentimentos vividos nopar amor e dio, que domina a relao paciente-familiar cuidador. Concluindo, aponta para possibilidades dereconstruo contnua dessa relao de dependncia quando gestada em figuraes do dio, para um estilo derelao de interdependncia solidria, como proposta libertadora.

    IntroduoA primeira experincia radical do ser humano o nascer. A outra o morrer.O nascimento de uma criana tem significaes de alegria e esperana, na renovao da vida. A celebrao doNatal continua comovendo o mundo inteiro, imerso na barbrie que se adensa e aprofunda. Entre ns, brasileiros,a radicalidade de "Morte e Vida Severina" insiste em nos lembrar o nascimento do filho, na misria, embora,superando a deciso desesperada da morte do pai.Percorrer os caminhos de uma doena incurvel, com piora progressiva at a morte, nos cnones de uma sociedadeque valoriza o vigor e a beleza, a produo e o consumo, exige do ser humano formas de superaes sucessivas,difceis de alcanar, na sua condio de doente, dependente, carente, diferente, ele mesmo, tornado ente supremode um saber sobre a vida que se acaba. A chegada da morte, com implicaes gestadas no medo, na recusa, nanegao, nos sentimentos de fracasso, ameaa e culpa, deve ser considerada como a solenidade final de umaexistncia. Vemos em Mauksch1 que "morrer uma experincia total e na hora de morrer o rgo afetado deixa deser o item bsico."Cuidar de bebs que nos anunciam a vida e a esperana, tanto quanto cuidar de pessoas doentes que nos anunciamo sofrimento e a morte, um privilgio. Podemos dizer que 'no princpio era' o cuidado, que viabilizou a vidaneste planeta, pela aproximao dos homens na defesa contra os perigos e na gnese das descobertas que continuam...como nos fala Boff2, inspirado, tambm, na concepo freudiana de desamparo.Dentre a multiplicidade de questes que se apresentam no cuidado com os cuidadores, destacamos, para estetrabalho: um convite aos profissionais desse campo a uma reflexo sobre a sua prpria finitude, para, ento,tratarem das possibilidades de os familiares que cuidam dos seus, se entenderem numa relao de dependncia,vivendo o desamparo, o amor e o dio; a reafirmao de que as mulheres aparecem em esmagadora maioria comoprotagonistas no ato de cuidar; a proposta de chegarmos interdependncia solidria que pode libertar todos os

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    membros da relao de cuidado, para faz-los alcanar a condio de dignidade humana que tanto almejamos, emquaisquer circunstncias.

    Um Convite ReflexoO andride do filme "Blade Runner", na cena final, provoca, no seu caador humano, uma perplexidade que oconduz a reflexes acerca da vida e da morte, suscitando a interpelao sobre a nossa propalada humanidade:

    "queria as mesmas respostas: - de onde venho? - para onde vou? - quanto tempo tenho? ... talvez, naquelesltimos momentos, ele amasse a vida mais do que havia amado antes; no somente a vida dele, mas a vidade qualquer um, a minha vida ... e tudo o que eu posso fazer ficar aqui e v-lo morrer."

    Provocados por essa cena, pensamos a nossa prpria finitude, a angstia de nos sabermos inexoravelmente mortais,radicalmente ignorantes sobre o destino da nossa vida humana e mortal, inapelavelmente transitria, cujos tempospassado e presente a projetam a um futuro, na permanncia desejante de satisfao. Pensamos as possibilidades dooutro, morrendo, despedindo-se da vida, fechando o ltimo captulo da sua histria pessoal para inscrev-lo nahistria da coletividade humana3. Nesse momento derradeiro, assoma sada da vida, com o transbordamento dasua potencialidade toda, podendo, agora, sim, considerar o vivo, expandido na sua capacidade amorosa para a realvalorizao de tudo o que vivo e, mortal, embora, permanece para, quem sabe, completar o inacabamento da suaprpria vida.A busca da competncia profissional , na verdade, uma conduo tica, a partir da humildade que funda aousadia de um fazer compartilhado, solidrio e transformador, na relao profissionais-pacientes-familiares. Notrabalhamos sozinhos. Estamos, sempre, engajados em equipes profissionais que devemos tornar grupos.A forma privilegiada de trabalhar em grupo apresentada por Minayo4 e Bleger5, onde a estrutura e a dinmica dogrupo, no s se abrem ao acolhimento de demandas, reflexo crtica e produo de aes transformadoras,como tambm favorecem pens-lo como um grupo social constitudo por pessoas que estabelecem umaintercomunicao sobre as situaes especficas que as atingem coletivamente; a partir da, possvel sedesenvolverem modos de pensar abrangentes que se integram na compreenso e nas aes de cada um dos membrosdo grupo.Na concepo clssica de grupo de Grinberg, Langer e Rodrigu6, encontramos a constituio do grupo como umconjunto de pessoas que compartilham normas comuns e desempenham papis sociais interligados, formandouma totalidade. O trabalho desenvolvido pelo grupo implica num sistema dinmico, no qual cada membro, como seu papel individual, depende dos demais. Ora, para a nossa reflexo aqui, essa concepo particularmenteinteressante, pois temos configurado a interdependncia, onde cada um dos membros atua em funo dos demais.A interao dos participantes de um grupo acontece como figura sobre um fundo que agrega todos, indiscriminadae sincreticamente, constituindo "o vnculo mais poderoso entre os membros do grupo... o fundo de solidariedade...5 " desse modo que podemos estar disponibilizados para a entrega a uma reflexo sobre a nossa prpria vida, aspossibilidades de adoecermos, a nossa mortalidade. Dessa reflexo, podemos sair fortalecidos para adentrarmos acena da doena, do sofrimento, da dependncia e da morte do outro. At porque, sentimos que os familiares dequem vamos tambm cuidar, precisam, sim, de informao e instrumentalizao para cuidar do paciente, contudo,carecem profundamente de uma reflexo sobre a situao em que se encontram, para a qual precisam criarviabilidades no contexto familiar. Podemos buscar a orientao da lgica dialtica que, no dizer de Bleger5,compreende contedos de interao entre a teoria e a prtica, perpassados pela singularidade do modo peculiar decada profissional administrar os prprios recursos internos que vo compor a ao de intervir.Estamos participando do processo de adoecer e morrer de seres humanos cuidados por seus familiares, ondepacientes e cuidadores so, a um s tempo, sujeito e objetos da nossa interveno. E ns, profissionais, tambmadoecemos e somos igualmente mortais. Por isso, recorremos a Kosik7, que nos ensina o processo ontocriativo daprxis, fundante das possibilidades de compreenso do ser humano, a partir da compreenso de cada um acerca desi mesmo.A experincia do convvio com os pacientes no fim da vida, cuidados pelos seus familiares, provocadora dareflexo sobre a 'realizao da liberdade humana'7. Ser esse o insight que vai iluminar as produes do nossotrabalho? No texto de Oliveira8, aprendemos:

    "Encontrar possibilidades de humanizao do humano entre os humanos uma andana cheia de aventuras,tropeos, idas-e-vindas, indignao, alegria, desalentos, xitos, consolo, tenso, derrotas e incertezas. Supe,por isso mesmo, um esforo infinito por energias sempre multiplicadas, esforo partilhado por outrosnuma comunho em luta, sem fim."

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    Assim que a nossa proposta se configura na insero de um trabalho sistemtico, vivencial e reflexivo, naformao continuada dos profissionais que lidam com a aproximao da morte de pessoas com cncer, carentes decuidados profissionais e familiares. Cremos que a formao centrada em trabalho terico-vivencial atende scaractersticas da prtica profissional, subvertendo positivamente os critrios convencionais, desconstruindo umapraxe desvitalizada e instaurando a prxis ontocriativa, na verdade o modus operandi por excelncia do cuidado aofim da vida dos seres humanos.

    Relao de Cuidado e (Inter)DependnciaTrabalhamos a conceituao de cuidado referida ao discurso da Enfermagem, num outro estudo9, ressaltando aprimazia dessa categoria na prtica de cuidar. Encontramos no texto de Gonalves e Alvarez10, a humanidadeassegurando a preservao da espcie e da vida do grupo, desde os primrdios da sua existncia, valendo-se daao do cuidado, um 'tomar conta' do sustento alimentar, da procriao e criao da prole, da proteo e defesada habitao e do territrio. Nesse sentido, Freud, em "O futuro de uma iluso"11, pensa a civilizao, como oresultado da reunio dos humanos, no s para aquisies novas e arrojado sentido de ir adiante, mas, basicamente,para se defenderem dos perigos das foras da natureza. A se revela o desamparo do ser humano, experincia quevai revivendo ao longo da vida, desde o nascimento.Um recm-nascido precisa ser cuidado, condio sine qua non da sua existncia. Em "Inibies, sintomas eansiedade"12, Freud nos fala da prematurao do ser humano ao nascer que, diferente da maioria dos animais,chega ao mundo com a necessidade radical de ser cuidado. Ao longo da vida, a cada vez que o ser humano sedepara com uma situao de perigo, lhe sobrevm o desamparo, demandando um pedido de ajuda.Pelas limitaes trazidas pela doena, pessoas que adoecem de cncer, progressivamente se tornam dependentes decuidado integral, at a morte. Quem assume o cuidado so os familiares, predominantemente mulheres, assimcomo acontece em qualquer outra situao de prestao de cuidado na esfera familiar, quando se trata da sade deum dos seus.Tratando dos novos contratos intergeracionais e de gnero da poca atual, Goldani13 nos fala da mulher comoprotagonista do cuidado aos pais e parentes idosos, doentes. a mulher que vai priorizar a dedicao ao cuidar,em detrimento do lazer, da socializao e at das atividades profissionais, com prejuzos, por vezes fatais, nodesempenho e na permanncia no emprego.Na viso de Neri14, na vida contempornea, h dificuldades para o aprofundamento dos laos de afeio, da buscado significado existencial, da reflexo sobre o sentido da velhice e da morte. Esses fatores, aos quais se inclui acarncia de ajuda sistemtica formal aos familiares, so coadjuvantes da significao negativa que assume a aode cuidar, quando se trata de dependncia. No entanto, chama-nos a ateno o posicionamento firme e crticodessa pesquisadora, na recusa aceitao do cuidar, exclusivamente como uma situao deletria para a pessoacuidadora, apontando para a realidade de experincias positivas na relao do cuidado, com indicadores decrescimento pessoal de quem cuida.O trabalho profissional com os familiares cuidadores contempla uma dupla vertente: informao e reflexo. Dessemodo, estamos atendendo nossa proposta de estar trabalhando na prxis ontocriativa, que integra os momentoslaborativo e existencial, atravs da operacionalidade do fazer e da imerso no pensar sobre o fazer7. Cremos sernecessrio instruir os familiares nas especificidades da prtica do cuidado, assim como cremos ser necessrioatentar para os sentimentos que emergem na lida diria com a pessoa doente. A reflexo uma proposta, umconvite para os familiares cuidadores se pensarem na relao de dependncia e cuidado, na aproximao damorte, o que os leva a tambm se pensarem na perspectiva das suas possibilidades pessoais de adoecimento e nasua prpria finitude. Dessa mesma forma trabalhamos com os profissionais, para que sejam capazes de cuidar doscuidadores, como expressamos acima. O carter transformador, esperado nessa dinmica, est na possibilidade dearticulao dos contedos objetivados na informao, com a capacidade de subjetivao do familiar cuidador.A relao de cuidado marcada por perplexidades e dvidas, que orientam a busca da solidariedade e da libertao.Nesse percurso, os familiares cuidadores confrontam sentimentos de amor e dio, como, por exemplo, o nojo eo cuidado com o corpo, a onipotncia e a capacidade de compartilhar. So pares de opostos, como os descritospor Freud em "Sadismo e masoquismo"15, que apontam para o dualismo fundamental, exigncia terica para atraduo do conflito. A radicalizao desses sentimentos expressa-se criativa, dialtica e libertariamente, nas falasdos familiares cuidadores, quando encontram a nossa escuta compreensiva. importante lembrarmos que no h naturalidade no amor. Nem no dio. Somos habitados por ambos, gestadosnas relaes humanas que construmos e que, afinal, nos constroem. Se existe, o amor impele ao cuidado. Se foro dio que impera, no basta reconhec-lo no contexto do cuidado. preciso que haja um redirecionamento das

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    aes do cuidar, de modo que aquele que cuida possa exercer um controle sobre a realidade da dominao, datirania e do julgamento a que procedem.16

    O nojo uma figurao do dio. Esse sentimento, que se manifesta na intolerncia e na rejeio, pode estarfazendo parte, tambm, do cuidado dispensado ao paciente, como expresso do repdio a uma situao que setorna insuportvel. Por exemplo, uma esposa amorosa debate-se no amor e no dio, em ebulio simultnea, narelao com o marido doente, o corpo deformado, aproximando-se da morte. O nojo a invade, a revolveinternamente, a impele rejeio, sem que ela alcance a dimenso do que lhe acontece. A repulsa ao corpo queinspira nojo a conduz ao de expulsar, repelir.17

    A leitura de Freud em "A perda da realidade na neurose e na psicose"18 nos leva a pensar nesse nojo como umsentimento que est mediando a separao, j de alguma forma instalada, anunciando a morte chegando, implacvel,definitiva. Prenncio da morte de um corpo sob seus cuidados que, outrora, representou, para ela, o corpo objetodo desejo.Despedir-se desse corpo, num trabalho de luto antecipado19, pode reinaugur-la na relao de cuidado, valendo-seda 'morte com aviso prvio' para o trabalho psquico da histria das emoes presentes no vnculo amoroso e todaforma de repdio sentido agora, com a mediao do cuidado com esse corpo que prescreve uma ao de despedida.20

    Uma outra figurao do dio a onipotncia que submete e domina. Tomar a si a responsabilidade e a competncia,exclusivas e excludentes, para cuidar do outro, fragilizado e vulnervel colocar-se no lugar da onipotncia. Asustentao desse lugar uma produo a dois: do familiar cuidador e do paciente. Na onipotncia, aquele quecuida cr ser possuidor do deciframento das carncias do outro. Cr ser inteiramente capaz da competncia decuidar. assim que, sem ter conscincia do que est acontecendo, o familiar cuidador se autoriza a exercer umdomnio que submete, que viabiliza o abandono do paciente aos seus cuidados.21

    Os sentimentos solidrios dos familiares cuidadores podem opor-se onipotncia de um s, gerando um movimentoexpansivo na generosidade que sustenta a capacidade de compartilhar. Assim, a sada do lugar de onipotnciapressupe a abertura da relao: incluir outros familiares no cotidiano dos cuidados um modo de fazer ocuidador e o paciente 'se perderem' para 'se ganharem' num outro patamar. Ambos se complementam na liberaodo fardo que os aprisionava na carncia de um (o paciente) e na abdicao do outro (o familiar cuidador).Libertos, podem, agora, reinaugurar-se na relao de interdependncia, engendrada pela solidariedade.

    Consideraes FinaisNo decorrer do nosso trabalho, sentimos que o contato direto com os familiares cuidadores de pessoas comcncer, aproximando-se da morte, confronta a nossa prpria vida, o nossa prprio processo sade-doena, a nossaprpria morte. Ns, seres ontocriativos7, compartilhamos sentimentos abissais, nos transformando medida queprovocamos o outro se transformar e, por isso mesmo, nos revelado um sentido para viver o sofrimento; sentidocomo significado e destinao.22 A compreenso de Pessini23 alcana as origens dessas preocupaes:

    "O sofrimento tambm nos infunde 'medo', porque nos vemos em espelho, a fragilidade, a vulnerabilidadee a mortalidade, elementos da nossa condio humana que no gostamos de ver lembrados... porque nosconfrontam com o nosso prprio fim."

    Aqui, assim como no estudo que realizamos sobre pessoas idosas doentes e seus familiares cuidadores,9

    insistentemente nos indagamos: - Que idias inconscientes subjazem aos sentimentos de nojo e onipotncia? Narelao paciente-familiar cuidador existe um transbordamento dos afetos por aquilo que se faz insuportvel, notranscurso da doena. No texto de Freud "Emoes inconscientes"24, vemos que cada afeto est ligado a uma idiaque o seu representante no inconsciente. Uma idia detestvel, aquilo que insuportvel na relao com o outro,quando ultrapassa o limite da sua fora, faz com que o conflito se torne real. Ento, desde muito cedo, os sereshumanos se debatem entre exigncias internas contrrias. E as idias persistem, nas suas vicissitudes, particularmenteligadas aos processos de represso, que formam substitutos ou sintomas. Persistem as idias, na sua tarefa contnuade vincular-se aos traos da memria, ou seja, aos contedos da histria dos sujeitos. E os afetos? So manifestaesdas idias, so tudo aquilo que percebemos como nossos sentimentos.A existncia do dio manifesta-se em diferentes figuraes, engendrado na intimidade das idias que constituema histria de cada um. Esse dio, porm pode liberar-se para estar a servio do sentimento amoroso, na aosolidria de cuidar do outro.

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