Cult 39, Cortazar, Out de 2000

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REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

3910 14 26 28 29 37 41 42 45 64Cavalinhos amarelos, tela do expressionista Franz MarcReproduo

O chulo e o chic em depoimento do poeta Glauco Mattoso

E n t r e

L i v r o s Capa

Poesia e pensamento na Mquina do mundo de Haroldo de Campos

Publicao de Octaedro e da Obra crtica permitem reavaliar obra de Cortzar

ArtePanormica de Alex Flemming mostra uso plstico da palavra

Claudio Cammarota

E n t r e v i s t a

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O poeta Glauco Mattoso

Na Ponta da LnguaOs diferentes usos de locues verbais como tem havido

R a d a r C U L TCULT comea a publicar em captulos novela de Marcelo Mirisola

Redescoberta do BrasilLisboa discute 500 anos de encontros e desencontros entre Brasil e Portugal

Memria em RevistaCrnica de Agostinho de Campos fala da chegada do foot-ball em Portugal

Literatura ItalianaAnnalisa Cima fala sobre o Dirio pstumo de Eugnio Montale

D o s s i C U L TAntologia potica, exposio e ciclo de cinema trazem expressionismo alemo a So Paulo

Do LeitorCartas, fax e e-mails dos leitores de CULT

OUTUBRO D E

2000

A o o ll ee i e t ti o oRoR R i l i t to R A A o A o l e

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Manuel da Costa Pinto

Diretor-presidente Paulo Lemos Diretora executiva Silvana De Angelo Diretor superintendente Jos Vicente De Angelo

Vice-presidente de negcios Idelcio Donizete Patricio

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

Editor e jornalista responsvel Manuel da Costa Pinto MTB 27445 Redatora Maria Cristina Elias Editora de Arte Tatiana Paula P. Barboza Diagramao Cristiane Alfano

Digitalizao de imagens Adriano Montanholi e Yuri Fernandes Reviso Claudia Padovani Colunistas Cludio Giordano Joo Alexandre Barbosa Pasquale Cipro Neto

Colaboradores Bruno Fischli, Claudia Cavalcanti, Claudia Vallado de Mattos, Fabio Weintraub, Ivan Marques, Ivo Barroso, Marcelo Mirisola, Marcelo Miyake, Nilson Moulin Louzada, Reynaldo Damazio, Sal Sosnowski, Susana Kampff Lages, Tereza de Arruda, Vera Albers Capa Cortzar por Sara Facio; nos destaques, metr de Buenos Aires por Jos Guilherme Rodrigues Ferreira, Glauco Mattoso por Cludio Cammarota e Retrato de Gerda, tela de Ernst Ludwig Kirchner Produo grfica Altamir Frana Fotolitos Unigraph

Departamento comercial Milla de Souza Triunvirato Comunicao Rua Mxico, 31-D, Gr. 1.403 A Rio de Janeiro RJ CEP 20031-144 tel. 21/533-3121/524-0366 e-mail: [email protected] Distribuio e assinaturas Jos Cardeal do Carmo Rua Santo Antnio, 1.263 Bela Vista SP CEP 01314-001 Tel./fax 11-3104-1675 e-mail: [email protected] Distribuio em bancas FERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/A Rua Teodoro da Silva, 907 Rio de Janeiro RJ CEP 20563-900 Tel./fax 21/575-7766/6363 e-mail: [email protected] Distribuidor exclusivo para todo o Brasil.

Departamento jurdico Dr. Valdir de Freitas Departamento financeiro Regiane Mandarino ISSN 1414-7076

CULT Revista Brasileira de Literatura uma publicao mensal da Lemos Editorial & Grficos Ltda. Rua Rui Barbosa, 70, Bela Vista So Paulo, SP CEP 01326-010 Tel./fax: 11/251-4300 e-mail: [email protected]

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Assinaturas e nmeros atrasados Alagoas: 82/977-9835 Bahia: 71/248-2737 Paran e Santa Catarina: 41/352-6444 Paraba, Pernambuco e Sergipe: 81/9108-5105 Rio de Janeiro: 21/9801-7136 Rio Grande do Norte: 64/983-0836 Rio Grande do Sul: 51/395-3436 So Paulo: 11/3120-5042

l e i t o

No prximo dia 30, a CULT encerra as inscries para o prmio Redescoberta da Literatura Brasileira. Desde seu lanamento, em abril, o concurso tem recebido um grande nmero de originais nos trs gneros contemplados poesia, romance e conto. Seria prematuro avaliar a repercusso do prmio a partir da quantidade de trabalhos enviados revista at esse momento, considerando-se que o volume de obras tende a crescer s vsperas do prazo final. As cerca de trezentas obras j inscritas permitem, porm, algumas ilaes. Em primeiro lugar, trata-se aqui de um concurso que, em lugar de uma premiao em dinheiro, gratificar os vencedores com o lanamento em livro dos trabalhos selecionados pelas comisses julgadoras. Ou seja, existe uma enorme massa de autores virtuais que buscam canais de expresso alternativos para uma atividade criativa que o tmido mercado editorial brasileiro no consegue trazer luz. Em segundo lugar, e como decorrncia disso, importante notar a importncia que publicaes literrias como a CULT assumiram nos ltimos anos. Reunindo crticos e jornalistas que na maior parte do tempo divulgam e analisam autores consagrados seja pela tradio literria, seja pelo prprio meio editorial, a CULT nunca deixou de oferecer espao para autores inditos (como o demonstra o Radar CULT). Portanto, muitos dos autores que se inscreveram no prmio Redescoberta da Literatura Brasileira esto buscando a avaliao de um jri designado por uma revista que assim reitera seu compromisso de mapear, entre acertos e erros, os itinerrios de nossa literatura contempornea. Finalmente, e isso que importa, existem hoje no pas cem, duzentas ou, quem sabe?, mil ou cem mil pessoas que procuram na solido da palavra escrita uma forma de organizao da experincia, de lucidez e de permanncia. Pois a palavra (que nem sempre equivale a literatura) ainda a garantia de sobrevida de uma atividade simblica que nos preserva da mais completa alienao.Tiragem desta Edio: 25.000 exemplares Auditada por

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E s c r i t o r e s

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A Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, a Cmara Riograndense do Livro e a Unio Gacha de Escritores promovem nos dias 1, 2 e 3 de novembro o Encontro de Escritores da Rede Mercocidades: Literatura, integrao e compromisso, em que cerca de 150 escritores latino-americanos analisaro o papel do escritor, os impasses e avanos da produo intelectual na Amrica Latina e a atual situao poltica no continente. A Rede Mercocidades composta por cidades de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. J confirmaram presena os escritores Carlos Heitor Cony, Zuenir Ventura e Helosa Buarque de Holanda (Brasil), Pablo Rocca e Toms Mattos (Uruguai) e Susy Delgado e Rene Ferrer (Paraguai). Informaes pelo telefone 51/221-6622, ramal 227 ou 226, ou pelo e-mail: [email protected].

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F r e d e r i c o

B a r b o s a

O poeta e crtico Frederico Barbosa autor de Rarefato (Iluminuras) e Nada feito nada (Perspectiva) lana, no dia 21 de outubro, seu terceiro livro de poesias, Contracorrente, pela editora Iluminuras. A partir de 19h na Escola Logos (av. Rebouas, 2.633, So Paulo, tel. 11/3062-5711).

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Fernando Rabelo/Divulgao

A Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo promove, de 4 a 25 de outubro, o ciclo Poesia em Revista, em que editores de publicaes literrias e poetas apresentaro um panorama da poesia contempornea. Participam revistas como Dimenso, Cigarra, Poesia Sempre, Babel, CULT e a argentina ts = ts, que publicou uma seleo de 30 poetas contemporneos brasileiros. A iniciativa d continuidade aos encontros de poetas com o pblico, como os ciclos Poesia 96 e Poesia 97, e aos debates sobre revistas literrias, j realizados pela Secretaria Municipal de Cultura. A entrada franca e a inscrio, gratuita. Informaes pelo telefone 11/ 239-3459. Segundas e quartas-feiras, s 19h30, na Biblioteca Mrio de Andrade (r. da Consolao, 94).

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P o e t a s

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B i b l i o t e c a

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O escritor Carlos Heitor Cony, que participa de encontro de escritores em Porto Alegre

O Memorial da Amrica Latina promove, no dia 24 de outubro, dentro da srie Poetas na Biblioteca, um recital com o escritor e editor peruano Reynaldo Jimnez, autor, entre outros, de Elctrico y despojo, Las miniaturas, Ruido incidental/ El t, La curva del eco, e do indito Musgo, e coordenador da coleo de antologias Poesa Mayor, da editora Leviatn de Buenos Aires. Na ocasio, ser lanada a nova edio da revista literria argentina ts = ts, da qual o poeta co-editor. A entrada franca. s 20h, na Biblioteca Latino-americana Victor Civita (Memorial da Amrica Latina, av. Auro Soares de Moura Andrade, 664, So Paulo, tel. 11/ 3823-9831).

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A n p o c s

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www.lemos.com.br/cult

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on line

Ser realizado em Petrpolis, de 23 a 27 de outubro, o 24 Encontro da Associao Nacional de Ps-graduao e Pesquisa em Cincias Sociais (Anpocs). O evento discutir temas como desigualdade na educao, novo milnio, empresariado, partidos e judicirio. Na ocasio, sero lanados mais de cem livros e ministrados os seguintes cursos: Cultura e poltica: Antropologia, por Antnio Augusto Arantes (Unicamp); Cincia poltica, por Csar Guimares (IUPERJ); e Sociologia, por Srgio Miceli (USP). Informaes pelos telefones 11/815-1243 e 815-0381 ou pelo e-mail: [email protected].

ASSINATURAS

DISQUE CULT 0800.177899

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Eduardo Rascov

entrevista

GLAUCO

MATTOSO

A poucos meses da edio de uma antologia potica, recolhendo a sua produo desde os anos 70 do Jornal Dobrabil srie de sonetos publicada em 99 , o poeta Glauco Mattoso partilha sua descoberta do soneto e pondera quanto ao impacto da cegueira sobre sua produo recente. Ex-bibliotecrio, lexicgrafo, produtor de discos de punk rock e amante das sonatas de Scarlatti, o podlatra mais conhecido das letras nacionais mostra que continua fiel ao seu fetiche, inventando novas maneiras de tirar leite do p. Chulo e chique, erudito sem deixar de ser moleque, o poeta nos recebeu no comeo de agosto, ms de cachorro louco. Tratando do nexo entre humor e filosofia, dos impasses da literatura de testemunho ou das contradies existentes em nosso projeto civilizatrio (erigido entre os limites da hipocrisia, de um lado, e do cinismo, de outro), Glauco Mattoso d, na entrevista que voc ler a seguir, provas de sua verve lcida e verstil.

Fabio Weintraub

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Cult Voc abre o seu ciclo de sonetos dizendo que o p um fetiche arraigado que agora se eleva categoria de clula temtica, em torno da qual cada poema funciona como variao orquestral. Essa variao orquestral revela, ao meu ver, uma tara ainda mais forte que a podolatria: o enciclopedismo, a tara inventariante. Falando do p, voc perfila conhecimentos sobre todos os povos e lugares (rabes, judeus, cristos, chineses, hindus, gregos, africanos, alemes, italianos, cariocas, nordestinos...), sobre todas as pocas (Antigidade greco-latina, a Bblia, a Idade Mdia, a Segunda Guerra Mundial...), todas as artes (arquitetura, msica, literatura, teatro, cinema, pintura, quadrinhos), todos os estilos de poca, todos os esportes e jogos (futebol, surfe, skate, carteado), todos os problemas sociais (sistema carcerrio, racismo, eleies, trote estudantil), todos os sistemas de governo, conhecimentos de zoologia, botnica, culinria, filologia... Tal furor catalogante, s vezes, comparece tambm na forma enumerativa adotada em certos sonetos, ou na tendncia para a definio, o glossrio. Isso tem a ver com a sua formao como bibliotecrio ou com sua atuao como lexicgrafo? Glauco Mattoso O curso de biblioteconomia e a profisso de bibliotecrio, que eu cheguei a exercer na Biblioteca do Banco do Brasil, obrigam voc a ter realmente uma cultura enciclopdica. Faz parte do mtier. Se o bibliotecrio for um cara de fato interessado no que faz e no um mero burocrata, ele vai precisar de uma pitadinha de conhecimento sobre todos os assuntos para entender o acervo que ele deve catalogar, classificar. A profisso exige um conhecimento metdico, sistemtico. Essa a explicao biogrfica. A segunda explicao tem a ver com o meu fetiche. Por eu ter insistido bastante no tema da podolatria, criou-se uma tendncia a me relativizar, restringir, a me limitar muito. Tornei-me um escritor pornogrfico, fetichista, e s. Aps a cegueira, ao retomar a atividade literria, eu tinha que de certa forma exorcizar essa pecha. Intencionalmente eu teria de fazer uma espcie de varredura, de giro epistemolgico. como se eu estivesse passando em revista tudo aquilo que eu li. A cegueira uma nova realidade. At para compor, novas questes se

colocam. No posso consultar um dicionrio de rimas, o Aurlio, nada. Tenho de esperar que algum procure para mim. Como essa pessoa nem sempre est presente, ou est presente aps eu ter composto o poema, eu posso apenas revisar o que j criei. Conto unicamente com o meu repertrio mental, com a minha capacidade de memria. Para coloc-la em teste, tive de fazer uma espcie de retomada de todos os temas. Uma espcie de defesa e de autodefesa. Defesa contra qualquer relativizao externa e autodefesa para me preservar mesmo, para colocar em funcionamento os meus neurnios e para mostrar que eu no perdi tudo o que acumulei lendo. Os sonetos que eu estou fazendo agora constituem assim uma espcie de recapitulao. Recapitulao no s daquilo que eu li, mas de muitos temas e questes que j estavam presentes no Jornal Dobrabil. Cult Conte-nos um pouco mais do processo de elaborao desses sonetos. G.M. A parte prtica da coisa? A parte mental aquilo de que eu estava falando: a insnia, o pesadelo, aquela coisa cclica. Eu tento dormir por um perodo superior a oito horas, mas sei que no consigo. Tenho sono cedo, durmo algumas horas, da acordo porque tive algum pesadelo relacionado cegueira. Sonho nitidamente, colorido, vejo tudo e, de repente, entra a cegueira. Acordo assustado, tenho aquela sensao de pnico. A, para compensar isso e poder relaxar, eu me masturbo. Tenho de me excitar, ter uma atividade mental ertica. Nesse meio-termo, entre uma coisa e outra, antes ou depois, surge alguma idia que eu comeo a transformar em poesia metrificada. s vezes, serve at como uma forma de me acalmar sem a necessidade da masturbao. O mais curioso de tudo que, depois de ter composto todo o soneto na cabea, vem um lance borgiano. Eu consigo salvar isso na cabea, da mesma forma que se salva um arquivo de computador. Ao compor, vejo no s a letra, mas a fonte. Componho em Garamond, algumas palavras esto em itlico, e tudo num corpo muito grande, como se eu pegasse uma lupa e fosse vendo cada letra. Imagino a vrgula, o espao

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em branco, o formato, tudo muito ntido. Como eu vejo o soneto impresso, eu no estou salvando apenas a poesia, mas a imagem grfica. A no tem como esquecer. Depois eu digito no computador e no tem mais problema. claro que h sonetos que, mesmo depois de salvos, eu modifico no computador. Ou sonetos que eu no completo durante uma noite. Fica faltando alguma coisa, um terceto, um verso no meio etc. A eu salvo o que j est pronto, deixo a lacuna mental, depois digito e fico estudando um meio de completar aquilo. Mas so excees. Em geral, a coisa se desenvolve de uma forma mais solta. Cult E quanto sua relao com a obra de Jorge Luis Borges? Alm da traduo feita por voc do Fervor de Buenos Aires, h algumas coincidncias biogrficas que o ligam ao autor argentino: ambos bibliotecrios e cegos. S que Borges, diferentemente de voc, faz o Elogio da sombra. Voc parece abordar o tema de modo mais amargo e revoltado... G.M. O meu contato com Borges no supe nenhuma identificao. Eu respeito, admiro Borges. Assim como admiro e respeito outros nomes consagrados, cegos ou no. Ocorre o seguinte: a postura de Borges diante da cegueira foi abrandada pelo fato de ele j ser um escritor reconhecido quando ficou cego. J havia um julgamento pacfico acerca de seu valor. Ele j era diretor da principal biblioteca da Argentina. No h termos de comparao. A minha situao a de uma pessoa totalmente indefesa. Mas, alm da cegueira e da biblioteconomia, h uma terceira coincidncia que me aproxima de Borges: o misticismo. Ele era considerado um bruxo e eu, minha maneira, tambm sou. A que se estabelece a principal diferena. O contato com o sobrenatural admite vrias posturas. Minha postura a de observar o equilbrio de foras entre bem e mal, foras obscuras e foras iluminadas; sou um observador participante dessas coisas. Vivo mais intensamente as contradies do que o Borges. Ele talvez tenha se apoiado mais em determinadas foras e se engrandecido mais. Eu no. Estou numa posio muito neutra, muito menor. Observo mais esse antagonismo. No caso da cegueira, especi-

SONETO PAULINDRMICO [2.406]Ter algo que dizer no o que conta. O como que o poeta faz de monta. Algum palestrador alega assim, que o verbo pedra em si, no ferramenta. Mas isso no clusula pra mim. Prefiro achar que ter um bom motivo, alm do jeito, justo requisito. Concordo, enfim, com Paulo Henriques Britto que existe inspirao num verso vivo. Ocorre que um poema meio e fim, porm precisa ser de algum que enfrenta dor, fome, angstia, azar, algo ruim. No basta o como em verso ou prosa pronta. Temer o tema o medo que amedronta.

SONETO TORRESMISTA [2.426]No basta a ditadura que j dura e vem a ditadura antigordura! Samos do regime militar, camos no regime do regime. Censuram-nos at no paladar! Trabalho, horrio, imposto, compromisso. Orgasmo no se tem como se quer. S sobra o bom do garfo e da colher, e os nazis nariz metem at nisso. Maldita seja a mdia, sempre a dar espao medicina que reprime! Gestapo da sade e bem-estar! Resista! Coma! Abaixo a ditadura! A luta tem um smbolo: FRITURA!

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Obras de Glauco MattosoPeridicosJornal Dobrabil 1977/1981 edio do autor (53 nmeros em 1 vol.) Revista Dedo Mingo edio do autor (2 fascculos)

PoesiaLnguas na papa Pindaba Memrias de um pueteiro Trote Limeiriques e outros debiques glauquianos Dubolso Centopia: Sonetos nojentos e quejandos Cincia do Acidente Paulissia ilhada Cincia do Acidente Gelia de rococ Cincia do Acidente

EnsaioO que poesia marginal Brasiliense O que tortura Brasiliense O calvrio dos carecas: Histria do trote estudantil EMW

FicoManual do pedlatra amador. Aventuras e leituras de um tarado por ps Expresso

DicionrioDicionarinho do palavro (ingls-portugus/portugus-ingls) Record

QuadrinhosAs aventuras de Glaucomix, o pedlatra (ilustrado por Marcatti) Editora Abriu-fechou

ficamente, acho que o Borges dissimula um pouco. Pelo fato de ser um escritor universal, de trabalhar com imagens muito fortes, poderosas, acho que ele conseguiu sublimar e enobrecer um pouco o drama pessoal, despersonificando a tragdia. Cult No soneto que fecha o Paulissia ilhada, voc fala da necessidade de andar num espao restrito, um quarteiro memorizado cujo equivalente estaria na forma soneto, que define um espao restrito, um caminho fixo, mas aberto a novas caminhadas... G.M. Gosto muito desse soneto. O quarteiro a que ele se refere este onde fica meu prdio. Moro neste apartamento h 18 anos. Ainda enxergava razoavelmente quando vim morar aqui e o processo final de perda da viso se deu aqui, neste quarteiro. Depois que fiquei cego, no consigo mais andar sozinho na rua. Eu me movo aqui dentro porque decoro a posio de todas as coisas, mas, saindo do prdio com a bengala, se eu no estiver acompanhado, no consigo ir longe. De teimoso, at para no atrofiar as pernas, comecei a dar a volta nesse quarteiro, sozinho ou acompanhado, com bastante freqncia. Ultimamente eu no tenho feito isso, porque esto quebrando muito as caladas, criando muito obstculo para mim. Essa histria de ficar dando volta no quarteiro mostra como uma coisa rotineira, que aparentemente no muda, sempre diferente. A cada dia voc est diferente: pensa diferente, tem outras emoes, o cenrio outro, ou chove, ou faz calor, ora voc tropea, ora pisa no coc de cachorro. Tem dia que voc encontra algum na rua e conversa com a pessoa, s vezes algum te agride. Ento o mesmo caminho, mas sempre nova a caminhada. O soneto a mesma coisa. Aparentemente uma forma fixa, imutvel, uma espcie de priso do raciocnio que vicia, cria clichs etc. S que no assim. Tanto que, no final do Gelia de rococ, at fiz uma pequena teoria acerca do soneto para mostrar que no estou seguindo as regras. O soneto no impe regras que voc tenha de seguir como se fossem regras de gramtica. Eu desrespeito, intencionalmente, muito do que se encontra nos tratados de versificao. Tenho experimentado novos formatos. Mantenho uma correspondncia

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com o Paulo Henriques Britto e ele me props um formato de soneto diferente: cinco estrofes com 2, 3, 4, 3, 2. Um formato palindrmico. Da eu propus um esquema de rimas que acompanhasse isso: AA, BCB, DEED, BCB, AA. Comecei a fazer alguns sonetos nessa linha e troquei com o Paulo. Fiz at um soneto em homenagem a ele, chama-se Soneto Paulindrmico. Foi uma experincia gostosa, porque esse formato tem a mesma proporo do soneto clssico, a mesma distribuio de rimas, a mesma mtrica, pois adotei o decasslabo herico, coisa que o Paulo no estava fazendo. Gostei da experincia, foi um desafio difcil. Cult H um texto do professor Joo Adolfo Hansen que problematiza a grade taxonmica, a nomenclatura geralmente usada para enquadrar o que voc faz. Segundo esse crtico, sua poesia no seria crtico-participativa, nem homossexual, nem marginal, nem paulista etc. Afirma ele: Os textos de G.M. so afirmativamente cnicos e no querem mudar nada: gozam enquanto transformam. O problema que, no lugar desses rtulos falsos e imprecisos, Hansen prope uma compreenso que desenraza o texto de qualquer realidade (biogrfica, psicolgica, social) para convert-lo em puro gozo discursivo, estratgia retrica. Voc concorda com esse tipo de leitura? G.M. No me importo com os rtulos. Podem ser algumas vezes muito restritivos, delimitar muito, mas podem tambm facilitar a compreenso das coisas. Ocorre, no entanto, que certas pessoas tm s vezes uma viso mais restrita do que a minha. Recentemente, o David William Foster, um crtico norte-americano, analisou meu trabalho nos Estados Unidos considerando o Manual do pedlatra um exemplo de ps-modernismo, comparou com a literatura cubana e tal. Em alguns momentos, ele resvala para uma interpretao muito mais restritiva daquilo que pretendi fazer. Ele pega o poema intitulado Defectivo (Eu mordo/ tu mastigas/ ele engole/ ns digerimos/ vs cagais/ eles policiam) e o caracteriza como um poema homoertico. No tem nada a ver. Esse poema tpico do que eu fazia no Jornal Dobrabil: um poema coprofgico, instrumento de uma stira social

que mistura a influncia modernista, concretista, e que reflete uma determinada realidade poltica. A ltima coisa em que eu poderia estar pensando seria em homoerotismo. No entanto, ele tem todo o direito de fazer uma leitura mais direcionada para esse ou aquele aspecto porque, afinal de contas, como o Umberto Eco j havia observado, a obra de arte sempre aberta. Desde o momento em que voc a divulga, ela j no lhe pertence mais. Cult Voc sempre defendeu o plgio consciente, apropriandose de textos alheios e atribuindo aos outros coisas suas, como uma forma de crtica noo de propriedade intelectual. Com isso, voc encarna um dos traos fundamentais da cultura ps-moderna que o pastiche, a pilhagem de estilos acumulados ao longo da histria. Jameson refere-se ao plgio como pardia lacunar, sem potencial crtico-satrico, porque a nica alternativa numa poca em que desapareceram as possibilidades de um estilo individual. Como voc avalia hoje a entronizao do pastiche? G.M. Eu tinha uma frase no Dobrabil que dizia: Original quem plagia primeiro. A que est a armadilha. O que eu fazia no Dobrabil aparentemente era uma defesa explcita do plgio. Na verdade, eu estava fazendo essa pardia clssica, essa releitura crtica. S que eu vendia esse peixe como se fosse uma coisa muito mais descartvel, muito mais primria, isso que voc chama de lacunar. Estava sendo irnico, como se eu estivesse desmerecendo o meu prprio trabalho como uma forma de chamar ateno, de mostrar que aquilo poderia ser mais importante do que parecia. O que eu fazia no era mero pastiche. Havia uma proposta formal, fisionmica, que era o datilograma, e havia uma proposta conceitual, que era a de retomar a antropofagia oswaldiana num contexto contracultural, ps anos 60, um contexto de drogas, sexo e rocknroll, de fanzine, de ps-concretismo, de ps-tropicalismo. Embora no houvesse a palavra ps-modernismo nos anos 70, assim como no havia a palavra fanzine, eu estava fazendo um fanzine ps-moderno.Fabio Weintraubpoeta e editor, autor de Sistema de erros (Arte Pau-Brasil)

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EJuan Esteves

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ara os que no o leram, preciso dizer que o ttulo desta coluna uma aluso ao ensaio de Paul Valry, Posie et pense abstraite, de 1939, inicialmente uma conferncia na Universidade de Oxford e depois includo em Variet V, de 1944, e que pode ser lido na coletnea do poeta Variedades, publicada, em portugus, pela editora Iluminuras, em 1991 e reeditada em 1999. E por que esse ttulo alusivo? Antes de mais nada porque, naquele ensaio, Valry, que sempre reclamara da noexistncia, na poesia francesa, de uma poesia, como a de Lucrcio ou Dante, que apontasse para a convergncia entre poesia e pensamento, no obstante as suas prprias conquistas em poemas como La jeune parque e em alguns de Charmes, buscava refletir sobre as relaes tensas entre poesia e pensamento, almejando romper com a dicotomia tradicional que via, e v, no par poesia-pensamento uma oposio radical. Ou, como ele mesmo diz logo no incio do ensaio: Freqentemente ope-se a idia de Poesia de Pensamento e, principalmente, de Pensamento Abstrato. Fala-se em Poesia e Pensamento Abstrato como se fala no Bem e no Mal, Vcio e Virtude, Calor e Frio. A maioria acredita, sem muita reflexo, que as anlises e o trabalho do intelecto, os esforos de vontade e de exatido em que o esprito participa no concordam com essa simplicidade de origem, essa superabundncia de expresses, essa graa e essa fantasia que distinguem a poesia, fazendo com que seja reconhecida desde as primeiras palavras.

E, como sempre, para Valry, a questo est em esclarecer o que se est chamando, por um lado, de poesia e, por outro, de pensamento e de que modo possvel pensar numa articulao entre os dois. o que chama de nettoyage de la situation verbale, que se traduziu, na edio brasileira, por limpeza da situao verbal, isto , uma aproximao, por assim dizer, desconfiada s palavras utilizadas para marcar aquela articulao. essa desconfiana que encaminha a reflexo de Valry para uma anlise da prpria linguagem que viabilizaria a nomeao seja da poesia, seja do pensamento. O fato que, destacada para exame, a palavra, to confiantemente utilizada pela linguagem corrente, parece perder a sua identidade habitual ou, como diz o prprio Valry, torna-se magicamente problemtica, introduz uma resistncia estranha, frustra todos os esforos de definio (). Era apenas um meio e ei-la transformada em fim, transformada no objeto de um terrvel desejo filosfico. No primeiro caso, que , para Valry, aquele dos empregos prticos e abstratos da linguagem, a forma, isto , o fsico, o sensvel e o ato mesmo do discurso no se conserva; no sobrevive compreenso; desfaz-se na clareza; agiu; desempenhou sua funo; provocou a compreenso; viveu. No segundo, entretanto, to logo essa forma sensvel adquire, atravs de seu prprio efeito, uma importncia tal que se imponha e faa-se respeitar; e no apenas observar e respeitar, mas desejar e, portanto, retomar ento alguma coisa de novo se declara: estamos

insensivelmente transformados e dispostos a viver, a respirar, a pensar de acordo com um regime e sob leis que no so mais de ordem prtica ou seja, nada do que se passar nesse estado estar resolvido, acabado, abolido por um ato bem determinado. Desse modo, para o poeta, aquilo que ele chama de universo potico, isto , aquele em que as palavras so adequadas criao de estados poticos que podem, ou no, vir a ser configurados em poemas, constitudo precisamente pelo desejo de realizar a passagem daquele nvel de compreenso que caracteriza a linguagem em suas funes prticas ou abstratas para um outro o propriamente potico em que, ao contrrio daquele, o poema no morre por ter vivido: ele feito expressamente para renascer de suas cinzas e voltar indefinidamente a ser o que era. Da a iluminada e luminosa concluso: A poesia reconhece-se por esta propriedade: tende a se fazer reproduzir em sua forma, excita-nos a reconstitu-la identicamente. Mais adiante, Valry utiliza a imagem de um pndulo que oscila entre dois pontos simtricos para tratar das relaes entre poesia e pensamento: Suponham que uma dessas posies extremas representa a forma, as caractersticas sensveis da linguagem, o som, o ritmo, as entonaes, o timbre, o movimento em uma palavra, a Voz em ao. Associem, por outro lado, ao outro ponto, ao ponto conjugado do primeiro, todos os valores significativos, as imagens, as idias; as excitaes do sentimento e da memria, os impulsos virtuais

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Poesia e pensamento (concreto)Joo Alexandre BarbosaEm A mquina do mundo repensada, Haroldo de Campos realiza o ideal expresso por Valry no ensaio Posie et pense abstraite, criando um espao de leitura que funciona como indagao pela mquina do poema e como elemento de articulao entre poesia e pensamentoe as formaes de compreenso em uma palavra, tudo o que constitui o contedo, o sentido de um discurso (). Entre a Voz e o Pensamento, entre o Pensamento e a Voz, entre a Presena e a Ausncia, oscila o pndulo potico. Desse modo, no se trata, para Valry, de estabelecer uma relao entre poesia e indagao filosfica, por onde se possa falar de poetas filsofos, de poesia filosfica ou de expresses semelhantes. As articulaes entre poesia e pensamento se do no concreto da prpria composio potica, isto , no poema como oscilao contnua entre a voz e o pensamento, segundo os seus termos. Nesse sentido, o poeta ser um pensador no porque seja o porta-voz de uma sistema filosfico, mas porque capaz de refletir acerca daquelas articulaes na efetivao do poema. Por isso mesmo, no indispensvel a existncia do poema longo, como aqueles de Dante e de Lucrcio, citados por Valry, para que se descortine aquelas relaes. Assim, por exemplo, num poema de apenas seis versos de Murilo Mendes, do livro Poesia liberdade, possvel perceber a intensidade das oscilaes entre voz e pensamento, para insistir nos termos valeryanos, por onde a abstrao termina por se traduzir no concreto da estrutura textual. O poema intitula-se Algo: O que raras vezes a forma Revela. O que, sem evidncia, vive. O que a violeta sonha. O que o cristal contm Na sua primeira infncia. Servindo como uma definio para o seu ttulo, mas uma definio construda sobre um paradoxo (aquilo que se diz o que no est dito), o pequeno texto busca a essencialidade por entre manifestaes da existncia (vida, violeta e cristal) que, por sua vez, so, por assim dizer, reduzidas a situaes mnimas de realidade: a vida sem evidncia, o sonho da violeta e o cristal primevo. Todas sentidas e, mais do que isso, pensadas, por aquela forma, cuja ao destacada no segundo verso, mas que s ocasionalmente, num golpe de dados que pudesse vencer o acaso, empolgada, ou revelada, pela voz que a enuncia. Sendo assim, pode-se afirmar que o poema de Murilo Mendes aquilo que est entre a configurao verbal, em que se destaca a repetio que acentua uma semntica de subtrao, e a reflexo sobre os seus prprios significados que exigiu e imps aquela configurao. No poema de Murilo Mendes, a relao entre poesia e pensamento abstrato faz-se consistente pela efetivao do poema. O mesmo se poderia dizer acerca de alguns poemas de Joo Cabral (e penso quer no abstrato Uma faca s lmina, quer no concreto O co sem plumas), de Manuel Bandeira ou de Carlos Drummond de AnJoo Leite outubro/2000 - C u l t 11

drade, sobretudo o de A mquina do mundo, do livro Claro enigma. precisamente a partir de um dilogo com este ltimo poema (e tambm com Dante e, sobretudo, Cames) que Haroldo de Campos volta (principalmente depois do Finismundo: A ltima viagem, dos incios da dcada passada, sem contar as suas viagens de transcriador por poemas bblicos e homricos) ao poema longo, publicando pela Ateli Editorial A mquina do mundo repensada. A partir mesmo de seu ttulo, o longo poema de 152 estrofes de trs versos, mais uma estrofe de apenas um verso inconcluso, em terza rima (o segundo verso de cada estrofe rima com o primeiro e o terceiro da estrofe seguinte), de ritmo decassilbico, se prope como exerccio dialgico em que a tpica da mquina do mundo, por ser repensada, envolve utilizaes poticas anteriores. Dividido em trs partes, ou cantos, se se quiser, o poema, aludindo logo na abertura ao poeta da Comdia (quisera como dante em via estreita/ extraviar-me no meio da floresta/ entre a gaia pantera e a loba espreita), embora j nas duas estrofes seguintes convoque termos e imagens que o localizam em experincia mais prxima do poeta, sertes e veredas ou ona-pintada que equivale pantera e loba dantescas, tornando presente a herana da linguagem de Joo Guimares Rosa, cria um espao de leitura para aquelas utilizaes que funciona como elemento de articulao entre a poesia

possvel e a ao de pensar, ou repensar, os seus termos. Termos problematizados pela experincia pessoal de desnimo e quase desistncia, como est, sobretudo, nas sexta e stima estrofes: 6.1. transido e eu nesse quase (que a tormenta 2. da dvida angustia) tero acidioso 3. milnio a me esfingir: que me alimenta 7.1. a mesma de saturno o acrimonioso 2. descendendo estrela zimo-esverdeada 3. a acdia: lume bao em cu nuvioso E , sem dvida, essa problematizao que viabiliza, porque torna presente e, por isso, mais prximo, o processo lrico por entre as anotaes narrativas das trs partes do poema. Uma espcie de fratura que desestabiliza o rigor pico do texto, fazendo ecoar por todo o poema a declarao de desejo com que ele se inicia: quisera. Desejo de poema que possa ultrapassar a sombria condio de abatimento, como est nas estrofes transcritas, e, ao mesmo tempo, de compreenso e de explicao daquilo que foi tambm desejo em discursos poticos anteriores. Assim, na primeira parte, logo se identifica o objeto de desejo pela leitura daquilo que foi ou impossibilidade pela superabundncia de luz, no caso do Paradiso, ou ddiva ofertada pela deusa a Vasco da Gama, como est na estrofe LXXX do canto X de Os lusadas. Ou, nos versos de Haroldo de Campos: 12.1. quisera tal ao gama no ar a ignota 2. (cames o narra) mquina do mundo 3. se abrira (e a mim quem dera!) por remota 13.1. mo comandada um dom sado do fundo 2. e alto saber que aos seres todos rege: 3. a esfera a rodar no ter do ultramundo E tudo aquilo que se revela ao Gama pela viso da mquina ocupa, inicialmente, pelo menos quatro estrofes (14-17), quando , ento, interrompida por outras quatro (18-21) em que surge a presena de Carlos Drummond de Andrade (ao capitneo arrojo em prmio aberta/ drummond tambm no clausurar do dia/ por estrada de minas uma certa) para ser novamente interrompida durante onze estrofes de leitura da viso do Gama, quando ento retomada em chave de oposio: 32.1. pois mquina de astros que a seu giro 2. orbes sobre-regula o marinheiro12 Cult - outubro/2000

3. -almirante rendeu-se qual se um tiro 33.1. de mgico pelouro por inteiro 2. o pasmasse: j o poeta drummond duro 3. escolado na pedra do mineiro 34.1. caminho seco sob o cu escuro 2. de chumbo ctico entre lobo e co 3. a ver por dentro o enigma do futuro 35.1. incurioso furtou-se e o canto-cho 2. do seu trem-do-viver foi ruminando 3. pela estrada de minas sbrio cho , por outro lado, notvel como, nas quatro ltimas estrofes desta primeira parte, o poeta singulariza a experincia do poeta brasileiro por entre aqueles poetas (leia-se Dantes e Cames) que viram no ROSTO o nosso se estampando: 37.1. minto: menos drummond que ao desengano 2. de repintar a neutra face agora 3. com crenas dessepultas do imo arcano 38.1. desapeteceu: ciente estando embora 2. que dante no regiro do ris no ris 3. viu alcanando o topo e soada a hora 39.1. na suprema figura subsumir-se 2. a sua (e no estupor se translumina) 3. e que cames um rosto a repetir-se 40. 1. o mesmo em toda parte viu (consigna) 2. drummond minas pesando no cedeu 3. e o ciclo ptolomaico assim termina No obstante, o ltimo verso do poema de Haroldo de Campos, aquele inconcluso e isolado verso j referido e que, por isso mesmo, assume um papel fundamental no texto, em que o primeiro signo parece ser a figurao da procura infinita, uma vez que o ltimo o retome (O nexo o nexo o nexo o nexo o nex), ecoa, para o leitor atento, como um comentrio, o ltimo, ao poema de Drummond na passagem em que a voz da mquina do mundo oferta maravilhas:Joo Alexandre Barbosa um dos maiores crticos literrios do pas, autor de A metfora crtica e As iluses da modernidade (pela editora Perspectiva), A imitao da forma e Opus 60 (Livraria Duas Cidades), A leitura do intervalo (Iluminuras) e A biblioteca imaginria (Ateli Editorial). Professor de teoria literria e literatura comparada, foi presidente da Edusp, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas e Pr-reitor de Cultura da USP Joo Alexandre Barbosa assina mensalmente esta . seo da CULT, cujo ttulo foi extrado de sua mais recente antologia de ensaios, publicada pela Ateli Editorial.

(...) O que procuraste em ti ou fora de teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo, olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda prola, essa cincia sublime e formidvel, mas hermtica, essa total explicao da vida, esse nexo primeiro e singular que nem concebes mais, pois to esquivo se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste v, contempla, abre teu peito para agasalh-lo. Mas para chegar a esse pranto primordial: primeiro nexo, como est dito na quinta estrofe da ltima parte do poema, o leitor tem de passar pela glosa da fsica cosmognica da segunda, de acordo com o traado do prprio poeta, num movimento solidrio de dvidas e buscas, expondo-se s frustraes ilimitadas do horizonte humano e tambm recolhendo as alegrias do entrever nexos e conexes. E para isso, e para um poeta contemporneo que de sua contemporaneidade l a tradio das leituras, como o caso de Haroldo de Campos, repensar a mquina do mundo ser obrigatoriamente indagar pela mquina do poema que concretiza as articulaes entre poesia e pensamento. Da os ltimos e admirveis versos inquisitivos do poema: 151.1. finjo uma hiptese entre o no e o sim? 2. remiro-me no espelho do perplexo? 3. recolho-me por dentro? vou de mim 152.1. para fora de mim tacteando o nexo? 2. observo o paradoxo do outrossim 3. e do outrono discuto o anjo e o sexo?Juan Esteves

O POLIEDRO CORTZARA publicao de Octaedro e do segundo volume da Obra crtica permite uma reavaliao da obra de Cortzar que transcende o contexto do realismo fantstico, ao qual o escritor argentino pertenceu, realando a lgica sofisticada de textos em que personagens e enredos funcionam como variveis de uma equao narrativaReynaldo DamazioFotos: Sara Facio14 Cult - outubro/2000

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Aceita como fantstica pelo prprio autor por falta de melhor nome a obra de Julio Cortzar (1914-1984) desafia leitores e crticos como um jogo de cubo mgico, oferecendo uma variedade combinatria infinita de figuras e cores. Escritura polidrica, polimorfa, cujos planos de narrao parecem refletir outros planos que reverberam em planos inesperados. A dificuldade em enquadrar textos to diversos entre si e ao mesmo tempo complexos em sua urdidura narrativa, como Histrias de Cronpios e de Famas, Prosa do observatrio e O perseguidor, para ficar em alguns exemplos, leva muitas vezes a mistificaes e superficialidades. Como se Cortzar fora um bruxo da prosa, movido por razes alqumicas que nos escapam, manipulando frmulas cifradas e envolto numa bruma de insondveis arcanos. Na verdade, o escritor que construiu em O jogo da amarelinha uma verso latino-americana do Ulisses joyceano, como Guimares Rosa fez em portugus com Grande serto: Veredas, seria melhor comparado a um prestidigitador. A manipulao da linguagem que realiza a do ilusionismo, jogando com truques sofisticados que chegam mesmo a colocar em xeque o prprio mecanismo de prestidigitao, no caso a escrita. Tomados isoladamente, os textos podem parecer

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ora surrealistas, ora gticos, instaurando atmosferas onricas que sugerem labirintos inexpugnveis, quase maneira de um de seus interlocutores ilustres: Jorge Luis Borges. Por outro lado, se observados em conjunto e cotejados com ensaios, artigos e entrevistas, percebe-se uma poderosa mente fabulatria a montar complicados quebra-cabeas, com peas que estrategicamente mudam de forma para se adaptar a novas imagens e confundir o leitor, alterando bruscamente o conjunto. A publicao de Octaedro e do segundo volume de sua Obra crtica, organizado por Jaime Alazraki, permite uma oportuna reavaliao. Embora a obra de Cortzar possa ser considerada um contundente libelo contra as limitaes da racionalidade ocidental e uma questionadora feroz da precariedade do cientificismo castrador que a todos nos orienta, no se pode negar a presena de um raciocnio ordenador, geomtrico, meticuloso na construo dessa mesma obra. Esse fascinante processo de articulao circular na fico cortaziana est muito bem decodificado em O escorpio encalacrado, estudo seminal de David Arrigucci Jr. Cortzar tentava despistar crticos e exegetas afirmando que no havia planejamento na confeco de seus textos, mas que, ao contrrio, era conduzido como

que por uma necessidade medinica. Todo autor, no fim das contas, tomado pelo texto que compe e fica merc de suas estruturas internas. Acontece que na fico de Cortzar h vrios indcios de uma busca obsessiva pela construo de narrativas precisas, meticulosas e matematicamente arquitetadas, onde h uma condensao exasperante de recursos estilsticos e referncias literrias, articulando-se de um modo coeso e intenso sob a chancela do livro impresso. Situaes e personagens transitam entre os contos como que a oferecer novos ngulos de uma experincia de vida que jamais poderia ser apreendida de forma absoluta e definitiva. Cenas aparentemente banais so rasgadas por um episdio inslito que altera a ordem estabelecida e expe uma dimenso estranha do real. H certos momentos em que o absurdo passeia tranqilo pelo cotidiano e se acomoda ao seu ritmo montono. Noutras vezes, o cotidiano mesmo revela sua face perversa de irracionalidade, com bruscos solavancos. Em todos os relatos se percebe a conduo rigorosamente medida, o salto calculado da frase, o traado preciso da parbola, a tenso angustiante com que a linguagem moldada em seus detalhes e efeitos mnimos, sem rebarbas e volteios, at mesmo nos contextos em que nos sentimos beira do nonsense. Cortzar d sentido ao imoutubro/2000 - C u l t 15

CIVILIZAO BRASILEIRA EDITA OBRA CRTICA DE CORTZARA editora Civilizao Brasileira, do Rio de Janeiro, est publicando pela primeira vez no Brasil a Obra crtica de Julio Cortzar, reunindo ensaios, resenhas e artigos escritos pelo autor argentino. O primeiro volume (112 pgs., R$ 17,00) organizado por Sal Yurkievich e traz os textos que compem A teoria do tnel, de 1947, em que Cortzar, ao discutir o romance moderno, formula uma potica que estar presente em seus livros de fico; o segundo (368 pgs., R$ 38,00) acaba de ser lanado e tem organizao de Jaime Alazraki, que compilou os textos anteriores a O jogo da amarelinha; o terceiro volume est previsto para abril de 2001 e organizado por Sal Sosnowski, que reuniu ensaios posteriores a O jogo da amarelinha. A Obra crtica de Julio Cortzar tem traduo de Paulina Wacht e Ari Roitman. A editora prev tambm o lanamento de dois outros livros ainda inditos no Brasil: em dezembro, ser publicado 62/ Modelo para armar e, em janeiro do prximo ano, o poema dramtico Os reis, de 1949. Alm disso, a Civilizao Brasileira est reeditando a obra ficcional do escritor com novo projeto grfico. O relanamernto mais recente Octaedro (traduo de Gloria Rodrguez). J foram republicados tambm O jogo da amarelinha (traduo de Fernando de Castro Ferro) e Histrias de Cronpios e de Famas (traduo de Gloria Rodrguez). Outras edies do escritor no Brasil so: Bestirio (Nova Fronteira), As armas secretas (Jos Olympio), Os prmios (Civilizao Brasileira), Todos os fogos o fogo (Civilizao Brasileira), Prosa do observatrio (Perspectiva), Livro de Manuel (Nova Fronteira), Algum que anda por a (Nova Fronteira), Um tal Lucas (Nova Fronteira), Fora de hora (Nova Fronteira), Nicargua to violentamente doce (Brasiliense), O exame final (Civilizao Brasileira), Dirio de Andres Fava (Jos Olympio), Adeus Robinson e outras peas curtas (Civilizao Brasileira), Orientao dos gatos (Nova Fronteira), Valise de cronpio (Perspectiva).

palpvel, ao indizvel, ao estranhamento sem explicao de seus personagens diante da realidade despida de mitos, de f, de razo e de esperanas. Faz com que a anormalidade nos parea normal, ainda que apresente fraturas abissais na ordem aparente das relaes. A conteno e a coeso so to determinantes na montagem das narrativas que acabam por estabelecer uma atmosfera claustrofbica. Basta lembrar alguns de seus contos mais conhecidos, como: A casa tomada, de Bestirio; A auto-estrada do sul, de Todos os fogos o fogo; Pescoo de gatinho preto, de Octaedro; Ningum tem culpa, de Final do jogo. Os personagens experimentam dramas psicolgicos e existenciais profundos em espaos fechados, sufocantes, intimidadores, seja numa casa, no metr, num terrvel engarrafamento ou dentro do prprio pulver. Uma variante metafrica do enclausuramento representada pelo ncleo temtico da doena. O enredo se constri a partir da enfermidade de um personagem ou da observao dos que esto volta do moribundo. Veja-se os contos A sade dos doentes e Senhorita Cora, em Todos os fogos o fogo; Liliana chorando e As fases de Severo, em Octaedro. Os textos esto assentados numa sofisticada lgica estocstica, probabilstica, em que personagens e enredos16 Cult - outubro/2000

funcionam como variveis na equao da narrativa. A incluso de um personagem um gesto furtivo no metr, ou mesmo o surgimento de um ente fantstico como o inexplicvel cavalo branco no conto Vero, do livro Octaedro podem guinar radicalmente os rumos da trama e gerar desfechos inesperados. No meio de um pargrafo, ou de uma frase, pode-se dar a ruptura e o leitor se v projetado num patamar diverso de realidade, como se estivesse em constante estado de interseo. O conto O outro cu, de Todos os fogos o fogo, tem um princpio revelador: Acontecia-me s vezes que tudo ia por si mesmo, abrandava-se e cedia terreno, aceitando sem resistncia que se pudesse passar assim de uma coisa a outra. Essa travessia intratextual, que poderamos tambm chamar de permuta entre estgios de conscincia e percepo, um mecanismo recorrente na obra de Cortzar. O leitor caminha sobre um equilbrio precrio, tem de aceitar as regras do jogo e correr riscos. Cada passo nesse bosque ficcional provisrio, pode-se avanar recuando ou perder-se em atalhos que levam a caminhos inexistentes. Numa entrevista para um documentrio de televiso, Cortzar dizia que ao entrar no metr sempre tinha a sensao de que estava mergulhando numa outra dimenso de espao e de tempo. Ficava

imaginando que ao voltar superfcie poderia se deparar com um mundo ou uma poca diferentes. Alm de usar o prprio metr como cenrio e variante temtica em diversas narrativas, a metfora dos mundos paralelos (defendida hoje at como hiptese cientfica por certas correntes da fsica ps-quntica) se configura em sua obra como um forte eixo catalisador. A explorao desses mundos projeta o leitor no campo da incerteza. Os contos tangenciam realidades paralelas que se multiplicam e se refletem como num labirinto de espelhos. Aqui chegamos a uma outra obsesso de Cortzar, cognitiva por excelncia, que permite a sntese paradoxal entre o ldico e o racional, o abstrato e o concreto, a regra e o improviso, o destino e o acaso: os jogos. No parece casual que o segundo dos quatro volumes de textos recompilados pelo autor, pouco antes de morrer, para a Alianza Editorial, da Espanha, tenha o ttulo de Juegos. Nele esto reunidas 29 narrativas que, segundo o escritor, teriam como fio condutor aquela rubrica. No relato Nota sobre o tema de um rei e a vingana de um prncipe, Cortzar explica a gnese do conto Clone, presente no mesmo volume. A idia era criar uma narrativa nos moldes de uma pea de Bach. O escritor se baseou no arranjo de Millicent Silver

OS PERSONAGENS EXPERIMENTAM DRAMAS PSICOLGICOS E EXISTENCIAIS PROFUNDOS EM ESPAOS FECHADOS, SUFOCANTES, INTIMIDADORES, SEJA NUMA CASA, NO METR, NUM TERRVEL ENGARRAFAMENTO OU DENTRO DO PRPRIO PULVERpara oito instrumentos contemporneos do compositor alemo, gravado pela London Harpsichord Ensemble. O projeto ficou guardado por um tempo. Durante uma viagem praia, e consultando uma fotocpia da capa do disco, o mbile comeou a ser montado: A regra do jogo era ameaadora: oito instrumentos deveriam ser representados por oito personagens, oito desenhos sonoros respondendo, alternando ou opondo-se deviam encontrar sua correlao em sentimentos, condutas e relaes de oito pessoas. Mas Cortzar considerou que seria invivel criar um duplo literrio da orquestra londrina, traando relaes entre a vida dos personagens e os instrumentos. Somente depois de uma conversa casual conseguiu chegar soluo do dilema. Inspirado no madrigalista da Renascena Carlo Gesualdo, transformou os oito instrumentos musicais em integrantes de um conjunto vocal. A partir da seria possvel desenvolver a ao dramtica espelhada com os sucessivos movimentos da Oferenda musical de Bach, segundo o prazer que o escritor se havia proposto antes de mais nada. O fato de o compositor Gesualdo, prncipe de Venosa, ter assassinado a esposa acaba oferecendo um tempero especial trama. A obsesso por jogos fica evidente tambm em seu romance O jogo da amarelinha. Desde o ttulo, Cortzar desenvolve um imenso painel de peas (narrativas) que se intercambiam, podem ser montadas pelo leitor e at possui um roteiro de leitura oferecido pelo escritor. Esse metatexto provocador e irnico registra a busca de um escritor por sua identidade, pelo sentido da existncia, por uma possvel salvao do inferno pelo amor, uma variao do tropo poesia como purificao utpica, mas principalmente se trata da procura do prprio romance. O texto que narra suas possibilidades de se tornar narrao, autotelicamente. A imagem do percurso entre cu e inferno, no jogo infantil, recai perfeitamente como metfora da trajetria do escritor, dividido entre anjos e demnios no mais metafsicos, mas terrivelmente humanos, de carne e desejo. H quem hoje considere O jogo da amarelinha o precursor do hipertexto. De fato, est ali uma colagem de textos que podem ser refeitos, reordenados, recompostos em outros textos originais. Um romance estruturalmente hbrido e desdobrvel, de onde se pode tirar outros romances, contos, ou at ensaios. Em A volta ao dia em oitenta mundos, Cortzar cria o inventor de uma mquina complexa para ler O jogo da amarelinha, a Rayuel-O-Matic. H grficos da engenhoca, com instrues para instalao e uso. Auto-ironizao extrema com as supostas dificuldades de leitura de seu denso romance, mas tambm um desenvolvimento bem-humorado do processo metalingstico, dos jogos do texto consigo mesmo. Alm de demonstrar o longo e exaustivo processo de elaborao de um pequeno conto ou de um romance de quase 600 pginas, os exemplos acima apontam para uma outra fixao cortaziana. O livro Octaedro, cujo ttulo se refere a uma figura geomtrica de oito faces, enfeixa oito contos, assim como Bestirio e Todos os fogos o fogo. Os trs livros parecem compor um complexo artifcio de simetrias, correspondncias, interconexes. Em todos se apresentam a smula das inquietaes de Cortzar: os seres extraordinrios, o limite entre o real e o absurdo, as relaes pessoais marcadas por uma comunicao precria e truncada, os jogos com a temporalidade, a metalinguagem e a perda dos liames entre a razo e o entorno. Sob a figura perfeita de um octaedro, abrigam-se as inquietaes e os questionamentos mais profundos do autor, muitas vezes travestido em seus personagens. Cada conto representa uma face da figura. As faces dialogam entre si segundo uma rigorosa combinatria vetorial. Formamse pares temticos: dois contos falam de literatura, dois de doena, dois de jogos no metr e dois de relacionamentos. Asoutubro/2000 - C u l t 17

simetrias se propagam. O mesmo jogo pode ser aplicado a Bestirio e Todos os fogos o fogo. Num outro livro maravilhoso como Prosa do observatrio mistura de crnica, ensaio, prosa potica, apontamentos de viagem , a obsesso pela forma, pelo geomtrico, se amalgama com a observao de monumentos e edificaes indianos. A reflexo sobre a paisagem ganha contornos filosficos e cosmolgicos, resultando num texto delicioso, pleno de musicalidade. A galxia reflete o fundo do oceano, plnctons e estrelas se irmanam. Ao contrrio dos escritores que tornaram a literatura latino-americana conhecida internacionalmente como a gerao do realismo fantstico, e ainda que pertencendo ao contexto, a obra de Cortzar est distante do neo-barroquismo de inspirao lezamesca e no tem parentesco algum com Gabriel Garca Mrquez, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes. Seus textos circulam em outro cdigo e resultam do cruzamento de Edgar Alan Poe com Anton Tchekhov, de Ernest Hemingway com Franz Kafka, de Roberto Arlt com Jorge Luis Borges. Ser preciso buscar tambm correspondncias com a poesia de Rimbaud e Mallarm, de Lugones e Juarrs, com a ironia patafsica de Alfred Jarry, com as reflexes potico-existenciais de Paul Valry e os delrios metafsicolingusticos de Antonin Artaud. Um livro como Histrias de Cronpios e de Famas, com sua mitologia fantstica e alta voltagem de poeticidade, est prximo de Borges e de Italo Calvino. Final do jogo talvez exemplifique um de seus livros em que o encontro com Kafka esteja mais acentuado. A histria do saxofonista drogado e bomio Johnny Carter, em O perseguidor, puro Hemingway. Os textos de Cortzar no so feitos de transbordamento metafrico, tampouco de estilhaamento do significante, mas de distores sutis do significado, de modulaes delicadas na superfcie do discurso. Se pertinente comparar seu estilo ao improviso jazzstico, em analogia s performances de18 Cult - outubro/2000

Charlie Parker e Miles Davis que tanto admirava, tambm se deve lembrar da referncia s fugas bachianas, com seu rigor construtivo. Mesmo sendo um admirador fervoroso do surrealismo, como se constata em artigo de 1948 sobre a morte de Antonin Artaud, Cortzar nunca se rendeu ao automatismo da escrita, ou ao fluxo livre da conscincia. Para ele, o surrealismo era importante como uma postura filosfica que conduzisse ao reconhecimento da realidade como potica mais do que uma corrente ou modismo literrio. Ainda nesse artigo, talvez esteja uma das snteses possveis de seu pensamento sobre a relao entre literatura e realidade: viver importa mais do que escrever, a menos que escrever seja como to poucas vezes um viver. Esse ideal da arte como um modo de existncia, contrria rotinizao e aos padres socialmente impostos, traduzida ainda no desejo de que a vida saia dos livros, est na raiz de toda a fico de Cortzar. A literatura no poderia jamais congelar a vida, mas transpir-la, impregnar-se dela. Caberia literatura ser to intensa e contraditria como a vida, sem mscaras ou frmulas. Como no exemplo extrado de uma carta de Artaud, escrita no asilo de loucos de Rodez, seu desejo no era apenas ser escritor para escrever, mas para viver o escrito, para dar ao texto a pulsao da existncia, injetando libido nas entrelinhas. Escritura e vida emaranhadas no mesmo corpo, sem a intermediao ancestral da lmina fria do espelho. Originalmente, Cortzar era poeta. Seu livro de estria, Los reyes, de 1949, um poema dramtico sobre o mito de Teseu e o Minotauro, tema que seria reaproveitado em outros livros. Escreveu tambm sonetos de dico mallarmeana, quase formalistas. Em A volta ao dia em oitenta mundos publicou alguns poemas que fazem parte de uma longa srie, escrita nos anos 50. Mas sobretudo em seus ensaios sobre literatura que se tem a noo mais precisa da importncia da poesia na vida e na obra de Cortzar. No artigo intitulado

Para uma potica, de 1954, ele faz uma linda aproximao entre a viso de mundo do poeta e a dos povos primitivos. Ambos lidam com o real de forma analgica. H uma relao de encantamento com o existente, de identidade sem mediaes entre seres e coisas, entre mente e matria. Segundo Cortzar, a admirao pelo que pode ser nomeado ou aludido engendra a poesia, que se propor precisamente a essa nominao, cujas razes de clara origem mgico-poticas persistem na linguagem, grande poema coletivo do homem (o grifo do autor). Como um mago metafsico o poeta se identifica com aquilo que nomeia, pois justamente aquele que agrega ao seu ser as essncias do que canta (...). J em 1941, num artigo sobre Rimbaud, assinado com o pseudnimo de Julio Denis, Cortzar afirmava que via na poesia uma espcie de desenfreamento total do ser, sua apresentao absoluta, sua entelquia. Tal qual um rito inicitico que encarna o mito fundador, a poesia estaria na origem de tudo, especialmente da linguagem, que nos torna demasiado humanos. Assim tambm est no incio do percurso textual de Cortzar, dividido entre o magistrio, as tradues e o exerccio de uma crtica literria brilhante numa Buenos Aires enigmtica, labirntica, universal numa esquina, provinciana noutra. Como Borges, ele tambm procurou o fio de Ariadne. Vivendo em Paris, a partir de 1951, incorporou sua experincia literria o deslocamento afetivo-intelectual do exlio. As cises vo se multiplicando, na alma e na pgina em branco, os caminhos se bifurcam, a mquina do mundo se abre de SaintGermain-des-Prs a Bnfield, de Nova York a Outro Preto, de Jaipur ao planeta Faros. Dessa mquina saem axolotes, mancspias, angilas, Maga, Paco, Morelli, Lucho, Margrit e muitos mais. Estamos todos l.Reynaldo Damaziojornalista, editor do departamento de publicaes do Memorial da Amrica Latina e do site Weblivros! (www.weblivros.com.br)

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A COSMOPISTA DO RISCOSal SosnowskiPor razes cannicas, ou por passageiras modas acadmicas, h textos que suscitam anlises solenes ou prximas demais a esquemas individuais e que se adequam a manobras terico-ideolgicas (provisrias, certamente) que carregam sua prpria verso da verdade. Lidos em outra sintonia, esses mesmos textos podem incitar ao dilogo aberto, franco e incondicional; principalmente quando pertencem a autores que apostaram em outra leitura e em outra definio da literatura e de seu mundo. Dentre aqueles que estenderam pontes, fomentaram seu trnsito e formalizaram a cumplicidade do leitor encontra-se Cortzar. O tom que reconheceramos como sua marca instalou na prtica literria a sutil desculpa do primeiro Borges1 e o fez j no por circunstncias fortuitas, e sim assumindo a responsabilidade por todo ato, pela leitura e por aquilo que desliza a partir das bordas do livro. A partir dessa perspectiva e, em diferentes instncias de seu posicionamento ideolgico, podemos ler, dentre outros, Continuidad de los parques e Las babas del diablo2. Dada a generosidade do desafio e a aventura que sempre se insinua no quintal de20 Cult - outubro/2000

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uma casa, pelo corredor de algum ministrio ou pelo corredor de um nibus, pelo respaldar de um assento ou pela mo sedutora num corrimo, no convs de um barco ou no voluntrio recolhimento de um apartamento parisiense, no casual o dilogo desejoso de que nos apropriamos ao ingressar na obra de Cortzar. O pacto que se torna vigente ao abordar seus textos se reveste de um ar de sedutora intimidade, de aposta no possvel, de confiana com sinais de alerta, de f no sentido prprio dessas dimenses que no se conseguem vislumbrar, mas que sempre esto por perto do desejo. Percebemos isso na sria leveza humorstica de seus cronpios e famas e na ocasional conduta de Lucas; no escndalo e no terror de contos que vo de Casa tomada a No se culpe a nadie, Satarsa e Pesadillas; no inquietante enquadramento potico das histrias que organizam Reunin e Apocalipsis de Solentiname; na busca de algum sistema para que algo ou algum diga Las babas del diablo; nas interminveis investigaes do Clube da Serpente e nas apostas de todos os seus perseguidores para achar alguma coisa mais vivencial que a submisso ao cotidiano, algo mais que a alternativa entre a

entrega e a loucura; no to simplesmente e, para sempre, algo mais.3 A 16 anos de sua morte, perdura o perfil de um rebelde com causa que em sua poca freqentou a tmida poesia e o raro drama junto traduo e docncia, o culto de letras inglesas e francesas, a reflexo sobre o existencialismo e o regozijo perante o surrealismo, as pginas de Realidad e o clima de Sur, os cones peronistas e a sada para o que s sob a ditadura dos anos 70 perceberia como exlio.4 Talvez mais do que com qualquer outro intelectual latino-americano de nossos dias, em Cortzar se entrelaam carinho, convico e ternura, admirao por sua retido tica, pelo compromisso e pela solidariedade5 palavras que se tingiram de nostalgia e cinismo no desmembramento das comunidades. Uma leitura de sua variada dimenso literria atravessa a inocente carcia carregada de erotismo, o encontro dos corpos e o amor em glglico (balbucio), o sonho de revanche do boxeador cado e a dvida entre as cordas e a mancha no asfalto, a denncia dos assassinos e a segurana do burocrata, a exaltao do indivduo e a recuperao do abandonado por um longnquo erro da espcie. E ao longo das dcadas, de amores

Os jogos literrios de Cortzar correspondem ao impulso de reconhecer as regras do mundo e de fugir de tudo o que normativo, estabelecendo uma cartografia do desejo cujas preocupaes polticas e carga ertica libertria j estavam presentes em seus contos fantsticos de juventudee travessias, sempre a busca de alternativas, de outro modo de dizer e de escrever; o que tambm outro modo de ser. Nesse sentido, logo aps as comemoraes do primeiro centenrio do nascimento de Borges [ocorridas em 1999], prefiro evitar a to citada circunstncia de ter sido Borges quem publicou o primeiro conto de Cortzar (Casa tomada) e sua valiosa apreciao6, para recuperar, em compensao, El escritor argentino y la tradicin. No contexto dos debates sobre nacionalismo e representao, sobre o simulacro de verossimilhana do realismo folclrico e a construo da nao, assim como sobre o lugar da Argentina perante as tradies literrias e as guerras europias, surgia a pergunta: Qual a tradio argentina?. Dada a peculiaridade do pas e a de sua prpria herana cultural, Borges propunha uma resposta perdurvel: Acredito que nossa tradio toda a cultura ocidental, e acredito tambm que temos direito a essa tradio, mais do que podem ter os habitantes de uma ou outra nao ocidental.7 Sugere que no devemos temer e que devemos pensar que nosso patrimnio o universo; lanar mo de todos os temas, e no podemos limitar-nos ao argentino para sermos argentinos: porque o ser argentino uma fatalidade e nesse caso o seremos de qualquer modo, o ser argentino uma mera afetao, uma mscara.8 Em suas consideraes, Borges passa rapidamente de ocidente a universo, outra forma de nomear Biblioteca, e cifra, generosamente, o escritor argentino como herdeiro e inovador das letras que mereceu receber. frmula de Borges, Cortzar haveria de incorporar livremente certa presena oriental atravs de sua fascinao com a mandala, o satori e o salto desde e em direo ao ser. Por outro lado, esse debate j antigo cuja sombra ainda se projeta ocasionalmente pelo aparato cultural tambm aflorou em Cortzar; primeiro, sistematicamente em sua reflexo sobre as estratgias do conto e, depois, quando, em virtude da publicao de Fantomas 9 e seus possveis alcances populares, volta a narrar a reao dos gauchos argentinos diante de La pata de mono, de W.W. Jacobs, em contraposio ao alimento que lhes prodigavam os folcloristas.10 O interesse por essas precises adquiriria, particularmente nos e a partir dos anos 60, uma dimenso continental. Hoje, esta se v diluda na cada vez mais difusa nomenclatura de o latino/o hispnico nas terras globalizadas do norte, enquanto, diante de crescente migrao interna, perdura e se acentua com claras expresses racistas e xenfobas no discurso nacionalista e regional. Sem recair no que j foi estudado em outro lugar, cabe assinalar que, ao cruzar o oceano e ao participar da promessa que significou a Revoluo Cubana, Cortzar se redefiniu: sem deixar de ser o que sempre foi (essa fatalidade de ser argentino), assumiu seu latino-americanismo e atuou conforme suas exigncias em diversos cenrios da Amrica violentada. Em anos recentes, em que a construo das identidades se tornou um lugar-comum de setores acadmicos que pugnam por instalar seu discurso como alternativa ao que percebem como ameaa figura individual e aos interesses agregados de multplices minorias, esse modo que Cortzar teve de pensar-se em funo da histria mais prxima e de comprometer-se com ela sugere algo mais que a conduta poltronesca daqueles que, por razes de idade, convenincia ou cinismo, perderam a revoluo. Essa atitude tambm impe sua prpria reflexo sobre o manuseio da lngua,outubro/2000 - C u l t 21

Leia a seguir a cronologia de Cortzar extrada do site www.juliocortazar.com.ar, editado por Bruno Szister, que contm vrias fotografias e informaes sobre a vida e a obra do escritor argentino: 1914 Julio Florencio Cortzar nasce em Bruxelas (Blgica) no dia 26 de agosto. 1916 A famlia Cortzar se instala na Sua, onde aguarda o fim da Primeira Guerra Mundial. 1918 Retorno Argentina (Buenos Aires). 1928 Inicia seus estudos na Escola Normal de Professores Mariano Acosta. 1935 Obtm o ttulo de Professor Normal em Letras e ingressa na Faculdade de Filosofia e Letras, que abandona depois de um ano.

esse outro instrumento para possuir e definir a realidade. Para Cortzar, cuidar da lngua era recri-la, pass-la pela peneira do cemitrio assim definiu algum dia o Dicionrio da Real Academia Espanhola para dar-lhe vida, ritmo de rua e de sentidos, regozijo e sbria preciso, a generosa sabedoria de uma identidade que se reconhece nos caminhos compartilhados. Hoje, quando tantos latino-americanos nos EUA entregam-se, rendendo idioma e definio de ser, ao reconhecimento de um pblico que saboreia outros sons ou o que acaba sendo mais mesquinho, embora d a medida de seus praticantes ao escasso renome da academia (e j no s estadunidense, mas tambm s que se querem suas filiais), percebo nesse castelhano mantido nas dcadas parisienses uma moral que teria colhido outra epgrafe para Rayuela (O jogo da amarelinha) la Csar Bruto, claro. E esclareo que no falo de opes vitais nem de integrao cultura francesa, como fez magistralmente Hctor Bianciotti, mas da hipocrisia de rebeldes de sala de aula que, para aceitar suas prprias origens, apelam a prestigiados ndios da ndia, a asiticos que compreendem sua prpria cultura e, assim, do mesmo modo que no sculo XVI, seguem confundindo a cartografia de etnias, culturas e letras. Se, com El perseguidor, Cortzar passou do eu ao ns, com Reunin antecipou o que j seria parte integrante de sua obra crtica: a reflexo a partir do22 Cult - outubro/2000

lado no-doutrinrio da simpatia a favor do socialismo. Adotou, igualmente, a defesa dos direitos humanos que o levaria a participar no Tribunal Russel sobre o Chile, a intervir nas multplices mesasredondas geradas pelo clima desses anos e a escrever uma srie de textos posteriormente publicados em vrios livros sobre a Argentina e a Nicargua.11 Embora alguns de seus leitores de primeira hora tenham se surpreendido diante da virada poltica de Cortzar, nem seu interesse pelos direitos humanos nem sua dedicao para enfrentar, a partir da cultura, as ditaduras do Cone Sul e a Nicargua de Somoza foram surpreendentes. A semente de suas preocupaes e a tica que erigiu sua obra acham-se ainda em seus contos fantsticos de juventude. Por outro lado, embora sempre tenha se negado a produzir uma literatura de tese ou a responder aos requerimentos de uma literatura poltica por encomenda, sim, foi notria a mudana de perspectiva e nfase nos ensaios que escrevera nos anos 40 e 50 diante dos publicados a partir dos 60.12 Seus primeiros textos apontaram para uma zona na qual as categorias deviam ser matizadas, onde o alternativo ainda era o prdio do multplice e do simultneo. Para abordar o mundo sugerido por seus textos, entra-se pela fissura, pelo espao que navega por entre as letras, pela dvida sistemtica, pelo interrogante que suspende toda certeza para lanar possibilidades e aberturas. Instalados em sua dimenso, caberia esperar que a qualquer

momento se pudesse oscilar entre a queda e o impulso em direo a outro salto; entre renunciar a uma escassa segurana de uma ordem que ia se despedaando e atravessar uma ponte ou uma galeria ou um oceano (ou apenas sair/ se do porto) para acariciar outro perfume, degustar o sabor de outra pele, ouvir a msica das esferas. Para Cortzar e para aqueles que aceitam ser seus cmplices, a literatura risco, enfrentamento e procura; aposta e modo de vida to irrenunciveis como a fora de eros, como olhar os outros e reconhecer-se na prtica solidria que oferece proximidade, amizade, amor e tambm, quando a histria o exige, a fora necessria para opor-se violncia. Ainda amparados por filiaes literrias e pela inquietante sombra das tradies que cifra Borges nesses (e todos?) nossos dias e que incluem no s a exaltao do indivduo e seu culto coragem como tambm a responsabilidade dos homens perante a histria , com Cortzar mudamos de geografia. Cruzaremos ocasionalmente quintais portenhos, margens e exotismos do pouco freqentado ou lugares que so filhos da imaginao, mas, em Cortzar, tambm acharemos o descobrimento da gozosa cartografia do desejo, o redescobrimento do eros combatente. De forma apertada e muito prxima (como possivelmente corresponda enunci-lo), trata-se de conjugar o corpo como lugar de encontro, de outorgar-lhe um prdigo tempo e espao sobre-a-terra diante do

C R O N O L O G I A1938 Publica sua primeira coleo de poemas, Presencia, com o pseudnimo Julio Denis. 1944 Publica seu primeiro conto, "Bruja", na revista Correo Literario. 1945 Rene um primeiro volume de contos, La otra orilla. 1946 Publica o conto "Casa tomada", na revista Los Ananes de Buenos Aires, dirigida por Jorge Luis Borges. 1951 Lana seu primeiro livro de contos, Bestirio. Obtm uma bolsa do governo francs e viaja a Paris. Comea a trabalhar como escritor na Unesco. 1953 Casa-se com Aurora Bernrdez. 1962 Publica Histrias de Cronpios e de Famas. 1963 Lanamento de sua obra mais conhecida, O jogo da amarelinha. 1972 Edita Prosa do observatrio. 1973 O livro de Manuel ganha em Paris o Prmio Mdicis. 1974 Publica Octaedro. Participa do Tribunal Russell II, reunido em Roma para examinar a situao poltica na Amrica Latina, em particular violaes a direitos humanos. 1981 Obtm nacionalidade francesa. 1982 Em novembro, morre sua companheira, Carol Dunlop. 1983 Aparece o livro Los autonautas de la cosmopista, escrito a quatro mos com Carol Dunlop. Publica Nicargua to violentamente doce. 1984 Em 12 de fevereiro, Julio Cortzar morre de leucemia e enterrado no cemitrio de Montparnasse.

repressor corpo-para-terra; trata-se de aceitar, a partir da intimidade do gozo, da harmonia, do eu-voc, que na pele mais profunda que se inicia o que chegar a ser (ou no) a liberao de todas as foras e de todo sistema. Talvez nessa nfase que Cortzar adjudicou a eros e ao jogo (ao jogo/ fogo de eros) tambm se encontre a origem da independncia qual jamais renunciou, mesmo em instncias em que tantos outros, rendidos a ordens, partidos e frmulas, exigiam dele a partir das bases do compromisso. Alm da dimenso justiceira das verdadeiras revolues e das lutas que reivindicam os direitos humanos, essas carregam uma carga ertica e mltipla, prpria de toda liberao. No casual a conjuno que define os anos 60 em que, reivindicao poltica, somou-se como parte do clima, mas sem que fosse possvel sua integrao a trade sexo-rock-droga. O massivo pode ser irredutvel quando se trata de movimentos de liberao poltica; no o menos o recorte do desenho mais demarcado dos corpos, desse eu-voc, quando se situam em outro cenrio. Historizando, diramos que Cortzar foi um homem dos anos 60 que aceitou sua incipiente verso dos 40 e 50, assim como depois respondeu ferocidade dos 70 para aportar, a partir dali, nas promessas dos 80 e a uma compreenso mais lcida dessas pocas. Historizando, ns o vemos a partir deste final de sculo no s como companheiro de rota assim o tacharam

alguns a partir de suas prprias distncias, esquecendo o valor de tal companhia , mas como forjador (o termo no excessivo) das letras que interpretam nossos compartilhados tempos. Os clssicos no so somente os livros nos quais um povo l e interpreta seus desgnios (matizando a verso de Borges), mas tambm os que na mais humana cotidianidade da histria literria so compreendidos como divisores de guas. J que no nos dada a profecia e, portanto, ignoramos como se ler ao completar-se o centenrio de sua publicao, aceitemos que para nossos dias a importncia de Rayuela suficiente para marcar um antes e um depois na literatura latino-americana. Pela dinmica e pelo esprito das jornadas que acompanharam sua publicao, Rayuela no est sozinho (o solitrio jogo individual ainda se goza mais quando vem acompanhado); integra um ncleo seleto de romances que, despreocupadamente, aguarda sua superao, deslocao, substituio modos substantivos para designar as esperanadas escaramuas de alguns cnegos de claustro. Sem sentimentalismo nem cega exaltao de uma poca, o fato que foram dias de experimentao e de ruptura (tambm no literrio) e que, pouqussimos anos depois de terem ocorrido, foram reconhecidos como transformadores da histria. E, com certa nostalgia, cabe recordar dias em que a nfase na primeira pessoa do best seller de um quilmetro quadrado de metrpole no

merecia o interesse de todos os leitores, em que o minimalista no era o oposto ao pico e em que a histria no era desvelar os namoricos de caudilhos decimonnicos. Talvez, ento, tenha-se vivido dias menos egostas por sentir que a palavra e aqueles que a enunciavam eram responsveis por algo mais alm do que seu lugar em uma pgina diria e o comentrio dos suplementos; talvez porque a promessa de outras alternativas estivesse na rua ou porque ns, os leitores, tivssemos achado vozes e interlocutores que soubessem abrir a porta para ir jogar e para antecipar que outras ordens jaziam atrs da gran des/orden. Talvez tambm porque nos ensinaram que nem todas as viagens so a viagem; que a sua no era uma metfora atualizada do intelectual procura das musas europias para regressar iluminado para suas terras. Essa ronda voluntria, como no caso de Cortzar; o produto de exlios, em tantos outros anunciava um modo mais abrangente e generoso de ver o mundo. Como toda sada ao mundo, essa foi propcia para dialogar com outras vozes e outras culturas e mais ainda: para ouvir a prpria voz para que, enriquecida por outras culturas e outras vises, voltasse a enunciar novos matizes e soma do prprio. Sempre foi possvel narrar o universo falando da aldeia, mas foi igualmente necessrio sair da aldeia para conhecer seu lugar no mundo e a partir dali iniciar o conhecimento das origens e de seus possveis futuros.outubro/2000 - C u l t 23

Termos definidores como fantstico, realista, material, espiritual fixam limites em seu prprio enquadramento e, portanto, acusam sua prpria insuficincia para dar conta de tudo aquilo que excede os fichrios em sua poca o descobriram, e praticaram, os seguidores da classificao de Todorov em torno da literatura fantstica e, mais recentemente, aqueles que fixam o romance histrico. Do outro lado do af classificatrio, cuja meta , precisamente, definir uma medida de comodidade didtica, tudo tem nome e, ocasionalmente, at o que merece. Tudo e, especialmente os jogos, como tantas vezes nos recordou Cortzar, responde a regras; por isso que, para quem as reconhece, essas mesmas incitam a seu abandono e transformao quando mais no seja para estabelecer outras verses desses mesmos modos de viver e gozar e entender e voltar sobre a vida. H, alm disso, uma constante no impulso por sair do normativo. No uma simples reao contra o certificado de boa conduta e as convenes; tampouco um gesto anrquico ou de repdio gratuito. Provm, acredito, de uma relao que, ainda que tacitamente, articula conhecimento e poder; saber e desenvolvimento humano. No me refiro, certamente, s frmulas de organismos preocupados pela iniquidade e a marginalizao embora24 Cult - outubro/2000

isso tambm lhes incumbe e subjaze a certos enunciados na obra de Cortzar , e sim a essa sensao mais profunda de fraude que est na busca de Johnny Carter, de Persio e de Medrano, de Horacio Oliveira e daqueles que redigem O livro para Manuel inserindo a documentao jornalstica na vontade literria, para citar somente os personagens mais notrios. Se no princpio foi uma percepo ontolgica que ecoou em suas j citadas reflexes sobre o existencialismo e o surrealismo, a isso se somou posteriormente o reconhecimento da histria que estava se desenvolvendo na Amrica Latina. Ambas instncias, no entanto, sob o domnio de uma tica participativa e comprometida com o trnsito do homem pela terra e pela histria. No mais explicitamente literrio manifestou-se, por exemplo, atravs de j incipientes epgrafes como as que regem Rayuela; no poltico, por gestos como a doao dos direitos autorais s famlias de presos polticos, na interpretao do exlio como estratgia para recuperar valores e aprender a ser menos insular ao enfrentar o legado de nossas compartilhadas ditaduras, nas esgotantes jornadas de solidariedade que manteve at seus ltimos dias. E isso sem abandonar seu conhecido interesse pelos jogos, pela variante plstica da felicidade que

conheceu Julio Silva13, pela msica do jazz e do clssico ao tango e a seu memorvel Trottoirs de Buenos Aires14 tudo aquilo que fazia a seus outros segmentos de vida, enquanto tambm relia Rodolfo Walsh e Felisberto como chave de sobrevivncia e de simpatia e escrevia contos, poemas, sonhos.15 Tenho conscincia da dificuldade que encontro em escrever sobre Cortzar, pessoa e textos, sem colocar em jogo algo mais que o exerccio da crtica. O distanciamento e o sentido de estranheza podem ser produtivos, e at obrigatrios, quando, com presumida objetividade, o compromisso e a paixo so relegados pela disciplina acadmica. Nesse caso me permito acreditar que nem sempre , nem deve ser, assim e que o juzo de valor e a encenao do desejo e do corpo tambm tm (devem ter) seu lugar no sistema. No penso em estados de alma, mas sim no que suscita a reflexo sobre uma figura que marcou nossos tempos e que, alm disso, antecipou alguns dos recortes de imprensa hoje multiplicados ciberneticamente. Penso nesse latino-americanismo solidrio com o qual Cortzar e outros intelectuais de seus tempos europeus apostaram, num sentido de justia globalizada, vrios qinqnios antes que o juiz espanhol Baltazar Garzn devolvesse a esperana de que sero submetidos a ela

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aqueles que a violaram impunemente durante o exerccio do terror de estado. Penso no repdio ao nacionalismo literrio vulgar com que se impugnou o que no deixava de ser insultante para os setores menos ilustrados nas tradies culturais metropolitanas. Penso naqueles que no precisaram ser brasileiros, chilenos, uruguaios, bolivianos ou paraguaios, para constituir, em 1974-1975, o Tribunal Russel II para investigar a situao imperante nesses pases, como tampouco foi, nem , necessrio ser argentino para exercer a justia por crimes contra a humanidade. No h nessa atitude repdio de lar, nem de nao, nem de fidelidade a lnguas e culturas de fundao; h, sim, um compromisso maior com o ser humano, com a debilidade de sua existncia e com a promessa de seus logros, com aquilo que unifica atravs das diferenas e do culto diversidade e heterogeneidade cultural. Talvez por isso Cortzar tenha apostado tanto na infncia e nos jogos, em momentos em que tudo possvel, em que nada inevitvel. Talvez porque ele prprio foi um nexo entre culturas, como o demonstram seus estudos de Keats e de Poe,16 s para citar dois autores que o ocuparam durante anos, ou as tradues de Andr Gide e Marguerite Yourcenar, dentre outros e, muito especialmente,

como o confirmou sua parisiense vida latino-americana (e claro, argentina) sempre vida de universo e de calor humano. Talvez porque, como tambm o soube o autor de El jardin de los senderos que se bifurcan, Cortzar sempre escreveu, fundamentalmente, na clave da origem, do leitor cmplice numa aventura que nem comea nem acaba numa jornada de cosmopista, nem na escritura compartilhada. ltima (por hoje) compartilhada aluso: do mesmo modo que com Borges, a obra de Cortzar continua crescendo com a edio de livros que permaneceram inditos. Cada um deles17 aponta para uma procura constante de limites literrios e, em outro sentido, para mais que isso. A anunciada publicao de sua correspondncia certamente ser motivo de curiosidade e interesse. Suspeito, no entanto, que sua leitura tornar mais difcil dissociar texto e textura, porque nessas cartas veremos o que, graas sua leitura, j sabamos h muito tempo. Cortzar foi algo pouco freqente na histria das letras americanas: necessrio.Sal Sosnowskiprofessor da Universidade de Maryland, College Park (EUA); organizador do terceiro volume da Obra crtica de Julio Cortzar

traduo de Maria Paula Gurgel Ribeirotradutora de Os sete loucos & Os lana-chamas e de Viagem terrvel, de Roberto Arlt, da editora Iluminuras

"Se as pginas deste livro consentem algum verso feliz, o leitor me perdoe a descortesia de eu t-lo usurpado, previamente. Nossos nadas pouco diferem; trivial e fortuita a circunstncia de que seja voc o leitor destes exerccios e eu, seu redator." "A quien leyere", Fervor de Buenos Aires, em Obras completas, Buenos Aires, Emec, 1974, p.15. 2 "Las babas del diablo", Las armas secretas. Buenos Aires, Sudamericana, 1959, pp. 77-98; "Continuidad de los parques" em Final de juego. Buenos Aires, Sudamericana, 1964, pp. 9-11. 3 A seqncia de referncias corresponde a Historias de Cronopios y de Famas, Buenos Aires, Minotauro, 1962; Un tal Lucas, Madrid, Alfaguara, 1979; "Casa tomada", Bestiario, Buenos Aires, Sudamericana, 1951, pp.9-18; "No se culpe a nadie", Final de juego, pp.8-13; "Satarsa" e "Pesadillas", Deshoras, Mxico, Nueva Imagem, 1983, pp. 51-69 e 99-118; "Reunin", Todos los fuegos el fuego, Buenos Aires, Sudamericana, 1966, pp.67-86; "Apocalipsis de Solentiname", Alguien que anda por ah, Mxico, Hermes, 1977, pp.79-89; Rayuela, Buenos Aires, Sudamericana, 1963. 4 Para uma bibliografia completa de suas primeiras publicaes, cf. meu Julio Cortzar: una bsqueda mtica, Buenos Aires, No, 1973. 5 Um notvel exemplo dessas reaes no nmero que lhe dedicou Casa de las Americas pouco depois de sua morte, bem como o nmero de homenagem de La Maga, 5 (novembro 1994), ao completar-se 10 anos da morte de Cortzar. Tambm, e j desde o ttulo, o livro de Sal Yurkievich, Julio Cortzar: al calor de tu sombra, Buenos Aires, Legassa, 1987. Outro tipo de leitura que em alguns casos informa mais sobre o modo de ler da academia estadunidense do que sobre o estudado em Carlos J. Alonso, ed., Julio Cortzar. New Readings. New York, Cambridge University Press, 1998. 6 No prlogo aos Cuentos de Cortzar, Borges lembra ter editado "Casa tomada" e acrescenta: "O estilo no parece cuidado, mas cada palavra foi escolhida. Ningum pode contar o argumento de um texto de Cortzar; cada texto consta de determinadas palavras numa determinada ordem. Se tentamos resumi-lo, verificamos que algo precioso se perdeu". Jorge Luis Borges, Biblioteca personal: Prlogos, Madri, Alianza, 1988, p.10. 7 Discusin, em Obras completas, Buenos Aires, Emec, 1974, p. 272. 8 id.ibidem, pp. 273-74. 9 Fantomas contra los vampiros multinacionales, "Una utopa realizable narrada por Julio Cortzar" (Mxico, Excelsior, 1975), incorpora as declaraes do Tribunal Russel II. A edio popular publicada em Buenos Aires por GenteSur incorpora a "Carta abierta de Julio Cortzar a Pablo Neruda" e "Historia del guila imperial", de Sergio Ramrez. 10 Em "Algunos aspectos del cuento", publicado inicialmente em Casa de las Amricas, 15-16 (1962-1963, pp. 3-14), que cita minha entrevista com ele publicada em Hispamrica, V, 13 (1976), pp. 55-6. 11 Nicaragua tan violentamente dulce e Argentina: aos de alambradas culturales, foram compilados por Sal Yurkievich e publicados em Barcelona e Buenos Aires por Muchnik, 1984. 12 A edio dos 3 tomos de sua Obra crtica (Buenos Aires, Alfaguara, 1994) torna-a ainda mais evidente: Teora del tnel. Notas para una ubicacin del surrealismo y el existencialismo, escrito em 1947, ocupa o primeiro tomo, organizado por Sal Yurkievich. No segundo tomo, Jaime Alazraki prefacia os ensaios prvios publicao de Rayuela (1963), que incluem, dentre outros, textos sobre Rimbaud, Keats, Artaud, Marechal, Paz, Victoria Ocampo e os freqentemente citados "Notas sobre la novela contempornea", "Para una potica" e "Algunos aspectos del cuento". No terceiro tomo, a meu cargo, notria a densidade poltica de suas preocupaes atravs das pginas de "Situacin del intelectual latinoamericano", "El intelectual y la poltica en Hispanoamrica", "Amrica Latina: exilio y literatura", "La literatura latinoamericana a la luz de la historia contempornea" e "Nuevo elogio de la locura", junto a leituras de Arlt e Felisberto. 13 Refiro-me a Sivalandia, de Julio Silva e Julio Cortzar (Mxico, Ediiones Culturales, 1975) e insero de "Un julio habla del outro", em Territorios, Mxico, Siglo XXI, 1978, pp.68-72. 14 Tangos de Edgardo Cantn e Cortzar, cantados por Juan Cedrn e gravados em Paris em 1980. Em 1995 (Buenos Aires, Espasa-Calpe), publicou-se Veredas de Buenos Aires y otros poemas, com seleo e prlogo de Mario Benedetti. 15 Salvo el crepsculo, Madri, Alfaguara, 1984; Negro el diez, edio fac-similar aos cuidados de Aurora Bernrdez, Paris, 1994, e Cuaderno de Zihuatanejo. El libro de los sueos, Madri, Alfaguara, 1997. 16 Em 1956, a Universidade de Porto Rico, publicou em 2 tomos Obras en prosa de Edgar Allan Poe, traduzidos e anotados por Cortzar e com um detido estudo preliminar (pp. XI-XCVII). Imagen de John Keats foi publicado por Alfaguara, Buenos Aires, em 1996. 17 Os exerccios teatrais Nada a Pehuaj e Adis a Robinson (Mxico, Katn, 1984), o romance El examen (Buenos Aires, Sudamericana, 1986) e Divertimiento (Buenos Aires, Alfaguara, 1996).

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E COMEA ESTE MS EM BELO HORIZONTE A PANORMICA DO ARTISTA PLSTICO ALEX FLEMMING, COM OBRAS QUE UTILIZAM SUPORTES COMO SOFS, POLTRONAS, ROUPAS E FOTOGRAFIAS PARA ESTABELECER UMA LINGUAGEM EM QUE A PALAVRA DESEMPENHA UM PAPEL

A ROUPA da palavraFUNDAMENTAL

tereza de arruda

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Poucas vezes na histria da arte conseguiu-se combinar de maneira feliz a pintura com a literatura. De uma maneira totalmente conceitual, o artista plstico Alex Flemming tem conseguido realizar esse feito. Nos ltimos dez anos o artista brasileiro residente em Berlim tem utilizado letras pintadas sobre os mais diversos materiais. Os textos escolhidos variam de Mrio de Andrade a Shakespeare, passando por uma rica opo que comea na Bblia e pode terminar em manchetes de notcias de jornal. O exemplo mais conhecido para os brasileiros est em uma das maiores obras pblicas realizada nos ltimos anos, a bem-sucedida integrao entre arte e arquitetura na Estao Sumar do Metr de So Paulo. Flemming ressaltou a importncia de autores brasileiros como Gregrio de Mattos, Olavo Bilac, Torquato Neto ou Haroldo de Campos ao cristalizar seus poemas sobre lminas de vidro onde tambm esto retratados 44 rostos de pessoas annimas como a recitar poesia umas s outras. Em seu dia-a-dia Alex Flemming percorre cidades como So Paulo, Berlim, Lisboa, Belo Horizonte, Nova York, Istambul, Havana,Veneza, Rio de Janeiro e Porto, dentre tantas outras. Sua bagagem sempre espartana, acompanhada de idias e impresses assimiladas mundo afora. Sua postura nmade uma herana de infncia e integrada ao seu cotidiano. Esta desenvoltura global o leva a preservar e ressaltar pequenos detalhes da vida que remetem ao microcosmo subjetivo e vm a se transformar em instrumentos de sua linguagem artstica. Os materiais e suportes por ele utilizados excedem sua funo original e so integralmente abstrados e acoplados a um novo contexto. A vasta obra de Flemming se classifica como pintura e ao observar sua produo salta aos olhos a versatilidade do suporte utilizado: animais empalhados, sofs e poltronas, roupas e at fotografias. Ao refletir sobre os valores fundamentais que acompanham todo ser humano em sua trajetria, o artista percebeu que o maior cmplice de uma pessoa so suas prprias

roupas, incorporadas como uma segunda pele. O vesturio sintetiza todo o Ser. Estas peas autobiogrficas foram extradas de um convvio intenso, partindo da mais profunda intimidade, como as cuecas, atingindo a superfcie externa, como calas, camisas e palets, at a formalidade das gravatas. A tinta utilizada deu ainda mais corpo aos objetos, que se tornaram rgidos como armaduras, recebendo uma segunda pele de cores marcantes como roxo, laranja e amarelo. Palavras soltas, reflexo do aprendizado do cotidiano, substituem