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46 REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA R a d a r C U L T 29 Quatro poemas inéditos de Carlos Ávila Bienal do Livro 24 Os principais lançamentos da X Bienal Internacional do Rio de Janeiro Conheça os ganhadores do prêmio promovido pela CULT 10 Redescoberta da Literatura Brasileira A contaminação lingüística na música “Dinamarca” de Gil e Milton Nascimento N a P o n t a d a L í n g u a 28 O centenário de nascimento do poeta mineiro Murilo Mendes C a p a 13 04 Segundo ensaio da série discute multiculturalismo e identidade nacional Fronteiras Culturais 18 Antonio Gamoneda, entrevistado no DossiŒ Murilo Mendes, poeta nascido hÆ cem anos Uma carta de Murilo Mendes ao poeta e crítico Wilson Rocha Memória em Revista 37 Europa em Obras 38 Encontro discute a constituição do imaginário europeu na literatura Acervo do Última Hora/Arquivo do Estado de São paulo D o s s i Œ 39 Literatura espanhola é atração da Bienal do Rio E n t r e v i s t a Eduardo Subirats fala de seu novo livro, A penúltima visão do paraíso Adolfo Montejo Navas D o L e i t o r 64 Cartas, fax e e-mails dos leitores de CULT

Cult 46, Murilo Mendes, Maio de 2001

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Page 1: Cult 46, Murilo Mendes, Maio de 2001

46REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

R a d a r C U L T 29Quatro poemas inéditos

de Carlos Ávila

B i e n a l d o L i v r o 24Os principais lançamentos da

X Bienal Internacional do Rio de Janeiro

Conheça os ganhadores doprêmio promovido pela CULT

10Redescoberta da Literatura Brasileira

A contaminação lingüística na música“Dinamarca” de Gil e Milton Nascimento

N a P o n t a d a L í n g u a 28

O centenário de nascimentodo poeta mineiro Murilo Mendes

C a p a 13

04

Segundo ensaio da série discutemulticulturalismo e identidade nacional

F r o n t e i r a s C u l t u r a i s 18

Antonio Gamoneda,entrevistadono �Dossiê�

Murilo Mendes,poeta nascidohá cem anos

Uma carta de Murilo Mendesao poeta e crítico Wilson Rocha

M e m ó r i a e m R e v i s t a 37

E u r o p a e m O b r a s 38Encontro discute a constituição

do imaginário europeu na literatura

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livro, A penúltima visão do paraíso

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D o L e i t o r 64Cartas, fax e e-mails dos leitores de CULT

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Editor e jornalista responsávelManuel da Costa Pinto � MTB 27445

Editora-assistenteMaria Cristina Antiqueira Elias

ArteTatiana Paula P. Barboza (editora)Carlo De Francesco

DiagramaçãoRogério Richard

Digitalização de imagensAdriano Montanholi

RevisãoClaudia Padovani

ColunistasCláudio GiordanoJoão Alexandre BarbosaPasquale Cipro Neto

ColaboradoresAdolfo Montejo Navas, Antonio Maura, Aurora F. Bernardini, Camilo FernándezValdehorras, Carlos Ávila, David Castillo, Fabio Weintraub, Jon Kortazar, José ÁngelSilleruelo, Ligia Chiappini, Luana Villac, Reynaldo Damazio, Rinaldo Gama

CapaMurilo Mendes (Acervo do Última Hora/Arquivo do estado de São Paulo); nos destaques,sede do Centro de Estudos Murilo Mendes, em Juiz de Fora, e o filósofo espanholEduardo Subirats

Produção gráficaAltamir França

FotolitosUnigraph

Departamento comercialMilla de Souza � Triunvirato ComunicaçãoRua México, 31-D, Gr. 1.404 A � Rio de Janeiro � RJCEP 20031-144 � tel. 21/533-3121/533-1601e-mail: [email protected]

Distribuição e assinaturasLeonardo Lopes e José Cardeal do CarmoRua Treze de Maio, 743 � São Paulo � SPCEP 01327-020 � tel. 11-3263-1322, fax 11/289-8421e-mail: [email protected]

Distribuição em bancasFERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/ARua Teodoro da Silva, 907Rio de Janeiro � RJ � CEP 20563-900Tel./fax 21/575-7766/6363e-mail: [email protected] exclusivo para todo o Brasil.

Assinaturas e números atrasados: tel. 0800-177899;e-mail: [email protected]

RepresentantesAlagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte: 81/9905-6411Amapá, Pará e Tocantins: Cidade Nova V WE, 31, n. 362, Ananindeua, PAAmazonas e Rondônia: [email protected]írito Santo e Rio de Janeiro: 21/9801-7136Paraná: 42/222-0527Rio Grande do Sul: 51/395-3436São Paulo: 11/3120-5042

Departamento jurídicoDr. Valdir de Freitas

Departamento financeiroRegiane Mandarino

ISSN 1414-7076

Diretor-presidentePaulo Lemos

Diretora executivaSilvana De Angelo

Diretor superintendenteJosé Vicente De Angelo

Vice-presidente de negóciosIdelcio Donizete Patricio

CULT � Revista Brasileira de Literaturaé uma publicação mensal da Lemos Editorial & Gráficos Ltda.Rua Rui Barbosa, 70, Bela Vista � São Paulo, SPCEP 01326-010 � Tel./fax: 11/251-4300e-mail: [email protected]

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

A tiragem desta edição – 25.000 exemplares – é comprovadapela Trevisan Auditores Independentes

Manuel da Costa PintoNessa edição da CULT, são divulgados os nomesdos ganhadores da primeira edição do PrêmioRedescoberta da Literatura Brasileira � que foramrevelados no dia 16 de abril em cerimôniapromovida pela Lemos Editorial e pela RádioEldorado no MAM (Museu de Arte Moderna de SãoPaulo). Na matéria publicada nas páginas 10 a 12,o leitor encontra um perfil literário das obrasganhadoras (perfil que será aprofundado em futuropróximo numa edição do �Radar CULT�especialmente dedicada aos autores que venceramo concurso), além de esclarecimento sobre apublicação dessas obras em livro, já que o prêmioprevisto no regulamento é a edição e acomercialização dos textos escolhidos pelascomissões julgadoras. É importante assinalar, alémdisso, que a CULT traz, desde a sua última edição,um encarte com o regulamento e a ficha de inscriçãodo Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira2001. Ou seja, a repercussão obtida pelo concursofoi suficiente para garantir a sua continuidade � oque é sempre uma incógnita num meio cultural emque as iniciativas dessa natureza não conseguemapoio nem da esfera pública nem da iniciativaprivada, ainda que sua importância seja reconhecida�retoricamente� por uma e por outra. Finalmente,gostaria de salientar que o resultado do PrêmioRedescoberta da Literatura Brasileira teve comoefeito mostrar que a CULT é um veículo cujaseriedade é reconhecida tanto por autoresiniciantes, que muitas vezes tiveram sua paixão pelaliteratura reiterada pela leitura da revista (como sepôde perceber pelas palavras de Tércia Montenegroao receber o prêmio na categoria conto), quantopor autores que já percorreram uma trajetórialiterária consistente e que submeteram seus inéditosaos critérios de avaliação da CULT antes mesmode saberem quem seriam os jurados (caso, porexemplo, dos vencedores Cláudio Daniel e MafraCarbinieri, ou de Luis Dolhnikoff, que recebeumenção honrosa).

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ASSINATURASDISQUE CULT 0800.177899

Renzo Mora, biógrafo de Sinatra

Vademi Silva/Agência Setembro

F r a n k S i n a t r a

Neste mês em que se completam três anos da morte de Frank Sinatra, o publicitário RenzoMora, autor de Cinema Falado, lança o livro Sinatra: O homem e a música (Lemos Editorial,271 págs., R$ 40,00), biografia do cantor com fotos e letras de suas músicas em versõesoriginais e traduzidas. No dia 9 de maio, às 19h30, na FNAC (av. Pedroso de Moraes, 858,São Paulo, tel. 11/3097-0022), e no dia 15, às 20h, na Livraria Saraiva – Anexo New YorkCity Center (av. das Américas, 5.000, Rio de Janeiro, tel. 21/431-6494).

C a i o F e r n a n d o d e A b r e u

O livro Onde andará Dulce Veiga?, do romancista, dramaturgo e roteirista gaúcho Caio Fernandode Abreu (1948-1996), acaba de ser lançado nos EUA sob o título Whatever happened to DulceVeiga? (University of Texas Press) e com ilustração de capa do artista plástico Alex Vallauri. O livrofoi classificado pelo New York Times Book Review (18/02/2001) como “uma sedutora e, emalguns momentos, brilhante mistura de romance policial, novela urbana e narrativa de buscaespiritual”, em que os orixás de origem afro-brasileira são utilizados para a construção de umromance permeado por manifestações simbólicas e humanas dos deuses, “à maneira de Joyce”.

O E s c r i t o r p o r E l e M e s m o

O Instituto Moreira Salles (IMS) promove este mês quatro encontros da série “O escritor por elemesmo”. No dia 17, às 20h, a escritora e tradutora Lya Luft participa do evento no IMS de BeloHorizonte (av. Afonso Pena, 737, tel. 31/3213-7900). Milton Hatoum, autor de Dois irmãos,estará no IMS de São Paulo (r. Piauí, 844, 1º andar, tel. 11/3825-2560) no dia 24, às 20h30. Jáo romancista Antônio Torres, autor de Um táxi para Viena d‘Áustria, integra a programação dasérie no IMS de Poços de Caldas (r. Teresópolis, 90, tel. 35/3722-2776) no dia 25, às 20h, e noIMS do Rio de Janeiro (r. Marquês de São Vicente, 476, tel. 21/512-6448) no dia 29, às 20h.

B a t e - p a p o c o m o a u t o r

No dia 23 de maio, a Fnac e a CULT promovem um encontro com o escritor angolano José EduardoAgualusa, autor de Estação das chuvas e Nação crioula (publicados pela editora Gryphus). Oevento faz parte da série “Bate-papo com o autor” – que promove encontros de diferentes autorescom o público – e marca o lançamento no Brasil de Um estranho em Goa. Às 19h, na Fnac (av.Pedroso de Morais, 858, São Paulo, tel. 11/3097-0022).

J o s u é G u i m a r ã e s

A Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre e a PUC-RS promovem, neste mês, noCentro Municipal de Cultura (CMC), uma série de eventos em homenagem ao escritorgaúcho Josué Guimarães, autor de Enquanto a noite não chega, Dona Anja e CamilaMortágua, que estaria completando seu 80º aniversário neste ano. De 14 a 20 de maio,estará exposta no Saguão do CMC a mostra Josué Guimarães, um homem de seu tempo, e,nos dias 14 a 16, acontece a “Jornada Nacional Josué Guimarães – 80 anos”, com leiturasdramáticas de seus textos, mesas-redondas e conferências com especialistas em sua obra.O CMC fica na av. Érico Veríssimo, 307, Porto Alegre (tel. 51/221-6622, r. 219).

J o s é L i n s d o R ê g o

Em comemoração ao centenário de nascimento de José Lins do Rêgo, as Faculdades IntegradasSimonsen promovem de 14 a 18 de maio a Semana de Literatura José Lins do Rêgo, cujo temaserá “Pinta a tua aldeia, que serás universal” – com palestras, debates, leituras e exposiçõessobre o caráter universal do escritor regionalista. Informações nas Faculdades IntegradasSimonsen (r. Ibitiúva, 151, Rio de Janeiro, e-mail [email protected], tel. 21/406-6408).

C o n c u r s o d e P o e s i a

As inscrições para o III Concurso de Poesia do jornal Poesia Viva, publicação trimestral da editoraUapê, serão encerradas no dia 31 de maio. Informações pelo tel. 21/ 493-9175.

C o r r e ç ã o

Por um erro de diagramação, na CULT 45 (abril de 2001), foi omitida uma frase do ensaio Ainvocação do terceiro espaço, do filósofo Jacques Leenhardt, primeiro da série “FronteirasCulturais”. O sexto parágrafo do texto (págs. 18 e 19), na íntegra, é o seguinte: “Poder-se-ia,então, concluir que a imposição das fronteiras científico-técnicas desenhadas por tratadospõe termo às negociações locais em benefício de uma regra abstrata. Assinala também apassagem de uma sociedade arcaica comunitária para uma sociedade moderna, dominadapelas exigências técnicas dos contratos escritos e dos limites precisamente desenhados”.www.revistacult.com.br

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Longe da consolatione philosophiae e dos panos

quentes de certo pensamento em voga em

outros intelectuais, Eduardo Subirats

(Barcelona, 1947) é um dos pensadores

espanhóis mais significativos de sua geração,

que honra o �ensaio como o meio expressivo

da liberdade reflexiva�. Sua ênfase na reflexão

crítica e desmitificadora da memória espanhola

(até desse passado que ainda é presente) é

paralela ao seu interesse por outras culturas.

Como se pode ver nessa entrevista via Rio-

Nova York e pelo seu último livro publicado, A

penúltima visão do paraíso (editora Studio

Nobel), onde introduz o conceito de antropofagia

em nosso período de globalização como um

princípio ativo gerador, sua relação com Brasil

é mais que cultural � tendo publicado aqui os

livros Vanguarda, mídia, metrópoles (Studio

Nobel), A cultura como espetáculo, Da

vanguarda ao pós-moderno e A flor e o cristal

(todos pela Nobel). O fato de ensinar em

Princeton e Nova York � onde também esteve

Américo Castro, símbolo do pensamento crítico

histórico espanhol � não deixa de ser simbólico.

O fato de lecionar em São Paulo tampouco.

Adolfo Montejo Navas

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Cult O pensamento espanhol sempre teve poucos nomes (Ortega yGasset e María Zambrano são dos mais respeitáveis) e uma debilidadeestrutural, mas desde os fins dos anos 70 há toda uma nova geraçãode filósofos com produção própria. Que características poderia ter oexercício da reflexão na Espanha e que diferenças aporta esta geraçãoà qual você pertence, junto com Javier Sábada, Fernando Savater,Gabriel Albiac, Antonio Escohotado, Eugenio Trías ou IgnacioGómez de Liaño, entre outros?Eduardo Subirats Existe uma série de razões históricas queexplicam a ausência de um pensamento filosófico moderno e o atrasolingüístico e científico que distingue o mundo cultural hispânico. Adestruição, por parte do catolicismo inquisitorial, das tradiçõeshermenêuticas ligadas ao judaísmo hispânico eliminou apossibilidade de um humanismo renascentista. A persecução dasreformas éticas do cristianismo no século XVI impediu o desen-volvimento de uma filosofia racional. A Inquisição perseguiu a ferroe fogo os mínimos gestos de reforma ilustrada no século XVIII. Arestauração católica e monárquica impediu qualquer forma depensamento liberal no século XIX. O século XX esteve marcadopor duas ditaduras nacional-católicas. Esse panorama, como mostrono meu próximo livro, Memoria y exilio, também marcou nega-tivamente o atraso filosófico da América hispânica, onde não existiuum Humanismo (o que se chama de humanismo é, na verdade,escolástica de conventos missionários), não houve Ilustração (sóexistiu sua expressão criticamente asséptica, o positivismo) e ondeo acesso à modernidade foi truncado repetidas vezes por ondas de�recolonização� intelectual e política (as �idéias fora de lugar�,segundo a exemplar definição de Roberto Schwartz, e as ditadurasnas quais se amparavam). Por isso a primeira tarefa a cumprir nessaárea politicocultural é a revisão da memória; é a crítica das limitaçõesdo passado que lastream o futuro. Esta tarefa é impedida ebrutalmente menosprezada pelo mundo das figuras oficialmenteinstaladas do que se chama �filosofia espanhola� ou hispânica. Odominante �orteguismo�, figura ao mesmo tempo retórica, moralistae conservadora, é apenas a expressão atual desta mediocridade. Arevisão histórica tem sido tradicionalmente um trabalho de exilados.O modelo do século XIX é Blanco White, o intelectual espanholmais consistente da época, menosprezado até hoje por essetradicionalismo orteguiano. No século XX, foi Américo Castro queteve a mesma sorte...Cult Parte da intelectualidade, sobretudo em tempos do pós-socialismo, bajulou o poder, deixando sua posição crítica por outramais cômoda e orgânica. O próprio George Steiner foi taxativo hápouco: �Salvo exceções, os intelectuais são as vozes de seus donos.�Como vê este panorama?

E.S. A obediência institucional dos intelectuais hispânicos não éuma coisa de hoje nem de ontem. Durante quatro séculos a vidaintelectual espanhola tem estado confortavelmente encerrada entreos muros das ordens religiosas, seus sermões e suas disciplinas. Oúltimo hermeneuta de origem judaico-espanhola, Luis de León, éum paradigma tão central como o do reverendo Blanco White, quefugiu da Espanha por medo das mesmas represálias da Inquisição(que apanhou o menos precavido Goya, antes de seu exílio forçado edefinitivo em Bordeaux). Durante o franquismo, os intelectuais liberaisguardavam um medroso silêncio, inclusive em situações nas quaisnão tinham muito a perder (as exceções estavam no exílio, comoAmérico Castro, Juan Nuño ou Juan Goytisolo). O acesso da esquerdaao poder nos anos 80 esteve marcado igualmente por um conhecido,mas nunca mencionado, pacto por trás dos bastidores com os velhoshomens, símbolos e poderes do franquismo. Esse pacto significavaguardar silêncio sobre quase meio século de cultura nacional católica,de desrespeito aos direitos civis, de destruição intelectual e cultural,de desaparecimentos, mortes e tortura, cujos protagonistas seguiame, em alguns casos, seguem ativos na política e na vida culturalespanhola. Quem questionou esse silêncio, como eu, pagou o preçodo menosprezo e, finalmente, do exílio intelectual. Hoje, a situaçãoque envolve o país é a de um supermercado cultural de baixa qualidadena qual não há diálogo, não há crítica e não há pensamento. Há umaregressão a um fascismo sem ideologia, homologado com uma recessãomundial do pensamento e um entreguismo fanático e autoritário naperiferia dos novos nacionalismos católicos e regionalistas.Cult Do mesmo modo que há uma modernidade insuficiente e outraacabada, há uma pós-modernidade que continua a modernidade eoutra que não, assim como há uma que não passa de um arremedo eoutra que é significativa. Você poderia contextualizar isso na era daglobalização neoliberal?E.S. A pós-modernidade, no que tem de fundamental, foi umfenômeno norte-americano. Foi a grande miragem norte-americana defim de século. Foi, em primeiro lugar, a tentativa de definir uma realidadecultural própria, emancipada da autoridade moral das vanguardaseuropéias exiladas pelo fascismo e pelo stalinismo. Intelectuais comoJameson ou Huyssen, entre outros, não perceberam, no entanto, queesta pós-modernidade já havia sido definida pelo dadaísmo, pelosurrealismo ou pelo futurismo. A rigor, a pós-modernidade é um finaldesses movimentos, a expressão do triunfo pírrico das utopias dasvanguardas. Desenvolvi essa tese em meu livro Linterna mágica. Claro,é também uma tese contrária a Habermas e à política social-democrata.Habermas diz: a modernidade, as vanguardas, a Aufklärung não foramcumpridas mais que parcialmente. Portanto: Sigamos no bom caminho!Eu digo: a modernidade das vanguardas e da tecnociência baconiana

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foi perfeitamente cumprida. Só que a vanguarda cumprida coincidecom o reino de uma generalizada infelicidade: totalitarismo mediático,banalização cultural, decadência. Significa a cultura do vídeo, o higwaye o mall. É o espetáculo pós-moderno. Três fatos simbólicos marcam,no entanto, o fim dessa época dourada de cinismo e destruição. Primeiro:a Guerra do Golfo Pérsico, a cara letal das �culturas virtuais�. Segundo:o escândalo Clinton-Lewinsky, verdadeiro coup d�État na era mediática:a cara �fascista� da implosão eletrônica. Terceiro: os genocídios pós-industriais de baixa visibilidade na América Central e na área Amazônicana qual intervêm, diretamente, a transformação industrial climática, adestruição industrial da biodiversidade, a corrupção das instânciaspolíticas, tecnocientíficas e financeiras a níveis locais e globais, e anecessidade de inserir uma população étnica de milhões, mobilizadacom discrição pelas crises na África, Ásia e América, como força detrabalho virtualmente gratuita nas �maquilas�, isto é, no sistemaconcentracionista de trabalho forçado e letal na era pós-industrial. Hojeassistimos aos mais impressionantes waste lands da pós-modernidadeem toda parte: militarização dos slums norte-americanos, das fronteirasnacionais e urbanas entre ricos e pobres, destruição ecológica numaescala cada dia mais vertiginosa, monopólios da informação com redescada vez mais extensas; empobrecimento da população civil e um in-cremento da violência.Cult Em um artigo mais ou menos recente, você escreveu sobre asguerras globais de fim de século como um paradigma sociopolíticoque vai além do bélico, onde a civilização pós-industrial normalizaqualquer conflito. Qual será o aspecto mais grave dessa situação?E.S. Neste ensaio que você menciona e que é uma antecipação de umoutro livro próximo, The besieged existence, denuncio, entre outrascoisas, que a violência constitui a expressão central da civilização in-dustrial e pós-industrial, não um efeito marginal indesejável. É a tesecontrária do Processo civilizatório, de Norbert Elias. Elias reiterouos sonhos ilustrados de perfeccionismo civilizatório segundo os quais,ao final da história, chega o reino da paz perfeita e universal. Era atese de Kant, de Hegel, inclusive de Marx. Hoje é uma evidência queo processo civilizador do capitalismo global carrega consigo umprocesso destrutivo de incalculáveis dimensões, uma guerra total,uma destruição irreversível das culturas históricas, da biosfera, comomostraram Virilio e Chomsky: esta guerra biológica, ecológica, atômica,financeira e social que vivemos hoje, desde as escolas de crianças declasse média norte-americana até as tribos do paraíso amazônicoacossadas pela guerra química que o Plano Colômbia legitimagrosseiramente como combate ao narcotráfico.Cult Depois das vinculações filosóficas com a política, a linguagem ea estética, parece que chegou a vez da religião. Desestabilizadas asoposições ilustradas ciência/religião, mito/logos, razão/revolução, que

opinião você tem sobre o recente �giro religioso� de Gianni Vattimo eJacques Derrida, sobre essa procura do incondicionado?E.S. Desde o início, as filosofias da �morte do homem� e dos �grandesrelatos� trataram de suplantar a dialética negativa, a crítica reflexivada razão instrumental por um princípio ritual, narcisista, arcaico.Este momento ritualístico e de sacrifício é pateticamente manifestona própria obra de Foucault, junto a muitos de seus momentosconservadores, que no momento oportuno Habermas delatoucorretamente. O cumprimento do Enlightenment como sistema dedominação global, tecno-industrial e mercantil deixou um grandevazio, e nesse vazio instalaram-se hoje os integrismos de todas asclasses. É parte do panorama regressivo que hoje confrontamos nosocial, no político e na vida cotidiana. Mas é também um campoideológico que está afundando em seu próprio peso morto.Cult Apesar de parte da filosofia orientar-se para a coisa pública,pode-se sentir atualmente um certo deslocamento dos filósofos parafora da República, como se fosse ironia para com Platão. Correm eleso mesmo perigo que os poetas?E.S. Este �perigo� é e tem sido sempre parte do trabalho intelectual. Aindependência do juízo, a crítica filosófica ou artística, as expressões desolidariedade humana e a defesa da sensualidade, da liberdade sexual e dabeleza sempre foram perseguidas pelos capelães da Inquisição, pelosburocratas dos partidos comunistas, pelos decanos da ciência corporativapós-industrial... Lembrem o destino de Sócrates, acusado de perverter ajuventude. Lembrem o assédio que experimentou o latino-americanoSimón Rodriguez, por suas idéias abertas de educação, primeiro sob acoroa espanhola, depois sob o caudilhismo independentista. Lembrem aperseguição stalinista, fascista e macarthista a intelectuais liberais ao longodo século XX. Seria ridículo, no entanto, hipostasiar esse conflito entrea inteligência e o poder como �condição� metafísica do último intelectualpós-moderno, sob os títulos em voga do �final da história�, do �fim dosujeito�, do �esgotamento dos discursos� ou do �fim do homem�. Afronteira entre a crítica e o poder administrativo, político ou militar de-fine, em cada conjuntura histórica diferente, as estratégias necessárias deredefinição de uma indispensável resistência humanitária; o mesmo noterreno da saúde física como no da sobrevivência comunitária, e da mesmaforma para poetas e filósofos.Cult Como você situa, estilística e conceitualmente, o gênero doensaio que tanto se cultiva em sua relação com a filosofia?E.S. No mesmo lugar em que o deixou Montaigne. O ensaio é o meioexpressivo da liberdade reflexiva. É o meio por excelência dopensamento como exercício social e prática expressiva. O ensaio é omeio de transformação ao mesmo tempo analítico e criador, intelectuale artístico da realidade. O fato de escrever em espanhol me obriga adizer algo mais. As culturas hispânicas desconhecem a tradição do

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ensaio como escritura rigorosa. Desconhecem porque as tradiçõesintelectuais rigorosas do racionalismo europeu foram descartadas peloculto contra-reformista e barroco das retóricas inflamadas, da exaltaçãoirracional da forma, do impressionismo verbal dos sermõeseclesiásticos e do jornalismo secular. Sem esse rigor conceitual, aliberdade de expressão, sem a qual o ensaio não pode existir, converte-se num talk-show: expressão ao mesmo tempo de um pensamentodébil e de má literatura.Cult Mais do que uma proximidade espiritual verdadeira, avinculação da Espanha com a América sempre funcionou como umaacomodação histórica, segundo sua leitura num ensaio histórico(�Después de la lluvia�): �O dilema espanhol da Europa começa eacaba precisamente na América�. Você acredita que a relação daEspanha com a América mudou?E.S. Como é que você diz? �Proximidade espiritual verdadeira�?�Vínculo espiritual� da Espanha e da América? Veja, a palavra�espiritual� tem uma tradição maravilhosa e sagrada: a da �energia�grega, ligada, por exemplo, aos cultos dionisíacos, à ebriedade e àsexpressões eróticas mais livres e visionárias. Ainda hoje, em algumaslínguas, o alemão, por exemplo, fala-se do �espírito� do vinho e doslicores espirituosos. O �pneuma� latino era outra metáforasemelhante do espírito como alento, como a essência aérea da energiavital. Kant recolhe essa tradição pneumática quando define aAufklärung com a palavra �Mut�, que é a versão alemã para a palavralatina �anima�: o espírito como força do ânimo, como energia sexuale intelectual, como vontade autônoma de ser, como vínculo reflexivoe poético com a comunidade, a natureza e o firmamento. Mas a�comunidade espiritual� da Espanha e da América quer dizer outracoisa. Historicamente falando, significou imposição e domíniolingüístico, subjugação religiosa, uniformização cultural, destruiçãode memórias, escravidão. Sem dúvida, tudo isso foi levado adiantepara a salvação das almas, para o verdadeiro espírito da verdadeirareligião. Sinto ter de dizer isso. Em 1993 publiquei um denso volu-me em que, pela primeira vez na tradição hispânica, examinava deforma crítica precisamente esse laço: El continente vacío. A ediçãoespanhola desse livro foi presenteada com um mutismo oficial, depoiscom insultos e ataques na imprensa e, finalmente, com sua destruiçãofísica. A desinteligente inteligência espanhola negou-se a revisaresta história de espólio e dominação �espirituais� da América. Aobra de Maetzu, fundador do nacional-catolicismo espanhol, Defensade la Hispanidad, na qual se enuncia paradigmaticamente a �unidadeespiritual verdadeira� entre a América e a Espanha, não foiquestionada. O Quinto Centenario passou por cima dessa revisão epassou por cima da delicada questão da independência pós-colonialda América Latina, que a cultura espanhola de fato só reconhece

quando não tem outro remédio, protocolarmente, mas nuncaassumiu intelectualmente, exceto em suas vozes exiladas. Isso notocante ao �espírito verdadeiro�, que é uma construção conceitualmissionária e soldadesca ao mesmo tempo. Quanto às relaçõesinstrumentais, tanto financeiras quanto culturais, a Espanha adotou,após o �Centenário do Descobrimento�, uma posição prepotente eexpansiva de novo-rico bastante desagradável. A Telefónica é, nessesentido, um símbolo �espiritual verdadeiro� de primeira ordem,porque é o meio de comunicação universal na era eletrônica, o mesmoque a língua �cristã-espanhola� era para os missionários coloniais.E, efetivamente, podemos ver tantos letreiros hoje da Telefónica,desde os montes andinos até as praias cariocas, como cruzescoroavam ontem as fortalezas do poder colonial de Felipe II. Quantoà cultura, limito-me a citar a crítica e editora hispano-venezuelanaAna Nuño, que, num livro coletivo que apareceu por estes dias emMadri, Intransiciones, analisa com prolixidade de detalhesdetetivescos, extremamente engraçados aliás, o novo colonialismocultural espanhol através dos monopólios literários da penínsulaque, por sua vez, dependem da indústria cultural e mediática francesae alemã. A história, como se costuma dizer, se repete. Só que asréplicas costumam ser um esboço das primeiras edições. O únicoeixo intelectualmente relevante hoje para a América Latina é o queestabelece com os exílios e guetos acadêmicos e literários latinos nosEstados Unidos. (Latinos num sentido que me permito ampliarilicitamente: eu considero Juan Goytisolo, desprezado oficialmentee humilhado na Espanha, como um latino; eu considero a mimpróprio como um intelectual latino e assumo de bom grado o estigmaterceiromundista e racista que a boa sociedade rica outorga a estapalavra). Por quê? Porque nesse vasto mundo de emigrantes,exilados, semi-exilados e outros híbridos do amplo espectro cul-tural norte-americano, existe mais liberdade, mais informação, umcontato intenso com uma cultura de tradição liberal e ilustrada e,não em último lugar, um contorno multicultural de extraordináriariqueza intelectual e artística.Cult Devido à sua presença na América Latina como professor ecom vários livros publicados � o último é A penúltima visão do paraíso� , cabe perguntar pelas fisionomias recíprocas dos chamados VelhoMundo e Novo Mundo, seus mimetismos e osmoses. Descate-gorizaram-se como tais? Como o senhor situaria o Brasil, que tantoconhece, nesse contexto, quando sua nova obra vincula antropofagiae pós-modernidade?E.S. Posso dizer uma coisa pessoal, íntima? Para mim, o Brasil écomo uma mulher bonita, sensual, misteriosa, ao mesmo tempointeligentíssima e bela. Uma mulher irresistível. Amei-a apaixo-nadamente desde o primeiro encontro. Corri em direção a ela,

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visitava-a de vez em quando. Tratava de conhecê-la profundamente,desesperadamente. Um dia decidi morar com ela. Miss Brazil àsvezes me correspondia com certa condescendência. Como se medissesse: �Tá apaixonado? Que bom! Mas o que está fazendo aquium menino como você num lugar como este?� Eu aprendimuitíssimo com ela. Mudou minha vida, minha sensibilidade,minha maneira de ver a mim mesmo e as coisas. E, sobretudo,presenteou-me com meus melhores amigos e amigas. Mas acontecea mesma coisa que quando se caminha selva adentro. Passadasumas horas, sentimo-nos perdido, sabendo não ter chegado anenhum lugar. Cansado, fascinado, aturdido, acaba-se por reco-nhecer que não se pode alcançar seus centros sagrados, o lugarerótico do mistério. O Brasil é, para mim, uma viagem sem fim eum amor que nunca alcança seu objeto. Por isso escrevi este livrinhode ensaios com o título mais sedutor que podia imaginar: Apenúltima visão do paraíso. É uma declaração de amor à culturabrasileira em seus aspectos mais cálidos, mais românticos, maisexaltadores da inteligência, da sensualidade e da vida, numa épocacomo a nossa, definida pela globalização da violência em escalabiológica e virológica, nuclear e industrial, psicológica e financeira.E é um livro de que eu gosto porque está atravessado por umcerto espírito cavalheiresco irônico. Um pouco de Quixote, e dotratado de cavaleiros andantes de Ramon Llull. E, nesse livro,oponho esse lado precioso que sempre vi em minha Dulcinéia, ouseja, a antropofagia no Paraíso, contra os valores da cultura in-dustrial e mediática pós-moderna, que eu identifico como acontinuação dos fascismos europeus por outras vias. Uma críticaque remonta explícita e veementemente às reiteradas vezesvilipendiada Dialética do Esclarecimento, de Horkheimer eAdorno: o cânone da teoria crítica do século XX...Cult Você sempre considerou a reforma da memória histórica e dainteligência como passos inevitáveis para o progresso de qualquerprojeto social e político. As estratégias de esquecimento, de escapismohistórico, sempre se movem para adiante (os julgamentos de ditadoresparecem uma ressaca positiva disso?). Em seu novo livro publicadono Brasil, há um subtítulo significativo, �entre a memória e aglobalização�, que parece tratar desse possível hiato.E.S. Em Nova York, reunimos nos últimos quatro anos uma sériede intelectuais, artistas e acadêmicos em torno das metáforas da�revisão da memória�, da �resistência ao memoricídio�: Juan Goytisolo,Sylvia Molloy, Rosa María Menocal, Jorge Schwartz, Gigi Dopico,James Fernández, Rafael Lamas, Ana Nuño, Christopher Britt,Margarita Serje, Kathleen Ross, artistas latinos como Leandro Sotoe Marisela Lagrave, um poeta zapoteco como Víctor de la Cruz, entremuitos outros. Um grupo muito diverso em idades, procedências

nacionais e sensibilidades intelectuais. Mas com uma preocupaçãocentral: reconstruir as memórias históricas, revisar e restaurar astradições críticas do mundo latino-americano e norte-americano, criarnovos olhares abertos em direção ao passado e, nessa medida, a umfuturo humanizado. Agora estou envolvido em dois projetosmaravilhosos nesse mesmo sentido, e que têm que ver com o Brasil.Um com Lélia Coelho Frota, a antropóloga carioca, e um grupo demulheres cineastas do Rio de Janeiro. O propósito é um trabalho deinvestigação e resgate das tradições orais, artísticas e musicais deMinas Gerais, das chamadas �culturas populares�. O segundo projeto,que acaba de começar, estou realizando com outro intelectual carioca,João Cezar de Castro: é uma reivindicação de duas obras clássicas daAmérica Latina, a do peruano Mariátegui e a do brasileiro DarcyRibeiro. Um projeto chamado �Processos Civilizatórios�. Abraça arestituição de uma tradição intelectual crítica que o pós-modernismolatino-americano deixou em pedaços. E quer propor novamente, aomesmo tempo, o projeto civilizatório arrasado pelo capitalismoselvagem das últimas décadas. Entre outros, o projeto transformadorda Antropofagia de Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaraletc. Também estou organizando agora um macroevento em NovaYork, Madri e Londres em torno de Blanco White e o problema daIlustração mutilada do mundo ibérico e ibero-americano e suasconseqüências para a crise contemporânea. Em resumo, consideroque há um vasto panorama intelectual para redefinir e recriar emcontraposição ao horizonte político de anarquia, cinismo e mutismointelectual que nos rodeia.Cult Estamos num certo clima de fim de época e, ao mesmo tempo,de estréia. Quais são os dilemas mais preocupantes que o milênioapresenta? E, nesse contexto, qual seria a tarefa filosófica maisimportante de nossos dias?E.S. Acredito que há dois grandes temas. Um, eu já mencionei: areconstrução das �memórias culturais� (devo o conceito a RafaelLamas), no sentido mais amplo da palavra: desde as sabedorias daselva até a espiritualidade taoísta e as tradições críticas da Europa.Segundo: a revisão humanizada da tecnociência na era do progressoautodestrutivo.

Adolfo Montejo NavasAdolfo Montejo NavasAdolfo Montejo NavasAdolfo Montejo NavasAdolfo Montejo Navasjornalista e escritor, organizou o dossiê sobre literatura espanhola publicado nesta edição

TTTTTradução de Maria Pradução de Maria Pradução de Maria Pradução de Maria Pradução de Maria Paula Gurgel Ribeiroaula Gurgel Ribeiroaula Gurgel Ribeiroaula Gurgel Ribeiroaula Gurgel Ribeiro

A penúltima visão do paraíso –A penúltima visão do paraíso –A penúltima visão do paraíso –A penúltima visão do paraíso –A penúltima visão do paraíso –Ensaios sobre memória e globalizaçãoEnsaios sobre memória e globalizaçãoEnsaios sobre memória e globalizaçãoEnsaios sobre memória e globalizaçãoEnsaios sobre memória e globalização

Eduardo Subirats – Tradução de Eduardo Brandão Editora Studio Nobel – tel. 11/3061-0838

168 págs. – R$ 28,00

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Luana Villac

OO nome dos vencedores doPrêmio Redescoberta da LiteraturaBrasileira 2000 � promovido pelaCULT com patrocínio da RádioEldorado � foi revelado em cerimô-nia realizada no dia 16 de abril, compresença de cerca de 300 convida-dos, entre autoridades, escritores,intelectuais e leitores da revista quelotaram o auditório do MAM (Mu-seu de Arte Moderna de São Paulo).

Os mais de mil trabalhos envia-dos para o concurso, divididos nascategorias romance, conto e poesia,foram analisados por três comissõesjulgadoras formadas por importantesnomes da literatura brasileira con-temporânea. Todas as obras eraminéditas e seus autores estavam iden-tificados por pseudônimos, de modoque os jurados não conheciam seusverdadeiros nomes. Comprovando avocação da revista de rastrear aprodução contemporânea brasileira,a lista dos vencedores inclui autores

Literatura

inéditos ou pouco conhecidos no meioliterário, que terão suas obras publica-das pela Lemos Editorial.

Na categoria romance, os 182 traba-lhos recebidos foram bastante repre-sentativos de uma produção contem-porânea, segundo o romancista Cristó-vão Tezza � membro da comissão julga-dora ao lado dos escritores BernardoAjzenberg e André Sant�Anna. �Osromances que recebemos foram, emsua maioria, escritos por autores jovens,o que nos deu uma idéia dos caminhose descaminhos da prosa brasileirahoje�, diz Tezza.

A obra vencedora do prêmio foi Solopara ti, do advogado Luigi Augusto deOliveira (autor do romance Dalma, narede, editora Cone Sul). Nesse romance,o autor destila sua prosa ácida parapintar com traços finos e meticulosos aatmosfera de angústia e solidão que en-volve os habitantes das grandes metró-poles. Nessa história desenvolvida emmovimento sincopado, a condição hu-

mana e a condição urbana se confun-dem. Cético e amargo, o protagonistavaga nos corredores da cidade-labi-rinto em meio de postes e prostitutas,praticando atos sórdidos para escon-der suas carências.

Essa vertente de narrativa urbanatambém caracteriza Três elefantes na ópera,romance do jornalista brasiliense Rogé-rio Menezes agraciado com uma men-ção honrosa. O ponto de partida da his-tória é constituído por monólogos inter-nos dos três protagonistas-narradores,colocados em uma situação-limite: elessão passageiros de um avião que pareceestar prestes a cair. Os personagens sãoparadigmas da nossa era � uma mulherdesquitada em crise de meia-idade, umhomossexual em crise conjugal quedescobre ser pai de um rapaz de vinteanos e um intelectual autodestrutivo emcrise com seus valores éticos e morais.São eles os �elefantes na ópera� dotítulo: desajeitados, desproporcionais,inadaptados ao papel que a vida lhes

Acima, da esquerda para a direita, os ganhadores do Prêmio Redescoberta daAcima, da esquerda para a direita, os ganhadores do Prêmio Redescoberta daAcima, da esquerda para a direita, os ganhadores do Prêmio Redescoberta daAcima, da esquerda para a direita, os ganhadores do Prêmio Redescoberta daAcima, da esquerda para a direita, os ganhadores do Prêmio Redescoberta daLiteratura Brasileira na categoria Literatura Brasileira na categoria Literatura Brasileira na categoria Literatura Brasileira na categoria Literatura Brasileira na categoria poesiapoesiapoesiapoesiapoesia: Cláudio Daniel, Alckmar Luiz dos: Cláudio Daniel, Alckmar Luiz dos: Cláudio Daniel, Alckmar Luiz dos: Cláudio Daniel, Alckmar Luiz dos: Cláudio Daniel, Alckmar Luiz dosSantos e José Fernando de Mafra CarbonieriSantos e José Fernando de Mafra CarbonieriSantos e José Fernando de Mafra CarbonieriSantos e José Fernando de Mafra CarbonieriSantos e José Fernando de Mafra Carbonieri

A A A A A vencedora navencedora navencedora navencedora navencedora nacategoria categoria categoria categoria categoria contocontocontocontoconto,,,,,Tércia MontenegroTércia MontenegroTércia MontenegroTércia MontenegroTércia Montenegro

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Redescoberta

reservou. A partir deles, o livro dis-cute a inadequação do homem ao mun-do.

A outra obra contemplada com amenção honrosa segue uma linhaexperimentalista. Trata-se de Presençada serpente menos a presa, do editor edesigner gráfico Joca Reiners Terron.O autor já tem um livro de poemaspublicado � Eletroencefalodrama (edi-ções Ciências do Acidente). Em suaprimeira incursão pelo romance, elemostrou que é um escritor versátil eao mesmo tempo coerente. Valendo-se da mesma linguagem aguda e dotom sarcástico que apresenta em suapoesia, Terron criou uma obra pertur-badora, uma espécie de epopéia meta-lingüística que explora os mecanismosda criação literária. O livro é umquebra-cabeças de peças que per-tencem a tempos e espaços diferentes,que se encaixam de forma inesperada,desafiando a lógica e a própria reali-dade.

Na categoria conto, a comissão jul-gadora, formada pelos escritores Mar-çal Aquino, Vera Albers e Nelson deOliveira, também selecionou umaobra vencedora e duas mençõeshonrosas entre os 244 inéditos. Deacordo com Vera Albers, a escolha foinorteada sobretudo pela homoge-neidade dos contos. �Recebemos con-tos isolados que eram fantásticos�,afirmou, �mas tivemos de analisar otom do conjunto�.

A vencedora do prêmio foi a pro-fessora cearense Tércia Montenegro,com a obra Linha férrea. Aos 24 anos,Tércia é a mais jovem e única mulherfinalista do concurso. A despeito daidade, sua prosa revela maturidade esegurança. Com uma linguagem con-cisa e pontual, a autora parte do temada estrada de ferro para compor ins-tantâneos de realidade que não falamapenas aos olhos, mas a todos os sen-tidos. Em cada um de seus contos elaapreende um momento único e revela-o,

dando ao livro um ritmo intermitente,porém constante, como o de um tremque vai parando a cada estação. Cadaparada é um recorte extremamentelúcido e, talvez por isso, impiedoso doser humano.

As menções honrosas foram conce-didas ao professor Alcino Mikael Fi-lho e ao arquiteto Rui Sérgio DiasAlão. Intitulado Geometria selvagem, olivro de Mikael aborda a problemáticahomossexual. Como a realidade queespelha, a escrita do autor é certeira,tingida pela violência. E no entantopossui uma delicadeza oculta, umapoética quase secreta, desdobrando-seem camadas que se revelam a cadapágina. Dentro de um contexto abso-lutamente urbano, a dor e o prazer, oprofano e o sagrado, a violência e apoesia se diluem, criando uma verda-deira �geometria selvagem�.

Distante do realismo que caracte-riza as duas obras anteriores, Contos,de Rui Sérgio Dias Alão, é um livro

Com a divulgação dos ganhadores do

Prêmio Redescoberta da Literatura

Brasileira, a CULT mostra novos

caminhos da criação literária na obra

de autores inéditos e de escritores

cuja trajetória está se consolidando

O ganhador naO ganhador naO ganhador naO ganhador naO ganhador nacategoria categoria categoria categoria categoria romanceromanceromanceromanceromance, Luigi, Luigi, Luigi, Luigi, LuigiAugusto de OliveiraAugusto de OliveiraAugusto de OliveiraAugusto de OliveiraAugusto de Oliveira

Rita

Gril

lo

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que traz uma temática abstrata, construídapor histórias fantásticas, herdeiras dorealismo fantástico latino-americano.Com uma escrita fortemente marcadapela simplicidade e pelo intimismo, oautor resvala para o reino do fantástico,sugerindo uma discussão sobre osignificado da realidade.

Na categoria poesia, o júri, formadopelos poetas Cláudio Willer, WalySalomão e Nelson Ascher, optou porindicar três ganhadores (classificadosem primeiro, segundo e terceiro luga-res) e apontar seis menções honrosas,em virtude da significativa quantidadede trabalhos de boa qualidade ins-critos. �O número de obras que rece-bemos é mais uma comprovação deque a idéia de que estamos passandopor um período de pobreza na poesiabrasileira é descabida�, afirmou Willer,comentando o fato de que a categoriapoesia foi aquela com maior númerode trabalhos avaliados (485 livros).

O primeiro lugar foi concedido aTocar os poros do verde, de CláudioDaniel, escritor que já tem vinte anosde carreira literária. A exemplo deYumê (Edições Ciência do Acidente),seu último livro, essa obra inédita doautor é composta por poemas quefalam através de imagens sinestésicas.Sua escrita é refinada e precisa; as

palavras, cuidadosamente escolhidas,integrando-se em um todo que primapelo equilíbrio e pela musicalidade.O resultado é uma poesia diáfana deextrema delicadeza, que demonstraum acurado senso de beleza.

O segundo colocado da categoria,o professor catarinense Alckmar Luizdos Santos, já tem dois livros depoemas publicados � Retrato e percurso(Editora UFSC) e Meu tipo inesquecível(Athanor). A obra que deu a ele oprêmio � Rios imprestáveis � trazpoemas homogêneos que revelamgrande esmero no tocante à forma.Com um registro sofisticado e elo-qüente, sua poesia apresenta uma ri-queza metafórica intrínseca, que seconcretiza na imagem do rio. Partindodesse mote, o autor aborda temasuniversais, como o amor, a passagemdo tempo e o ofício do poeta.

O terceiro premiado é o juiz dedireito José Fernando de Mafra Car-bonieri. O mais velho de todos osfinalistas (66 anos), o autor já é umveterano na literatura, com dez livrospublicados, entre romances, livros in-fantis e poemas. Em 1998, ganhou oprêmio Otavio de Farias, da UBE doRio de Janeiro, pelo romance O motimna Ilha dos Sinos (Mercado Aberto). Aobra que deu a ele o prêmio pro-

movido pela CULT, A lira de OrsoCremonesi, é dedicada à esposa de Gre-gório de Mattos, Maria dos Povos, efoi escrita sob inspiração do escritorbarroco, o que se nota sobretudo notom satírico e contumaz empregado.

As seis menções honrosas da cate-goria poesia foram atribuídas aos livrosAtrás do osso, de Thelma Guedes, Con-substanciações, de Luis Dolhnikoff, 64Dilemas, de Douglas Boch, A morte, dePaulo Venturelli, Vestindo águas, de Ro-drigo Guimarães, e Prometeus encantado,de Fernando Magalhães Maron.

Todos os livros vencedores do Prê-mio Redescoberta da Literatura Brasi-leira 2000, incluindo o segundo e ter-ceiro colocados da categoria poesia,serão publicados pela Lemos Edito-rial no segundo semestre deste ano �com exceção do livro de ClaúdioDaniel, que já havia se comprometidocom a editora Azougue antes da divul-gação do resultado do prêmio.

A cerimônia realizada no MAM foiconduzida pelo jornalista, poeta e diretorPedro Bial e marcou oficialmente aabertura do Prêmio Redescoberta daLiteratura Brasileira 2001. Até outubro,a CULT trará um encarte com a ficha deinscrição e o regulamento da segundaversão do concurso, cujo resultado serárevelado em abril de 2002.

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C a p A

Há cem anos, no dia

13 de maio, nascia

em Juiz de Fora o

poeta Murilo Mendes,

que legou à literatura

brasileira uma obra

multidimensional,

percorrendo um arco

que leva das

tupiniquices do

primeiro modernismo

até o construtivismo

de seus l i vros fi nais,

passando por um

surrealismo à brasileira

e por uma poesia de

inspiração católicaMD

ivul

gaçã

o

cognição e vertigem

urilosde vento

em Murilo Mendesmaio/2001 - Cult 13

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ASobrevivente ou contemporâneo?

Algumas lembranças. Drummond,por ocasião do Prêmio Internacionalde Poesia Etna-Taormina concedidoa Murilo Mendes, queixando-se dosilêncio nacional em torno do fato: �...o Murilo anda distante de nós umafieira de mares e anos, e quem estálonge, taca-se silêncio nele. (...) En-graçada nossa capacidade de arquivaro companheiro, logo que ele dobra aesquina; se vai de jato ou de navio,então, desabam séculos de esqueci-mento.� (Jornal do Brasil, 24/02/1972)Cacaso, comentando o lançamento daAntologia poética de Murilo, com seleçãode João Cabral de Melo Neto: �Apoesia de Murilo, a um tempo abstra-tíssima e ultrapessoal, é em muitosaspectos a criação mais original e com-plexa de todo o modernismo brasi-leiro, mas também uma das menosconhecidas do público maior.� (Opi-nião , 20/08/1976) Maria da SaudadeCortesão, viúva do poeta, um ano antesde vir a público a edição da Poesiacompleta de Murilo: �Murilo viveu naEuropa os últimos vinte anos de suavida, mas permaneceu até o fim pro-fundamente brasileiro e, sobretudo,um mineiro. A sua cultura era a deum europeu, é certo, mas não a de umestrangeirado. (...) Por isso ele ficariatriste se soubesse que anda esquecidoem seu país natal.� (Folha de S. Paulo,1 4 / 0 3 / 1 9 9 3 )

Que não se vejam tais lembrançassomente como mais um acorde na ve-lha ladainha contra a falta de reconhe-cimento dos valores nacionais, o con-fisco da glória e a negação dos mila-gres para os �santos de casa�. Pode-ríamos até dizer que a situação hoje,quando se comemora o centenário denascimento do escritor, melhorou con-sideravelmente: aumenta a cada dia o

número de teses e ensaios sobre o poeta;o Centro de Estudos Murilo Mendes,ligado à Universidade Federal de Juizde Fora, promove exposições e outroseventos; por todo o país, nos depar-tamentos de Letras, são ministradoscursos específicos; dispomos da Poesiacompleta, organizada por LucianaStegagno Picchio etc. Alguns dirão queo caso, para encurtar conversa, se não édos melhores, também não é muitodiferente do de outros poetas quecompõem o panteão nacional (consolode araque). Mas será mesmo assim? Averdade é que, comparado a nomes comoos de Bandeira, Drummond, Cabral...,Murilo Mendes continua poucoconhecido, considerando a dimensão,a variedade e a importância da obraque nos legou. Para um autor quesempre manifestou o desejo decontemporaneidade (�Não sou meusobrevivente, e sim meu contem-porâneo�), tal condição segue sendomotivo de indignação e tristeza:impede os leitores de se perceberemcontemporâneos do escritor, conver-tendo-o em sobrevivente, dissol-vendo seus enigmas e dedicando-lheum olhar pacificado, impânico; a aten-ção respeitosa que dedicamos aos mo-numentos.

A superação desse estado de coi-sas, no entanto, não pode se dar porum ato de vontade, pois parte das difi-culdades que entravam ou estreitam arecepção da obra se devem ao próprioprojeto escri tural em questão; aostrilemas indecidíveis, às convicçõesportáteis, aos subúrbios da criativi-dade muriliana. Um brevíssimo pas-seio pela fortuna crítica poderá nosdar alguma idéia sobre a natureza detais dificuldades bem como de pos-síveis estratégias para seu enfrenta-mento.

R e c e p ç ã o d i v i d i d a

Antes de mais nada, cumpre destacar ocaráter multidimensional desta obra.

Há as tupiniquices dos livros ini-ciais, ainda sob o influxo do primeiromodernismo: a busca de uma dicçãocoloquial, o recurso ao poema-piada eà paródia, a pesquisa folclórica comdiscussão do caráter nacional. Umavertente da produção que, no entenderde alguns críticos, descamba com faci-lidade para o caricatural (veja-se His-tória do Brasil, de 1932) em decorrênciade uma embriaguez nativista inconsis-tente.1

Em seguida, há o surrealismo à brasi-leira de Murilo, assunto que por si sórenderia artigos e mais artigos. Sur-realismo que Mário de Andrade, nocélebre artigo �A poesia em 1930�2 ,associará à poética de evasão modernista(o �vou-me-emborismo� bandeiriano,por exemplo). O que será contestadopor José Guilherme Merquior pormeio do destaque concedido ao carátermundano (à imanência onírica) destapoesia, espiritualmente mais próximado romantismo revolucionário à VictorHugo do que do esteticismo à Novalis� razão pela qual o crítico é levado aconsiderar a �violenta freqüentação dovisionário� em Murilo não como esca-pismo, mas como �uma forma imagináriade realismo�3 .

Alguns críticos ainda vão se baterpor distinções entre um surrealismo deconteúdos e outro de procedimentosconstrutivos para opor a imagética deMurilo quer à evanescência, ao suavedevaneio dos poetas da �geração de 45�(distantes da dissonância plástica queencontramos no autor de Mundo enigma),quer aos jogos combinatórios debarroca memória (em que o disparategerado pela discordia concors não deflagra

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sustos cognitivos, servindo antes comomero divertimento de salão).

Outros ainda sugerirão aproximaçõesentre Murilo e certos autores latino-americanos (como Julio Cortázar e Octa-vio Paz) igualmente devotos do credosurrealista4 .

A face católica do poeta também cons-titui uma imensa fonte de dificuldadespara boa parcela da crítica. Basta lembrarque sua conversão ao catolicismo, em1934, resultado de uma crise desencadeadapela morte de Ismael Nery (amigo a quemMurilo deve o primeiro contato com osurrealismo de Chagall, Breton, MaxErnst, além da introdução à doutrina doEssencialismo), rendeu-lhe um necrológioem tom de galhofa, publicado por CarlosLacerda na Revista Acadêmica, em maiode 1935: �O seu lirismo não era umlirismo claro, impetuoso, de construção(...) Era um lirismo fêmea, agachado demansinho pondo ovos. Gritador,esperneante, mas manso como um lago doscisnes. (...) E o poeta falecido, cujoexemplo bem poderia indicar aosintelectuais sinceros o que nunca se devefazer, continuará algum tempo procurandonas linhas de sua mão, como em espelhos,as imagens da própria abjeção�5 .Reprovação que, num tom bem diverso,encontrará eco no comentário feito porMário de Andrade ao livro A poesia empânico. Mário lamenta o mau gosto decertas imagens e descarta por �herético� ocatolicismo muriliano (posição posterior-mente revista, de acordo com anotaçõesdo autor pertencentes ao acervo doInstituto de Estudos Brasileiros � IEB/USP). Ocorre, contudo, que tal catoli-cismo não apaga a inclinação saturnal(órfica, dionisíaca, antiteodicéica) de Mu-rilo, mas se nutre de seu apreço à matéria(�A matéria é forte e absoluta / sem ela nãohá poesia�) e de sua ginofilia radical, deseu verso mulherengo com ressonâncias

cósmicas. A ideologia católica, aliada àsidéias essencialistas assimiladas noconvívio com Ismael Nery e de misturacom os procedimentos combinatórios(colagem, fotomontagem etc.) das técnicasde vanguarda dos anos 20, será antesresponsável pela grande originalidadecom que Murilo se inscreve no cenário dalírica contemporânea.

Porém, combustível abundante paraa fogueira crítica vamos encontrar de fatona pretensa separação entre um Murilosurrealista � no qual o ímpeto trans-figurador se sobrepõe ao conhecimentoempírico do mundo (principalmente noque diz respeito aos aspectos maisnegativos da vida social) � e o Muriloconstrutivista dos livros finais, investindono rigor formal, na obra de arte comomônada narcisicamente fechada. De umlado, o lírico delirante, movido pelopoder redentor da linguagem contra asmazelas do �mundo inimigo� (ao quecorresponde uma obra irregular,desarticulada, esgarçada do ponto de vistacomposicional). Do outro, o artesão queposa de tardovanguardista seduzido pelosjogos trocadilhescos e paronomásicos(como atestam certas passagens deConvergência, último livro de poemaspublicado em vida pelo autor), emconformidade com o padrão ditadopela moda concretista da época. Entreos extremos, a transição mais demo-rada para uma poesia cada vez maisobjetual, voltada mais para o conhe-cimento do que para a transfiguraçãoda realidade.

No tocante a esse ponto, merecemenção o importante estudo de MuriloMarcondes Moura6 , que postula aexistência de uma profunda unidade naobra do xará juiz-forano (desautorizandoa separação muito rígida entre vertigem ecognição, surrealismo e construtivismo,poesia e realidade). Apoiado em percu-

cientes análises de poemas, esse críticoprocura demonstrar como a visão de artesubjacente ao projeto muriliano perma-neceu sempre tributária das vanguardasnovecentistas, definindo um caminhomuito singular no panorama lírico bra-sileiro. Singularidade que tanto explica aformalização desequilibrada e aparen-temente precária da face7 imaginantequanto o pretenso rigor da face mais obje-tual, construtivista, no conjunto da produ-ção desse escritor.

Isso para não falar mais particular-mente do onirismo engajado dos �poemasde guerra� ou da circulação de Murilopor outras artes (música e artes plásticassobretudo), outros idiomas e lugares (oexílio europeu, a longa permanênciacomo professor de literatura brasileira emRoma), reveladora do caráter crítico,metalingüístico, extraterritorial de que sereveste boa parte de sua obra8 .

De modo que talvez não seja muitodifícil entender os motivos da defasa-gem na apreensão ou o mesmo desa-corçôo do leitor mais desavisado perantea obra de Murilo. Uma obra polifronte,que se desdobra para dar conta dos desa-fios lançados por uma visão do realigualmente multifacetada, complexa.

Diante dessa difícil diversidade,muitos julgarão ter encontrado um ar-quipélago onde supunham um conti-nente. Como se a descontinuidade e ocaráter áspero e fragmentário de talobra (tantas vezes assinalado, enco-miástica ou pejorativamente, por mui-tos críticos) fossem absolutizados soba forma de hiatos, lacunas de sentido,obnubilando a vocação totalizante doprojeto em questão.

Por isso, um livro como Poliedro,coletânea de textos em prosa poética àmaneira do Parti pris des choses, deFrancis Ponge, pode ser de grandevalia. Não apenas porque, como afir-

O centenário de nascimento de Murilo Mendes será marcado por dois eventos promovidos este mês em São Paulo e em Juiz de Fora (cidade natal do poeta). De 2 a25 de maio, o Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL), da Fundação Memorial da América Latina, promove na Biblioteca Latino-americana Victor Civita(portões 3 e 4) a exposição Murilo Mendes: 100 anos, com fotos e livros do autor. No dia 22 de maio, às 20h, haverá a exibição do filme A poesia em pânico (1977),de Alexandre Eulálio, seguida de uma mesa-redonda para debate da obra muriliana, com os professores Boris Schnaiderman e Murilo Marcondes de Moura. Tanto aexibição do filme quanto a mesa-redonda terão lugar no Espaço Vídeo do Pavilhão da Criatividade (portão 12), com entrada franca (Memorial da América Latina, av. AuroSoares de Moura Andrade, 664, São Paulo, próximo à estação Barra Funda do metrô, tel. 11/3823-9631). Já o Centro de Estudos Murilo Mendes, da UniversidadeFederal de Juiz de Fora, promove no dia 13 (data de nascimento do escritor), a abertura da exposição do acervo de obras de arte, livros e documentos pertencentes aopoeta. A cerimônia de abertura será às 10h, com presença de Maria da Saudade Cortesão Mendes, viúva de Murilo. Às 17h acontece a entrega do I Prêmio de LiteraturaMurilo Mendes e a apresentação do livro Murilo Mendes – Ensaio crítico, biografia, correspondência (editora Perspectiva), de Laís Corrêa de Araújo. O Centro deEstudos Murilo Mendes fica na Av. Barão de Rio Branco, 3.372, tel. 32/3213-3931.

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ma Eliane Zagury, o confronto entreprosa e poesia ofereça um retrato re-presentativo do modus operandi muri-liano, mas principalmente devido aofato de a estrutura �cerrada, orgânica�do livro vir montada �sobre os alicer-ces de toda a obra anterior, outras partesdo poliedro agora vislumbrado�.9

Assim, a tarefa a que nos dedica-remos a seguir será a de alinhavarnotas esparsas feitas a partir da leiturade Poliedro, formulando algumas idéias(nada mais que um modestíssimo co-meço de conversa) a partir dessa�cognição alucinada� sobre a qual re-pousa a aventura muriliana.

A cartilha poliédrica

Como já foi dito, é forte a aproxi-mação entre a prosa lírica presente emPoliedro e os proemas pongianos (�fran-cispongianizei-me�, já escrevera Mu-rilo a certa altura de Convergência). Emambos os autores, ressalta aquele tipode descrição fenomenológica dos obje-tos em que, elididas as fronteiras entre(desierarquizadas as categorias de) su-jeito e objeto, a linguagem é confron-tada com aquilo que os objetos expri-mem fora dela, o que nos obriga à refor-ma de nossos hábitos perceptivos.

Assim é que, na cartilha poliédrica,a idéia de eternidade pode ser deduzidados atributos essenciais de um queijo-de-minas: brancura e circularidade. Es-creve Murilo: �Minha mais remotaidéia de eternidade talvez me tenha sidofornecida pelo queijo, que resumia aosmeus olhos o círculo e a brancura,elementos básicos da eternidade, euimaginava.� (�O queijo�) Tal epifanialáctea vai dando lugar a um sistema expli-cativo que desmoronará com a descobertado caráter acidental dos atributos do queijo-eternidade: a evidência de queijos de outrosformatos e cores. Continua o poeta: �Desde

então meu conceito de eternidade perdeua primitiva pureza ortodoxa. De resto,entre o redondo e o quadrado, entre obranco e o vermelho meu espírito balan-ça desde o início. E não sei bem se aeternidade é efêmera.� Citando Ber-trand Russell a propósito da importânciado aparato sensível na cognição, daimpossibilidade de certas noções sem oconcurso de uma experiência não-lingüística, o poeta então concluidizendo que, felizmente, para facultar-lhe o entendimento da eternidade, �oqueijo interveio por tangência�.

Assim também, a idéia de infinito,deduzida da observação do bichopreguiça (�A preguiça�). A lentidãonos movimentos do animal, ao exagerara percepção do nosso limite no espaçoe no tempo, atuaria didaticamente paracorrigir nossa idéia muito abstrata doinfinito. Diz o poeta: �... meu espíritorepugna ao vago. Dirão que gosto docéu, das nuvens, das estrelas; de acordo.Mas nenhum desses nomes é vago,designando antes coisas físicas muitoprecisas. Uma nuvem é tão complexacomo uma laranja. Dirão que a nuvemsúbito se desfaz: de acordo: tal a laranjana boca do homem que a absorve.�(Talvez seja lícito pensar, a bem daverdade, que o vago e o indeterminadofuncionam em nosso espírito como umsucedâneo da idéia de infinito.)

Isso para dar ao leitor apenas umapequena amostra das delícias à suadisposição desde o minibestiário (Mi-crozoo) contido na primeira seção dolivro. Quem não se espantará com oclima montanhoso desfrutado por quemse agarra ao pescoço da girafa? Oucom o elogio da tartaruga como bichoideal para o flaneur baudelairiano arrastarrua afora pela coleira? Como não seespantar ante a descrição dos chifres

bovinos como raízes desenvolvidasadquiridas à força de tanto ruminar(talvez uma evocação do que dizPlatão no Timeu: que somos árvoresinvertidas e nos enraizamos no céupelo pensamento).

Ainda neste setor, privilegiado nopresente comentário, cumpre observarmarcas recorrentes de autodeterminaçãono perfil consagrado a cada bicho. Atartaruga é �autocariátide�, o tigre é�autocronometrado�, a baleia é �auto-suficiente�, o percevejo é �autolegisla-tivo�, �autoexecutivo�. Passando aosetor seguinte (Microlições de coisas), te-mos o ovo, que é um monumento fe-chado, um �automonumento�, e o vi-nho, que deve ser libertado �do gargalodo homem e da garrafa� para que es-corra �livremente da torneira aberta�,desfrutando �de uma vida autônomaonde ele possa beber-se�. O que te-mos aqui, na recusa ao humano gar-galo? Objetos cercados de abismo, pre-cipitados no moto-perpétuo de um ra-ciocínio que alarga o mundo, o huma-niza, justamente ao restringir nossopapel na causação de tudo o que existe.

O livro está repleto de sistemas ex-plicativos nos quais se procura des-crever a gênese empírica das repre-sentações, muitas vezes enfatizando adistinção entre objeto fenomênico eobjeto real. Principalmente nos doisprimeiros setores do livro, é expres-sivo o número de textos que se iniciamcom frases como �quando eu eramenino� ou �no meu tempo de infân-cia�, o que revela não só a importantepresença de elementos memorialísticos,autobiográficos na obra do poeta, masa configuração da infância como tempoforte na conceituação do mundo.

Algo do humor presente nessestextos advém da construção e do desmo-ronamento desses sistemas explicativostotalizantes, apoiados em generalizações

1“... em Murilo Mendes uma tal euforia nativista, se historicamente epidêmica, foi ainda– mais do que isso – entusiasmo meramente epidérmico.”, Laís Corrêa de Araújo emMurilo Mendes: Ensaio crítico, antologia, correspondência, Perspectiva, pág. 73.2 Mário de Andrade em Aspectos da literatura brasileira, Martins, págs. 26-45.3 José Guilherme Merquior no ensaio “Murilo Mendes: A poética do visionário”publicado em A razão do poema, Civilização Brasileira, pág. 57 (grifo do autor).4 Conforme sugestão de Augusto Massi no ensaio “Murilo Mendes: a poética dopoliedro”, publicado no livro América Latina: Palavra, literatura e cultura, Memorialda América Latina/Ed. Unicamp, organização de Ana Pizarro, pág. 324.5 Carlos Lacerda em “In memoriam de Murilo Mendes”, publicado na RevistaAcadêmica, ano II, número 11, maio de 1935. Apud Territórios/Conjunções: Poesia

e prosa críticas de Murilo Mendes, de Júlio Castañon Guimarães, Imago, pág. 38.6 Murilo Marcondes de Moura, em Murilo Mendes: A poesia como totalidade, Edusp/Giordano.7 Mais que fase, pois não se trata de etapas ultrapassadas cronologicamente, mas dopredomínio de um ou outro elemento que figura como pólo num par dialético em tensãocontínua.8 Sobre a circulação do poeta/crítico por diferentes territórios artísticos, ver o excelenteestudo de Júlio Castanõn Guimarães: Territórios/Conjunções: Poesia e prosa críticas deMurilo Mendes, Imago.9 Eliane Zagury no ensaio “Murilo Mendes e o Poliedro”, publicado em Poliedro, de MuriloMendes, José Olympio. A entrada de análise proposta é tão fecunda, que dela também seserve, para título de artigo recente, Augusto Massi ao falar em uma poética poliédrica.

N O T A S

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indevidas. À semelhança da eternidade,deduzida a partir do queijo-de-minas,podemos mencionar ainda as conside-rações sobre o percevejo. O poeta opõeo percevejo (bélico e minúsculo) aoelefante (enorme e inofensivo) e vê nocontraste um sinal do capricho (senso deequilíbrio, sabedoria?) da natureza.Confrontado com a falácia da paquidér-mica temperança, o poeta imerge nocaos: �Quando soube que o elefantepode também ofender e destruir, mu-dou-se para mim a face da terra; dissol-veram-se as fronteiras do bem e domal.� O curioso é que esse caos deri-vado das considerações sobre a naturezacruza-se, por associação, com uma refe-rência histórica precisa � a Guerra doVietnã (fato, aliás, várias vezes aludidoao longo do livro) �, graças à lembrança deque o percevejo fora usado pelos norte-americanos como arma para localizar osvietnamitas durante o confronto: �o terrívelpercevejo, este micronapalm�. O en-raizamento histórico das metáforas ealegorias é um traço fundamental des-sa poética e aparece de forma exemplarnos poemas de guerra dos anos 30-40, em que a retórica apocalíptica ad-quire inegável atualidade política.

Vale insistir quanto ao fato de que,ao mesmo tempo em que as definiçõesganham concretude pela tangência dosobjetos, os objetos (coisas, bichos, luga-res, obras de arte) são submetidos a umaespécie de desfiguração ou desmancheque os obriga a girar, feito pequenaspiorras, para que se mostrem suas mui-tas faces, seus vários refolhos. Muitasvezes também, a descrição se inicia edesenvolve a partir das bordas do objeto,desenvolvendo cadeias associativas apartir do nome científico de um animal,de uma palavra estrangeira evocada, damediação de obras no campo da filo-sofia, da música, das artes plásticas, docinema, da moda etc.

Com relação a esse último ponto,Poliedro é um prato cheio para ilustraro trânsito de Murilo por outras artescomo conseqüência de um projetocriativo inquieto e infenso às especiali-zações e enquadramentos discipli-nares. Murilo cita Proust, Baudelaire,Mallarmé, Lautréamont, Michaux,Kafka, Hölderlin, Blake, Melville,Fellini, Walt Disney, Buster Keaton,Sofia Loren, Maria Callas, ChristianDior, Mozart, Ravel, Debussy,Magritte, Klee, Velásquez, De Chi-rico, Le Corbusier, Nietzsche, Hegel,Schopenhauer, Kant, Pascal, Vico,Heráclito (entre muitos outros), teste-munhando sempre aquele gosto pelaimpureza, pela mistura entre o eruditoe o massificado, o tradicional e o ultra-moderno, o natural e o tecnológico.

Especificamente no campo da lite-ratura, há o caso extremo do texto �Oporquinho-da-índia� em que a evo-cação depende quase que exclusiva-mente da referência a outro poema:�O porquinho-da-índia é um animalmuito gracioso e fino, nada erpe, queme fez uma reverência, sorrindo-mecom malícia, a primeira vez que o en-contrei � há muitos anos � atraves-sando o soalho de uma poesia deManuel Bandeira.�

Às vezes, os deslocamentos asso-ciativos são complexos. Como napassagem em que o design da zebrafunciona como prenúncio da pinturaconcreta e inspiração para a faixa depedestres nas ruas modernas. Por umainusitada metonímia, a faixa de pedes-tres vira um veículo a bordo do qualse percorrem as cidades. Noutrosmomentos, a impressão inicial é dearbitrariedade. Penso no verbete �ORubicão�10 , em que o poeta parte daconhecida passagem da história ro-mana e desliza para uma citação deum poema de Mallarmé que, à pri-

meira vista, nada teria que ver com oassunto. É o próprio Murilo quemchama atenção, ao final do texto, parao fato de a associação ser um tantoforçada, apoiando-se somente no fatode o riacho em questão dividir a GáliaCisalpina , adjetivo presente no poemade Mallarmé. Tal associação não ape-nas é, como qualquer processo incons-ciente, sobredeterminada, mas aindailumina de perto o papel desempenha-do pela literatura ante a negatividadesocial. Reprovando a decisão cesa-riana, fruto da vontade de impor a Ro-ma, contra a vontade do Senado, umgoverno forte, Murilo se pergunta sea musicalidade de versos como os deMallarmé serviria de consolo contraa violência em outras circunstânciashistóricas. A resposta toca no proble-ma da mistificação artística que supe-restima a capacidade de lançar os da-dos e atravessar rubicões.

Haveria muito ainda a observar apropósito desses esquemas de codi-ficação do real que não raramente im-plicam uma figurabilidade complexa,inefável. Donde a tendência, já refe-rida, a sobrevalorizar a perícia cons-trutiva como fetiche ou a subestimaro potencial cognitivo da liberdade vi-sionária, aprisionando-a sob a chan-cela da evasão.

Fico, no entanto, por aqui. Fechocom um aforismo do próprio Murilo,pinçado desse mesmo Poliedro, a títulode resposta aos que escarnecem dodelírio (entendido como forma de co-nhecimento) em nome de uma sub-realidade, pesadelo unidimensional cujalição é sem surpresa:

Evadir-se da realidade, tampão queexplode. Evadir-se de uma sub-realidade quemina a face múltipla da realidade. Evasão,consciência saturada do real.

Fabio Weintraubpoeta e editor, autor de Sistema de erros (Arte Pau-Brasil)

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administrar a diferença e aceitá-la comoconstitutiva da nacionalidade, ela tem deestar contida no espaço privado, emguetos, com maior ou menor repressão,porque é considerada um risco à identi-dade e à unidade nacionais. Mas não hácomo negar que, cada vez mais, as identi-dades são plurais e as nações sempre secompuseram na diferença, mais ou menosescamoteada por uma homogeneizaçãoforçada, em grande parte artificial.

O multiculturalismo é hoje umfenômeno mundial (estima-se que apenasde 10% a 15% das nações no mundo sejametnicamente homogêneas). Costuma,porém, ser considerado um fenômenoinicialmente típico dos Estados Unidos,porque este país tem especificidades quesão favoráveis à sua eclosão. Essaespecificidade é �histórica, demográficae institucional�. Mas, outros países quenão necessariamente têm as mesmascondições � as quais, segundo AndreaSemprini, em Multiculturalismo (EDUSC,com tradução de Laureano Pelegrin), são:a existência de instituições democráticas,de uma economia pós-industrial em viade globalização e de uma população

heterogênea � também apresentam essefenômeno. Entre esses, Canadá, Aus-trália, México e Brasil, especialmentedevido à presença de �minorias nacionaisautóctones� por longo tempo discrimi-nadas. Canadá e Austrália têm sidoapontados como exemplares, devido aalgumas conquistas fundamentais erelativamente recentes. Mesmo naEuropa, nos lembra Semprini, há mino-rias que hoje reivindicam seu reconhe-cimento e, às vezes, como no caso dosBascos na Espanha, de forma violenta.Conflitos e contradições também seencontram na França e na Alemanha. Deacordo com Semprini, na França, o casodo véu islâmico fala por si só e, naAlemanha, a discussão interminávelsobre a integração dos turcos e o direitoà dupla nacionalidade volta sempre,mesmo que, hoje, disfarçada no que opartido democrata cristão vemchamando de Leitkultur � definido poruns como cultura de referência alemã, àqual os imigrantes deveriam se adaptar(como defendeu, levantando polêmica,Friedrich Merz, presidente do CDU-CSU, em outubro de 2000), e por outros,

Ligia ChiappiniFoto de Peter Henry Emerson

OO multiculturalismo pode ser vistocomo um sintoma de transformaçõessociais básicas, ocorridas na segundametade do século XX, no mundo todopós-segunda guerra mundial. Pode servisto também como uma ideologia, a dopoliticamente correto, ou como aspi-ração, desejo coletivo de uma sociedademais justa e igualitária no respeito àsdiferenças. Conseqüência de múltiplasmisturas raciais e culturais provocadaspelo incremento das migrações em escalaplanetária, pelo desenvolvimento dosestudos antropológicos, do própriodireito e da lingüística, além das outrasciências sociais e humanas, o multicul-turalismo é, antes de mais nada, umquestionamento de fronteiras de todo otipo, principalmente da monocul-turalidade e, com esta, de um conceitode nação nela baseado. Visto como mili-tância, o multiculturalismo implicareivindicações e conquistas por parte daschamadas minorias. Reivindicações econquistas muito concretas: legais,políticas, sociais e econômicas.

Para a maior parte dos governos,grupos ou indivíduos que não conseguem

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mais radicalmente, como cultura domi-nante.

Os estudos sobre a situação nosEstados Unidos mostram um descom-passo entre os discursos e as práticas, orisco de se utilizarem as bandeiras multi-culturalistas como forma de segregaçãoem guetos dos incômodos diferentes ereivindicantes. O multiculturalismo,assim, vira paliativo. Isso é compreen-sível sobretudo no quadro histórico emque se deu, desde o século passado, otratamento da imigração nesse país,através do chamado melting pot de algunse do desmantelamento das identidades deoutros, considerados inassimiláveis. Essasituação se arrasta até o presente, aindaque camuflada.

Deve-se reconhecer, porém, que achamada Ação Afirmativa, defendida poruns e atacada por outros, parece terconseguido, apesar de todos os seuslimites, algumas conquistas que, hoje,ameaçam se perder, conforme nos explicaAngela Gillian em �Um ataque contra aação afirmativa nos Estados Unidos �Um ensaio para o Brasil�, que integra ovolume Multiculturalismo e racismo: Uma

comparação Brasil-Estados Unidos (editoraParalelo 15, organização de Jessé Souza).

No caso dos índios que resistiram aogrande massacre, a defesa dos princípiose ações multiculturais têm levado a umaretomada da visibilidade da herançaindígena, provocando uma revisão críticado passado, tentativas de reparação e, daparte de muitos cidadãos, a busca e oreconhecimento de suas origens diretaou indiretamente ligadas a essa herançaétnica e cultural. Mas o sonho americanoda democracia, com igualdade deoportunidades e de direitos, desmentia-se e volta e meia torna a desmentir-se noapartheid dos negros e dos latino-americanos. Um caso recente � noti-ciado pelo Jornal da Tarde, em 16/11/00(�Herbert viveu o �sonho americano�.Agora, vai para albergue no Brás�), e pelaFolha de S.Paulo, no dia 20 do mesmo mês(�Brasileiro deportado recebe duaspropostas de trabalho em SP�), �mostrou como é difícil a um jovem brasi-leiro integrar-se na sociedade norte-americana, mesmo que para lá tenha sidolevado bebê, por pais adotivos que eramcidadãos do país. O jovem João Herbert,

hoje com 22 anos, foi deportado por ter-se envolvido com drogas, como ocorrecom muitos jovens em todo o mundo nessaidade. De volta ao Brasil, sem saber portu-guês e sem conhecer ninguém aqui, Her-bert passa a identificar-se como brasileiro,já que, excluído do paraíso que para ele setransformou subitamente em inferno,adota o critério: �a gente é o que nasce�.Cuidadoso na crítica ao sistema norte-americano, não deixa de acusar: �Elestratam os latino-americanos de formadiferente�.

Aliás, sobre a diáspora brasileira e asdeportações, uma matéria publicada narevista Época, em 13/11/00, intitulada�Sagas inglórias�, evidencia quão fecha-das para as pessoas são as fronteiras aber-tas para as mercadorias, contradição paraa qual um crítico agudo como Chomskynão cessa de apontar (A minoria próspera ea multidão inquieta, editora da UNB).Segundo a reportagem da revista Época, onúmero de brasileiros deportados no ano2000 foi de 1.359 contra 177 no ano de1999. Todos sentindo-se roubados de suaidentidade, como seres de um lugar ondeé cada vez mais difícil ser.

Leia a seguirensaio de LigiaChiappini sobremulticulturalismo,suas conquistas e orisco de seu uso comoforma de segregação,pertencente à série quea CULT publica desde a ediçãode abril, a partir de conferênciasapresentadas no I EncontroFronteiras Culturais (Brasil-Uruguai-Argentina)

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Acima, Ligia Chiappini e, na página oposta, Untitled [AltgeldGardens], tela de 1995, do artista plástico norte-americano KerryJames Marshall, que representa a diversidade cultural

Francisco Emolo/Agência USP

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Andrea Semprini nos explica que �seas causas das controvérsias multiculturaisvão longe na história dos EstadosUnidos, somente nos últimos dez ouquinze anos esta problemática tem-setornado objeto de vivo debate social epolítico�. E ele coloca a questão que sepõe para todos nós: �Por que agora? Porque o multiculturalismo, de repente,tornou-se assunto da moda e objeto depolêmicas tão violentas?� (Multiculturalismo)

Sua resposta passa por uma análise dastransformações por que passou e passa asociedade norte-americana, sobretudo apartir dos anos 60, quando se processa omovimento pelos direitos civis contra asegregação racial. Como em muitosoutros lugares do mundo, são dos anos60 que sopram os ventos da aberturamulticultural, do reconhecimento dosdireitos das chamadas minorias e da lutapelos seus direitos.

Mas entre a integração formal dosnegros, latino-americanos e índios (mastambém mulheres, homossexuais eoutros grupos sistematicamente discrimi-nados) na sociedade do bem-estar e dademocracia e a integração real, muitossenões atrapalharam e continuam atrapa-lhando, pois a população branca, emgrande parte conservadora de uma cul-tura de longa data racista e segrega-cionista, não aceita isso com tanta facili-dade. Por outro lado, o alargamento dabase social com a assimilação, mesmo que

mais teórica do que prática, mas facultadalegalmente, dos antes inassimiláveisprovoca uma reconfiguração do quadroeconômico e social do país. Parte daclasse média cai do paraíso e parte menorreforça sua posição nele pela concen-tração da renda. Aumentam os níveis depobreza e se repete um outro tipo deapartheid: pelo menos 20% da populaçãofica à margem do sonho americano,inacessível para eles.

Em conseqüência, os conflitos dasminorias não se dão apenas com amaioria, mas entre elas próprias, trans-formadas umas para as outras em bodeexpiatório de sua exclusão social. Esse éapenas um dos desafios que o mundoglobal e multicultural enfrenta hoje commelhores ou piores condições de mantera paz entre os diferentes que tentamconviver num mesmo território.

Os teóricos do Multiculturalismocostumam opô-lo à Modernidade, a cujodiscurso homogeneizador se contrapõemo pluralismo, o hibridismo, a intercul-turalidade e os discursos e valores defronteira. Faz parte dessa crítica à Moder-nidade, a crítica à noção homoge-neizadora de nação e de identidadenacional. Em troca, fala-se da naçãocomo um constructo, como uma invençãocom base em mitos, cuja narrativasilencia fraturas e contradições.

Mas há quem considere que, naAmérica Latina, nem as nações são

homogêneas nem a modernidade é linear,mas palco de múltiplas temporalidadesque nunca foi possível disfarçar de todo.E as reflexões menos simplificadorassustentam que a identidade, uma vezinventada e incutida por gerações egerações, tem uma positividade para obem e para o mal, servindo tanto parajustificar a violência contra outras naçõescomo para defender as mais fracas �econômica, política e militarmente �contra as mais poderosas. Ou seja, essasreflexões, com as quais me identifico,reconhecem que as identidades sãohistóricas e relacionais, mas aindaidentidades. Elas também reconsideramcomo fator enriquecedor o múltiplo ecada vez mais múltiplo pertencimentodos indivíduos, suas ambivalências, asidentidades ambíguas que se combinam:continental, nacional, regional, local, deidade, de gênero, étnica, profissional e declasse. A diversidade cultural e étnica évista como desafio para a identidade danação, mas também como fator deenriquecimento e abertura de novas emúltiplas possibilidades.

Um pensamento dicotômico, muitopresente em nossos dias e contraditório atoda a vontade de liberdade e ao rela-tivismo, opõe sistematicamente a classesocial à etnia e à cultura, mas há tambémquem volte a considerá-la com o devidopeso. Refiro-me àqueles estudiosos quenão querem esquecer o grande apartheid

A globalização levanta questões de fronteiras, envolve acordos como o Mercosul, repercutindo em diferentes setores davida nacional. Mas ainda não despertou maior atenção quanto a fronteiras culturais e suas transformações. O caso doRio Grande do Sul, limítrofe com Uruguai e Argentina, é peculiar: formação histórica e geográfica, constituição culturale social, língua e literatura se mesclam nas fronteiras. Daí a importância de examinar sob esses ângulos a situaçãonesse contexto, repensando seu passado e projetando seu futuro possível.Esse quadro motivou o I Encontro Fronteiras Culturais (Brasil-Uruguai-Argentina), realizado pelo Centro de Estudosde Literatura e Psicanálise Cyro Martins (Porto Alegre). Em dezembro passado, conferências, mesas-redondas e círculosde debates reuniram especialistas em torno de temas como Fronteiras culturais e globalização (Luiz Pilla Vares,Jacques Leenhardt, Sandra Jatahy Pesavento, Suzana Bleil de Souza); Multiculturalismo e identidade nacional (LigiaChiappini, Aldyr Garcia Schlee, Flávio Aguiar); Gauchesca: entre sul-rio-grandenses e castelhanos (Pablo Rocca, LéaMasina, César Guazzelli); Intercâmbio cultural e mercado editorial entre países platinos e Brasil (Gustavo Sorá,Sergius Gonzaga, Marcia Hoppe Navarro); Instituições culturais e o Mercosul (Ricardo Ribenboim, Margarita Kremer,Margarete Moraes); Imaginário, memória, criação na psicanálise e na literatura do Rio Grande do Sul (Cláudio LaksEizirik, Luiz Antonio de Assis Brasil, Theobaldo Thomaz, Cláudio Martins); O papel da mídia e dos eventos culturaisnas zonas de fronteira (Roberto Cohen, Cléber Moreira, Renato Segrera, Gilda Bittencourt); Linguagem literária:

consolida papel da cultura gaúchaE

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maio/2001 - Cult 21

do globo que nesta América do Sul se faztriste realidade quotidiana: entre quemtem para viver e até para esbanjar e quemmal tem para sobreviver. Quem nãoesquece o papel da classe tampoucoesquece que a queda do muro de Berlimnão significou a queda de todas asbarreiras que permitisse aos cidadãos domundo ir e vir livremente e que as aliançaseconômicas dos grandes têm comocontraponto, paralelamente, as barreirasà imigração. A globalização resolveu eresolve sempre quem interessa importare quem é preciso deportar.

Para uma estudiosa de literatura comoeu, interessa pensar um pouco mais oproblema do multiculturalismo naeducação e nos estudos da linguagem(caberia aqui mencionar o esforço dopoliticamente correto de �purificação dalíngua� que, muitas vezes, reforça atendência de os indivíduos se contenta-rem apenas com a reformulação dodiscurso em lugar da realidade), da críticae da produção de manuais escolares, comatenção ao modo como são aí represen-tadas as chamadas minorias (negros,índios, mulheres, homossexuais, entreoutras) e às novas disciplinas e/ou áreasde pesquisa introduzidas nos cursos dehumanidades nas universidades domundo inteiro: sobre literatura e culturanegra, sobre mitos e narrativas indígenas,sobre mulheres ou, mais recentemente,sobre gêneros, entre outros.

Um aspecto que me parece impor-tantíssimo é o da patrulhagem ideológicana língua, na literatura, no cinema e emoutras manifestações culturais que, emnome de uma ética igualitária de respeitoao outro e à sua auto-estima, na verdadeo encaram de modo condescendente,infantilizando-o, inibindo sua capacidadede luta e defesa pelo que realmenteinteressa. Nesse mundo da ética dopoliticamente correto, faz-se silênciosobre certos valores básicos para aconvivência plena do indivíduo consigomesmo e com os outros, com a natureza ecom a sociedade, entre esses o direito à eo gosto pela beleza das coisas bonitas quese fazem sem pressa, devagar, comoquerem os índios de Darcy Ribeiro.

A busca de normas e códigos per-feitos, da linguagem ao comportamento,sufoca toda espontaneidade, das relaçõesamorosas à arte. O recurso aos tribunaisé usado para tudo. Banalizam-se as re-lações humanas; banaliza-se a Justiça.Casos como o ocorrido em 2000, de ummenino suíço acusado de abuso sexualnos Estados Unidos, entre outros tantos,mostram a �penetração do discursojurídico na esfera privada�, que concorrepara o duplo distanciamento do indi-víduo, em relação a si mesmo e em rela-ção aos outros. Essa sociedade, ao mes-mo tempo puritana e hipócrita, ameaçatornar cada homem e cada mulher emum monstruoso �superego�. Como es-

tudiosa da literatura e apreciadora dasartes, confesso que me preocupo, porquesem �ego� e sem �id� não há arte, nemliteratura.

Não é ocasional o fato de o debatemulticultural nos Estados Unidos terlugar nos departamentos de literatura eestudos étnicos e não nos de sociologiaou filosofia, porque a literatura sempredeixou dialogar a contradição e tema-tizou os estereótipos. Mas se a poli-ciarmos, engessaremos o que ela tem decriativo e que possibilitou isso. Fala-sede uma crise da modernidade, presa desuas próprias promessas, que nãoconsegue cumprir quando mais gentequer entrar no paraíso. Fala-se em mu-dança do paradigma político para oético, em revigoramento de outros � doeconômico, cultural, étnico, naciona-lista, religioso �, mas não se fala no pa-radigma estético. Por que razão o para-digma estético não é mais tema dasHumanidades? Por que os ricos têmvergonha do belo? Por que os pobres oacham supérfluo? Por que ele tende abanalizar-se no utile e por que é este quevende? Mas isso nada tem de novo.

Lig ia Chiappin iL ig ia Chiappin iL ig ia Chiappin iL ig ia Chiappin iL ig ia Chiappin iprofessora doutora formada pela USP, onde trabalhou até 1997, no

departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, autora deQuando a pátria viaja: Uma leitura dos romances de Antonio Callado,

ganhador do Prêmio Casa de las Américas (Cuba) de 1983;atualmente é professora titular de literatura e cultura brasileira no

Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Livre deBerlim (Freie Universität-Berlin)

no intercâmbio do MercosulDesafios e limites na criação e na tradução (Patrícia Lessa Flores da Cunha, SaraViola Rodrigues, Rodolfo Franconi). Os textos na íntegra serão publicados emlivro. Versão sintetizada de cinco das conferências está sendo publicada pela CULTdesde abril.O evento lançou o projeto Fronteiras Culturais (Brasil-Uruguai-Argentina), com oqual o CELP Cyro Martins inicia processo de identificação, fomento e difusão cultural,abrangendo os três países a partir de cidades fronteiriças do Rio Grande do Sul comUruguai e Argentina. Um projeto a desenvolver com parcerias e apoios, voltadopara vivências de fronteira em diferentes áreas, manifestações culturais e artes.Em abril começaram as ações culturais nas comunidades (Pesquisa de Campo eOficinas de Leitura e Criação) e se intensificaram intercâmbios com estudiosos eartistas dos três países.Informações no site www.celpcyro.org.br e pelo e-mail [email protected]. Oprojeto é coordenado por Maria Helena Martins, diretora-presidente do CELP CyroMartins.

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Rio de Janeiro sedia X BieVeja a seguir os principais lançamentosprogramados pelas editoras para a X BienalInternacional do Livro do Rio de Janeiro, queacontece de 17 a 27 de maio tendo como paíshomenageado a Espanha. A Bienal terá a participaçãode Argentina, China, Estados Unidos, França, Itália,Jamaica e Portugal, além de atividades paralelas como o

Fórum de debates, o III Encontro de Profissionais de Ensino e cafés literários.

X BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DORIO DE JANEIRO

Data: de 17 a 27 de maio

Local: Riocentro (Av. Salvador Allende, 6.555,Barra da Tijuca)

Horários: dia 17, das 12h às 22h; dia 18, das 9h às23h; dia 19, das 10h às 23h; dia 20, das 10h às 22h;dias 21 a 24, das 9h às 22h; dia 25, das 9h às 23h;

dia 26, das 10h às 23h; dia 27, das 10h às 22h

Ingressos: R$ 6,00, estudantes R$ 3,00 �crianças até 1,20m, maiores de 65 anos,

autores e professores não pagam

Informações: tel. 21/442-1300

CLÁSSICOSLuigi Pirandello

Crime e castigoFiódor DostoiévskiEditora 34Primeira tradução dooriginal russo, por PauloBezerra, do clássico daliteratura universal queexpressa os conflitosentre culpa e redenção.

A aldeia de Stiepântchikov e seushabitantesFiódor DostoiévskiEditora Nova AlexandriaReedição da novela que retratauma propriedade rural na Rússia doséculo XIX e os pequenos dramasque atormentam suas personagens.

A Eva futuraVilliers de L�Isle-AdamEduspRomance escrito em 1886, em queo representante do simbolismofrancês ironiza a burguesia e oprogresso e traduz as inquietaçõessuscitadas pela evoluçãotecnológica.

Um, nenhum e cem milLuigi PirandelloCosac & NaifyRomance escrito entre 1916 e 1926que retoma algumas das obsessõesdo dramaturgo e ficcionista italiano.

Kaos e outros contos sicilianosLuigi PirandelloEditora Nova AlexandriaTradução de Fúlvia Moretto dos contos dodramaturgo e ficcionista italiano, queambienta os dramas de suas personagensna paisagem das cidades sicilianas.

Diálogos com LeucóCesare PaveseCosac & NaifyUm dos últimos títulos do escritor piemontês,traz uma série de 27 microdiálogos entreseres mitológicos sobre temas caros aoautor, como o amor, a morte e a dor.

Viagens na minha terraAlmeida GarrettEditora Nova AlexandriaClássico do romantismo português que serefletiu nas obras de autores como Eça deQueirós, Júlio Diniz e José Saramago.

Joana D�ArcMarc TwainEditora RecordLivro do autor de As aventuras de TomSawyer sobre Joana D�Arc, considerado pelopróprio escritor um de seus trabalhos maissignificativos.

A gênese do Dr. FaustoThomas MannEditora MandarimRelato autobiográfico sobre o processo de

criação de um dos mais importantesromances do século XX.

Duas novelasThomas MannEditora MandarimVolume reúne as narrativas A lei e Aenganada, de autoria do escritor alemão.

Os ThibaultRoger Martin Du GardEditora GloboCaixa com cinco títulos traz a saga familiarque é um dos clássicos da modernaliteratura francesa.

A IlhaAldous HuxleyEditora GloboReedição da obra em que, a exemplo doque ocorre em Admirável mundo novo,Huxley cria uma sociedade imaginária parainterpretar a sociedade contemporânea.

História da eternidade e Livro de areiaJorge Luis BorgesEditora GloboOs títulos fazem parte da reedição, emvolumes separados, da Obra completa doescritor argentino.

Cartas a um jovem poeta e Elegias de DuínoRainer Maria RilkeEditora GloboDois livros fundamentais do poetaalemão.

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nal Internacional do Livro

BaudelaireTheóphile GautierBoitempoContemporâneo e amigo de Baudelaire,Gautier faz um estudo crítico da obrabaudelairiana permeado por impressõespessoais.

Das memórias do senhor deSchnabelewopskiHeinrich HeineBoitempoLivro que pode ser lido como fragmento,novela ou romance picaresco do poeta,novelista e dramaturgo alemão.

Os reisJulio CortázarEditora Civilização BrasileiraRomance que reflete sobre temasangustiantes da história humana, a partirdo encontro simulado entre Teseu e outraspersonagens do mito grego do Minotauro.

Contos � Volume IErnest HemingwayEditora Bertrand BrasilColetânea de contos do autor de O velhoe o mar.

Eu & Outras poesiasAugusto dos AnjosEditora Bertrand BrasilReedição do único livro publicado pelopoeta que oscila entre o neo-parnasianismo e o simbolismo.

CRÍTICA E ARTEColeção o que faz de um grandemestre um grande mestreRichard MühlbergerCosac & NaifySérie originalmente publicada pelaeditora Metropolitan Museum queenfoca a vida e a obra de grandesnomes da história da arte e traz, emseus quatro primeiros volumes,Degas, Da Vinci, Monet e VanGogh .

Obra crítica � Vol. 3Julio CortázarEditora Civilização BrasileiraÚltimo volume da coletâneade textos crít icos do escritorargentino, traz ensaios posterioresao romance O jogo daamarel inha .

Na conquista do BrasilDonaldo SchüllerAteliê editorial

Análise da formação literária dasnações latino-americanas.

Cem anos de teatro em São PauloSábato Magaldi e Maria TherezaVargasEditora SenacEstudo resgata o teatroda São Paulo de 1875 a 1974,destacando as principaispeças apresentadas, teatros,artistas e dramaturgos doperíodo, com destaque paranomes como Plínio Marcos,Procópio Ferreitra e CacildaBecker.

Helena de TróiaClaudio Mello e SouzaLacerda EditoresAnálise da obra deHomero com ênfaseem suas personagensfemininas.

Poética e poesia no Brasil(Colônia)Roberto de Oliveira BrandãoEditora UnespVolume que reúne ref lexõesteór icas e histór icas sobre apoesia colonial brasileira,incluindo uma seleção detextos representativos doperíodo.

Para ler Raymond WilliamsMaria Elisa CevascoEditora Paz e TerraManual para compreender aobra do ensaísta e crítico dacultura Raymond Williams.

Controvérsias e dissonânciasMaurício SegallBoitempo/EduspO museólogo e poeta discutetemas como política, racismo,museologia, cinema e teatro.

Visite o estandeda CULT e daLemos Editorialna X BienalInternacionaldo Livro do Riode Janeiro,estande 269,Pavilhão 3,próximo ao CaféLiterário

C U L T

CRÔNICASAlhos & Bugalhose Cisne de feltroPaulo Mendes CamposEditora Civilização BrasileiraOs dois volumes reúnem, respectivamente,crônicas humorísticase autobiográficas do escritor mineiro.

Crônicas de educação � 1Cecíl ia MeirelesEditora Nova FronteiraColetânea de crônicas da poeta � cujo centenáriode nascimento se comemora este ano � publicadasem sua coluna no jornal Diário de notíciasentre 1930 e 1933.

Tarsila cronistaOrganização de Aracy AmaralE d u s pSeleção de crônicas da pintora Tarsila do Amaral,publicadas originalmente em jornais de São Pauloe do Rio de Janeiro ao longo de vinte anos, a partir de 1936.

A infância recuperadaFernando SavaterEditora Martins FontesLivro que reúne ensaios sobre literatura e culturado filósofo e jornalista espanholFernando Savater.

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Rio de Janeiro sedia X BieFICÇÃODissipatio H.G. � O fim dogênero humanoGuido MorselliAteliê editorialRomance em que a idéia dofim do mundo proporciona acondição ideal a partir da qualse desenvolve o solilóquio depersonagem anônima.

O mesmo marAmós OzCompanhia das LetrasRomance do escritor israelense, autor deConhecer uma mulher, Fima, A caixa preta, Nãodiga noite e Pantera no porão (todos pelaCompanhia das Letras).

Chão de ferroPedro NavaAteliê editorialTerceiro volume da reedição daobra do memorialista Pedro Nava.

A era douradaGore VidalEditora RoccoNovo livro do escritor norte-americano, misturapersonagens reais e fictícias da história dos EstadosUnidos, compreendendo o período entre 1939 e1954.

Tão veloz quanto o desejoLaura EsquivelEditora ObjetivaLivro inédito da escritora mexicana, autora de Comoágua para chocolate, narra a história de umtelegrafista que altera mensagens contendo notíciasruins.

Os bichos-papões anônimosPascal BrucknerEditora RoccoReunião de contos do escritor francês, autor doromance Lua de fel e do ensaio ganhador do PrêmioMédicis de 1995, A tentação da inocência.

O olhar dourado do abismoOlga SavaryEditora Bertrand BrasilAntologia de contos da poeta e ensaísta.

13 maneiras de amar, 13 histórias de amorEditora Nova AlexandriaAntologia de contos sobre a temática do amor,de autores como Adriana Falcão, BernardoAjzenberg, Domingos Pellegrini, FernandoBonassi, Heloisa Seixas, João Silvério Trevisan,Mauro Pinheiro e Silviano Santiago.

A múmia do rosto douradoFernando MonteiroEditora GloboNovo romance do mesmo autor de A cabeça nofundo do entulho.

Homens e caranguejosJosué de CastroEditora Civilização BrasileiraReedição do único romance do cientista Josué deCastro, publicado em 1967, traz histórias deinfância ocorridas em um Nordeste miserável.

Retalhos de JonasGilberto DupasEditora Paz e TerraRomance formado por contos articulados entre sique compõem o itinerário da personagem Jonas,da infância à maturidade.

Uma estrela chamada HenryRoddy DoyleEditora Estação LiberdadeRomance histórico-político considerado pelosjornais britânicos e norte-americanos a obra-primade Doyle apresenta um olhar subversivo sobre aslendas do republicanismo irlandês.

O primeiro dia do ano da pesteFrancisco MacielEditora Estação LiberdadeRomance de estréia do vencedor do Prêmio JuliaMann de Literatura (Instituto Goethe/EstaçãoLiberdade, 1997) traz as histórias de umpresidiário escritor, mesclando Borges, Burroughse Trevisan com traços autobiográficos.

Mil olhos de uma rosaSonia CoutinhoEditora 7 LetrasContos que se constroem em torno da recusa aoilusionismo.

Memórias dos barcosMarcelo MoutinhoEditora 7 LetrasContos em tom de crônica, permeados por trechos deprosa poética.

A carta esféricaArturo Pérez-ReverteCompanhia das LetrasÚltimo romance do escritor espanhol, autor de Oquadro flamengo, O clube Dumas e A pele do tambor(todos publicados pela editora Martins Fontes).

No silêncio das nuvensEdla van SteenEditora GlobalNova reunião de contos da escritora.

Água pesada e outros contosMartin AmisCompanhia das LetrasColetânea de nove contos do ensaísta, contista ecronista inglês, autor do romance Trem da noite.

Entre dois mundosVários autoresEditora Estação LiberdadeObra que reúne os contos vencedores e as mençõeshonrosas do Prêmio Julia Mann de Literatura (InstitutoGoethe/Estação Liberdade, 1997), cuja temática éa transculturalidade.

Barões e escravos do caféSonia Sant�AnnaJorge Zahar EditorNovela histórica que cobre 124 anos da história doVale do Paraíba, da autora de Inconfidênciasmineiras � Uma história privada da inconfidência .

PassaporteFernando BonassiCosac & NaifyLivro em formato de passaporte que traz 140 textosde memórias de viagem do escritor.

Os jacarésCarlos Eduardo MagalhãesCosac & NaifyRomance em que dois amigos discutem o massacrantecotidiano da metrópole paulistana.

Abraçado ao meu rancorJoão AntônioCosac & NaifyPrefaciado por Alfredo Bosi, esse romance sobre osubmundo das grandes cidades traz a marca de umdos maiores prosadores urbanos brasileiros.

Melhores contos de João AlphonsusEditora GlobalColetânea de contos do escritor cujo centenário secomemora este ano.

Bebel que a cidade comeuIgnácio de Loyola BrandãoEditora GlobalReedição do romance ambientado nos anos 60, emque as personagens vivem as transformações darevolução sexual.

O herdeiro das sombrasSinval MedinaEditora MandarimRomance histórico que tem comoprotagonista o compositor norte-americanoGottschalk, morto no Rio de Janeiro,no século XIX.

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HOMENAGEM A DRUMMONDDurante a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, a editora Record dá início às comemorações docentenário de nascimento de Carlos Drummond de Andrade � que será celebrado em 2002 � com a reediçãode sua obra em volumes com novo projeto gráfico e cronologia e bibliografia atualizadas. Serão lançados ostítulos Alguma poesia (1930), com prefácio de Manuel Graña Etcheverry, tradutor da obra de Drummond parao espanhol; Brejo das almas (1934), cujo tema principal é Itabira, cidade natal do poeta, prefaciado pelocrítico literário Edmilson Caminha; Sentimento do mundo (1940), com prefácio de Silviano Santiago; e A rosado povo (1945), um dos mais celebrados livros do escritor mineiro, cuja reedição traz texto de Affonso Roma-no de Sant�anna.

Carlos Drummond de Andrade

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nal Internacional do LivroPOESIAAntologia poéticaCecília MeirelesEditora Nova FronteiraColetânea de poemas organizadapela própria autora em 1963, umano antes de sua morte, reunindopoemas dos livros Viagem, Vagamúsica, Mar absoluto, Elegias 1933-1937,Retrato natural, Amor em Leonoreta, Dozenoturnos da Holanda, O aeronauta,Romanceiro da Inconfidência, Pequenooratório de Santa Clara, Canções, MetalRosicler, Poemas escritos na Índia e Inéditos.

O iceberg imaginárioElisabeth BishopOrganização de Paulo Henrique BritoCompanhia das LetrasColetânea de poemas da escritora norte-americana que morou no Brasil.

Vintém de cobreCora CoralinaEditora GlobalReedição da coletânea de poemas da autoramorta em 1986.

Antologias barrocas: Postilhão de Apolo eFênix renascidaOrganização Alcir PécoraEditora HedraReúne excertos de duas antologias clássicas dapoesia barroca portuguesa.

O mel do melhorWaly SalomãoEditora RoccoNovo livro do poeta baiano, maior expoente daliteratura tropicalista, autor também de Lábia eTarifa de embarque.

Coleção biblioteca de cordelEditora HedraTrês novos volumes da série dedicada à literaturade cordel, enfocando as obras de Severino José,Oliveira de Panelas e Raimundo Santa Helena.

Cadenciando um Ning � Um sambapara o outroRégis Bonvicino e Michael PalmerAteliê editorialColetânea de poemas em que o poeta brasileiroe o norte-americano traduzem-se mutuamente.

O mundo como idéiaBruno TolentinoEditora GloboPoemas e ensaios do autor de As horas deKatharina.

Os cem melhores poemas brasileirosdo séculoOrganização de Ítalo MoriconiEditora ObjetivaAntologia que reúne o essencial da produçãopoética nacional, repetindo o feito de Os cemmelhores contos.

Paulo Leminski � O bandido quesabia latimToninho VazEditora RecordHistórias, escritos, poemas, fotos inéditas erascunhos de textos inacabados de Leminski.

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FILOSOFIAPe. Antonio Vieira �Sermões tomo llOrganização de AlcirPécoraEditora HedraVolume que traz 25sermões do jesuítaportuguês, um dos mais importantesrepresentantes da literatura barroca.

Coleção Grandes FilósofosEditora UnespÚltimos seis volumes da série quesintetiza o pensamento fi losófico deautores clássicos e contemporâneos,trazendo, em formato de bolso, R.G.Collingwood, Demócrito, Derrida, Turing,Schopenhauer e Pascal.

Da amizadeCíceroEditora Martins FontesUm dos textos fundamentais do orador emoralista latino que teve influênciadecisiva sobre o ensaio homônimo deMontaigne.

A arte de ser felizArthur SchopenhauerEditora Martins FontesObra do pensador alemão autor doclássico O mundo como vontade erepresentação.

Ciência e dialética em AristótelesOswaldo Porchat PereiraEditora UnespPrimeiro título da coleção Biblioteca deFilosofia, organizada por Marilena Chauí,traz análises de textos básicos do filósofogrego sobre a doutrina da ciência e dadialética.

A arte de calarAbade DinouartEditora Martins FontesObra do eclesiástico mundano francês doséculo XVII, autor de O triunfo do sexo,que delineia uma ética do silêncio nalinguagem falada e escrita, elevando-o auma categoria política.

A felicidade, desesperadamenteAndré Comte-SponvilleEditora Martins FontesNova obra do filósofo francês, autor dePequeno tratado das grandes virtudes, quetem resgatado a tradição dos moralistes.

A última palavraThomas NagelEditora UnespEstudo do filósofo da tradição analíticasobre as formas de relativismo discuteidéias de pensadores contemporâneos eclássicos.

Em torno da universidade públicaMarilena ChauíEditora UnespAntologia de ensaios sobre a questão dauniversidade pública brasileira.

Entre mito e políticaJean-Pierre VernantEduspNeste �passeio� entre mito epolítica, o importante helenistafrancês delineia sua formaçãode intelectual, refletindo sobrealgumas das principaisquestões que atravessaram oséculo XX, como o anti-semitismo, o comunismo e o fascismo.

Um estudo crítico da história � 2 Vols.Helio JaguaribeEditora Paz e TerraEscrito originalmente em inglês, busca elucidaras principais condições que influenciaram aemergência, o desenvolvimento e a decadênciadas civilizações.

Os donos do poderRaymundo FaoroEditora GloboReedição de um dos clássicos das ciênciaspolíticas brasileiras.

O espelho enterradoCarlos FuentesEditora RoccoO escritor mexicano traça um panorama histórico-social da latinidade, analisando as tradições einfluências ibéricas desde Cristóvão Colombo.

Revistas em revista: Imprensa e práticas emtempos de República, São Paulo(1890-1922)Ana Luiza MartinsEduspVolume ilustrado sobre o gênero revista desde oinício da República até 1922, em São Paulo.

História concisa do BrasilBoris FaustoEduspEnsaio sobre a formação histórica brasileira desde acolonização portuguesa até os dias atuais.

A história à prova do tempoFrançois DosseEditora UnespColetânea de artigos do historiador francês,publicados entre 1984 e 1996.

Série Ponto FuturoEditora SenacSérie que aborda temas controversos dos diversos ramosdo conhecimento lança mais três volumes: Osbrasileiros e os índios, de Márcio Santilli; Corpo a corpocom a mulher � Pequena história das transformaçõesdo corpo feminino no Brasil, Mery del Priore; e Fim dolivro, Fim dos leitores?, Regina Zilberman.

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HISTÓRIA E SOCIOLOGIA

DICIONÁRIOS

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Machado de A a XOrganização de Lucia LeiteRibeiro Prado LopesEditora 34/MusaDicionário de citações deMachado de Assis.

O léxico de Guimarães RosaNilce Sant�Anna MartinsEduspDicionário com neologismos, arcaísmos e palavraspopulares presentes na obra do escritor mineiro.

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Pasquale Cipro Netoprofessor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e

apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura,autor da coluna Ao Pé da Letra, do Diário do Grande ABC e de O

Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo

DINAMARCABrigam Espanha e Holanda/ pelos direitos do

mar/ O mar é das gaivotas/ que nele sabem voar/(...) Brigam Espanha e Holanda/ porque não

sabem que o mar/ É de quem o sabe amarMilton Nascimento e Leila Diniz

Em sua quase campestre casa belo-horizontina, opoeta Fernando Brant me diz que Milton não está noBrasil. Está na Dinamarca, singrando os maresnórdicos com o �Capitão�. Milton o conheceu aocantar em Copenhague. �O Capitão é louco pelo mare por barcos. Cada vez que a gente vai lá, ele tem ummaior�, diz o poeta de �Travessia�.

(Nesse momento, volto à Dinamarca, empensamento. Lembra-me um doce momento que lávivi. Caminho sem destino pelas ruas de Copenhague.Súbito, sons de banda, de fanfarra. Apuro o ouvido edescubro de onde vêm. Vou ao encontro da música edou com a Guarda Real, que caminha para o Palácio.O povo brinca com os guardas-músicos, músicos-guardas, cujo fardamento (mas só o fardamento), acomeçar pelo chapéu, alto e peludo, lembra o dosbritânicos. Engajo-me na cerimônia sem cerimônia.Os guardas sorriem para o povo. Alguns trejeitam ecaminham como Carlitos nórdicos. No átrio doPalácio, ouvem-se clarins, abre-se um imenso por-tão. Funcionários entram e saem, montados embicicletas. Está feita a troca da guarda. Os que saemrepetem a festa. A Dinamarca parece um país debrinquedo, um sonho.)

O �Capitão� se foi. Milton e Gil o homenageiamem �Dinamarca�, canção do disco que os dois gravaramno ano passado. A música (de Milton) é primorosa.A delicada letra (de Gil) é esta:

�Capitão do mar/ Homem tão do mar/ Do maramar, como a um irmão/ Capitão do mar/ Homemtão do mar/ Lembres que o mar também tem coração/Saudades, sim/ O mar tem de ti/ O mar triste e só/Depois do dia em que tu partistes, ó/ Saudades, sim/O nórdico mar/ Mar dinamarquês/ Pede que venhasnavegá-lo outra vez/ Capitão do mar/ Terás que voltar/Terás que vir uma vez mais/ Nova embarcação,/ Novaencarnação,/ Nova canção, novo amor, novo cais/ Omar e nós/ Amigos fiéis/ Amigos leais/ Aqui a esperarteus novos sinais/ O mar e nós/ O norte, os confins/A barca, os canais/ A Dinamarca e os seus carminsboreais�.

Ao belo efeito da paronomásia presente em�embarcação/encarnação�, enriquecida pelo jogometonímico de que Gil se vale quando faz da embarcaçãoa �carne� do Capitão e desta o mote para suareencarnação, com o que o poeta cria um quase moto-contínuo, acrescenta-se a fantasia despertada pelos�carmins boreais� da Dinamarca. Quem já viu a auroraboreal sabe que se trata de pura magia.

Sob o aspecto gramatical, há duas observações afazer. A primeira diz respeito a �partistes� (�Depoisdo dia em que tu partistes, ó�). Gil se deixou levarpelo às vezes inexorável efeito da contaminaçãolingüística. Como a segunda pessoa do singular deoito dos nove tempos verbais simples termina em �s�(tu partes, partias, partiras, partirás, partirias, noindicativo; que tu partas, se tu partisses, quando tupartires, no subjuntivo), é comum que essa flexão dopretérito perfeito do indicativo seja premiada com umintruso �s�. A forma gramatical é �partiste� mesmo,sem �s� final: �Desde o dia em que tu partiste�.�Partistes� é da segunda pessoa do plural (�vóspartistes�).

A segunda observação diz respeito à formaimperativa �lembres� (�Lembres que o mar tambémtem coração�). A forma gramatical da segunda pessoado singular do imperativo afirmativo padrão de �lem-brar� é �lembra�, resultado da eliminação do �s� finalde �lembras� (�tu lembras�), da segunda do singulardo presente do indicativo. Como o texto é escrito nasegunda pessoa (o Capitão é tratado por �tu�), essaseria a forma recomendada pela gramática normativa.

Cabe, porém, uma observação. Em se tratando demúsica popular, lembro-me de pelo menos dois outrosexemplos semelhantes. Um é de �Ordenes e Farei�,música de mestre Cartola e Aluízio Dias. O outro é de�Sutil�, do maravilhoso compositor paulista ItamarAssunção (�Além de entregar meu telefone e o ramal/Ligues rapidinho�). Nos dois casos, empregam-secomo afirmativas (�ordenes� e �ligues�) formasimperativas da segunda pessoa do singular que na línguapadrão são usadas como negativas (�não ordenes�, �nãoligues�). É bom lembrar que todas as formas doimperativo negativo padrão vêm do presente dosubjuntivo. Gil também usou como afirmativa umaforma que na língua padrão seria negativa (�Nãolembres�).

O fato é que nosso imperativo oral é diferentedaquele que ocorre na língua padrão, o que às vezestalvez seja o fator gerador do descarte da flexão cultaque coincide com a coloquial. Formas como �ordena�,�lembra� e �liga�, que pertencem à segunda pessoa dosingular do imperativo afirmativo padrão e em muitasregiões do Brasil são largamente empregadas no dia-a-dia com valor imperativo, ora com o pronome�tu�, ora com �você�, foram desprezadas pelosletristas em textos escritos na segunda pessoa, emlinguagem semiformal ou formal, como se vê naletra de Itamar (em que se encontra �tu és�), na deCartola e Dias (em que se encontra �O que precisares�)e na de Gil.

O que quero dizer é que os letristas parece terempreferido �criar� formas imperativas a usar as clássicas(iguais às populares, no caso), mais condizentes com alinguagem adotada nos poemas em questão. O fato é,no mínimo, interessante e digno de registro e estudo.No caso da letra de Gil, não custa repetir que a formapadrão seria �lembra� (�Lembra que o mar tambémtem coração�). A ser empregada, talvez mais parecesseuma afirmação ou interrogação do que um apelo, o quepode ter sido um fator a mais para que o poeta arejeitasse. Com a forma pronominal de �lembrar�(�Lembra-te de que o mar também tem coração�),quiçá se atenuasse esse possível desconforto e serevivesse o valor imperativo clássico da segunda pessoa.Poder-se-ia deixar elíptica a preposição �de� se ela nãose encaixasse na frase musical (�Lembra-te que o martambém tem coração�).

Minudências à parte, o texto de Gil nos põesolidários nessa espera dos �novos sinais� do Capitãoe eternos expectadores da resposta às perguntas queFernando Brant faz em �Filho�, uma de suas belasletras: �Filho/ Ó meu menino/ Será esse o destino/Viajar o seu navio/ Pelos mares, pelos rios/ Andarsó?/ Filho/ Ó meu viking/ Será esse o caminho/Navegar assim sozinho/ Sem alguém que nos espereno cais?�.

Até a próxima. Um forte abraço.

Pasquale Cipro Neto

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maio/2001 - Cult 37

M e m ó r i a e m r e v i s t A

Cláudio Giordanobibliófilo, editor e tradutor, concebeu e dirige

a Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes

Wilson Rocha, poeta, crítico de arte e alma gene-rosa, vive em Salvador. Simpático aos propósitos da Oficinado Livro Rubens Borba de Moraes, empacotou cartas eprimeiras edições autografadas de seus amigos MuriloMendes, Ribeiro Couto, Jorge de Lima, Drummond,Theon Spanudis e outros e, num gesto de magnânimodesprendimento, mandou-as para a Oficina, dizendo quenela teriam maior proveito. O que se vê nesta página e selê na transcrição da carta enviada por Murilo Mendes aWilson Rocha foi extraído dessa generosa doação.

Querido Wilson,Muito lhe agradeço pela sua excelente carta de 29 de outubro. Sem

dúvida o ideal seria a gente se corresponder sempre. Mas bem sei que aescassez de cartas nem implica, digo � não implica diminuição de amizade.Bem sei � sabemos � que V. é o amigo leal e afetuoso de sempre. Daminha, da nossa parte o mesmo se dá.

Não recebi, infelizmente, a sua carta dirigida a Lisboa, e sim a cartade Natal, que retribuímos. Vejo que se extraviou, hélas!

V. me pergunta se tenho um livro editado na Itália. Sim, saiu aquieste ano um livrinho meu, Siciliana, em texto bilíngüe. Não mandei aquase ninguém aí, pois recebi poucos exemplares, e a obrinha interessamais aos italianos. Em compensação, mandei-lhe pelo José Olympioa edição grande das minhas POESIAS. Se não recebeu, me escrevapara eu reclamar ao editor.

Você quer também saber se tenho visto o Ribeiro Couto. Não, nãoo encontrei na Europa. Há muitos anos não o vejo.

Seus poemas são muito significativos, um verdadeiro oásis nestemundo de máquinas e gigantismo industrial. Aguardo com interesseo seu Livro de Canções. Como vai o Martim? Esquecia-me de dizer que,mesmo com escassa correspondência, tenho volta e meia suas notí-cias, seja pelo Martim, seja por outros brasileiros que aqui aportam.O último que mas deu foi o Luís H. Dias Tavares.

Adeus, meu querido Wilson; escreva-nos sempre que puder.Aceite afetuosos abraços de Saudade e deste sempre seuMuriloJunto lhe envio uma foto minha com o João (Cabral de Melo

Neto).

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38 Cult - maio/200138

P R O G R A M A

Cult - maio/200114

O Sesc São Paulo, a revista CULT e o ConsuladoGeral da França promovem nos dias 29 e 30deste mês o colóquio Europa em Obras – A

construção literária e cultural de umcontinente, em que intelectuais brasileiros e

estrangeiros discutem a noção de uma culturaeuropéia tal como representada na obra de

escritores e pensadores fundamentais para aformação do imaginário do Velho Mundo

em obrasEuropa A construção literária e cultural de um continente

Realização: SESC São Paulo, CULT e Consulado Geral da FrançaParticipação: Consulado Geral da SuíçaApoio: Consulado Geral da República Federal da Alemanha

A Europa do húngaro Endre Ady e do sérvioDanilo KisAleksandar Jovanovic � jornalista, ensaísta,tradutor e professor de lingüística aplicada naUSP

Das 19h30 às 22hMesa: França, Suíça, Áustria

A Europa do francês Victor HugoAnne-Marie Grand � professora do Liceu Pasteur edoutora em literatura e civilização francesa pelaUniversidade de Paris III

A Europa do suíço Charles FerdinandR a m u zAlain Rochat � poeta, pesquisador daUniversidade de Lausanne e coordenador deedição das obras de Ramuz (Biblioteca de laPléiade/Gallimard)Nöel Cordonier � professor e doutor em letraspela Universidade de Lausanne

A Europa do austro -húngaro Sigmund FreudRenato Mezan � psicanalista, coordenador darevista Percurso e professor titular da PUC/SP

29 DE MAIO � TERÇA-FEIRA

14h30 - Credenciamento dos participantes

Das 16h às 18h30Mesa: Brasil, Portugal, Itália, Alemanha

A Europa do italiano Primo Levi �Uma hermenêutica para a EuropaAndrea Lombardi � professor de literatura italianana USP

A Europa do brasileiro Guimarães Rosa edo português Eduardo Lourenço � Portugal,Europa e os não-lugares da saudadeSusana Kampff Lages � professora de línguaalemã na Unicamp

A Europa dos alemães Schlegel e Novalis� Paz perpétua, guerra sem fimMárcio Seligmann-Silva � professor de teorialiterária e literatura comparada na Unicamp edoutor pela Universidade Livre de Berlim

Das 19h30 às 22hMesa: França, Argentina e Irlanda

A Europa na experiência do Trem LiterárioJacques Jouet � escritor, pesquisador eorganizador do Trem Literário em 2000

A Europa do argentino Jorge Luis BorgesLeda Tenório da Motta � professora decomunicação e semiótica na pós-graduação daPUC-SP e doutora pela Universidade de Paris VI

A Europa do irlandês Samuel Beckett� Um escritor sem fronteirasCélia Berretini � escritora, tradutora e professorana pós-graduação da ECA-USP

30 DE MAIO � QUARTA-FEIRA

Das 16h às 18h30Mesa: França, Espanha, Hungria e Iugoslávia

A Europa do poeta franco-suíço BlaiseCendrars � Um poeta entre dois mundosReto Melchior � escritor e professor de línguas eliteratura na Escola Suíço-Brasileira de São Paulo

A Europa do espanhol Ramón Gómez de la SernaAdolfo Montejo Navas � poeta, crítico e tradutor,organizador da antologia Nueva poesia brasilenã(1960-2000)

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3 8

Local: SESC Vila MarianaRua Pelotas, 141, Vila Mariana - São Paulo/SPTel. 11/5080 3000 - www.sescsp.com.br

A Ponte Neuf, em Paris, embrulhada pelo artista búlgaro Javacheff Christo

E v e n t O

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D o s s i ê C U L T

contemporânea

Obra sem títulorealizada em 1992 peloartista plástico espanholChema Madoz

literatura espanhola

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40 Cult - maio/200140

Uma novacartografia espanhola

Livro II (1987), pintura sobre bronze do artista catalão Antoni Tàpies

Adolfo Montejo Navas

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maio/2001 - Cult 41

P

Leia a partir destas páginas um dossiê dedicado à literaturada Espanha, país homenageado na X Bienal Internacional doRio de Janeiro, que ocorre entre os dias 17 e 27 deste mês.Além de entrevistas com os escritores Antonio Gamoneda eJavier Marías, esta edição da CULT traz ensaios que destacamas linhas de força da prosa e da poesia produzidas após o fimdo franquismo, além de textos sobre as literaturas catalã, bascae galega, que compõem o caleidoscópio cultural espanhol.

À memória de José Ángel Valente

Parece que nenhuma literaturagoza de excessiva saúde até que nãoconsiga sair de casa, até que não atra-vesse as fronteiras e transmute suamatéria-prima, a linguagem, ironica-mente, em outra linguagem. Mas atéque se chegue a esse lugar quiméricodas versões/obras, há outros territóriosque semeiam o conhecimento antes,durante e depois delas: trata-se dafundação de conexões, de itinerários.Esta edição CULT, seja como intro-dução, descobrimento ou análise, pre-tende produzir isso nesse dossiê sobrea literatura espanhola contemporânea.

Apesar do atrativo crescente que alíngua está criando ao seu redor, esta lite-ratura no Brasil não tem uma granderepresentação � como também acontececom a latino-americana. Ainda que sen-do, junto da pintura/artes plásticas, amais famosa expressão artística espanholamundo afora, ela repousa na maioria dasvezes sobre alguns nomes clássicos(Cervantes ou Quevedo) ou até maispróximos, que viram ícones até o pontode produzir eclipses: Federico GarcíaLorca fez isso muito bem com toda ageração poética do 27. Como sempre,mitificações e globalizações à parte, odesconhecimento da contemporaneidadee de grande parte de suas vozes literáriasmaiores revela, uma vez mais, que a pala-vra da literatura corre mais devagar emnosso acelerado mundo ou procuraatingir ainda outra profundidade.

Estabelecer uma �ponte� literáriaexigiria assim realizar uma panorâmica

que aplicasse a lente dupla daproximidade do detalhe e da perspecti-va do horizonte. Com base nessascircunstâncias e nesse desejo de umanova cartografia, organizou-se estemonográfico com entrevistas queaproximassem a voz de algumas poéti-cas literárias e uma série de textos queformulassem a leitura das linhas deforça estilísticas e seus nomes maisdestacados. Dessa maneira, pensou-sena realização de três entrevistasimportantes que exemplificassemâmbitos diversos da criação literáriamais ativa: Antonio Gamoneda (poe-sia), Javier Marías (narrativa) eEduardo Subirats (ensaio/filosofia) �esta última publicada fora do dossiê,na seção �Entrevista� (pág. 4). Reali-zadas por várias vias e lugares, elasentranham um perfil literário repre-sentativo e ao mesmo tempo crítico docânone estabelecido de cada âmbito.

Os textos mais amplos que reúneeste dossiê procuram oferecer estudosdos universos poético e narrativo emlíngua espanhola/castelhana das últi-mas duas décadas, a partir da análiseda nova literatura que começa a sur-gir com o desaparecimento do fran-quismo, tendo como balizas críticasa importante crise do realismo, odesbloqueio de padrões estéticos e aconfiguração de uma nova subjetivi-dade lírica na poesia, por um lado, epor outro, o avanço de narrativas querecuperam o sabor de contar e refletirao mesmo tempo, com maior preocu-pação pelo gênero do que com a

experimentação de outrora. (Veja-seJosé Ángel Cilleruelo e Antonio Mau-ra). O leitor vai encontrar diversascabotagens, mergulhos e mundos.Como a Espanha nunca deixou de seras Espanhas, também se dedica umespaço representativo à diacrônicaatualidade das literaturas em línguacatalã, basca e galega através de espe-cialistas em cada uma delas: DavidCastillo, Jon Kortazar e Camilo Valde-horras. (Sempre fazendo constar queo texto �As letras galegas actuais:Indicios dun ciclo áureo?� foi conser-vado em galego, por considerarmossua sintonia lingüística com o portu-guês um argumento cultural a mais.)

Deve-se reconhecer aqui que estedossiê, que segue a idealização originalapresentada em setembro do anopassado, é uma conquista culturalindependente da revista CULT, que,sem mecenato algum, apoiou inteira-mente a proposta desde o primeiro até oúltimo momento. Por último, é precisodizer que ele conta com um complementográfico procedente de duas áreas estéticasque tangenciam com as fronteiras doespaço literário: a escultura de pequenoformato e a colagem. Ambas colaborammais que simbolicamente na paisagemliterária destas páginas.

Adolfo Montejo Navaspoeta, tradutor, crítico literário e de arte nascido em Madri; entre suas

publicações, destacam-se Poemas (Impressões do Brasil, RJ)e Inscripciones (aforismos, editora Coda, Madri) e as traduções

de Poemas de Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa, Cabezade homem, de Armando Freitas Filho, Contratextos, de Sebastião

Uchoa Leite e a antologia Nueva Poesia Brasileña 1960/2000 (editoraÁrdora, Madri; no prelo); tem realizado diversas exposições

de poemas-objeto e visuais

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42 Cult - maio/200142

E

Retrato de Kierkegaard (1990),obra de Eva Lootz, artistaaustríaca radicada na Espanha

do meta-romanceao neo-romance

Em um recente artigo, publicadoem um conhecido jornal, o escritorJuan Goytisolo fala sem rodeios da�putrefação da vida literária espanho-la, do triunfo do amiguismo seboso etribal, da existência de confrarias, cu-pinchas e de puro comércio, da apo-teose grotesca do espantalho�. A causa� anedótica demais � de semelhantefileira de impropérios é a concessãodo Prêmio Cervantes das Letras Es-panholas a Francisco Umbral, umescritor de obscuras intenções e de umobscuro passado próximo aos órgãosde poder da ditadura franquista. Mas,poder-se-ia qualificar, realmente, aatual literatura espanhola de �apoteosegrotesca do espantalho�? Por acaso nãoé um pouco veemente semelhantevisão à maneira de Valle-Inclán?Possivelmente (e embora não falterazão a Juan Goytisolo) nem todoromance contemporâneo � paralimitar-me ao âmbito deste artigo �é tribal ou putrefato, embora hajamuita crítica sectária e interesses nãoestritamente literários nos setoreseditoriais. Nesse sentido, o presti-gioso crítico Fernando Valls con-sidera �que nunca, na história lite-rária espanhola contemporânea, ha-via-se produzido em tão alto nívelmédio de qualidade�. Como fica-

mos? Como falar da atual narrativaespanhola ante semelhantes opiniõescontrapostas?

Basta nos atermos na década passadapara observarmos a diversidade dastendências e dos critérios literários, tãodiferentes e contrastantes como os dasavaliações críticas que acabo de citar.Como, então, colocar ordem nogalinheiro, como indicar rotas em seme-lhante floresta? Recorrerei novamente àcrítica ao apontar, com outro reconhe-cido estudioso na matéria, GonzaloSobejano, as linhas narrativas que, emsua opinião, a ficção espanhola seguiunos últimos anos. Para Sobejano, asnarrações publicadas nesse período po-deriam ser classificadas como meta-romances � aqueles que �não se referemsomente a um mundo representado,mas, em grande proporção ou princi-palmente, a si mesmas, ostentando suacondição de artifício� �, e neo-roman-ces, isto é, aqueles que poderiam serconsiderados de �gênero�. Na décadade 80, sempre na opinião desse crítico,o que predominou foram os meta-ro-mances ou anti-romances, posto que nasobras de ficção se questionava o pró-prio processo da escritura.

Poderíamos destacar nesse períodouma obra como a de Julián Ríos (1941),que em 1983 publicou Larva. Babel de

una noche de San Juan significou um dostrabalhos mais �perturbadoramenteoriginais�, segundo a Enciclopédia Bri-tânica da prosa espanhola. Este autortem continuado sua inovação lingüís-tica e estrutural com obras como Poun-demonium (1986) e La vida sexual de laspalabras (1991). Julián Ríos, que atual-mente prepara uma biografia do escri-tor brasileiro Machado de Assis, temtrabalhado também na relação da pala-vra com a imagem plástica e, nestecampo, devem-se mencionar livros co-mo La novela pintada (1989), Impresionesde Kitaj (1989), La comedia del arte deEduardo Arroyo (1991) e Las tentacionesde Antonio Saura (1991).

Outro autor que tem experimenta-do com êxito na estrutura narrativa éJosé María Guelbenzu (1944), quedurante os anos 80 publicou diversosromances, como El río de la luna (1981),El esperado (1984), La mirada (1987) e,já na década de 90, La tierra prometida(1990), El sentimento (1996) e Un pesoen el mundo (1999), em que mescla omonólogo interior, a crônica ou a con-fissão para articular uma estruturacomplexa, numa linha inovadora queiniciou com La noche en casa (1978). Aobra deste autor madrilenho é marcadapor sua reflexão sobre o ser humanocontemporâneo, seu desgarro interior,

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maio/2001 - Cult 43

A ficção espanhola das últimas décadas transitou

de uma experimentação formal típica dos anos

80 para romances que assinalaram, nos anos 90,

a afirmação da especificidade da matéria narrada

e o abandono dos problemas inerentes à escritura

Antonio Maura

sua solidão e desencantamento anteuma sociedade que tem conquistadoseus objetivos básicos, em que já nãocabem mudanças substanciais.

No entanto, o que distingue o ro-mance dos anos 90 é justamente suaespecificidade de gênero, ou seja, o aban-dono, salvo honrosíssimas exceções, daexperimentação e da auto-indagaçãosobre o que seja uma obra narrativa. Osautores desta última década querem,antes de mais nada, contar histórias aoleitor, a quem consideram alheio aosproblemas inerentes à escritura.

Um dos acontecimentos que carac-terizaram este fim de século foi tam-bém, como indicou Laura Freixas emseu livro Literatura y mujeres, a presençade numerosas obras de ficção escritaspor mulheres, com peculiaridades espe-cificamente femininas. A mulher ir-rompeu não só no romance como tam-bém na vida trabalhista e política dessemesmo período � e por isso é precisoentender esse aspecto no conjunto dasociedade espanhola contemporânea,e não só na vida literária ou cultural.

Um grupo de escritoras alcançouo êxito literário nos anos 80 e, nestaúltima década, publicou alguns livrosde indiscutível valor como Vals negro,de Ana Maria Moix (1947), Temblor,de Rosa Montero (1951), La tierra

fértil, de Paloma Díaz-Mas (1954) ouMalena es un nombre de tango, de Al-mudena Grandes (1960).

No entanto, pertence à década de90 toda a produção narrativa de RosaRegás (1933), cujo primeiro romance,Memoria de Altamor, foi publicado em1991, conseguindo em 1994 o presti-gioso Prêmio Nadal, com Azul, sua se-gunda obra narrativa. Em 1999, pu-blicou seu terceiro romance, sob otítulo de Luna lunera.

Por outro lado, romancistas comoAna María Matute (1926), que vempublicando há décadas e é uma dasescritoras mais significativas da cha-mada geração da metade do século,brindou a imprensa em 1996 com oromance Olvidado rey Gudú, segundaparte de uma trilogia ambientada naIdade Média, que havia iniciado em1971 com La torre vigía e que com-pletou com Aranmanoth, em 2000.

Outra escritora da mesma geraçãoé Carmen Martín Gaite (1925-2000),que publicou, no início da década,Nubosidad variable, romance de estru-tura epistolar no qual narra a relaçãode duas mulheres na maturidade e quea crítica ressaltou também como umadas obras emblemáticas dos anos 90.

Junto dessas duas veteranas escri-toras é preciso destacar a jovem autora

Belén Gopegui (1963), que nessadécada publicou livros como A escalados mapas, em 1993, Tocarnos la cara, em1995, ou La conquista del aire, em 1998,este último um romance que sedestaca pela força de seus personagense da cuidada estrutura, assim comopor uma linguagem precisa esensível. Tudo isso faz com que tantoos leitores quanto os críticos a consi-derem como uma das mais valiosasnarradoras do novo século.

Entre os autores dos anos 90, háuma grande disparidade no que serefere ao estilo, à temática ou à estru-tura narrativa, a ponto de ser difícilfalar de uma geração � termo, por outrolado, tão querido pelos críticos e peloseditores. Como encontrar concomitân-cias entre autores tão díspares comoJuan José Millás, José María Merino,Enrique Vila Matas, Javier Marías ouAntonio Muñoz Molina? Talvez oúnico vínculo que exista entre todos elesseja, além de haverem vivido namesma época e escreverem na mesmalíngua, o fato de que a maioria delesescreve habitualmente na imprensa.Seria este um motivo suficiente parafalar de uma geração literária?

A única exceção à regra � se é quese pode considerar uma regra a ausên-cia da mesma � seria a do chamado

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44 Cult - maio/200144

grupo leonês. Nocaso de Luis MateoDíez, José MaríaMerino ou JulioLlamazares, pa-ra indicar três au-tores significativos,existe uma pro-ximidade temáti-ca, na inspiraçãoem assuntos pró-

prios da região da qual procedem, euma linguagem que tenta ser fiel aopróprio do lugar.

Luis Mateo Díez (1942), que emfins dos anos 80 obteve o Prêmio daCrítica e o Nacional de Literatura comLa fuente de la edad, publicou na décadade 90 obras tão valiosas como Elexpediente del náufrago ou La ruina del cielo.O autor reflete, no último romancemencionado, sobre o sentido da vida eda morte em um meio rural que,irremediavelmente, está condenado adesaparecer. A memória tem, portanto,um papel protagonista nesta obra, comono resto de seus relatos e romances.

José María Merino (1941), cuja nar-rativa está a meio caminho entre a experi-mentação, a invenção e a recordação,publicou nessa década vários livros derelatos, entre os quais seria precisodestacar Cuentos del Barrio del Refugio ouCuatro nocturnos, embora mereçam tambémser destacados seus romances Las visionesde Lucrecia ou Intramurus.

Julio Llamazares (1955), cuja obraindaga sobre o tempo, o esquecimentoe a memória, entregou nos anos 80 trêsromances que foram Luna de lobos, Achuva amarela (publicado no Brasil pelaMartins Fontes) e El río del olvido e, já

em 1994, Escenas del cine mudo. Nesteautor, a profundidade une-se a umatentativa de dar conteúdo à escrituracomo forma de conservar o que, ir-remediavelmente, terá de desaparecer.

Além do denominado grupo leonês,seria preciso mencionar um grupo deescritores que, como eu dizia antes,além de serem habituais colaboradoresnos meios de comunicação, publica-ram também obras significativas nosúltimos anos:

Enrique Vila-Matas (1948), quecultiva com brilhantismo o artigo jor-nalístico, o relato e o romance, publi-cou no final dos anos 90 três obrasde rara qualidade como o são Extrañaforma de vida, El viaje vertical ou Bartlebyy compañía, em que se indaga sobre asolidão, o silêncio da escritura ou ainvenção da vida com ironia, humore uma inventividade pouco comum.

A obra do escritor Gustavo MartínGarzo (1948), de Valladolid foi publi-cada em quase sua totalidade na décadade 90 e recebeu o reconhecimentounânime dos críticos e leitores: em1993 ganhou o Prêmio Nacional comseu romance El lenguaje de las fuentes; noano seguinte, o Prêmio Miguel Delibespor Marea oculta e, em 1999, o PrêmioNadal por Las historias de Marta y Fernando.

Outro escritor também amplamen-te laureado em sua carreira literária ede repercussão dentro e fora das fron-teiras espanholas é Javier Marías(1951), que na década de 90 publicouCorazón tan blanco (Prêmio da Crítica/1993, L�Oeil et la Lettre/1993, Interna-tional Dublin Litterary Award/1997),Mañana en la batalla piensa en mí (PrêmioFastenrath da Real Academia Espa-

nhola/1995, Internacional de RomanceRómulo Gallegos/1995, Fémina Étran-ger/1996) e Negra espalda del tiempo. JavierMarías é, além de um bom conhecedorda literatura anglo-saxã, um excelenteescritor que se aprofunda nos sentimen-tos humanos com agudeza e humor. Éde se destacar também seus livros derelatos curtos Mientras ellas duermen, de1990, e Cuando fui mortal, de 1996.

Antonio Muñoz Molina (1956)foi talvez a glória literária mais signi-ficativa dos anos 80, que soube cul-minar com seu ingresso, em 1996, naReal Academia de la Lengua, sendoseu membro mais jovem. No entanto,parece que, atrás de seu êxito com Eljinete polaco, que obteve o PrêmioPlaneta em 1991, sua estrela começaa declinar com livros como o folhetimLos misterios de Madrid, as pseudome-mórias Ardor guerrero, em que contasuas experiências no serviço militar,Plenilunio, que trata da violência e doamor em estilo policialesco, ou CarlotaFainberg, seu último romance.

Não é esse o caso de Arturo PérezReverte (1951), cujo êxito não só nãodecresceu, como também não faz maisque aumentar ano após ano. PérezReverte é, sem dúvida, o escritor espa-nhol que mais vende livros atualmente:O quadro flamengo (1990, publicado noBrasil pela Martins Fontes), A pela detambor (1995, Martins Fontes) e Elcapitán Alatriste (1996), para citar trêsexemplos, são romances bem arma-dos, que não têm mais objetivo do queentreter o leitor com um argumentobem construído e uma prosa acessível.

Juan José Millás (1946), agudocolunista de jornal e bom escritor de

Fotos Divulgação

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maio/2001 - Cult 45

relatos breves, reuniu sob o título deTrilogía de la soledad, em 1996, seusromances El desorden de tu nombre, La soledadera eso e Volver a casa. Em 1998, publicouEl orden alfabético e, em 1999 No miresdebajo de la cama, romances em que ocotidiano convive com o fantástico.

O santanderino Álvaro Pombo(1939) vem publicando assiduamentedesde a década de 70 e, nestes últimosanos, lançou romances como El metroplatino iridiado (Prêmio da Crítica/1991) ou Donde las mujeres (PrêmioCidade de Barcelona e Nacional daNarrativa/1997): obras nas quais re-trata as classes abastadas espanholasdo final do século XX.

Haveria muitos outros autores amencionar, como é o caso de Justo Na-varro (Accidentes íntimos, 1990, e La casadel padre, 1994), Eduardo Mendicutti(El palomo rojo, 1991), e tantos outrosque a brevidade destas páginas impede.

Antes de concluir, gostaria de lem-brar de quatro membros da chamadageração de 50 que, encontrando-se noauge de sua carreira literária, publi-caram obras de um certo sabor memo-rialista. Refiro-me a escritores comoMiguel Delibes (1920), que vem pu-blicando desde 1947 e é autor de maisde meia centena de títulos, alguns tãodestacados como La hoja roja (1959),Cinco horas con Mario (1969), El príncipedestronado (1973) ou Los santos inocentes(1981), para mencionar tão-somenteum romance por década. Delibes pu-blicou, recentemente, obras como Seño-ra de rojo sobre fondo gris (1991), um longomonólogo de um ancião entregue a suasrecordações, Diario de un jubilado (1995),que foi levada ao cinema por Francesc

Beltrán, ou El hereje (1998), relatohistórico ambientado na Espanha deCarlos V, que mereceu o PrêmioNacional de Literatura em 1999 e terátambém sua versão cinematográficapelas mãos de José Luis Cuerda,segundo anunciou-se recentemente.

José Manuel Caballero Bonald(1926), poeta, narrador e memorialista,é um dos autores mais premiados. Suaprosa é considerada como uma dasmais depuradas da atual literatura cas-telhana. Em 1962, publicou seu pri-meiro romance, Dos días de septiembre.Em 1974, Ágata ojo de gata. Em 1981,Toda la noche oyeran pasar pájaros. Em1988, En la casa del padre. E, já nadécada de 90, seu quinto romance,Campo de Agramante, que veio à luz em1992; um livro de memórias, Tiempode guerras perdidas, em 1995, e uma obramiscelânea, Copias del natural, em 1999.

Juan Eduardo Zúñiga, dono tam-bém de um estilo cuidado e de altíssimaqualidade, publicou em 1999 o ro-mance Flores de plomo, em que glosa amorte do jornalista e escritor românticoMariano José de Larra. Zúñiga, que étambém uma autoridade em literaturaeslava, publicou em 1996 Las inciertaspasiones de Iván Turguéniev, relato biográficosobre a vida amorosa do escritor russo.

Finalmente, Juan Goytisolo(1931), fiel a seu compromisso comas injustiças sociais e na linha de seustrabalhos de investigação sobre omundo islâmico, editou nessa décadalivros de testemunho como Cuadernosde Sarajevo (Prêmio Mediterrâneo,1994) ou Argelia en el vendaval. El bosquede las letras, em 1995. Entre os roman-ces publicados nos anos 90, sempre

inovadores, onde o grande conhe-cimento da cultura espanhola se reúnea um espírito altamente crítico, seriapreciso destacar La cuarentena, de1991, Las semanas del jardín, de 1998,em que se intercalam, com grandesabedoria, os planos narrativos, ouuma obra de difícil classificação, entreanti-romance e anti-memória que, sobo título de Carajicomedia, publicou em2000.

Este panorama do romance nosanos 90, repito, não poderia deixar deser incompleto, tanto pela sua falta deperspectiva ante a proximidade no tem-po das edições quanto pela impossibi-lidade de encerrar em um artigo a so-matória dos romances publicados emuma década. No entanto, pelo exposto,deveria ao menos tentar dar uma res-posta à questão inicial e afirmar que se,por um lado, há muito arrivista entreos escritores e críticos assim como igno-rância e avidez entre os editores, poroutro lado é verdade que nessa décadase produziram obras de qualidade, oque quer dizer que alguma coisa con-seguiu se infiltrar no muro de hipocri-sia e mesquinhez que preside o mundoliterário e cultural espanhol e que tãocerteiramente descreveu Juan Goytisoloem seu artigo.

Antonio Mauraescritor, crítico, tradutor nascido em Bilbao, é autor de tese sobre

Clarice Lispector e organizou entre 1988 e 1998 diversas publicaçõesculturais dedicadas ao Brasil, como El Paseante, El Urogallo,

Anthropos-Clarice Lispector, Revista de Cultura Brasileña; atualmente,organiza a Cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Madri

Tradução de Maria Paula Gurgel RibeiroProcedência dos textos citados neste artigo: Juan Goytisolo, “Vamos

a menos”. El País, 10 de janeiro de 2001; Fernando Valls, “Lanarrativa española, de ayer y hoy”, El País, 5 de dezembro de 2000;

Gonzalo Sobejano, “Novela y metanovela en España”, Ínsula,agosto-setembro de 1989.

Nesta página, a partirda esquerda, Enrique

Vila-Matas e LuizMateo Díez. Na

página oposta, a partirda direita, ÁlvaroPombo, Carmen

Martín Gaite e ArturoPerez-Reverte.

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46 Cult - maio/200146

Leia a seguir entrevista com o escritor madrilenho Javier Marías –autor dos romances Coração tão branco, Amanhã, na batalha, pensaem mim, Todas as almas e Negro dorso do tempo (todos publicadosno Brasil pela editora Martins Fontes) e dos livros de contos Pasionespesadas, Literatura y fantasma e Salvajes y sentimentales – que falasobre o lugar de sua obra na narrativa espanhola contemporânea edos vários registros pelos quais transita

entrevista

Javier MaríasMaríasMaríasMaríasMarías,as fissuras do pensamento literário

Div

ulga

ção

Adolfo Montejo Navas

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maio/2001 - Cult 47

CULCULCULCULCULT T T T T Para escrever sua primeira novela, você fugiude casa. Que primeira força narrativa foi essa?Javier MaríasJavier MaríasJavier MaríasJavier MaríasJavier Marías Não estou muito certo deque não estivesse misturada com umaforça meramente aventureira. Tinha de-zessete anos, e, nessa idade, todo o mun-do (ou quase) é revoltado e quer fugirde casa, mesmo que nela seja bem tratado.De qualquer forma, tinha muita vontadede escrever aquela novela, Los dominios dellobo, que nem sequer podia imaginar quechegaria a ser publicada um dia. Isso é oque sempre me levou a escrever meusromances, a mesma vontade. Nunca na-da pomposo, como a �necessidade� ou o�dever�. Só vontade, e quando não tenho,não escrevo.CULCULCULCULCULTTTTT Em que medida seus romances (que incluemhistórias que parecem retiradas de outros universosculturais e que têm tanto sucesso na Europa) podemser considerados característicos da narrativaespanhola recente, ou melhor, com que tradiçãonarrativa espanhola você convive melhor?JJJJJ.M..M..M..M..M. Não sei em que medida. Semprefui acusado de não parecer um escritorespanhol, coisa bastante misteriosa, já queescrevo nessa língua e nasci em Madri.Vejo ultimamente, no entanto, que algunscolegas nacionais não me recusam como�influência�, ainda que raras vezes oconfessem. Na verdade, não sei direito.Gostaria de ter alguma coisa que ver comCervantes (e quem não?), com BernalDíaz del Castillo, com Torres Villarroel,com Jorge Manrique e com Valle-Inclán,apenas para mencionar alguns autoresespanhóis de que gosto muito. Mas,enfim, é só um desideratum, e impossívelde cumprir imagino.CULCULCULCULCULT T T T T Você pratica um romance que pensa aomesmo em que conta. Como é o pensamento literárioexercido através da narrativa?JJJJJ.M..M..M..M..M. A mim, esse pensamento oferecealgumas vantagens em relação ao filo-sófico, ao científico etc. O pensamen-to literário pode contradizer-se, nãodepende de uma argumentação lógica,e sim de fissuras; tem um elementode mistério.Quando Shakespeare es-creve �E todos os nossos ontens têmiluminado aos loucos o caminho damorte poeirenta�, não está muito claroo que quer dizer. O que, sim, estáclaro é que é verdade. E também quese trata de um acerto genial.

CULCULCULCULCULTTTTT Como se relacionam jornalismo e romanceem sua obra? E em seu estilo?

JJJJJ.M..M..M..M..M. Quando escrevo artigos supo-nho que tento influenciar as pessoas,inclusive �educá-las�, ou, ao menos,estimulá-las a pensarem coisas dife-rentes do que nossa época pensa pornós. Aí sou um cidadão que escreve,com suas responsabilidades e suas to-madas de postura claras com respeitoaos problemas que nos atingem. Numromance, nunca pensaria em lecionar,nem influenciar, nem educar, nem daralgum tipo de lição, moral ou não. Aínão sou um cidadão. O que sou, issotalvez teria de ser perguntado a �Mr.Hide�.

CULCULCULCULCULTTTTT Um escritor, companheiro de geração, EnriqueVila-Matas, tem dito que há um momento em queescrever ficção é fácil demais, como construir umengano. E lembro de uma bela frase sua: “A ficçãopresente é também o futuro possível da realidade”.Como é em seu caso? E quais são os sinais quedespertam um novo romance?

JJJJJ.M..M..M..M..M. Me surpreende essa afirmação deVila-Matas, porque acho que construirum engano é dificílimo, sobretudomantê-lo e guardar a memória dele. Paramim, escrever romances (ficcionais ounão) me parece também dificílimo, e, porisso, não compreendo como há tantos.De vez em quando me pergunto por quediabos me empenho em seguir escre-vendo. Às vezes, penso em desistir, jus-tamente devido à dificuldade.

CULCULCULCULCULT T T T T Muito recentemente você publicou um livrosobre futebol (Salvajes y sentimentales), porém comuma justificada ótica madridista (a pergunta vem deum torcedor do Atlético de Madri). Os brasileirosconsideram esse esporte quase um sinônimo debelas-artes. Você também?

JJJJJ.M..M..M..M..M. Acho que sim. Há lances queficam para sempre na memória, deforma não muito diferente de comoficam cenas de um filme ou passagensde uma composição musical. La-mento sobre o seu time, o Atlético deMadri. Ainda que seja madridista (doReal Madri), acredite que desejo quevocês fiquem na primeira divisão. Émais divertido assim.

CULCULCULCULCULTTTTT Como protagonista de exceção, e composição crítica sempre alerta, como considera omomento atual da narrativa espanhola? Compartilhaa dura análise de decadência desenhada por JuanGoytisolo?JJJJJ.M..M..M..M..M. Goytisolo falou sobretudo decoisas alheias à literatura propria-

mente dita, como os prêmios e a quemesses são entregues, os suplementosliterários e por aí vai. Nada disso mepreocupa, nem tem nada que ver coma literatura, com sua decadência ou seubrilhantismo. Dar importância a essesassuntos, como ele fez, equivale aparticipar do que ele mesmo criticavafuriosamente. O que realmente im-porta são os livros e sua leitura, quan-do existe. Na Espanha, que eu saiba,não se publicam hoje piores obras doque em qualquer outro país europeu.E, de fato, acredito que a situação, emconjunto, tem melhorado bastante emrelação àqueles tempos em que aliteratura espanhola não era conhecidaem absoluto fora da Espanha. Talvezo senhor Goytisolo prefira aquela épo-ca, a do Franquismo e das exceções.

CULCULCULCULCULT T T T T Você já citou, em alguma ocasião, as váriasrazões pelas quais não compensa escreverromances. Qual é a razão principal pela qual aindavale a pena escrever histórias?

JJJJJ.M..M..M..M..M. Cada qual deve encontrar essarazão por sua própria conta, e para seucaso particular. Eu não acho que existauma razão �objetiva�, que sirva paratodos os escritores. Em relação a mim,se continuo inventando histórias (masjá falei que poderia deixar de fazê-lo), ésobretudo porque não fazer issosignificaria renunciar a uma forma depensamento que, de algum modo,aparece-me sobretudo nisso, na escritade histórias. E naquela vontade, da qualtambém já falei. Se um dia não aparecemmais, me calarei. Ninguém o lamentariamuito, nem sequer eu mesmo.

CULCULCULCULCULT T T T T Agora você está afastado, escrevendo umnovo romance. Cada novo romance implica umdeslocamento físico, implica uma mudança deestratégia narrativa?

JJJJJ.M..M..M..M..M. Sobre o deslocamento físico, nãoentendi muito bem; não é preciso terum osso deslocado, por exemplo, paraempreender um romance novo. Asestratégias narrativas não são, em meucaso, prévias à narrativa. Você vaientrando e resolvendo problemas (ounão) à medida em que avança. Eu,pelo menos, não penso neles antes decomeçar. Veja, nisso a escrita não separece com futebol. Na primeira, nãoservem de nada os treinos nem asjogadas ensaiadas.

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QOs nove novíssimos ou de comoVeneza acabou com o realismo

Qualquer revisão panorâmica dosúltimos 25 anos de vida espanhola pa-rece que deve começar a ser contada apartir de 1976, data do desapareci-mento, depois da morte do ditador, doregime autárquico que governava opaís desde o final da guerra civil, em1939. É verdade que esse fato e a rápi-da transformação social e política dademocracia favoreceram uma reno-vação em todos os âmbitos culturais,exceto � talvez � na poesia. A renova-ção poética que acompanhava a novaordem social e política havia começadojá uma década antes e havia se conso-lidado por volta de 1970. Os jovenspoetas de fins dos anos 60 foram osencarregados de derrubar a mentali-dade poética herdada da época do pós-guerra: o realismo. Sua atitude foi nãosó contra os princípios que haviam re-gido a história literária durante trintaanos, como também forneceu os mo-dos e as atitudes que desde entãoacompanham os fenômenos poéticos:a amplitude de referências e a disper-são de influências estéticas, a escassaintervenção em questões sociais, oabandono dos temas sociais e da sim-plicidade expressiva a favor de uma

preocupação mais intensa com a pró-pria escritura, com a experimentaçãoe com a linguagem poética.

Uma antologia apresentou de umaforma polêmica e de ruptura a con-cepção que pretendia liquidar o sos-segado hábito do realismo: Nueve noví-simos poetas españoles (1970). Emboraessa antologia constate uma radicalmudança de gosto e de orientação napoesia espanhola, e a renovação queanuncia resultou verdadeira e deci-siva, muitos dos poetas que a em-preenderam ficaram fora de suas pá-ginas. Dentro, entre os nove poetaseleitos, destacam-se Manuel VázquezMontalbán (1939), Antonio Martí-nez Sarrión (1939), Pere Gimferrer(1945), Guillermo Carnero (1947),Ana María Moix (1947) e LeopoldoMaría Panero (1948); fora dela, o no-vo gosto poético - de relevante impreg-nação cultural (e culturalista), afimaos movimentos históricos de fortemarca subjetiva (romantismo, simbo-lismo...) � surgia claramente expostodesde os primeiros livros de AníbalNuñez (1945-1987), Antonio Coli-nas (1946), Jenaro Talens (1946),Luis Alberto de Cuenca (1950), AnaRossetti (1950), Luis Antonio deVillena (1951) ou Jaime Siles (1951).

Uma das virtudes de qualquer reno-vação que se preze é a de criar suaprópria tradição e realizar uma leituradiferente do passado. É verdade que orealismo havia sido durante os trintaanos precedentes o modelo estéticotriunfante na poesia espanhola, mas tam-bém é verdade que, nessas três décadas,ocorreram múltiplos fenômenos à mar-gem do realismo, ou contra ele, que pas-saram desapercebidos. Os novíssimos ouvenezianos � como usualmente se deno-mina este grupo (em referência a seu carátercrepuscular e culturalista) � souberamredescobrir e potencializar alguns des-ses fatos marginais, antecedentes ime-diatos seus, que a partir de então adqui-riram um protagonismo no panoramapoético atual e obrigaram a reformulara história literária do pós-guerra. O casomais significativo talvez seja o da revistaCántico, fundada em 1947, em Córdoba,por um grupo de poetas que nãorenunciava à tradição finissecular e de27 (Lorca, Cernuda, Aleixandre...). Areivindicação e a descoberta da extra-ordinária qualidade desses autores, emespecial de Pablo García Baena (1923),em virtude da edição de sua obra comple-ta em 1982, converteram-se tambémnum traço característico da poesia espa-nhola no último quarto do século XX.

José Ángel Cillerruelo

Encruzilhadade caminhos

Colagem sem títulode Dis Berlin (1991)

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maio/2001 - Cult 49

O início dos anos 80 ou oprincípio de um novo realismo

Em 1902, o dramaturgo e roman-cista Ramón del Valle-Inclán havia defi-nido com lucidez a curva de evoluçãoque traça qualquer movimento literáriosobre o plano temporal: "Ocorre que,quase sempre, quando uma nova torrentede idéias ou de sentimentos transformaas almas, as obras literárias a que dãoorigem são bárbaras e pessoais no pri-meiro período, serenas e harmônicas nosegundo, e retóricas e artificiais no ter-ceiro." Talvez tenha havido uma épocaem que as idéias literárias percorriamessa vida quase orgânica ao longo dedécadas e ainda centúrias. No final doséculo XX, no entanto, entre o primeiroe o terceiro período, às vezes transcorrepouco mais de um lustro. Assim, tudo oque se lia como renovação absoluta em1970 era modelo um pouco mais tarde ese percebia como artificioso e reiterativoem 1980.

Nos primeiros anos dessa década,os jovens poetas nascidos no final dosanos 50 e início dos 60 sentem a pres-são culturalista, o neo-romantismo tor-rencial e a experimentação lingüísticacomo inimigos da criação poética. Emseu lugar, recuperam com valor posi-tivo termos como "tradição", "rigor for-

mal", "experiência" e "emoção". Querdizer, "uma nova torrente de idéias oude sentimentos transforma as almas"dos leitores mais jovens. A consciên-cia da passagem do tempo, a vida coti-diana, os pequenos conflitos interiores,a particular vivência da poesia, a ci-dade e as peculiares relações que nelase estabelecem se consolidam como te-mas privilegiados diante de outrosmais seletos e ambiciosos. Ou seja,observa-se uma clara revitalização dogosto realista, muito próximo de comoo praticaram os poetas dos anos 50 e60, a denominada Geração de 50, emespecial Ángel González (1925), Jai-me Gil de Biedma (1929-1990), Fran-cisco Brines (1932) e Claudio Rodrí-guez (1934-1999).

Na reivindicação de Luis Cer-nuda, sobretudo de sua última etapa,coincidem novos poetas dos anos 80,com alguns autores dos 50 (Gil deBiedma, Brines) e também um nutri-do grupo de poetas dos anos 70 quehaviam ficado à margem da renovaçãonovíssima e que estabeleceram umaponte perfeita entre os anos 60 e os80, como Juan Luis Panero (1942),Francisco Bejarano (1945), MiguelD'Ors (1946), Frenado Ortiz (1947),Eloy Sánchez Rosillo (1948), José

Luis García Martín (1950), JavierSalvago (1950) ou Abelardo Linares(1952).

Os poetas que, nos anos 80, seuniram às últimas turmas do pós-guerra através de temas comuns � atemporalidade e a concepção moral daescritura � e de um gosto renovado pelorealismo expressivo são, entre outros,Julio Martínez Mesanza (1955), JuanLamillar (1957), Luis García Montero(1958), Felipe Benítez Reyes (1960),Benjamín Prado (1961), Carlos Mar-zal (1961), Aurora Luque (1962),Amalia Bautista (1962), Vicente Gallego(1963), José Manuel Benítez Ariza(1963), José Luis Piquero (1967) eMartín López-Veja (1975). Este grupose propôs também à recuperação doleitor de poesia que, de certo modo,sentia-se expulso pelas dificuldadesreferenciais e lingüísticas das obras vene-zianas e manifestou seu entusiasmo pelopoema bem feito, claro, direto e conce-bido sempre como uma fonte de emo-ções que se podia sentir sem uma pre-disposição especial ao gênero. De certaforma, as numerosas edições de algunsdeles e os prêmios colhidos, sim, pa-recem referendar sua intenção de recu-perar um público para a poesia. A rapi-dez e o dinamismo das idéias literárias

A poesia espanhola do pós-guerra tem como fio condutor a

crise do realismo, seja dentro da própria vertente realista, com

a intensificação de um viés moral ou lírico que escapa de seu

modelo inicial, seja a partir de uma ruptura clara e explícita com

o realismo ou da aventura estética individual, culminando na

heterogeneidade que define o panorama literário contemporâneo

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desgastaram também essa proposta, e oque nos anos 80 se denominava "poesiada experiência" como expressão privile-giada em fins dos anos 90 já se utilizapor alguns críticos com um valor nega-tivo, de rechaço.

A outra geração dos anos 50,nos anos 80

A aparição de novos poetas jovens nãofoi o único fato digno de nota dessa décadarealmente prodigiosa para a poesiaespanhola. No início dos anos 80, quandoparecia encerrada a história literáriadas gerações do pós-guerra, produ-ziu-se um fenômeno inesperado quealcançou uma envergadura que recla-ma para si uma nova centralidade. Tra-ta-se de poetas que começaram aescrever e a publicar em sua juventude� dentro do âmbito cronológico de suageração, mas sem superar um caráterlocal ou marginal � e mais tarde man-tiveram uma atitude afastada da vidaliterária, quando não um longo silên-cio editorial que, em algumas ocasiões,ultrapassou a década. A partir dosanos 80, os novos livros desses auto-res, sobre os quais apenas existia umaexpectativa crítica, surpreendem comum universo estético que se afasta dosmodelos conhecidos e traçados para asua geração, isto é, para seus coetâneoscom uma obra já consolidada naquelaépoca. Cada poeta emerge, além disso,com um projeto poético singular queaporta matizes originais e desconhe-cidos. São, sem dúvida, autores que

hoje são considerados centrais na his-tória da poesia contemporânea espa-nhola: Francisco Pino (1910), JoséMaría Fonollosa (1922-1991), LuisFeria (1927-1998), Vicente Nuñez(1929), María Vitoria Atencia (1931),Antonio Gamoneda (1931), ManuelPadorno (1933) ou Rafael PérezEstrada (1934-2000). A eles pode-se somar também poetas que, aindaque publicando com maior regulari-dade, somente mereceram uma aten-ção especial a partir dos anos 80, comoÁngel Crespo (1926-1995), Fernan-do Quiñones (1931-1998) ou CésarSimón (1932-1997). Um caso singu-lar é o de José Ángel Valente (1929-2000), que acompanhou, de dentro,o início da geração de 50, para emseguida romper com seus princípiose iniciar uma leitura pessoal da van-guarda, numa atitude análoga à dospoetas que reapareceram nos anos 80.

Essa insólita segunda centralidadedas gerações do pós-guerra, tão dis-tantes entre si, permite, por sua vez,uma compreensão mais profunda dosignificado histórico dessas turmaspoéticas. A elas era adjudicada so-mente a consolidação do realismo, masa nova perspectiva se funda em suacrise. Ou, dito de outro modo: a capa-cidade para questionar, demolir ousuperar a herança realista é o valorcrítico que decide, agora, o interessede cada obra poética. A crise do rea-lismo nas gerações do pós-guerra co-loca-se também numa via dupla: seja

de dentro da estética realista, intensi-ficando a vertente mais subjetiva atéum âmbito moral ou lírico que já esca-pa do modelo realista (Fonollosa, Gilde Biedma, Brines, Claudio Rodrí-guez...), seja a partir de uma rupturaclara e explícita com o realismo (Va-lente, Gamoneda, Padorno...) ou daaventura estética a partir de uma visãopessoal, alheia ao realismo e seus con-flitos (Atencia, Pérez Estrada...).

A diversidade estética do final dosanos 80

A denominada "poesia da expe-riência" desfrutou, durante os anos80, de um caráter central, o que nãoimpediu, no entanto, que no curso dadécada fossem aparecendo outras ten-dências que, ao reclamarem seu prota-gonismo, rompiam a concepção mono-lítica da época e ofereciam uma ricadiversidade e multiplicidade estéticasque abririam o caminho para os 90.Assim, entre essas tendências queenriquecem o panorama poético, éimportante assinalar aquela que buscauma depuração dos materiais lingüís-ticos que lhes devolva a intensidade eo fulgor perdidos pelo uso, em sin-tonia com as vanguardas do pós-guer-ra europeu, realizada por autoras eautores como Olvido García Valdés(1950), Miguel Suárez (1951), To-más Salvador (1952), Ildefonso Ro-dríguez (1952), Esperanza Ortega(1953) e Miguel Casado (1954).

Reabilita-se uma corrente que pare-

A X Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, que tem como país homenageado a Espanha, trará ao Brasil representantes da novageração de escritores ibéricos que participarão de atividades paralelas, como o Café Literário e o Fórum de Debates. Até a data dofechamento desta edição da CULT, foram confirmadas as presenças de Carmen Posadas, autora de Pequenas infâmias, romance ganhadorde um dos mais importantes concursos literários espanhóis, o Prêmio Planeta, em 1998, e de El señor Viento Norte, que venceu o PrêmioNacional de Literatura, como o melhor livro espanhol de 1985; Manuel Vázquez Montalbán, escritor e jornalista catalão, com sete romancestraduzidos para o português, dentre esses O estrangulador, Os mares do sul, Autobiografia do general Franco e O quinteto de Buenos Aires;Antonio Soler, roteirista de televisão e jornalista nascido em Málaga, autor do romance As dançarinas mortas, ganhador do Prêmio Heraldes,e de El nombre que ahora digo, sua última publicação, por que recebeu o Prêmio da Primavera; Manuel Vicent, jornalista, advogado e escritor,autor de Pascua y naranjas, A favor del placer, da peça teatral Borja Borgia e do livro de viagens Por la ruta de la memoria e son de mar, peloqual recebeu o Prêmio Alfaguara de Romance em 1999; Manuel Rivas, jornalista, poeta, romancista e contista, autor do livro de contos Quéme quieres, amor?, ganhador do Prêmio Nacional de Narrativa, em 1996; Rosa Regàs, editora e autora dos romances Azul novela, Desde elmar e Luna lunera, vencedor do Prêmio Ciudad de Barcelona, em 1999; Carlos Casares, autor de Los oscuros cuentos de Clío, Ilustrísima,Los muertos de aquel verano e Dios sentado en un sillón azul, que, em 1989, recebeu do governo da Galícia a mais alta homenagem literáriado país pelo conjunto de sua obra; Gonzalo Suárez, escritor e cineasta, autor dos livros De cuerpo presente, Trece veces trece e La reina rosa;Cristina Fernández Cubas, autora dos livros Mi hermana Elba, Los altillos de Brumal, Con Agatha en Estambul e da peça teatral Hermanasde Sangre, que já morou no Brasil; e Manuel de Lope, autor de Bella en las tinieblas, Shakespeare al anochecer e El otoño del siglo, romancepublicado em 1999 e aclamado pela crítica espanhola.

A U T O R E S E S P A N H Ó I S N A B I E N A L

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maio/2001 - Cult 51

cia superada pelo triunfante individua-lismo contemporâneo, como é a poesiade cunho social ou de intervençãopolítica, e que no entanto se propõe comoplenamente vigente num mundo quenão conseguiu superar suas contradiçõesmais sangrentas, graças a autores comoFernando Beltrán (1956), Jorge Riechmann(1962), Antonio Orihuela (1965) ouEnrique Falcón (1968).

Uma nova concepção do misti-cismo, mais vinculado à reflexão meta-física do que à religiosidade, propõe-se a partir das obras de Vicente Valero(1963) ou Diego Doncel (1964). Apreocupação metafísica é observadatambém em poéticas onde prevalecema depuração e a condensação da lin-guagem, como nos livros de Espe-ranza López Parada (1962), EloísaOtero (1962) ou Ada Salas (1965).

Um assalto ao território da puraimaginação é o que apregoam algunspoetas como Juan Carlos Mestre (1957),Juan Cobos Wilkins (1957) ou IslaCorreyero (1957). O gosto pelo irracio-nal renasce, neste mesmo âmbito ima-ginativo, a partir de obras como as deBlanca Andreu (1959), Amalia Iglesias(1962), Eduardo Moga (1962) ouLuisa Castro (1966).

Os heterogêneos e diversificadosanos 90

O aparecimento de poetas novosno curso dos anos 90 consolidou aheterogeneidade estética como acaracterística que define o panorama

literário. Essa diversidade não é tantouma característica desse grupo deidade, como o signo de toda umaépoca que os afeta de uma maneiradireta. Influem certos fatores como,em linhas gerais, a multiplicação dositinerários de formação e de infor-mação culturais, assim como umaoferta cultural complexa e dinâmica;a decadência dos magistérios culturaistradicionais a favor de uma descen-tralização constante das influências; e,em suma, um entorno social que, aofacilitar as comunicações e o ágilacesso à informação, debilita as tradi-cionais estruturas piramidais, que sãosubstituídas por relações e amizadeslivres de ligações de idade (do tipomestre-discípulo) ou outras hierar-quias literárias. Essas circunstânciasfavoreceram a diversidade de influên-cias, de diálogos e de decisões de es-critura, por um lado e, por outro, aamplitude de critérios dos leitores,pois esse novo panorama exige umleitor de poesia diferente, que não bus-que firmar opiniões prévias e que es-teja disposto a se enfrentar com opi-niões diferentes da sua como se fos-sem a própria, sempre que lhes reco-nheça autenticidade poética. Diversi-dade e tolerância são os atributos dasociedade do futuro que já anuncia apoesia do presente.

O leque de opções estéticas queapareceram e que se desenvolveramdurante os anos 90 é tão amplo que pode-se apontar somente alguns gestos poéticos

extremos, sem vocação de esgotar adiversidade. Pois tão dos anos 90, porapresentarem binômios opostos, são oirracionalismo visionário de AntonioLucas (1975) e o realismo agreste esórdido de David González (1964-) ouVioleta C. Rangel � heterônimo deManuel Moya (1960); tão autêntico senota o tratamento dos temas amorososcom a delicadeza neo-simbolista de LuisMuñoz (1966) como a desenvolturasexual � de raiz clássica � de JoséAntonio González Iglesias (1964).Tão vigente parece o apelo à memóriade Eduardo García (nascido em SãoPaulo em 1965) como a referência �quase sempre irônica � aos últimosavanços tecnológicos realizada porMaría Eloy García (1972). Tão con-temporânea se lê a dicção tradicionalde José Mateos (1963) ou de EnriqueGarcía-Máiquez (1969) como a sin-gular contorção expressiva e sua voca-ção de uma renovada vanguarda �augúrio de novos rumos no novo mi-lênio - de Ana Merino (1971) e,sobretudo, de Pablo García Casado(1972).

José Ángel Cillerruelopoeta, romancista, crítico literário e tradutor

nascido em Barcelona, sua obra poética estáreunida em El don impuro (1989),

Maleza (1995) e Salobre (1999);traduziu para o espanhol Fernando Pessoa,

Jorge de Sena, Joaquim ManuelMagalhães e Machado de Assis,

entre outros; sua última produçãocaminha pela narrativa,

com os livros Barrio Alto (1997)Ciudades y mentiras (1998) e El visir de Abisina (2001)

TTTTTradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro

A partir da esquerda,Pere Gimferrer e

José Ángel Valente

Divulgação

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CULCULCULCULCULTTTTT Pode-se dizer que a sua poesia tem umcaráter extramuros, ainda mais por sua "assumida"condição de poeta provinciano?Antonio GamonedaAntonio GamonedaAntonio GamonedaAntonio GamonedaAntonio Gamoneda Naturalmente, nointramuros pensam que se trata de uma poesiade extramuros, o que certamente é verdade.No entanto, isso quer dizer apenas que,independentemente das caixas de ressonânciaque cidades como Madri ou Barcelona �lugares que proporcionam atualidade,atenção, tecido amistoso-mediático �guardam consigo, aqui em León, apesar deter levado uma vida problemática desdemenino, consigo um pouco do silêncionecessário para encontrar-me de vez emquando com a poesia, distante da publicação,da fama, de todos os prêmios. Minha paixãoé a folha em branco, um homem só, o silêncioe o que mais aconteça.CULCULCULCULCULTTTTT Em muitos de seus versos aparece um diálogoentre vida e morte, o que é bastante barroco. Poderiacomentar essa característica, o peso que tem a suapoesia e a sua interpretação do realismo?A.G.A.G.A.G.A.G.A.G. Eu sou partidário de localizar o quechamo de tradições. Assim, entendo quehouve uma poesia realista, como a da IdadeMédia (e falo dentro das línguas românicas),que tinha uma função social que era a deofender, elogiar, divertir. No entanto, essaconotação realista desapareceu, pois, com orepentino surgimento da imprensa, as coisasnão precisam mais ser ditas nos pátios, naspraças. Aparece Garcilaso, que inaugura ao

mesmo tempo um distúrbio sintático e umdistúrbio no sentir da expressão. Depoisdisso, vem San Juan de la Cruz e tudo torna-se um território de adivinhação. E depois nosencontramos com Góngora ou comQuevedo, que são aqueles que verda-deiramente fazem uma versão espanhola destatradição, na qual o realismo é secundário,porque já não é uma questão de realismo, massim de realidade. Quero dizer com isto que apoesia já não é necessária � ainda possadesempenhar um papel referente, para sereferir a uma realidade exterior �, mas queela é em si mesma uma realidade, umaemanação da vida, como o amor ou arespiração. O que é possível na poesia éinverossímil fora dela e Aristóteles afirmavaser verossímil que, na poesia, ocorram coisasinverossímeis. Tudo isso vem de longe e, porisso, sinto certo desconsolo que poetas jovens,dos anos 50 para cá, tenham desenvolvidoum realismo instrumentalizado, cotidia-nizado, quando a cotidianidade está no jornal,na televisão... Então, para que isso na poesia?A poesia é uma outra linguagem, porque nelase criam realidades que têm existênciaintelectual e corporalidade oral, que não sãopossíveis fora dela.CULCULCULCULCULTTTTT Apesar de tudo, você sempre teve uma visãootimista diante dos maus tempos para a poesia.A.G.A.G.A.G.A.G.A.G. Sim, porque as funções utilitárias, nosentido social da poesia, terminaram. Nestemomento, não podemos mais falar da poesia

como na época greco-latina, na Idade Médiaou no classicismo, porém ela está presente.A poesia não transforma o mundo, mas criauma espécie de alteração e de intensificaçãonas consciências, uma inter-relação entre arealidade e a irrealidade. O que resta nestestempos dominados pela técnica? Umterritório íntimo, minoritário, no qual entrarpretendendo que sejam ditas as mesmas coisasdos meios de comunicação é completamenteingênuo. Quando Juan Larrea diz "he aquí elmar alzado en un abrir y cerrar de ojos depastor" ("eis aqui o mar alçado num abrir efechar de olhos de pastor"), trata-se de umdisparate. O mar não se levanta porque umpastor abriu e fechou os olhos, o disparatefoi da poesia, porque é criação, é realidade, éexistência intelectual, falando sobre oimpossível que se faz possível na palavra. Queisso seja minoritário, pois que seja.CULCULCULCULCULTTTTT Uma leitura que acompanha outras leituras desua poesia é a de que se sente uma sensação deluta, no sentido de conflito. Há simetrias eparalelismos nos poemas, como se fossem duetosem rivalidade.A.GA.GA.GA.GA.G..... Há um poeta e pensador espanholmuito interessante, chamado Carlos Piera,que situa o núcleo gerador da poesia nacontradição, e eu disse o mesmo de maneiraparecida: a poesia é uma arte paradoxal. Porexemplo, o fato de que o relato de como euavanço em direção à morte traga consigo ageração de um prazer, ou seja, a conversão

Adolfo Montejo Navas

a palavra órficaAntonio Gamoneda

Adolfo Montejo Navasentrevista

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maio/2001 - Cult 53

Em entrevista à CULT, o maior poeta vivo

da Espanha – autor de O livro do frio(publicado em Portugal pela Assírio & Alvim)

e Edad – fala da arte paradoxal da poesia,

que por meio da transgressão da linguagem

dinamita o sentido convencional dos signos

O poeta Antonio Gamoneda, nascido emOviedo em 1931, diante da catedral de León,sua cidade adotiva

em um objeto lingüístico que me proporcionaprazer, já é contraditório. Não podemospensar na poesia a partir de uma lógicaformal, ela é uma transgressão constante dalinguagem, e acho que deve ser assim, porquea alteração dos significados consabidos é algoque, curiosamente, tem uma utilidade social.O pensamento fraco acomoda-se às coisas, ea poesia, que muitos chamam de irracional,acaba transgredindo-as. Em certo sentido, opoeta, no pequeno âmbito de seu livro, estádinamitando uma convenção que é a queconvém ao poder econômico que privilegia opensamento fraco. Sim, a poesia, por isso, érevolucionária, e não é.CULCULCULCULCULTTTTT Seguindo um pouco o fio histórico, sempreficou claro que você fez uma poesia social, mas nãosegundo a velha usança, nunca conforme o cânoneda poesia social. Poderíamos dizer que você fezuma poesia moral?A.GA.GA.GA.GA.G..... Talvez. Quando se falava em poesia social,era imprescindível não separá-la de umaatitude ideológica e política concreta. Eu jádisse que a atitude política concreta, a que seopôs à ditadura franquista, essa eu quis inserirem meus atos, em minha casa e na rua, masnão poderia introduzi-la como um programaem minha poesia, porque o programa está noprograma, não há razão para estar na poesia.E a poesia tem possibilidades revolucionáriasque são de outra espécie. De qualquer forma,sempre estive perto da poesia social, mas comuns "pais" muito diferentes: o poeta turco

Nazim Hikmet e os afro-americanos, talvezporque, por viver retirado, não estivesse tãointeirado.CULCULCULCULCULTTTTT Sua poesia parece um exercício de intempérie,elaborada a partir do desamparo.A.GA.GA.GA.GA.G..... Eu fiquei sem pai antes de completar umano. Minha mãe estava doente e não vivia paranada mais além da saudade do falecido. Foiquando, devido à revolução de Asturias(1934), mudamos para León e não pudemosnem recolher algumas coisas. Estávamos numatremenda pobreza, sem recursos, sujeitos àsintempéries, porque não havia ninguém quese ajudasse nesta época. Alguns não podiam eoutros ignoravam esse assunto. Evito contaroutras passagens da minha biografia (como ofato de ter jogado escada abaixo um frei quequeria me alisar ou de ter aprendido a trabalharsem remuneração). Reduzi a dados quasepuramente econômicos esta noção deintempérie e, nisso, eu quero ser realista: aintempérie é a injustiça, a pressão, o podereconômico criando pobreza � de modo quedois terços da humanidade estejam morrendo,sujeitos à intempérie. E eu também estive, atéque fui encontrando caminhos. Colecioneiamigos suicidas, fui abandonado pela saúde,pelos companheiros, pelo bem-estar e pelasegurança. Porém, apesar disso, não meconsidero especialmente desafortunado, já queencontrei pessoas em situação muito pior.CULCULCULCULCULT T T T T Seus poemas passam uma fragilidade, umaafetividade quase nua e, ao mesmo tempo, protegida

e enigmatizada. Eles se resolvem formalmente, masinteriormente não; continuam agitados por dentro.O segredo e o enigma se mantêm.A.GA.GA.GA.GA.G..... Sim, a poesia não é um relato denotativo,mas um relato no qual se criam zonas que têmque ver com o desconhecido. Esse desco-nhecido é um componente da poesia. Achoque poderia escrever minhas memóriascompletas apenas seguindo meus livros depoesia. Isso significa que todos estãofundamentados na experiência, ainda que nãotenham nada que ver com a chamada poesia daexperiência. Mas, certamente, nesses poemas,dados de experiência se encontram convertidosem linguagem, pela qual se passa para odesconhecido, para o que é necessário perceberpela adivinhação. Então, pode-se dizer queem minha poesia, e creio que na de quase todos,há um referente, mas, de certo modo, esse estáoculto e se transforma em dados que tratamde criar uma excitação prazerosa no leitor, semque se abandone a causa existencial que estápor debaixo. Assim, por um lado, há odesamparo biográfico e, por outro, o furtoefetivo de dados informativos que se faz emminha poesia e acho que na de muitos outrosautores. Eu quero que o leitor esteja comigona situação de descoberta.CULCULCULCULCULTTTTT Como você opera com o símbolo, que émuito trabalhado em sua poesia? Ele está projetadonas cores, nos animais, na paisagem?A.GA.GA.GA.GA.G..... Eu peço que não caiamos no símbolo deuma forma estritamente acadêmica ou

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filosófica. Digo isso porque toda palavrapoética tem potência simbólica, ou seja, diz oque se lê e algo mais que se desconhece. Aí estáa potência do símbolo, em transportar paraum mundo desconhecido, para uma realidadeou irrealidade desconhecida, sobre a qual nãocabe a informação, e sim a revelação, e a revelaçãoproduz-se pelo símbolo, como nas religiões.CULCULCULCULCULTTTTT Isso remete ao tom salmódico de muitos deseus versos, algo que é característico de certalinguagem religiosa. Sei que não é religioso, masvocê é habitado às vezes por um tom religioso?A.G.A.G.A.G.A.G.A.G. Eu disse isso recentemente num escrito:falo de mim mesmo como o incrédulo, cujalíngua está atravessada pelas preces.CULCULCULCULCULTTTTT Agora a pergunta escolástica, porémobrigatória: quando começa a aparecer o poemade forma física, quando começa a corporificar-se, alevantar vôo?A.GA.GA.GA.GA.G..... Acho que há algo que seria excessivochamar de significação, que é sentido,adivinhação e que está lutando em você de talmaneira que parece conseguir se incorporar auma espécie de impulso musical. Então,quando uma palavra ou algumas palavras, cujasignificação final você desconhece, atingemesse ponto, inicia-se a geração do poema, e vocêcomeça a saber o que pensava sem saber que opensava. Eu não sei qual é o meu pensamento,até que as palavras me digam.CULCULCULCULCULTTTTT René Char expressou-se em termos parecidos.Creio que sua poesia afetiva o aproxima de CésarVallejo. Quais são seus companheiros de viagemliterária; com quem estabelece conexões?A.G.A.G.A.G.A.G.A.G. Na Espanha, talvez ninguém. Nãoencontro companheiros de viagem, pois meuscontemporâneos poéticos eram de outracondição: eles estavam na zona digna em quecabia a ironia, o ódio, o desgosto da classe naqual nasceram. Eu estava mais naquilo quealguém chamou de �a falácia patética�. Eraproletário � e esta palavra não está na moda �e eles não. Fiz uma separação absoluta entrea escrita e a conduta civil.CULCULCULCULCULTTTTT Refiro-me também às conexões líricas comoutras latitudes: sabe-se de Rimbaud, citou-se René

Char e não me surpreendeu que anteriormentefalássemos em Herberto Helder, em quem os editoresespanhóis vêem ainda complicações de publicação.A.GA.GA.GA.GA.G..... Eu admiro muito René Char. E antesNazim Hikmet, as letras jazzísticas e talveza Bíblia. E Lorca, "El poeta en Nueva York".Quanto a Herberto Helder, ele é um ápiceda poesia mundial; é quase o único poeta domundo que se deu conta da imensaimportância poética dos cânticos, poemas erelatos pré-colombianos (eu o fiz muitodepois). O que é muito estranho, porque noMéxico e mesmo no Peru esqueceram-nos;estão apenas nas mãos dos lingüistas, e nãocom os poetas.CULCULCULCULCULTTTTT Depois de falar sobre o realismo e o poetaportuguês, poderíamos dizer que em sua poesia háum realismo órfico?A.GA.GA.GA.GA.G..... Sem dúvida, pois naturalmente não háporque entender a possibilidade órfica dapalavra de forma puramente esteticista, já queteria de dizer que a palavra órfica é a quetranscende a denotação e a informação � estáalém. Eu tenho um poema recente, inacabado,no qual digo o seguinte: �tus palabras nosignifican, cantan�. Nesse caso, estou falandode alguém que não conhece o significado daspalavras, mas as diz. Então, aí aparece o valorórfico da imantação musical, o golpe dasensibilidade que produz a palavra, a cujosignificado, se é possível chegar, é por meiodessa via da sensibilidade e não pela daracionalização. Uma linguagem inteligível namedida em que é sensível.CULCULCULCULCULTTTTT Em sua poesia há elementos de carátersurrealista, mas há um suporte que também éexpressionista.A.GA.GA.GA.GA.G..... Eu não sou um surrealista canônico,nem Breton o era, ainda que ele acreditasseque sim. �O mundo é como uma laranja.�Não sou um surrealista canônico, ainda quetenha feito minha a liberdade de associaçãoléxica que essa vertente leva consigo. Comtodas as distâncias, que são enormes, GarcíaLorca dizia o mesmo: não sou surrealista.Acho que utilizando essa liberdade mecânica

do surrealismo, que é uma vanguardadesencadeadora de uma poesia livre, penso,ou melhor, disseram que minha poesiadesemboca num tipo de expressionismo � oexpressionismo de Georg Trakl, mesmo queeu não o tenha lido nesta época.CULCULCULCULCULTTTTT Uma vez você disse que seria um sonho, umautopia, fazer um poema que fosse pura geometria.A.GA.GA.GA.GA.G..... Eu bem que tentei. Fracasso até agora.Quis ser Góngora, queria fazer o Polifemo, amáquina perfeita... Minha vida, minhasentimentalidade, minhas perplexidades,entram no poema de tal forma que este estáalicerçado, não na geometria, mas naperspectiva da morte, que é uma formulaçãominha que conservo. Há duas coisas que meparece importante dizer. Uma delas já vemsendo desenvolvida, completando a conversa:a poesia existe porque sabemos que vamosmorrer. A segunda é ainda mais difícil deaceitar: a poesia não é literatura. Falando offthe record: Galdós era literato, mas San Juande la Cruz também o era? Flaubert era; eRimbaud, também era?CULCULCULCULCULTTTTT A poesia então seria um gênero estranhodentro da literatura?A.GA.GA.GA.GA.G..... Acrescento mais, e aqui está a chavedo assunto. Isso já deve ter sido dito cemvezes, mas eu o descobri sozinho: a lite-ratura é uma conquista humana grandiosa,fenomenal, não se trata de hierarquizarliteratura e poesia, mas de distingui-las emsua espécie � inclusive em grande literaturae poesia menor �, não em seu gênero, quesão pequenas bobagens acadêmicas. Aliteratura é sempre ficção e a poesia é umaemanação, uma dimensão da vida. Não éficção, ou não seria poesia. E há algo maisa acrescentar: admitindo a existência dosgêneros, eu não acredito neles. La Celestinaé romance ou comédia? Pode-se defendertudo. O que eu posso realmente fazer é leruma página de La Celestina de forma queseja perceptível que se está diante de umpoema. A poesia é � em qualquer gêneroem que se manifeste.

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SSolicitam-me uma rápida síntesesobre a situação da literatura basca aofinal do milênio. Um olhar milenaristanão viria nada mal. Isto é, um jogo umpouco apocalíptico entre literatura eameaça do fim da literatura, algo assimcomo uma partida entre formação einformação, para acabar na impressão deque nós, escritores bascos, estamos mal,mas poderíamos estar pior...

Mas a verdade é que a literatura gozade uma sensível melhora � tanto emrelação à quantidade quanto à quali-dade � desde que se aprovou o Es-tatuto de Autonomia e a Lei Básica deNormalização das Língua Basca, quetornou possível a entrada das disci-plinas de Língua Basca e de Litera-tura Basca nas escolas. De forma quea criação literária pôde encontrar um

mercado, embora este fosse subsi-diário e não criado pelo próprio gostopela leitura que, numa permanenteevolução, fosse criando uma força deentropia que levaria o leitor aficionadoa ler e ler sem nunca vislumbrar �por sorte � o final da aventura leitora.

Para informação do leitor interes-sado, podemos afirmar que o sistemaliterário basco reúne aproximada-mente setecentos mil falantes � parafalar numa cifra redonda �, que oslivros editados anualmente chegam acifras em torno de 1.200 títulos, dosquais há cifras menos claras sobre aliteratura para adultos. Mas talvezvalha a pena diferenciar a indústriaeditorial, com essa cifra, da criaçãoliterária, que mostra cifras mais hu-mildes, sobretudo se atentarmos para

as criações originais e deixarmos delado as reimpressões e reedições.

A publicação de livros de poesiamanteve-se entre dez e quinze originaisanuais durante o último qüinqüênio. Te-nho diante de mim as cifras de criaçãoliterária dos anos de 1994 a 1996, e elassão as seguintes: 9 romances, 13 livrosde relatos, 9 livros de poemas, para 1994;18, 17 e 11 para 1995; e 20, 19 e 9 para1996. Estas cifras podem ser avaliadasde diferentes maneiras: por exemplo,existe uma decolagem da narrativa por-que naquele momento as editoras bas-cas tentavam promover livros com umbaixo valor de venda, o que fazia comque publicassem pequenos volumes compouquíssimos relatos, o que faz subir acifra (excluídos estes volumes, as cifrassão: 9 livros de relatos para 1994, 6 em

A narrativa e a poesia do País Basco são produzidas por autores que seexpressam no idioma euskara, mas mantêm contatos com outrastradições literárias e lingüísticas que os aproximam das grandes questõesda modernidade e da pós-modernidade

Jon Kortazar

Olhar milenaristasobre a literatura basca

Lurra G-227 (1991),obra de escultorbasco Eduardo

Chillida

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1995 e 7 para 1996); em todo caso, acabasendo evidente a decolagem do romancedurante esses anos e a clara vantagem queadquire em relação à poesia, que semanteve estável nos anos seguintes.

Claro que só me refiro à literaturapara adultos e deixo de lado as publi-cações de literatura infantil e juvenil,verdadeiro mercado paralelo.

As tiragens se mantém entre 500 e800 exemplares para os livros de poesiae entre 1.000 e 1.500 para os denarrativa. De qualquer forma, astiragens iniciais se vêem incrementadasno momento em que a obra érecomendada no circuito escolar. Demaneira que os mais vendidos chegarama alcançar cifras muito mais altas, emtorno de 20.000 e 30.000 exemplares.

A literatura basca conta, nestemomento, com um panorama amploe complexo no campo da criaçãoliterária; assim, pode-se afirmar quevariedade e pluralidade são duascaracterísticas básicas do panoramageral. Talvez sejam duas caracte-rísticas da pós-modernidade; pode serque somente representem a capacidadedos diferentes autores bascos de mos-trar um mundo complexo e plural.

É bem verdade que já não existe umcaminho único para transitar pela literaturabasca e caberia começar já a deslindar aliteratura narrativa e a criação poética.

O primeiro traço geral que cabeser aplicado a essa literatura pode serresumido como a afluência de distintaspromoções de autores que confluemem um tempo que, por comodidade eespaço, circunscreveremos na últimadécada, de 1990 a 2000.

Na narrativa, pode-se encontrar a vozde escritores que começaram a suacaminhada nos anos 50, os que se derama conhecer no eixo mágico de 68, com a

nova incorporação fortíssima de RamónSaizarbitoria (1944), com a sábianarrativa de Anjel Lertxundi (1948), oua de Joan Mari Irigoien (1948) e ArantzaUrretabizkaia (1947), os escritores quecomeçaram sua caminhada em torno donão menos mágico ano de 1975, comBernardo Atxaga (1951), JosebaSarrionandia (1958) e Jose MariIturralde (1951), o aparecimento do quese passou a chamar da turma de 63 comos nomes de Inazio Muxika (1963),Arantxa Iturbe (1963), Juan LuisZabala (1963), Aingeru Epaltza (1960),Itxaro Borda (1959), e a nova turma quecomeça a relatar o mundo dos anos 90,com Harkaitz Cano (1975) e aincorporação de Edorta Jiménez (1953)e Lourdes Oñederra (1958).

São só alguns nomes, mas tratei defazer referência àqueles autores quepodem ser lidos em tradução ao espanholou a outros idiomas. Porque este é umprocesso novo na literatura basca: aabertura ao exterior por meio da tradução,embora ainda haja muito caminho apercorrer neste trajeto. Não se podeesquecer que só alguns poucos editamsuas obras em grandes editoras que osaproximam de um público amplo, comono caso de Bernardo Atxaga (EdicionesB), Anjel Lertxundi (Alfaguara), RamónSaizarbitoria (Espalsa Calpe) e Urreta-bizkaia (Alfaguara). Alguns outrospublicaram suas traduções em editorasde menor porte: Editora Jiménez, ItxaroBorda, Pako Aristi, Juan Luis Zabala(Hiru ou Txalaparta), ou Aingeru Epal-tza ou Lourdes Oñederra (Bassarai).

Suas preocupações literárias po-dem ser encontradas em outras nar-rativas com maior tradição e projeção,pois, como é bem sabido, qualquerescritor que se expressa em euskarapode ler em pelo menos uma outra

língua, alguns em mais de uma, etodos tentaram aproximar-se dasgrandes questões da modernidade eda pós-modernidade.

Assim, as grandes correntes danarrativa fantástica que nascem em tornode Julio Cortázar e Jorge Luis Borgestêm uma ampla continuidade nos relatosde Bernardo Atxaga e Joseba Sarrio-nandia; a literatura do absurdo que partede Kafka teve seguidores na prosa deJuan Luis Zabala ou na tradição de umromance poemático. O romance experi-mental levou Anjel Lertxundi a seaprofundar na narrativa, com uma obrasinalizadora no atual panorama basco,ou também a importante obra deRamón Saizarbitoria.

O realismo efetuou uma novarenovação na literatura basca: aquicabe quase tudo, desde a referência àcontemporaneidade mais superficialaté a aproximação a uma narrativa damemória � não tanto da tradição, masda memória histórica � como umaforma de se aprofundar na identidade,num mundo que tende à criação degrandes generalidades. Assim, pode-se citar as obras de Edorta Jiménez,Pako Aristi e Aingeru Epaltza, parasalientar algumas de uma longa listaque encontra seu cultivo literário nocomplexo mundo político do PaísBasco. O cultivo do realismo sujo éuma das possibilidades da que tam-bém se ocupa a narrativa basca atual.

A posição feminista e a preocupaçãosobre a situação pessoal e social da mulherna narrativa basca estão presentes naprosa de Arantxa Urretabiskaia, ArantxaIturbe e Lourdes Oñederra.

Não falta, no entanto, a presençada literatura de gênero, uma vez quese decidiu que o importante era contarhistórias. O romance policial, a nar-

O escritorBernardoAtxaga

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rativa sobre os novos costumes urba-nos, a narrativa de viagem são gênerosque podem ser encontrados semdificuldade em uma literatura que ten-de a ser lida por amplos setores dapopulação que fala basco.

A situação da poesia pode ser des-crita de maneira paralela, sobretudona hora de realizar-se uma visão ge-ral. Ou seja, complexidade, variedadee pluralidade como traço sobressalentee convergência de diversos grupos emum mesmo momento histórico. Tam-bém no gênero há uma pequena nos-talgia em relação às obras produzidasna década de 70 e 80 e uma pequenaexpectativa pela obra que realizarão osjovens autores, cuja incorporação àliteratura sofreu uma pequena baixaaté meados da década de 90.

As obras de Juan Mari Lekuona(1927) e Bitoriana Gandiaga (1928)convergem com a obra dos escritoresque começaram a escrever no início dosanos 60, como a inescusável figura deMikel Lasa (1938), Amaia Lasa,Xabier Lete (1944), o vitalismointeligente de Joxean Artze (1939).

O grupo de Bernardo Atxaga (1951)e Joseba Sarrionandia (1958) situou apoesia numa corrente vanguardista e derenovação contínua, desde o dadaísmo eo expressionismo até a criação de umapoesia pessoal e alegórica, depois de tran-sitar por um caminho culturalista. Nocaminho da poesia vanguardista, juntou-se a eles Koldo Izagirre (1953).

Tentando realizar uma descriçãogeral, pode-se descrever em quatroamplos grupos a produção poética dosanos 80.

Existe uma primeira estética decorte simbolista, próxima à poesia daexperiência, onde a contigüidade entresentimento e cotidianeidade produz a

raiz a partir da qual se desenvolverá apoesia de Felipe Juaristi (1957), JuanKruz Igerabide (1956), Amaia Itur-bide (1961), Mari Jose Kerexeta (1961),Juan Ramón Madariaga (1962). Poe-mas traduzidos destes autores podemser encontrados em diversas antolo-gias de poesia espanhola e, no caso deIgerabide (editora Hiperión), em li-vros para crianças.

A renovação estética incansável,com uma clara referência aos poetasvanguardistas, encontra-se na obrapoética de Iñigo Aranbarri (1963), naevolução de Jose Luis Otamendi (1959)ou na obra pessoal de Xabier Mon-toya e Itxaro Borda (1959).

Existe, claro, uma poesia de raiztradicional, próxima à poesia popular doPaís Basco, cujas diversas formas utili-zam a poesia de caráter culto, começandopela utilização do imaginário ou seguindopelos procedimentos retóricos da poesiaoral. Pode-se perceber isso na poesia dePatziku Perurena (1959) ou Luis Ber-rizbetitia (1963).

Não se pode deixar de citar a amplaobra de Patxi Ezkiaga (1943), deinspiração anglo-saxã e que sobressaina descrição da comunicação de ummundo próprio. Tere Irastortza (1961)realizou com coerência e continuidadeuma obra poética próxima à poesia dosilêncio e da expressão do instanteesclarecedor.

Por volta da metade da última déca-da, aparece com força um novo grupode autores. Não é fácil descrever, sema perspectiva necessária, a importânciadeste novo grupo, mas podemos apon-tar algumas tendências estéticas quemostram a pluralidade de vozes damais recente poesia basca.

Talvez uma das obras mais impor-tantes da década deva-se à pena de Ri-

cardo Arregi Díaz de Heredia (1958),que, a partir de posições culturalistas,foi criando uma das mais originais daúltima produção poética. Cultura-lismo e uma linha clara, identificaçãode música e poesia são alguns traçosde uma das obras mais pessoais desseperíodo. Sua obra Cartografía estáprestes a ser publicada em espanhol.

A corrente da poesia da experiênciaproduziu as estimáveis obras de PakoAristi (1963) e Gerardo Markuleta(1963), com a destacada contribuição deMiren Agur Meabe (1962), tocada poruma preocupação feminista em sua obra.

O simbolismo de corte intimista ede aproximação a uma poesia de cará-ter reflexivo impregna a obra de JoséLuis Padrón (1970) e Mirari Garcíade Cortázar (1969).

A corrente vanguardista do cultivoda imagem poética está presente emGarikoitz Berasaluze (1975) e, commaior domínio da estrutura, em Har-kaitz Cano (1975). Resulta inclassifi-cável a obra de Juanjo Olasagarre (1963),tão próxima ao monólogo dramático eà transcrição de realidades complexaspor meio de textos breves.

Também pode-se observar a in-fluência do realismo sujo nas obraspoéticas que apareceram recentementena vitrine da poesia basca.

É possível que seja difícil demarcar acriação poética de cada autor em moldestão estreitos, mas a visão geral podeconvidar ao que realmente é importante:à curiosidade sobre estes autores.

Jon Kortazarnascido em Mundaka (província de Vizcaya), é catedrático de

literatura basca na Universidade do País Basco, tem numerososestudos e livros sobre a literatura basca do século XX, como Mikel

Zarateren prosa, Euskal literaturaren historia txikia e, em castelhano,La pluma y la tierra; é responsável pela edição de obras clássicas

desta literatura, como Poesia Bascongada Dialecto Vizcaíno

Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro

A partir da esquerda,Ramon Saizarbitoria

e Anjel Lertxundi

Fotos Divulgação

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OOs mais de vinte anos do período

democrático na Espanha propiciaram àliteratura catalã � duramente reprimidadurante o franquismo � uma estabilidade quenão havia conseguido ter em sua história. Apoesia, o gênero que na Europa esteve maisassociado aos países com uma tradiçãoromântica, foi substituída pelo romance, comum grande número de narradores quemantêm cifras de vendas impensáveis atépouco tempo atrás.

O consumo chegou a uma literatura quehavia sido muito prestigiosa, mas minoritária.Se, durante anos, havia-se repetido a consigna"somente a qualidade nos salvará", atualmentealguns autores e também editores estãochegando a obter bons benefícios, levando-seem conta que Barcelona é a capital editorial emespanhol. O âmbito da literatura catalã situa-se numa língua utilizada em três comunidadesautônomas (Valência, Catalunha e Mallorca),além de pequenos territórios no sul da França(Roussillon), uma faixa em Aragão e um espaço(Alguer) na ilha italiana da Sardenha. O catalãoe suas variantes dialetais têm um âmbito deinfluência que oscila sobre os dez milhões depessoas � em sua maioria bilíngües com ocastelhano, ou seja, a sétima língua daComunidade Européia.

A história da literatura catalã pode seravaliada mediante seus grandes escritores,desde os trovadores medievais até poetas comoAusiàs March (do século XV), pensadorescomo Ramón Llull (século XIII) e romancistas

como Joanot Martorell (século XV), a quemCervantes considerava como um de seusmestres. Essa história pesou porque tambémesteve acompanhada, durante séculos, dedecadência e de extensos períodos deproibições, como a auspiciada pelos Bourbonsdepois da Guerra de Sucessão da coroaespanhola no século XVIII ou das ditadurasdo século XX, que somam mais de cinqüentaanos. Por esse motivo, pela conturbadatrajetória a ferro e fogo, um fenômeno como aestabilidade política provocou o fato de que anormalização tenha feito coincidir seis geraçõesde autores, um acontecimento insólito e nãoisento de controvérsias pela pressão docastelhano e da potente indústria editorialespanhola. Com boa vontade das diferentespartes, algumas suspicácias foram sendosuperadas, pouco a pouco.

A situação a que chegamos, para dar umavisão panorâmica da literatura catalãcontemporânea, bem poderia se assemelharà de literaturas irmãs como a espanhola, afrancesa ou a italiana: influências, no iníciodo século, de correntes modernistas (comalguns representantes ilustres na arquitetura,como Antoni Gaudí, Puig i Cadafalch ouDomènech i Montaner), contribuiçãodecisiva das diferentes vanguardas futuristas,cubistas, dadaístas e surrealistas (compintores formados na escola catalã como JoanMiró, Salvador Dalí, Antoni Tàpies ou opróprio Pablo Ruiz Picasso), os anos docompromisso político no pós-guerra (com

uma infinidade de escritores e artistasdissolvidos numa diáspora por França,México, Argentina, Chile etc.) e umademocracia que contribuiu para a eclosão deuma infinidade de autores que rompem ahegemonia dos grandes mestres. Nessaconjuntura, a disparidade de tendências e degostos estéticos passou por influências dasgrandes literaturas e também por umapersonalidade forte e uma vinculação latentecom a tradição. Os grandes nomes dasgerações anteriores estão marcados pelaGuerra Civil (1936-1939), autêntico balão deensaio dos totalitarismos � tanto os fascistasquanto o soviético �, estão marcados por suavinculação com um ou outro grupo, além dosautóctones, como os republicanos, osnacionalistas ou os trabalhistas de tendênciasanarquistas. Outro fato para observar aevolução é a interminável ditadura do generalFrancisco Franco. Morto e enterrado, ascoisas tenderam a suavizar-se e, com aprogressiva incorporação de gerações quenem chegaram a conhecê-lo, o trauma foisendo superado. Dos nomes destacáveisdessas gerações do século XX, cinzeladas peladestruição, podemos citar de cor prosistasde qualidade como Eugeni d'Ors, CarlesCapdevila, J.M. de Sagarra, Joan Sales,Mercè Rodoreda, Llorenç Villalonga e JosepPla e poetas importantes como Carles Riba,J.V. Foix, Salvador Espriu e Josep Carner,todos eles seguindo a rota dos grandesmestres da passagem do século XIX para o

David Castillo

o delta

Tensão plástica(1934), obra do artistacatalão LeandreCristòfol, e osescritores SalvadorEspriu (ao lado) ePere Calders

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XX, como Jacinto Verdaguer, ÀngelGuimerà e Joan Maragall. Este poderia ser,com reservas, o cânone dos escritores maisdestacados. Durante o longo pós-guerra,apesar da censura e das grandes limitaçõespara o uso do catalão, somaram-se aescritores de talento posteriores comoGabriel Ferrater, Joan Fuster, Pere Calders,Joan Vinyoli, Baltasar Porcel e o poetaexperimental Joan Brossa, amigo íntimo dopoeta brasileiro João Cabral de Melo Neto.Esse grupo, e alguns dos autores antescitados como Foix, Espriu, Pla e Rodoreda,exerce uma influência decisiva nas geraçõesque lutam para derrocar não só a ditaduramilitar mas também seu espírito: o rançoideológico e o clima de repressão moralcatólica. As novas gerações surgidas namutante década de 70 afloram commovimentos culturais internacionais comoo dos hippies, o psicodelismo e tudo o quecomportou a pós-modernidade. Dos nomescom letras maiúsculas, chega-se a umaliteratura muito democratizada, na qualdesaparecem os grandes guias e gurusideológicos até desembocar num delta, umgrande mosaico onde encontramos umpredomínio da narrativa, meios de comuni-cação que têm de competir com os grandesgrupos privados e estatais espanhóis, umteatro que se converte numa referênciaeuropéia e um bom número de poetas quebrilham mais por obra do acaso do que porsua filiação política. A mudança de século

chegou com grandes expectativas: está-seassumindo que o castelhano é um veículo euma língua irmã diante de uma tradiçãoancestral de imposição e observa-se um lentoincremento de leitores, fruto da política escolarde protecionismo do governo autônomo.

As linhas que podem ser encontradas emcomparação a outras literaturas resultariamimpossíveis de serem citadas porque acreditoque a originalidade de alguns narradores éinquestionável. Entre o magma de poetasvivos, entre os que eu prefiro, estão: JosepPalau i Fabre (1917), que se situa na órbita deArtaud, Breton, Picasso e Malraux, os quaisconheceu no exílio; Joan Perucho (1920), quese vinculou à literatura fantástica e à medieval;Jordi Sarsanedas (1924), que segue os modelosfranceses e ingleses; Màrius Sampere (1928),que buscou a intimidade do realismo e dapoesia confessional; Feliu Formosa (1938),que se mantém vinculado à tradição alemã, porsua contribuição à tradução; Joan Margarit(1938), que se sente próximo ao legado de T.S.Eliot; Narcís Comadira (1942), que tevealgumas referências com a poesia italiana deBassini e Pavese, enquanto Marta Pessar-rodona (1941) e Francesc Parcerisas (1944)aproximaram a poesia anglo-saxã a seus versos.Pere Gimferrer (1945), talvez o poeta catalãocom mais projeção internacional, move-seatravés de diferentes tradições, desde osmodelos de versificação quase perdidos atéuma modernidade que lhe faz incorporarelementos cinematográficos em seus versos.

Entre os mais jovens, encontraremos umainfinidade de nomes com uma obra emandamento. Poderiam ser citados, numgrande pacote, autores como Jaume Pont,Lluís Solà, Lluís Alpera, Valentí Puig EnricCasasses, Antoni Marí, Carles Hac Mor,Carles Torner, Jordi Cornudella, Enric Sòria,Gabriel Planella, Antoni Puigverd, JaumeSubirana e a recentemente desaparecidaMaria-Mercè Marçal, numa lista inter-minável.

Num recanto do sempre complicadoMediterrâneo, uma cultura emerge enquantoos cantos de um grupo de rock tornam-seproféticos: "Tempos ruins para a lírica".Tempos ruins aqui e lá. O que se podecertificar, no meu modesto entender, é que aproblemática pode ser similar à de outrasculturas que mantêm uma vizinhança difícilcom línguas hegemônicas como o inglês ou ocastelhano. Mas não se trata de chorar,porque seria ridículo, uma constatação a maisdo lacrimogêneo comportamento vitimista,decididamente caprichos de países ricos quese perguntam o que restou de seu passadoenquanto o futuro os surpreende.

David Castillopoeta, narrador e crítico nascido em Barcelona,

dirige o suplemento cultural do diário em língua catalãAvui, da mesma cidade; entre suas obras,

destacam-se Game over (1967),Prêmio Carles Riba de poesia catalã, uma biografia deBob Dylan e o romance El cielo del infierno, traduzido

para o castelhano pela editora Anagrama

Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro

As novas gerações da Catalunha, surgidas na décadade 70, afloraram com movimentos culturais internacionaiscomo o dos hippies, o psicodelismo e tudo o quecomportou a pós-modernidade, gerando uma literaturana qual desaparecem os grandes guias e gurusideológicos para desembocar num grande mosaico ondeencontramos um predomínio da narrativa sobre a poesia

catalão

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A¿indicios dun ciclo áureo?as letras galegas actuais:

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Leia a seguir um ensaio sobre a literatura galegaque conservamos no idioma original de modo a

ressaltar a contigüidade cultural e histórica existenteentre essa região espanhola e o mundo lusófono

Camilo Fernández Valdehorras

Peregrino II (1992),obra em madeira do escultorgalego Francisco Leiro

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UMA BIBLIOTECA ESPANHOLA NO BRASILOs livros mencionados neste dossiê que tenham sido lançadosno Brasil foram citados nos textos com o título em portuguêse com indicação, entre parênteses, da editora responsávelpela publicação. Os livros não lançados no Brasil foramcitados com o título original e podem ser encomendados àLivraria Letraviva (av. Rebouças, 1.986, São Paulo, tel. 11/3088-7992, e-mail: [email protected],www.letraviva.com.br) ou ao site especializado em livrosem espanhol Los Best Sellers (www.losbestsellers.com).Selecionamos ao lado alguns títulos de autores espanhóiscontemporâneos disponíveis no mercado editorial brasileiro:

A partir da esquerda,Álvaro Cunqueiro eX.L. Méndez Ferrín

Fotos Divulgação

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• Joan Brossa - Poemas civis (7 Letras)• José Luis Sampedro - O sorriso etrusco (Martins Fontes)• Juan Goytisolo - A saga dos Marx (Cia. das Letras)• Juan José Millás - Tolo, morto, bastardo e invisível (Nova Fronteira)• Júlio Llamazares - Chuva amarela (Martin Fontes)• Luis Goytisolo - Rastro do fogo que se afasta (Cia. das Letras)• Manuel Vázquez Montalbán - O profeta impuro, O estrangulador e O quinteto de Buenos Aires(Cia. das Letras)• Miguel Delibes - Dama de vermelho sobre fundo cinza (Best Seller)• Pedro Almodóvar - Fogo nas entranhas (Dantes)• Rosa Chacel - Memórias de Leticia Valle (José Olympio)• Revista 7, n. 7 (Biblioteca Nacional) - edição sobre a poesia espanhola contemporânea• Revista Inimigo Rumor, n. 9 (Editora 7Letras) - dossiê sobre José Ángel Valente

• Adelaida García Morales - O Sul & Bene (Brasiliense)• Antonio Muñoz Molina - Um inverno em Lisboa (Martins Fontes)• Antonio Soler - As dançarinas mortas (Cia. das Letras)• Arturo Pérez-Reverte - O Clube Dumas, A pele do tambor e O quadro flamenco (Martins Fontes)• Camilo José Cela - A família de Pascual Duarte, A cruz de Santo Andre, O assassinato do perdedor,Saracoteios, tateios e outros meneios (todos pela Bertrand Brasil) e Mazurca para dois mortos (Difel)• Carmen Martín Gaite - Nebulosidade variável (Cia. das Letras)• Eduardo Mendoza - A cidade dos prodígios (Cia. das Letras.)• Elena Castedo - Paraíso (Relume-Dumará)• Gonzalo Torrente Ballester - A ilha dos acintos cortados e O casamento de Chon Recalde (Record)• Javier Marías - Coração tão branco, Amanhã, na batalha, pensa em mim, Negro dorso do tempo,Todas as almas (Martins Fontes)• Javier Tomeo - Amado monstro (Brasiliense)

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Cartas para a revista CULT devem ser enviadas para a Lemos Editorial (r. Rui Barbosa, 70, São Paulo, CEP 01326-010). Mensagensvia fax podem ser transmitidas pelo tel. 11/251-4300 e, via correio eletrônico, para o e-mail �[email protected]�.Os textos publicados nesta seção poderão ser resumidos ou publicados parcialmente, sem alteração de conteúdo.

D o l e i t o r C U L TC U L TC U L TC U L TC U L T

Prêmio CULTParabenizo a CULT pela importanteiniciativa de rastrear novos talentos pormeio da atribuição do Prêmio Redes-coberta da Literatura Brasileira, nestaépoca em que o autor estreante en-contra enormes dificuldades em tornarconhecido o seu trabalho. Sugiro que,a exemplo das seções “Criação” e “Ga-veta de Guardados”, os editores consi-derem a possibilidade de abrir novaseção destinada a acolher textos iné-ditos de autores estreantes, seção estaque já poderia iniciar com o fartomaterial enviado por todos osparticipantes do Prêmio 2000. Acreditoque esta seção constituiria, além doPrêmio, mais um importante passo nosentido de abrir perspectivas a autorestalentosos, que muito têm a contribuirpara a literatura brasileira, mas nãoencontraram ainda oportunidade depublicação e, quem sabe, despertaroutras casas editoriais para esta reali-dade.

Danilo SbrissiaCuritiba, PR

HeideggerVenho parabenizá-los pelo “DossiêHeidegger” [CULT 44, março de 2001].Os textos bem familiares nos fazemperceber a fundamental revista que éa CULT. Heidegger oferece um ques-tionar pelo Ser, uma verdadeira buscaao ainda não buscado, nos permiterevelar o que ainda está nas entrelinhasdo pensamento. É também um retornoà grande esfera do conhecimentofilosófico que é o Ser. A entrevista comGianni Vattimo só fez complementaro valor da revista.

Deyve Redyson M. SantosCaruaru, PE

Faço um reparo ao dossiê da CULT 44.Primeiramente, ao articulista João daPenha, cuja menção ao filósofo DjacirMenezes foi superficial e, pior, desres-peitosa. Sou estudioso do pensamentofilosófico brasileiro e sei que DjacirMenezes inclui-se entre os grandesintelectuais brasileiros. Era um

democrata, um liberal e o maior intér-prete de Hegel entre nós. Quanto aoartigo do professor Zeljko Loparic,deve-se lamentar sua omissão aopassado nazista de Heidegger. Comoavesso a totalitarismos de qualquercoloração, combato os que fazem tá-bula rasa de colaboradores do nazismo,só porque foram grandes filósofos.Desculpa-se com muita facilidade oserros dos “grandes homens”.

Roney Damásiopor e-mail

Não tenho formação em filosofia. Dessaforma, fico impossibilitado de tecercomentários sobre o valor dos artigosem torno do “Dossiê Heidegger”.Quero crer que as idéias ali expendidaso foram corretamente, considerandoque seus autores me parecem serintelectuais conceituados. Posso, nãoobstante, fazer um comentário sobredeslizes lingüísticos que notei nostextos em questão. E o faço em virtudede ser eu professor de português.Machucaram-me os ouvidos expressõescomo “ela tinha” (André Duarte); “ocoisar da coisa” e “quadrindade”(Zeljko Loparic); “pérfuro-desrea-lizante” e “presentidade” (Juliano Gar-cia Pessanha); e “no âmbito da filoso-fia, do período da filosofia” (João daPenha). Os autores do “dossiê” me pare-cem eruditos, mas com os ouvidos maiseducados no idioma alemão do que emnosso vernáculo.

Eduardo B. GaborSão Paulo, SP

Hegel, que via a manifestação dascoisas como uma Totalidade, nos ensi-nou que a aparência é a realidade queaparece. Contra Kant, o gênio de Jenanão aceitou a existência de doismundos – o da essência e o da aparên-cia. A aparência é o outro da essên-cia. Com isso, restituiu ao primeirotermo, condenado ao reles mundo dosensorial, a dignidade que perdera porforça de uma tradição filosófica. OscarWilde, com menos gênio especulativo,mas superior em humor e estilo,escreveu que só não se deixam levarpelas aparências as pessoas super-ficiais. Tais lições, desconfio, são igno-

radas pelo leitor Maurício H. Rothberg(CULT 45). Com olhos de lince queenxergaram demais, viu na “aparên-cia” de meu artigo sobre Heidegger[publicado no dossiê da CULT 44] algomais do que intentei dizer; algumaescondida “essência”, suponho. Adespeito, note-se, das observaçõesacrescentadas ao texto, suficientes,assim supus, para o esclarecimento deminha posição quanto ao “casoHeidegger”, vale dizer, o envolvimentodo filósofo com o nazismo. E é isso oque perturba o nosso leitor: o nazismode Heidegger. Também a mim isso meperturba. Noutros tempos, até compreibrigas por causa disso com hei-deggerianos de carteirinha, incomoda-dos com o que lhes pareceu desrespeitodeste escrevinhador com o “mestre”.O leitor, contudo, aponta em mim enos demais colaboradores do “DossiêHeidegger” o pecado da omissão. Noque me respeita, ele vai além. Jogandoseu arpão num mar de idiossincrasias,quer me fisgar como um eclético,como se eu houvesse andado em águasde Cousin e tutti quanti. Com o jorrode sua luz, imagina iluminar um muroonde me vê sentado. Caro senhorRothberg, nem quando jovem fiquei emcima do muro, pois a prudência reco-menda fugir de locais onde os tiros vêmdos dois lados. Tampouco o faria agora,quando, nesta etapa da vida, vislum-brando sombras outonais, uma quedade qualquer altura pode trazer conse-qüências lamentáveis, abreviandominha participação neste admirávelmundo bobo, digo, novo, digo, neoli-beral. Quanto ao epíteto de “carna-valesco” com que fui mimoseado peloleitor, fico-lhe grato por um simplesmotivo: embora nunca antes tenhaengrossado as fileiras de Momo, issome fez pensar na possibilidade de umanova carreira. Sendo assim, já comeceia oferecer meus préstimos às escolasde samba.Tenho até uma proposta deenredo para o carnaval do ano 2002.Que tal “o malandro Heidegger e seuamor pela cabrocha Hannah”?

João da PenhaTeresópolis, RJ