Cultura Afro-Brasileira E Indígena

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  • Cultura Afro-Brasileira e

    Indgena

    Elia Barbosa de Andrade

  • Jouberto Ucha de MendonaReitor

    Amlia Maria Cerqueira UchaVice-Reitora

    Jouberto Ucha de Mendona JuniorPr-Reitoria Administrativa - PROAD

    Ihanmarck Damasceno dos SantosPr-Reitoria Acadmica - PROAC

    Domingos Svio Alcntara MachadoPr-Reitoria Adjunta de Graduao - PAGR

    Temisson Jos dos SantosPr-Reitoria Adjunta de Ps-Graduaoe Pesquisa - PAPGP

    Gilton Kennedy Sousa FragaPr-Reitoria Adjunta de Assuntos Comunitrios e Extenso - PAACE

    Jane Luci Ornelas FreireGerente do Ncleo de Educao a Distncia - Nead

    Andrea Karla Ferreira NunesCoordenadora Pedaggica de Projetos - Nead

    Lucas Cerqueira do ValeCoordenador de Tecnologias Educacionais - Nead

    Equipe de Elaborao e Produo de Contedos Miditicos: Alexandre Meneses Chagas - Supervisor Ancjo Santana Resende - CorretorAndira Maltas dos Santos DiagramadoraClaudivan da Silva Santana - DiagramadorEdilberto Marcelino da Gama Neto DiagramadorEdivan Santos Guimares - DiagramadorFbio de Rezende Cardoso - WebdesignerGeov da Silva Borges Junior - IlustradorMrcia Maria da Silva Santos - CorretoraMarina Santana Menezes - WebdesignerMatheus Oliveira dos Santos - IlustradorPedro Antonio Dantas P. Nou - WebdesignerRebecca Wanderley N. Agra Silva - DesignerRodrigo Otvio Sales Pereira Guedes - WebdesignerRodrigo Sangiovanni Lima - AssessorWalmir Oliveira Santos Jnior - Ilustrador

    Redao:Ncleo de Educao a Distncia - NeadAv. Murilo Dantas, 300 - FarolndiaPrdio da Reitoria - Sala 40CEP: 49.032-490 - Aracaju / SETel.: (79) 3218-2186E-mail: [email protected]: www.ead.unit.br

    Impresso:Grfi ca GutembergTelefone: (79) 3218-2154E-mail: grafi [email protected]: www.unit.br

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    Copyright Sociedade de Educao Tiradentes

    A553c Andrade, Elia Barbosa de Cultura afro brasileira e indgena. / Elia

    Barbosa de Andrade. Aracaju: UNIT, 2011. 88 p.: il. : 22 cm.

    Inclui bibliografia.

    1. Cultura afro brasileira. 2. Cultura indgena I. Universidade Tiradentes Edu-cao Distncia II. Titulo.

    CDU : 397 572:397

  • Prezado(a) estudante, A modernidade anda cada vez mais atrelada ao

    tempo, e a educao no pode ficar para trs. Prova disso so as nossas disciplinas on-line, que possibi-litam a voc estudar com o maior conforto e comodi-dade possvel, sem perder a qualidade do contedo.

    Por meio do nosso programa de disciplinas

    on-line voc pode ter acesso ao conhecimento de forma rpida, prtica e eficiente, como deve ser a sua forma de comunicao e interao com o mundo na modernidade. Fruns on-line, chats, podcasts, livespace, vdeos, MSN, tudo vlido para o seu aprendizado.

    Mesmo com tantas opes, a Universidade Tiradentes

    optou por criar a coleo de livros Srie Bibliogrfica Unit como mais uma opo de acesso ao conhecimento. Escrita por nossos professores, a obra contm todo o contedo da disciplina que voc est cursando na modalidade EAD e representa, sobretudo, a nossa preocupao em garantir o seu acesso ao conhecimento, onde quer que voc esteja.

    Desejo a voc bom aprendizado e muito sucesso!

    Professor Jouberto Ucha de Mendona

    Reitor da Universidade Tiradentes

    Apresentao

  • SumrioCultura Afro-Brasileira e o ndio no Brasil . . . . . . . . . . . . . .11

    Tema 1: Cultura Afro-Brasileira: Infl uncia e Resistncia . . . . . . . . 13

    1.1 As Concepes acerca de cultura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

    1.2 Religiosidade afro-brasileira nos processos histricos . . 22

    1.3 Resistncias e permanncias dos elementos da cultura

    africana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31

    1.4 Das Senzalas para o Mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

    Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

    Tema 2: Os Indgenas no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

    2.1 Representaes acerca dos indgenas nos contextos

    histricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

    2.2 Padres e ndios: o trabalho missionrio . . . . . . . . . . . . . . 60

    2.3 Aculturao e resistncia indgena . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

    2.4 A tutela e pacifi cao dos povos indgenas . . . . . . . . . . . 78

    Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

    Referncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

  • Ementa

    Cultura afro-brasileira: influncia e resistncia: As Concepes acerca de Cultura; Religiosidade afro-brasileira nos processos histricos; Resistncias e permanncias de elementos da cultura africana; Das senzalas para o mundo. Os Indgenas no Brasil: Repre-sentaes acerca dos indgenas nos diferentes contex-tos histricos; Padres e ndios: o trabalho missionrio; A culturao e resistncia indgena; A tutela e pacifica-o dos povos indgenas.

    Objetivos

    Geral

    Conhecer e analisar a cultura afro brasileira e indgena, observando as mudanas e permanncias no decorrer dos processos histricos. O aluno dever entrar em contato com dados relacionados a essas culturas, o que possibilitar a compreenso acerca da importncia do ndio e do negro africano para a forma-o da cultura brasileira.

    Especficos

    Conhecer o bsico a respeito da cultura afro- bra-sileira sem se prender s concepes pejorativas adivindas do eurocentrismo;

    Refletir sobre a importncia da cultura africana

    na formao cultural do povo brasileiro;

    Concepo da Disciplina

  • Conhecer fragmentos da histria do ndio antes e depois da chegada do europeu;

    Reflitir sobre a diversidade dos povos idgenas

    e suas culturas;

    Compeender e desenvolver o respeito pela diversidade racial.

    Orientao para Estudo

    A disciplina prope orient-lo em seus procedi-mentos de estudo e na produo de trabalhos cientfi-cos, possibilitando que voc desenvolva em seus traba-lhos pesquisas, o rigor metodolgico e o esprito crtico necessrios ao estudo.

    Tendo em vista que a experincia de estudar a distncia algo novo, importante que voc observe algumas orientaes:

    Cuide do seu tempo de estudo! Defina um horrio regular para acessar todo o contedo da sua disciplina disponvel neste material impresso e no Ambiente Virtual de Aprendi-zagem (AVA). Organize-se de tal forma para que voc possa dedicar tempo suficiente para leitura e reflexo;

    Esforce-se para alcanar os objetivos pro-postos na disciplina;

    Utilize-se dos recursos tcnicos e humanos que esto ao seu dispor para buscar escla-recimentos e para aprofundar as suas reflexes. Estamos nos referindo ao contato permanente com o professor e com os cole-gas a partir dos fruns, chats e encontros presenciais, alm dos recursos disponveis no Ambiente Virtual de Aprendizagem AVA.

  • Para que sua trajetria no curso ocorra de forma tranquila, voc deve realizar as atividades propostas e estar sempre em contato com o professor, alm de acessar o AVA.

    Para se estudar num curso a distncia deve-se ter a clareza de que a rea da Educao a Distncia pauta-se na autonomia, responsabilidade, cooperao e colaborao por parte dos envolvidos, o que requer uma nova postura do aluno e uma nova forma de con-cepo de educao.

    Por isso, voc contar com o apoio das equipes pedaggica e tcnica envolvidas na operacionalizao do curso, alm dos recursos tecnolgicos que contribuiro na mediao entre voc e o professor.

  • CULTURA AFRO-BRASILEIRA E O NDIO NO BRASIL

  • 1 Cultura Afro-Brasileira: Infl uncia e ResistnciaO objetivo principal deste tema discutir acerca da cultura

    afro brasileira. No primeiro contedo procuramos pontuar algumas questes relacionadas cultura e s suas prticas em determinadas sociedades. Mostramos tambm as concepes de alguns antroplogos acerca de cultura. No contedo 2 como a religio afro se configurou no Brasil no decorrer dos sculos e de que maneira os negros procuraram adaptar sua religio dos brancos.

    No terceiro contedo analisamos as resistncias e permanncias dos elementos da cultuara africana. Dando nfase s irmandades religiosas que os negros criaram como forma de se organizarem e comemorarem seus santos de f. No contedo 4 tratamos da vida nas senzalas e das manifestaes culturais que os negros realizavam e que tornaram-se pblicas e contribuem com a cultura brasileira.

    Boa leitura!

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena14

    1.1 As Concepes acerca de cultura

    Para darmos incio ao trabalho sobre cultura afro-brasileira e indgena, penso que de suma importncia dedicar esse primeiro contedo para uma breve discusso a respeito da palavra cultura. Para que se tenha uma ideia bem formulada do que vem a ser cultura necessrio antes de tudo desmis-tificar o termo cultura. A partir de ento procurar entender o tema como algo interessante e decisivo para o entendimento das diversidades culturais das sociedades.

    Voc deve estar se perguntando como foi construdo o conceito de cultura.

    Para que voc acompanhe as diferentes vi-ses acerca de cultura, vamos iniciar nossa anlise tendo como marco o final do sculo XVII. O ter-mo germnico Kultur, segundo Laiara (2009, p.25), era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade. Essa concepo diferenciava-se da palavra francesa civilization que se referia especialmente s realizaes materiais de um determinado povo. Os dois termos foram sintetizados pelo ingls Edward Tylor no vocbulo culture. Assim, podemos atribuir ao mesmo a pri-meira definio antropolgica de cultura do modo como utilizamos atualmente. Em 1871, ele a definiu como sendo todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmisso gentica, como diramos hoje (LAIARA, 2009, p. 28).

    importante ressaltar que a partir dessa con-cepo, os antroplogos esto convencidos de que no significativa a correlao entre distribuio dos caracteres genticos e os comportamentos culturais. Qualquer ser humano normal pode ser educado em qualquer cultura, se desde o incio de sua infncia for colocado em situao conveniente de aprendizado.

  • 15Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Em outras palavras, se tirarmos da China um beb e o colocarmos sob os cuidados de uma famlia de ndios moradores da regio amaznica, ele crescer como um indiozinho, com todas as caractersticas culturais de seus irmos de criao.

    O mesmo acontecer a um indiozinho da flo-resta amaznica se for transportado para a China e educado no seio de uma famlia tradicional chi-nesa: ele certamente desenvolver os mesmos as-pectos culturais de sua nova famlia, portanto, os comportamentos do ser humano so resultantes do aprendizado acumulativo processual que justifi-cado por realizaes e no pela herana gentica.

    O processo de acumulao cultural herdado pelos grupos humanos no decorrer de geraes sempre nos condicionou a reagir de forma depre-ciativa no que se refere ao comportamento cultural daqueles que fogem aos padres aceitos pela maioria do grupo em determinada comunidade. por conta disso que discriminamos os desvios comportamentais de alguns elementos numa determinada sociedade.

    A esse respeito podemos citar a discrimina-o que sofreram e ainda sofrem os homossexuais, quando identificados em determinados espaos pblicos. As manifestaes de repulsa aos mes-mos so externadas s vezes de forma violenta e zombeteira e, coloca-os margem dos grupos de comportamento visto pela sociedade como padro.

    comum tambm acharmos estranho: modo de vestir, comer ou caminhar que se apresentam di-ferente dos nossos padres. Para ns brasileiros estranho usarmos um kimono numa comemorao festiva. Como tambm comer carne de cachorro como algo extico. A iguaria ao nosso paladar repulsiva, pelo fato de que, para os nossos an-tepassados esse animal no era utilizado como alimento. E como j foi dito acima, a cultura algo acumulativo, esse hbito no nos foi ensinado.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena16

    Diante das colocaes a respeito de cultura, devemos discutir um pouco a respeito da ideia sobre a origem da mesma, ou melhor, como o homem adquiriu cultura?

    Os estudiosos que tratam de cultura tm em comum a preocupao com sua origem, e em dife-rentes momentos tentaram entender de que forma o homem adquiriu cultura. Alguns atribuem1 ao desenvolvimento do crebro humano e capaci-dade de utilizao das mos o fornecimento de uma nova percepo que os distinguiu dos demais animais. Paleontlogos referem-se ao bipedismo, caracterstica nica dos primatas dentre todos os mamferos. Para esses estudiosos a cultura era resultante da habilidade manual viabilizada pela posio erecta que estimularam o crebro e como consequncia desse estmulo houve o desenvolvi-mento do intelecto humano.

    Para melhor entendermos o surgimento da cultura, vamos conhecer o pensamento do antrop-logo Claude Levis-Straus (1908-2009) que atribui o surgimento da mesma ao momento em que o ser humano convencionou as primeiras normas e regras. A proibio do incesto exigiu um padro de comportamento comum s sociedades humanas, ou seja, era proibida, para todos, a relao sexual de um homem com certas categorias de mulheres (em nossa sociedade) a me, a filha e a irm, j Leslie White (1900-2009), tambm antroplogo, norte-americano, atribui a capacidade de gerar sm-bolos como determinante para a passagem do es-tado animal para o humano.

    Nessa concepo o uso de smbolos transfor-mou os antropides2 em humanos. E as civilizaes perpetuaram-se atravs do uso de smbolos. Logo, toda e qualquer cultura depende de smbolo. Assim o exerccio da faculdade de simbolizao que

    1 LEWIN, Roger; LEACKEY, Ricard. Origens. Cia. Melho-ramentos/ Editora Universidade de Braslia, 1981.

    2 Espcie tida pelos antroplogos como primatas em evoluo.

  • 17Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    cria a cultura e o uso de smbolos que torna poss-vel a sua perpetuao. Sem o smbolo no haveria cultura, e o homem seria apenas animal, no um ser humano. O comportamento humano o com-portamento simblico (LAIARA, 2009, p. 55).

    importante ressaltar que para entender o significado de um determinado smbolo funda-mental conhecer a cultura que o criou. Um chins no entenderia como luto a roupa preta numa vi-va em uma Igreja Catlica assistindo celebrao do stimo dia, porque a cor simblica do luto na China o branco. Logo, toda a simbologia daquela cena s seria entendida por algum que conheces-se a cultura brasileira. Vale lembrar que o estranha-mento em relao a determinados smbolos no acontece somente entre povos de diferentes pases. Dentro de uma mesma nao existem diferentes representaes simblicas, que so resultantes da diversidade cultural de seu povo.

    Com base nos estudos j citados, podemos per-ceber que o homem produtor e produto da cultura, caracterstica da sua espcie. Constatamos tambm que as teorias a respeito de cultura so resultantes das vrias tentativas de obter um conceito preciso sobre a mesma. E mais, a discusso ainda no foi encerada, vrios so os estudiosos que buscam com-preender com exatido o conceito de cultura.

    Diante de toda a problemtica que envolve a cultura dos homens, devemos entender que ela condiciona a viso que cada indivduo tem do mun-do ao seu redor. atravs do olhar fundamentado em sua cultura que o homem observa todo o seu entorno. E como ele apresenta distines entre os povos os olhares so diferentes.

    As pessoas estranham as diferentes maneiras como agem os outros mesa. Se uma criana de cultura urbana presenciar um grupo de indiozinhos

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena18

    xinguanos sentado no cho em volta de um uten-slio de cermica pegando as pores de alimento diretamente com as mos, ela sentir repulsa por aquele alimento, tocado por todos. Isso ocorre por-que em sua cultura cada um come em um prato e utiliza o garfo, faca e colher para pegar o alimento. Poderamos continuar dando exemplos diversos a respeito de costumes, mas o importante que se tenha clareza de que tudo est condicionado aos seguimentos de cada sociedade.

    O fato que o homem observa o mundo atravs de sua cultura. Isso tem como consequncia a pro-penso em considerar o seu modo de vida e de com-portamento como o mais correto e o mais natural. Esses posicionamentos so resultantes do chamado etnocentrismo, responsvel em casos extremos pela ocorrncia de numerosos conflitos sociais.

    Aps essas colocaes a respeito da cultura voc deve estar questionando sua participao como indivduo em sua cultura. Ser que ns parti-cipamos da forma igual em relao mesma?

    Caro aluno, a participao em nossa cultura limitada, nenhum ser humano capaz de participar de forma integral dos elementos de sua cultura. A

    Obra do pintor americano Jean Leon Gerome Ferris (August 18, 1863 March 18, 1930).

  • 19Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    integrao do indivduo em sua cultura depende tanto dos fatos cronolgicos quanto do fator cultural a que ele est condicionado, ou seja, uma criana no est apta para praticar atividades que no so apropriadas a sua idade. Da mesma forma, o idoso no tem capacidade fsica para desempenhar funes em que so necessrias agilidades.

    Tambm existem funes que dependem do acmulo de experincia que o indivduo adquiriu atravs dos anos de preparao. A esse respeito podemos entender por que determinadas funes so reservadas s pessoas maduras a exemplo de alguns cargos polticos. Se analisarmos as duas si-tuaes de impedimento percebe-se que no etrio as razes so evidentes, o que no acontece no segundo exemplo quando se trata de razes deter-minadas culturalmente.

    Um exemplo de outra situao que nos faz re-fletir, e bastante comum em nossa sociedade, por que um assassino com 18 anos completos pode ir a julgamento e, outro que faltam dois ou trs dias para completar essa idade recebe um tratamento diferente? Essa, como outras questes desse tipo esto relacionadas com o separar de forma objetiva adolescentes de adultos, mas como faz-lo sem cometer algum tipo de arbitrariedade?

    Em determinados grupos tribais so utilizados outros mtodos para que sejam estabelecidas estas diferenas: uma jovem considerada adulta logo aps acontecer a primeira menstruao. A partir de ento ela pode exercer todos os papis femininos. O mesmo no ocorre numa sociedade mais complexa, em que no acha adequado para uma moa de 12 ou 13 anos3 exercer esses papis.

    Todos esses aspectos mostram-nos que nin-gum perfeitamente socializado e nenhum indiv-duo pode ser igualmente familiarizado com todos

    3 Faixa etria em que geralmente ocorre a primeira menstruao

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena20

    os aspectos de sua sociedade. Ao contrrio, ele pode continuar ignorante a respeito de alguns as-pectos, podemos citar como exemplo um gnio na fsica, que pode no ter o menor domnio sobre msica ou pintura. O importante que deve exis-tir um mnimo de participao desse indivduo no conhecimento da cultura, a fim de que ele possa articular-se com os demais membros da socieda-de. necessrio saber como agir em determinadas situaes, como tambm prever o comportamento dos outros. Apesar disso tudo, h sempre o risco de perda do controle, pois em nenhuma sociedade as condies so previsveis e controlados.

    Caro aluno, diante do que foi exposto nesse contedo, espero que tenha compreendido um pouco sobre cultura. necessrio tambm que en-tendam que o que foi tratado so apenas frag-mentos que nos fornecem alguns conhecimentos que possibilitam no s a compreenso sobre cul-tura afro-brasileira e indgena que trataremos nos contedos desse material, como tambm contribua no seu aperfeioamento como profissional e ser humano em nossa sociedade.

  • 21Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    INDICAO DE LEITURA COMPLEMENTAR

    LAPLATINE, Francois. Aprender antropologia. 11. ed. So Paulo: Editora Brasiliense, 1998.

    Nessa parte Laplatine mostra o estudo do homem em sua diversidade. Aponta tambm como foi tra-tado o conceito de cultura pela antropologia em diferentes momentos da histria das sociedades.

    MELO, Ana Maria Lisboa de. Cultura brasileira e culturas brasileiras. Disponvel em: .Acessado em 12-01-2011. Esse artigo comenta a diversidade da cultura bra-sileira a partir da obra de Alfredo Bosi. A dialtica da colonizao. Nele o aluno poder conhecer as diversidades culturais no Brasil. Tambm discute a importncia da cultura na perspectiva acadmica ou erudita. Por fim, trata da cultura popular e toda a dinmica da cultura em determinados grupos sociais.

    PARA REFLETIR

    Percebendo que a cultura do outro aos nossos olhos sempre vista como estranha, o que voc considera necessrio fazer para diminuir a nossa averso cultura de grupos sociais distintos do seu? Discuta suas reflexes com seus colegas.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena22

    1.2 Religiosidade afro-brasileira nos processos histricos

    Os africanos que viveram no Brasil desde o incio da colonizao jamais se desligaram total-mente da sua frica, forados a deixarem sua terra os negros na condio de escravo ou no, procura-vam sempre algo que tivesse alguma relao com suas origens. E feliz era aquele cuja sorte lhe favo-recia e tinha o prazer de ouvir notcias da aldeia na-tiva deixada para trs pela violncia da escravido.

    Vimos na disciplina Histria da frica toda a pro-blemtica que envolvia o processo de escravizao do negro africano. Certamente os conhecimentos que voc, caro aluno, adquiriu sero importantssimos para a compreenso das razes da cultura afro-brasileira.

    A chegada constante de escravos colocava-os em contato com as suas origens. Isso acontecia de forma mais acentuada no Brasil urbano onde os escravos de ganho tinham maior contato com os recm-chegados que vinham de regies ou culturas aparentadas da sua. Mas, no podemos deixar fora dessa renovao cultural os que viviam no meio rural. Foi das senzalas, seja dos senhores de enge-nhos ou dos bares do caf, das matas ou escon-derijos que o contato entre os negros aconteceu e com isso a reaproximao com suas culturas.

    No devemos esquecer tambm que o colo-nizador branco no via a cultura trazida pelo negro como apropriada para os seus domnios. Isso resul-tou na imposio de sua cultura do outro. Essa atitude nem sempre fora aceita, e como forma de manuteno da sua, o negro procurou adapt-la do branco, o que certamente fez surgir a cultu-ra afro-brasileira. Um dos elementos culturais que passou por adaptaes mais marcantes foram sem dvida as manifestaes religiosas. A reformulao

  • 23Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    de crenas e prticas sejam elas religiosas ou no, so decorrentes do encontro de diferentes origens que ao se misturarem fincaram razes profundas em nosso territrio e constituram-se em elementos in-dispensveis para a constituio e entendimento da identidade do povo brasileiro.

    Antes de adentrarmos nas questes relacio-nadas religio do africano no Brasil, devemos nos situar cronologicamente a esse respeito. Quando aconteceram as primeiras manifestaes da referida religio em terras brasileiras?

    Segundo Santos (2008), os primeiros regis-tros sobre religies africanas no Brasil so datadas, do ano de 1680. Esses registros fazem-se presentes na documentao da Santa Inquisio, que naque-le contexto perseguia as manifestaes da religio dos negros. Essas perseguies eram respaldadas pela legislao que interferia de forma direta no poder eclesistico. Vale ressaltar que esses regis-tros foram feitos por catlicos e assim sob as len-tes da cultura europeia impregnados dos valores do catolicismo. Os mesmos definiam as prticas de origem africana como feitiaria.

    As leis da Igreja Catlica da Bahia proibia seus fiis de rezar para dolos e fazer beberagens por serem consideradas atividades que presumiam a presena de sat. Por isso, aquele que fosse pego praticando tais prticas receberia punio.

    A perseguio e violncia aos cultos da reli-gio africana so apresentadas de forma explcita na constituio de 1824. A lei apenas considerava livres para as prticas religiosas os catlicos e os protestantes estrangeiros brancos que viviam no pas. Outro forte indcio da perseguio religio africana pode ser constatado no cdigo penal de 1830, que previa a represso policial a todo agru-pamento de negros, sob pretexto da ordem pblica

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena24

    e da segurana do Estado (SANTOS, 2008, p. 6). Os cultos africanos chamados Calundu, eram temi-dos principalmente por dois fatores: as faculdades mgicas e a reunio de negros. A aglomerao dos negros era vista como indcios de revoltas a exemplo da Revolta dos Mals4.

    Voc deve estar curioso para entender o que Calundu. Para Santos (2008, p. 34), foi o termo genrico utilizado para definir a prtica religiosa africana em geral, at o final do sculo XVIII, sen-do substitudo por Candombl. Os adeptos dos calundus reuniam-se estrategicamente em locais destinados a outras ocupaes ou at mesmo em residncias de pessoas consideradas importantes na comunidade. Apesar das aglomeraes dos ne-gros serem proibidas, as prprias autoridades fa-ziam vistas grossas s mesmas. Desde que no houvesse desordem nem atentado ao pudor e no reunisse muitos brancos.

    As prticas religiosas dos negros tambm aconteciam nas senzalas, nas quais seus donos permitissem, mas essa religiosidade no acontecia somente no mbito domstico, visto que existiam festas em diferentes funes dos calundus. Essas festas eram frequentadas tambm por alguns bran-cos oriundos de vrios lugares adjacentes. Nesses eventos acontecia o atendimento individualizado, no qual o sacerdote principal do grupo recebia por esse servio, meio pelo qual podia tornar-se finan-ceiramente independente, o que possibilitaria ga-nhar a vida ou adquirir a alforria.

    A respeito da situao dos lderes religiosos do candombl no sculo XIX, pode-se afirmar que a maioria j nasceu livre. Cabe tambm citar que os maiores responsveis pela estruturao das re-ligies afro-brasileiras, do calundu ao candombl foram os libertos. Principalmente nas cidades, onde o sistema de ganho facilitava o acesso ao trabalho remunerado.

    4 Revolta que aconteceu na Bahia em 1835, organizada principalmente por negros islmicos.

  • 25Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Os dirigentes tanto do calundu como poste-riormente do candombl, no eram somente os que dirigiam os terreiros, mas todos os que auxiliavam de forma mais prxima e direta os sacerdotes, in-clusive o lder dos instrumentos ou o responsvel pelos sacrifcios de animais. Para se tornar chefe de terreiro um escravo necessitava de disponibilidade de tempo, visto que era preciso dedicar-se s vrias questes relacionadas ao mesmo.

    O curandeirismo5 no contexto do Brasil Colnia, em que o Estado oferecia de forma insatisfatria os servios bsicos de sade, ocupou relevante destaque. Eram os sacerdotes curandeiros que pre-paravam unguentos, xaropes e beberagens que em casos simples acabavam surtindo efeitos positivos. O fato dava-se pelo uso correto de ervas na fabri-cao de tais remdios. Mas em vrios casos era atribudo aos poderes mgicos do curandeiro, que passava a ser respeitado e at temido. Lembrando que havia associaes entre brancos e negros para abertura de espaos de cura nos quais os lucros eram divididos. Isso nos mostra que as prticas da religio afro-brasileira no era e no composta apenas por dirigentes e devotos de cor negra, mas tambm por crioulos, pardos e brancos.

    Ao tratarmos da religiosidade e dos cultos afri-canos no territrio brasileiro, importante ressaltar que eles so originrios de dois grupos culturais ge-ograficamente distintos. Os escravos do Reino de Dom6 e os escravos do grupo lingustico ioruba7.

    Os primeiros foram conhecidos no Brasil como jejes enquanto que o ltimo como nags. O contato entre os cultos dos voduns, originrios do jeje, e o culto dos orixs, dos iorubas, apre-sentavam semelhanas no Brasil e a fuso dessas prticas religiosas tradicionais foi classificada como jeje-nag (SOUZA, 2006).

    5 As prticas curandeiras no era somente realizadas pelos negros, os ndios especialmen-te os pajs tambm a praticavam desde os tempos remotos.

    6 Atual Repblica do Benin.

    7 Esses que eram originrios dos territrios da atual Nigria

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena26

    Os calundus originrios dos jejes terminaram aderindo ao catolicismo. J os de origem nag aderiram no s ao catolicismo, mas tambm aos cultos indgenas. A partir da dcada de 1930 foram incorporados tambm elementos da religio Esprita. Isso ocorreu devido presena nos cultos de pessoas que conheciam essa religio. Alguns misturaram no mesmo ritual as tradies africa-nas, indgenas, catlicas e espritas. Essa mescla-gem religiosa deu origem ao que ficou conhecido como umbanda. O candombl considerado como a religio que preserva o conhecimento dos povos africanos. Os santos do candombl so os orixs e o Deus supremo Olorum. ele quem controla e distribui os elementos da natureza e as foras cs-micas (CHAIB, 2000, p. 42).

    No candombl, a natureza, o fogo, o ar e as plantas so elementos sagrados. Cada um deles re-presentado por um orix e todos eles pertencem ao criador. Todos eles so importantes para a vida no planeta. No podemos sobreviver sem gua e sem o vento e o fogo tambm necessrio em certas ocasies. As folhas so consideradas no candombl a magia, sem elas, ele no existe. Mas elas s tm valor quando vir, ou seja, quando esto vivas. Por isso, fundamental proteger as plantas, os rios, a terra, o mar, as fontes, as grutas e pedras, os ani-mais. Todos sagrados para o candombl.

    Esse cuidado em proteger a natureza como algo sagrado possibilita aos conhecedores dessa caracterstica, um olhar distinto ao candombl e seus rituais, daqueles que desconhecem tais deter-minaes. Para os ltimos o candombl apenas um ritual de feitiaria. O candombl tambm cul-tua os parentes mortos, que so nossos ancestrais e respeita a sabedoria dos mais velhos. Nele os idosos so tratados como pessoas experientes que

  • 27Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    acumularam no decorrer de suas vidas conhecimentos que devem ser repassados para os mais jovens. Isso ocorre nos terreiros onde os pais de santo especialmente os mais idosos repassam aos seus filhos de f, todo o aprendizado de sua cultura religiosa acumulado em toda sua trajetria de vida.

    nos rituais de candombl que os orixs manifestaram-se no corpo dos filhos-de-santo. Quando isso ocorre, eles danam e contam a histria dos feitos do orix nele manifestado. Os orixs so ento recebidos com alegria e homenageados com muita msica e comida. Geralmente essas comidas so postas em utenslios de cermica e cada orix aprecia determinados alimentos.

    No candombl existem centenas de orixs, no nos propomos a conhecer e escrever sobre todos. Mas trataremos de alguns orixs que apresentam maior representatividade nos terreiros e para seus dirigentes.

    Foto: Shutterstock/Vinicius Tupinamba

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena28

    ORIX CARACTERSTICA

    EXU Gosta de desafios, da li-berdade, dono das es-tradas, gozador, muitas vezes provoca receio e medo. Pode ser bom ou mau, suas cores so ver-melho e preto, a comida preferida farofa de den-d e pipoca.

    OGUM Deus da guerra, caador e inventor de suas armas e ferramentas. Usa espada, couraa e capacete, era respeitado e temido. Suas cores so o verde escuro ou azul escuro, seu dia quinta-feira.

    IANS Dono dos ventos e das tempestades elegante e no tem medo de nada. Cuida das crianas e re-juvenesce os velhos, seu dia a quinta-feira. Sua cor marrom escuro e ver-melho, sua comida prefe-rida caruru.

  • 29Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Trataremos um pouco tambm a respeito

    da umbanda. Pode-se dizer que ela dissidente

    do candombl e do Kardecismo8. Todavia, desde

    o incio ela no a simplificao do candombl,

    nem apenas a ritualizao do kardecismo com os

    elementos dos candombls, uma transformao

    (PRANDI, 1990, p. 3).

    O primeiro centro de umbanda foi fundado

    no Rio de Janeiro em meados dos anos de 1920.

    Este centro, em 1938, instalado no centro dessa

    capital e a partir dele vrios outros se formam. Em

    1941 j acontece o primeiro congresso de Umbanda

    no Brasil. A umbanda consolidou-se e a partir de

    ento, nela h a presena da entidade no transe

    voltado mais para a cura, limpeza e aconselhamento

    dos fiis e clientes. Em seus ritos ela aproxima-se

    do candombl, com orixs-santos, mas o desta-

    que maior dado s entidades desencarnadas, ou

    encantados de origem indgena. Em suas prticas

    geralmente utilizada a bebida alcolica e o tabaco.

    Segundo Prandi (1990, p.5), a umbanda a

    religio dos Caboclos, boiadeiros, pretos velhos,

    ciganos, exus, pomba giras, marinheiros e crian-

    as. Para muitos adeptos da umbanda, ela a

    religio que mais incorpora elementos da cultura

    brasileira, ela absorve o sincretismo que caracte-

    rstico do universo afro brasileiro, e apresenta uma

    sntese das contribuies e contradies caractersticas

    dos grupos que formaram nossa sociedade. Atravs

    dessas caractersticas ela pode ser considerada uma

    religio moda brasileira (SILVA, 1994, pp.99 127).

    8 Doutrina fundada por Allan Kardec que cr na reencarnao.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena30

    Caro aluno, muito ainda se pode falar so-bre candombl e umbanda, mas como a proposta desse trabalho tratar de fragmentos da cultura afro-brasileira e indgena e no somente da religio espero que voc aprofundem seus conhecimentos nos materiais indicados.

    INDICAO DE LEITURA COMPLEMENTAR

    Voc viu nesse contedo um pouco a respeito das manifestaes religiosas afro-brasileiras que inte-gram essa cultura no Brasil. Para conhecer mais acerca do Candombl e da Umbanda leia Candombl e umbanda: caminhos da devoo brasileira.

    SILVA, Vagner Gonalves da. Candombl e Umbanda: caminhos da devoo brasileira. So Paulo: tica, 1994. A leitura do captulo 4 desse texto importante para que voc possa aprofundar seus conhecimen-tos a respeito do candombl e da Umbanda, nele voc pode conhecer a trajetria das mesmas e to-das as questes que as envolveram. Para conhecer toda a influncia e heterogeneida-de da religio afro-brasileira importante que voc leia o artigo, Do Calundu Colonial aos primeiros ter-reiros de candombl no Brasil: de culto domstico organizao poltico-social-religiosa.

    SANTOS, Ngila Oliveira dos. Do Calundu Colonial aos primeiros terreiros de candombl no Brasil: de culto domstico organizao poltico-social-religiosa. In Revista frica e Africanidade. Rio de Janeiro: n 1, ano I, maio, 2008, pp. 1 15.

  • 31Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Nesse artigo a autora discute a trajetria do candombl, desde os calundus domsticos aos ter-reiros de candombl, destaca tambm a persegui-o a tais manifestaes, seus aspectos polticos, culturais e identitrios.

    PARA REFLETIR

    Caro aluno, vimos de que forma a Legislao brasileira agia acerca da religio e da cultura afro-brasileira. E voc j sofreu ou conhece algum que foi vtima de preconceito religioso em sua comunidade? Ser que esse preconceito ainda interfere na vida dos cidados brasileiros? Discuta a esse respeito com seus colegas.

    1.3 Resistncias e permanncias dos elementos da cultura africana

    Caro aluno, no devemos nos esquecer que a cultura afro-brasileira afrodescendente e no podemos desconsiderar a histria do negro no Brasil.

    Desde o sculo XVI at meados do sculo XIX, milhes de negros africanos chegaram ao Bra-sil e com eles vieram seus deuses e seus costumes. Isso foi motivo de preocupao dos senhores de engenho que a todo custo tentavam desfazer esses laos culturais. Uma das primeiras medidas era a disperso dos grupos para evitar a sobrevivncia

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena32

    de suas culturas e, como j foi dito, havia o temor de que reunidos nos mesmos espaos, grupos com a mesma lngua e mesma cultura se articulassem para planejar revoltas, ou assassinatos de seus donos e feitores.

    No entanto, no demorou muito para que os escravos negros adaptassem sua religio s de seus senhores. Dessa forma eles uniram seus deu-ses aos santos da religio catlica, identificando-os e criando possibilidades de manterem nas senzalas a preservao de suas identidades. A associao dos santos catlicos com os orixs africanos de certa forma livrou os religiosos negros da perse-guio policial e da destruio de seus espaos de manifestaes. Foi graas ao sincretismo que datas comemorativas, a exemplo da festa de Iemanj, acontecem por todo Brasil. Essa manifestao religiosa j tradio na cultura brasileira e de certo modo ela sobrevive graas resistncia dos africanos.

    Uma forma que os negros encontraram para se organizarem levando em considerao suas origens foi as irmandades religiosas. Elas originaram-se na Europa no perodo Medieval e foram criadas com os objetivos de propagar a doutrina catlica e o de ca-ridade e a assistncia dos seus scios e familiares.

    Foto: Fernando Vivas |AG. A TARDE

  • 33Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Transplantadas para o Brasil elas serviram tanto ao branco europeu quanto ao negro africano, oriun-do das diversas regies daquele continente. Elas foram criadas por quase todo o territrio do atual Brasil. Com as irmandades chegaram tambm v-rias igrejas, visto que para as mesmas funcionarem era necessria a construo de espaos dedicados ao santo que cultuavam.

    A princpio as irmandades chegavam a funcio-nar em espaos emprestados de outras igrejas. Isso acontecia quando elas ainda no tinham espaos prprios, e era preciso a estruturao de seu templo e organizao de seus associados. Para que uma irmandade ganhasse direito legal, seus associados deveriam ter compromisso e dever que deveriam ser seguidos conforme a posio que ocupassem na mesma. Os direitos e deveres eram aprovados pelas autoridades eclesisticas e pelo rei, percebe-se que essas associaes religiosas de certa forma geravam uma rede de relaes.

    Mas como era mantida uma irmandade? O que era necessrio para tornar-se associado?

    As irmandades eram mantidas pelos seus associados elas foram elementos fundamentais no exerccio da religiosidade colonial caracteriza-da pelo culto aos santos, pelas devoes pesso-ais e pela pompa das procisses e festas (SOUZA, 2006, p. 84). Elas eram tambm marcadas pelas manifestaes grandiosas da f, na qual elementos sagrados e profanos andavam lado a lado. s espe-cificidades religiosas juntava-se o carter prtico e imediatista, que procurava consolo e solues para os problemas do cotidiano. Os santos eram vistos como interventores cujo pedido atenderia por meio da concesso de graas a seus devotos conforme seus merecimentos.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena34

    Para se tornar membro de uma irmandade era preciso pagar anualmente certa quantia no ingresso da mesma e outra anualmente, que era chamado de esmolas. A quantia dependia da irmandade, inclusi-ve do destaque que a mesma tinha na comunidade e de quem fazia parte dela. As chamadas esmolas mantinham os gastos com festas, missas dedicadas s almas dos irmos defuntos sepultados e demais despesas referentes associao.

    Desde cedo as irmandades eram divididas por categorias raciais e sociais. As pessoas eram agrupadas conforme a cor de sua pele e o lugar que ocupava na sociedade. Existiam aquelas com-postas somente por homens livres e outros por escravos. Havia tambm as destinadas aos bran-cos e outras apenas para os negros. Esse tipo de associao acumulava riquezas resultantes de le-gados testamentrios, ou seja, presentes para os santos de devoo. Algumas delas tinham casas de aluguel, emprestavam dinheiro a juros, entre outros. As consideradas mais ricas eram as do Santssimo Sacramento e as das Ordens Terceiras do Carmo e de So Francisco, formada por brancos (MATOS, 2007).

    Pode-se afirmar que no Brasil as irmanda-des de negros eram mantidas pelos negros libertos, pelos escravos de ganho e por doaes feitas por senhores que em alguns casos faziam acordos e doaes em nome da escravaria. Aquelas institui-es eram de certa forma instrumentos de controle e tambm um meio de manter os negros em conta-to com o catolicismo. Vale lembrar que as referidas instituies eram de origem europeia e foram dire-cionadas para a catequizao de ndios e negros, mas os africanos e seus descendentes conseguiram criar dentro delas um espao para cultivar suas cul-turas, pois nesses locais eles mantinham contatos com seus companheiros tanto de cor quanto de condio social. Elas tambm foram importantes na

  • 35Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    ajuda em momentos de dificuldades e na colaborao em compromissos de Carta de Alforria (MATOS, 2007).

    Nas irmandades de negros, as devoes eram sempre por santos negros a exemplo de Santa Efi-gnia e So Benedito. Dentre as mais populares era a de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos. A escolha dos santos pelos associados era realizada tanto pela cor da pele quanto pela sua origem, tambm eram incentivadas pelas mission-rias das ordens religiosas que divulgavam o culto aos santos negros para os escravos. Apesar das irmandades dos homens de cor serem compostas por negros, o branco em geral era bem recebido nessas associaes. Isso ocorria devido ao forneci-mento de contribuies maiores j que os mesmos detinham melhores condies financeiras. Outro fa-tor para essa aceitao era a de representatividade legal, eles ocupavam cargos que envolviam a escrita e a leitura, pois muitos negros no tinham esses conhecimentos, mas os principais cargos eram restritos aos de cor, que assim garantiam o con-trole poltico da irmandade (MATOS, 2007, p. 165).

    Como j foi citado acima os africanos e seus descendentes fundaram no Brasil suas irmanda-des. Em Salvador os de origem nag fundaram a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte criada na antiga Igreja da Barroquinha no sculo XVIII. A comemorao festiva alusiva Nossa Senhora da Boa Morte celebrada no dia 15 de agosto, para os catlicos nessa data comemorada a Assuno de Nossa Senhora.

    O culto a Nossa Senhora nunca significou para os nags a negao de seus orixs africanos. Os rituais misturam as oraes, as rezas de tero, as ladainhas, cnticos e procisses. Tambm aconte-cem comilanas, danas, missas solenes e cerimnias secretas, a exemplo do culto a Nan Buruku9.

    9 Divindade mais antiga das guas, rainha dos pntanos e me de Exu, na religio africana.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena36

    A irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos foi outra que ocupou destaque. Segundo registros, a primeira a ser criada no Brasil data de 1640 no Rio de Janeiro. Com quase trs sculos de existncia, ela um referencial para os movimentos de conscincia negra e apresenta uma tradio religiosa que remonta escravido.

    O principal momento da vida das irmandades sempre foi a realizao dos festejos santos, no caso dessa a inovao a Nossa Senhora. Na irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos fazia-se um rei ou uma rainha, todos os anos. A coroao dos mesmos acontecia nas festas das ir-mandades das quais faziam parte. Essa coroao era feita na Igreja e festejada com muitas danas e can-tos pelas ruas, ao som de instrumentos de origem africana. Segundo Souza (2006, p. 17) no dia da festa do santo, saam em cortejos que chamavam a ateno de todos, despertando em uns sentimentos de reprovao, em outros de curiosidade.

    Vale ressaltar que a autoridade desses reis era reconhecida pelos que o elegeram, geralmente lderes e membros da comunidade da qual faziam parte. Eles eram procurados no decorrer do ano, para resolver problemas entre seus membros ou envolvendo negros e seus senhores ou at mesmo com representantes da ordem colonial. Os africanos viam nesses reis temporrios a representao dos reis de sua terra de origem.

    A designao desses reis passou por algumas mudanas no decorrer dos sculos. At o sculo XVIII eram geralmente chamados reis de nao, por terem ascendncia sobre um grupo comum de africanos, a exemplo dos angolanos. J no sculo XIX eles passaram a ser chamados de rei do Congo, que agrupava todos africanos, sem levar em consi-derao suas diferenas de origem. Atravs do rei

  • 37Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Congo os negros afirmavam a identidade africana. Essa forma de organizao10 tambm era aceita pe-los dirigentes coloniais, que viam na rememorao ao reino do Congo Cristo um sinal da insero de modo pacfico dos negros da sociedade escravista brasileira (SOUZA, 2006, p. 17).

    Para que o rei Congo reinasse eram tam-bm eleitos vrios membros que ocupariam os cargos dentro da irmandade. Dentre eles destaca-ram-se juzes, capites, sargentos, alferes da ban-deira, meirinho, alm dos tradicionalmente ligados mesa administrativa da instituio. Todos esses cargos eram disputados entre os membros, o que certamente causava alguns conflitos entre os cha-mados irmos. importante citar que os reinos fes-tivos apresentavam caractersticas dos verdadeiros reinos portugueses e africanos. A diferena bsica que na frica os chefes exerciam o poder so-bre toda a comunidade e na sociedade escravista brasileira os reis eram aceitos como tal apenas no contexto da festa.

    Como se apresentavam os reis do Congo?

    Na coroao e desfile do rei e rainha do Congo era comum, os mesmos ostentarem luxo, a exemplo dos reis legtimos. Eles usavam mantos bordados com fios prateados e dourados, lantejoulas, coroas com detalhes em pedras e muito brilho e diademas resplandecentes. Toda essa representao era mui-tas vezes vista pelos senhores e seus representantes com ironia e descaso. Ao desfilar majestosamente, o rei Congo com sua rainha era seguido com msi-ca que representava o vigor musical dos africanos. Essas manifestaes musicais e de danas foram denominadas congadas e compem o folclore afro-brasileiro, ainda presente em vrias regies do Bra-sil, inclusive na cidade de Japaratuba11.

    10 O fato de os reis do Congo ainda em terras africanas terem adotado o catolicismo e os reis portugueses consider-los gover-nantes de um reino irmo teve peso na escolha dessa festas pelas irmandades.

    11 A coroao da rainha e do rei da Japaratuba no estado de Sergipe acontece durante os festejos de Santos Reis e So Benedito. A tradio remete s festas de Congada. O perodo festivo inicia no dia 25 de dezembro quando o grupo folclrico cacumbi ergue um mastro com a bandeira em louvor a So Bene-dito. Ela fi ca erguida at o encerramento das comemoraes. O auge das celebraes a So Benedito acontece com a procisso, na qual logo atrs da imagem do santo est o cacumbi e o rei e a rainha. A coroao acontece em frente matriz.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena38

    A coroao do rei e da rainha aconteceu com maior intensidade em lugares que receberam maior contingente de escravos, especialmente os de et-nias bantos a qual fazia parte os habitantes do Antigo Reino do Congo. A respeito da festa do rei do Congo pode-se afirmar que alm de ser fruto de contatos culturais ocorridos entre portugueses e os povos da frica Centro-Ocidental, ela foi uma instituio, constituda ao longo dos sculos de escravido, por meio da qual se organizaram as comunidades negras na sociedade colonial (SOUZA, 2006, p. 266).

    Vale lembrar que a resistncia dos elementos da cultura africana no Brasil no engloba somente a religio. Apesar de ela ser presente com grande intensidade nesse campo. Essa resistncia abran-ge a cultura em todos os seus aspectos. No pr-ximo contedo trataremos de elementos que se configuraram culturalmente no Brasil e que atual-mente fazem parte do que se convm chamar de cultura afro-brasileira.

    Foto: Acervo da prof. Elia Barbosa de Andrade.

    Cortejo da procisso de So Benedito com a presena do rei e da rainha seguindo para a coroao.

  • 39Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    INDICAO DE LEITURA COMPLEMENTAR

    Para saber mais sobre a coroao do rei do Congo leia o IV captulo do livro Reis negros no Brasil escravista: histria da festa de coroao do rei congo.

    SOUZA, Marina de Melo. Reis negros no Brasil escravista: histria da festa de coroao do rei congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. Nesse captulo a autora mostra como a coroao do Rei Congo surgiu e se configurou no mbito das ir-mandades religiosas. Mostra tambm a influncia de elementos da cultura africana na festa do Rei Congo.

    Para aprofundar seus conhecimentos sobre irman-dades de negros no Brasil leia o texto Histria e cultura afro-brasileira.

    MATOS, Regiane Augusto de. Histria e cultura afro-brasileira. So Paulo: Contexto, 2007.

    Esse texto discute a implantao das irmandades religiosas no Brasil e a influncia que as mesmas exerceram na religiosidade dos brasileiros.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena40

    PARA REFLETIR

    Voc viu como os negros escravizados desen-volveram formas de resistncia para manterem vivos alguns elementos de sua cultura aqui no Brasil. E como eles procuraram adaptar do seu senhor. Em sua opinio essa adaptao privilegiou a cultura do europeu ou do africano? Discuta suas reflexes com seus colegas.

    1.4 Das Senzalas para o Mundo

    Os escravos no Brasil foram colocados es-pecialmente no setor rural, onde trabalhavam em todas as etapas de produo das grandes proprie-dades e no servio domstico da casa-grande. Nos engenhos a moradia dos escravos contrapunha-se de seu dono. Enquanto a primeira contava com muitos cmodos e uma boa ventilao proporciona-da pelas vrias janelas que a circundava, a segunda geralmente com poucas divisrias e quase nenhu-ma janela no oferecia quase nenhuma privacidade aos seus moradores. Essa construo geralmente era feita base de barro e cobertas de sap, e as divisrias de palha tranada. Os utenslios de uso domstico eram sempre de barro cozido e a moblia resumida a esteiras, bas rsticos e tamboretes.

    J na casa grande, especialmente no sculo XIX, as grandes mesas e cadeiras eram o destaque nas salas onde eram servidas fartas refeies famlia e convidados. Mas o mobilirio de maior des-taque e zelo era sem dvida o oratrio domstico.

  • 41Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Nele eram colocadas as imagens dos santos prefe-ridos dos senhores e das sinhazinhas que ao redor deles faziam suas oraes e pedidos.

    Vale lembrar que em alguns engenhos alm do oratrio domstico havia as capelas onde eram rezadas missas e celebraes de batismo e casa-mentos, inclusive dos escravos. Afinal, os negros eram ensinados a cultuarem os santos catlicos e como vimos no contedo anterior foi desse catoli-cismo que os africanos, se apropriaram para adaptar a seus santos.

    Era comum aos domingos e dias santificados os escravos realizarem comemoraes em torno das senzalas. Nesses momentos a vigilncia era dobrada, pois eles podiam aproveitar-se da distrao dos feitores para realizarem fugas. O contexto tambm era apropriado para realizaes de manifestaes relacionadas sua cultura, para os escravos mante-rem tradies africanas como j foi citado, era uma maneira de preservar a cultura original e resistir dominao imposta pelos brancos.

    A resistncia cultura do branco foi o fator decisivo para que tivssemos atualmente a presena marcante dos elementos culturais africanos que enriquecem a cultura brasileira. A resistncia negra no est somente relacionada cultura, ela existiu tambm no que se referia aos maus tratos sofridos, seja no interior das senzalas, das casas-grandes ou no espao pblico onde os escravos eram casti-gados. Compreendemos que a relao entre senhor e escravo podia variar conforme os mesmos. Havia escravos mais rebeldes outros mais submissos, os mais preguiosos, os mais altivo enfim, como todo ser humano eles apresentavam caractersticas distintas em seus comportamentos.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena42

    O mesmo acontecia com os senhores, uns eram mais cruis e outros apresentavam certa hu-manidade com seus cativos. O fato que, na re-lao senhores/escravos um obedecia e o outro mandava. E para exercer o domnio recorria-se aos castigos fsicos e sofria menos os que aprendiam a se movimentar dentro das estruturas de opresso e controle da sociedade escravista (SOUZA, 2006, p. 17).

    Os escravos da casa, fossem no meio rural ou urbano, na maioria das vezes recebiam os cas-tigos nela mesmo, especialmente as negras que re-cebiam as punies de suas sinhazinhas. Os bolos de palmatrias, os puxes de orelhas e cabelos e at os mais cruis, a exemplo de quebra de dentes ou amputao de membros. O local do castigo dependia do senhor ou do grau de desobedincia do negro, geralmente a fuga era punida com o castigo pblico para que servisse de exemplo.

    A fuga foi o meio de resistncia mais utilizado pela escravaria. E graas a ela, muitos negros al-canaram a liberdade e criaram comunidades que legou a cultura brasileira elementos e descendentes12 para preserv-la. 12 Atualmente

    h vrios grupos descendentes das comunidades denominadas qui-lombolas que lutam pelo reconhecimen-to como herdeiros das mesmas. Seja pela retomada das terras nas quais elas foram formadas, ou pela preservao de elementos da sua cultura.

    Comemorao em homenagem ao Dia da Conscincia Negra em 2010, realizada por descen-dentes de ex quilombolas pertencente ao Quilombo D. Paquesa Piloto no povoado Caraibas no municpio de Canhoba (Se).

    Foto: acervo da professora Elia Barbosa de Andrade

  • 43Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Outras formas de resistncia escravido comum nas senzalas era o aborto, o mesmo era provocado atravs dos chs de ervas abortferas. O africano conhecia as ervas e no interior das senza-las preparavam a bebida que na maioria das vezes impedia o nascimento de mais um escravo, o que causava prejuzo para seu dono. Por isso, quando seu senhor ficava ciente do acontecimento punia as praticantes do ato, mas no era somente s ervas que as escravas recorriam para essa prtica, a magia e as oraes tambm foram utilizadas em conjunto com as ervas ou de forma isolada.

    O conhecimento de oraes e do eficaz poder das ervas13 chegaram s casas grandes pelas mos das escravas que, a pedido de suas sinhazinhas preparava-as s escondidas. Isso ocorria quando acontecia uma gestao indesejada, fosse pela trai-o conjugal ou pela concepo antes do casamento. Muitas foram as sinhazinhas que para fugir da fria de seus pais praticavam o aborto pelas mos de suas amas ou mucamas. O fato que o uso das ervas para provocar o aborto saiu das senzalas e ganhou espao na sociedade brasileira, e ainda nos dias atuais h mulheres que recorrem ao poder das ervas para esse ato.

    Alm da fuga e do aborto houve vrias outras formas de resistncia escravido, a exemplo dos assassinatos de feitores e senhores, o suicdio, a preguia e destruio das plantaes, mecanismos que nem sempre corresponderam s expectativas de seus praticantes, muitos foram os negros que descobertos em seu delito encontraram a morte ou o sofrimento provocado pelos castigos recebidos. O fato que no podemos acreditar que o negro aceitou de forma passiva a condio de escravo.

    13 O conhecimento das ervas no foi unicamente dos africanos, como veremos no prximo tema desse texto, o ndio tambm dominava esse conhecimento.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena44

    Ao nos reportarmos novamente s senzalas, podemos afirmar que, foi l onde seus habitantes convivendo com as variadas origens africanas cria-ram e recriaram manifestaes de hbitos, muitos deles apropriados no somente pelos afros des-cendentes, mas por todos brasileiros independen-te da cor da pele ou da classe social. As danas realizadas no entorno delas, a princpio, era vista pelos brancos colonizadores como imorais. Sempre ao som do batuque, as danas dos negros envol-viam movimentos lascivos nas quais eram comuns as umbigadas. Essas manifestaes s vezes eram interrompidas por ordem dos senhores que se sen-tiam incomodados pelo barulho.

    A primeira dana dos negros que se tem re-gistro foi o lundu14, a referncia a essa dana data 1780 na documentao de denncias ao Tribunal de Inquisio. O documento descreia o lundu como uma dana indecente que feria a moral e os bons costumes da sociedade moralista da poca. A partir da denncia essa manifestao passou a ser per-seguida pelas autoridades coloniais. No incio ela era praticada pelos negros em rodas de batuque nas senzalas ou nas proximidades, posteriormen-te ganhou o espao pblico no sculo XIX e virou dana de salo com feio brejeira. Por fim originou novas formas a exemplo do maxixe e a modinha.

    O lundu tornou-se o primeiro dos gneros afrodescendentes da cano popular e legou sociedade brasileira caractersticas importantes. Atualmente uma manifestao popular bastante apreciada na Ilha de Maraj e no Maranho, prin-cipalmente em So Lus. A dana realizada por homens e mulheres usando trajes com estampas alegres e coloridas, que requebram ao som das palmas, tambores, atabaques, pandeiros e bando-lins. Assim, o lundu das senzalas galgou os sales da mdia burguesia e chegou a ser considerado dana refinada.

    14 Essa dana originria de Angola e Congo e foi trazi-da pelos escravos nos primeiros anos da escravido no Brasil.

  • 45Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Vimos que os africanos que chegaram ao Brasil eram constantemente alvos de castigos dos seus senhores. Quando eram pegos em fugas so-friam castigos extremamente cruis. A eles no era permitido nenhum tipo de luta, logo ento eles passaram a utilizar os ritmos e os movimentos de danas de sua terra para adaptar a um tipo de luta. Assim teve incio a capoeira, que era naquele contexto uma luta disfarada de dana. Essa arte tornou-se um instrumento de resistncia tanto cul-tural quanto fsica dos escravos brasileiros.

    Era nas senzalas e seus terreiros que a pr-tica da capoeira acontecia. Tambm ocorria ao ar livre em meio s plantaes ou nos campos em meio s rvores nas chamadas capoeiras e que deu origem ao nome da luta. Ela foi proibida durante muitos anos passando a ser praticada na clandesti-nidade. Somente no ano de 1930 foi permitida por lei, a proibio era justificada pelas autoridades pelo carter violento e subversivo a ela atribuda. Quando os capoeiras eram denunciados sofriam perseguies policiais, muitos deles foram encar-cerados por desobedecer a lei. Porm o presidente Getlio Vargas (1882-1955) assistiu uma apresentao do mestre Bimba15 (1900-1974) e gostou tanto que tirou a arte da clandestinidade.

    A capoeira atualmente resultante de adap-taes que no decorrer do tempo proporcionaram a mesma uma caracterstica genuna da cultura afro-brasileira. Essa manifestao alvo de discusses que dizem respeito sua origem, h os que defen-dem a origem angolana, outros que a evocam como genuinamente brasileira. O fato que h elementos africanos que foram unidos aos brasileiros, logo ela uma manifestao afro-brasileira e sem dvida representou a resistncia dos escravos, que saiu das senzalas e conquistou espao no somente no Brasil, mas na esfera mundial.

    15 Manuel dos Reis Machado nasceu na Bahia e faleceu em Goinia.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena46

    Nem s de trabalho, danas e castigos viviam os negros. A culinria brasileira riqussima no que se refere s misturas de ingredientes de origens distintas. Ao chegar no Brasil os negros africanos encontraram alimentos produzidos tanto pelos nati-vos, a exemplo do milho e da mandioca, como pelo branco conquistador. A influncia africana nas comi-das brasileiras chama ateno em dois aspectos: a maneira como preparada e a introduo de ingre-dientes. As receitas africanas foram recriadas pelos negros pela habilidade que os mesmos tinham para improvis-las, e pelo gosto que tinham pelos temperos. O intercmbio comercial entre o conti-nente africano e o Brasil possibilitou a chegada de produtos que se adaptaram as terras brasileiras, a exemplo do inhame, da erva-doce, do quiabo, do dend, do gergelim e de algumas pimentas.

    Esses ingredientes, especialmente os temperos, misturados ao milho, mandioca, ao amendoim e outros alimentos, resultaram em receitas que agra-dam o paladar dos brasileiros seja ele descendente do branco europeu, ndio ou africano. No deixando de lado os produtos asiticos como o coco que tambm foi introduzido na culinria brasileira, que so indispensveis no preparo de pratos conside-rados afro-brasileiros. As receitas podiam surgir pelas mos de negros tanto na senzala quanto na cozinha da casa-grande, onde eram testadas at chegar ao ponto aceito pelo paladar das suas sinhs e senhores.

    claro que na senzala as misturas dependiam do que era disponibilizado pelo senhor, geralmente algumas sobras da casa-grande eram aproveitadas e, a partir delas surgiam novas receitas. certo tambm que os escravos tinham na base alimen-tcia uma diversidade menor de alimentos. Sendo constantes os angus de milho e os caldos engrossados com farinha de mandioca. O feijo quando chegava

  • 47Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    senzala era em quantidade insuficiente e de pssi-mo aspecto. Em alguns dias era permitido ao negro o consumo de frutas do pomar da propriedade de seu dono, a laranja era a mais servida. No porque o senhor quisesse agrad-los, mas por saber que era importante para a sade da escravaria e eles deviam estar bem para executarem suas tarefas.

    J na cozinha da casa-grande os temperos propiciavam o cheiro das comidas preparadas com esmero pelas pretas velhas. Elas dividiam o tempo entre o preparo das refeies e o das guloseimas para agradar os sinhozinhos e as sinhazinhas. Do caf da manh ceia noturna eram elas que agu-avam o apetite dos moradores da casa-grande. A culinria das negras tornou-se atrativa e foi citada por viajantes europeus que degustavam as iguarias de forma prazerosa.

    Os dotes culinrios das negras escravas ou libertas contribuiram para que muitas delas fossem conduzidas aos centros urbanos para se dedicarem arte de cozinhar. E era comum nas vias pbli-cas moleques, mulheres ou homens na condio de escravos de ganho, vender as guloseimas e os chamados quitutes. Dentre os pratos africanos que se impuseram na mesa patriarcal, e firmaram-se no decorrer dos tempos destacou-se o caruru e o vatap. Esses alimentos foram introduzidos na culinria bra-sileira pelos escravos islamizados e deu origem a uma figura que j faz parte da cultura afro-brasileira, a baiana.

    No era estranho tambm, negras livres fabri-carem doces e sair s ruas para vend-los. Elas exi-biam seus tabuleiros repletos de doces enfeitados e recortados de variadas formas, sempre protegidos

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena48

    por toalhas alvas (FREYRE, 1998). Essa prtica tor-nou-se uma tradio de um grupo de mulheres que passaram a sustentar a si e aos seus dependentes. Elas ficaram conhecidas como as doceiras e manti-nham em segredo suas receitas. O sigilo a respei-to da culinria era comum tambm na casa-grande onde as sinhs serviam mesa aos convidados, mas procuravam guardar somente para si e suas cozinheiras as quantidades exatas dos ingredientes que a compunham.

    Diante de tudo que conhecemos sobre o africano nos processos histricos da sociedade brasileira podemos concluir citando uma frase do historiador Alberto da Costa e Silva (2002, p.163) o africano justaps ou superps as suas formas culturais s que provinham da Europa. O mais comum, porm, foi a mescla dos valores africanos com europeus e os amerndios .

    INDICAO DE LEITURA COMPLEMENTAR

    Para conhecer mais acerca da resistncia dos escravos leia As resistncias escravido.

    SOUZA, Mariana de Melo e. As resistncias escravido. In: frica e Brasil africano. Rio de Janeiro: tica, 2006, pp. 97 124.

    Nesse captulo a autora trata da capoeira e sua adap-tao como luta e dana no Brasil, mostra tambm a maneira como os negros resistiam aos abusos de seu senhor. Por fim, o que representa a cultura afro-brasileira na sociedade contempornea.

  • 49Tema 1 | Cultura Afro-Brasileira: infl uncia e resistncia

    Para saber mais sobre manifestaes culturais dos negros leia Manifestaes culturais afro-brasileiras. SOUZA, Mariana de Melo e. Manifestaes Culturais afro brasileiras. In: frica e Brasil africano. Rio de Janeiro: tica, 2006, pp. 32 40. Nesse captulo a autora discute a presena dos traos africanos na cultura contempornea. Na msica, nas danas e nos ritos religiosos, e toda a mescla de valores das culturas africanas e europeia.

    PARA REFLETIR

    Voc viu que muitas prticas culturais contempor-neas so frutos da mistura de elementos da cultura africana. Voc acredita que as prticas de descen-dncia africana, devido a sua fuso com as prticas europeias, perderam sua africanidade? Discuta com seus colegas suas reflexes.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena50

    RESUMO

    Neste tema voc entrou em contato com alguns conhecimentos acerca de cultura e de como ela se apresenta nas diversas sociedades. Tratamos tam-bm de fragmentos da cultura africana e de sua importncia para a cultura brasileira. importante que o legado africano seja visto como uma das matrizes da cultura brasileira. A fuso de elementos da cultura europeia com a africana possibilitou ma-nifestaes religiosas que j fazem parte da nossa cultura. A resistncia dos negros e suas estratgias para manter vivo alguns traos de sua cultura que viabilizou a diversidade no s na religio, mas em nossos costumes, em nossas danas, em nos-sa culinria, em nossa msica, enfim, em todos os segmentos culturais da nossa sociedade. E foi essa mistura de elementos que deram origem ao que chamamos de cultura afro-brasileira.

  • Os Indgenas no Brasil2Caro aluno, nesse tema apresentaremos fragmentos acerca da

    histria e da cultura do ndio no Brasil. No contedo 1 estudaremos as representaes que se formarem a respeito do ndio e de sua cultura e como essas representaes foram passadas de gerao gerao. No contedo 2 mostraremos as relaes entre padres espe-cialmente os jesutas e os ndios. O trabalho missionrio e as ques-tes relacionadas ao tratamento dado aos indgenas tambm sero abordados nessa parte de nosso material.

    O trabalho dos missionrios jesutas no Brasil pode ser dividido em dois ciclos: o primeiro corresponde ao momento inicial da misso realizada nas reas litorneas, o segundo ciclo da misso acontece na regio dos sertes e o terceiro que se volta para a regio ma-ranhense onde os padres procuram dar continuidade s misses. A aculturao e a resistncia dos ndios ao domnio do homem branco o alvo do contedo 3 Nessa parte podemos perceber que apesar das mudanas que aconteceram na sua cultura, o ndio no aceitou pacificamente as mudanas de seus costumes.

    Por fim no contedo 4 estudaremos a tutela e pacificao dos ndios. A ideia de incapacidade dos povos nativos sempre foi a justi-ficativa para que o branco criasse mecanismos de controle do ndio e de suas terras. Mostramos tambm de que forma a atual constituio brasileira trata a questo indgena na atualidade.

    Vamos ento com bastante entusiasmo comear a leitura de nosso material.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena52

    2.1 Representaes acerca dos indgenas nos contextos histricos

    Para falarmos sobre ndios no Brasil e a re-presentao que tiveram nos processos histricos necessrio que tenhamos conhecimento de alguns fragmentos a respeito desses povos. Especialmente nos primrdios do contato com o europeu. Ao apor-tarem s costas brasileiras, os navegadores pensa-ram que haviam chegado ao paraso terrestre, um local primaveril onde os que a habitavam viviam na mais completa inocncia.

    Neste lugar o estrangeiro era o novo Ado e, como tal, batizaram os lugares que encontravam atribuindo-lhes sempre nome de santos e de acor-do com o santo do dia.

    Assim que surgiu a Baa de Todos os San-tos, Monte Pascoal e tantos outros. Essa aluso aos santos vista por estudiosos como um batismo que antecedeu ao dos gentios. H estimativas de que no ano da chegada da esquadra de Cabral em 1500 havia cerca de 5 milhes de pessoas habitan-do as terras que atualmente chamamos de Brasil.

    Essa quantidade bem distinta da populao indgena que compe atualmente o territrio brasi-leiro. Segundo dados estatsticos, hoje corresponde a pouco mais de 700.000 pessoas. Esses dados merecem uma reflexo que de certo nos conduz a alguns questionamentos. Dentre eles, por que houve tal reduo e o que causou a morte de tantos nativos?

    A histria atravs de seu testemunho mostra que os ndios foram vtimas de tragdias ocasionadas pelos colonizadores. Dentre elas destacam-se a es-cravido, as guerras, as doenas, os massacres, genocdios, etnocdios e vrios outros males que

  • 53Tema 2 | Os indgenas no Brasil

    quase eliminaram a populao nativa do Brasil. No queremos com isso afirmar que as guerras eram algo desconhecido dos ndios, pelo contrrio, eles j pra-ticavam constantes guerras entre tribos, mas a guer-ra que o conquistador europeu imps fazia parte de um projeto com pretenses de dominao aqual o ndio desconhecia, pois s tinham conhecimento das experincias resultantes dos conflitos intertribais e interlocais.

    Assim, pode-se afirmar que o contato com o homem branco que modificou culturalmente e quase eliminou os povos indgenas. Foram as ex-perincias dos impactos violentos impostos pelos conquistadores que operaram grandes mudanas socioculturais, que enfraqueceram toda a dinmica da vida tradicional (LUCIANO, 2006). Todavia, essas transformaes no ocorreram sem que houvesse resistncia por parte dos nativos. Trataremos desse tema no contedo 3 desse texto.

    Em 1500 os ndios que habitavam o territrio correspondente ao atual Brasil estavam divididos em tribos de acordo com o tronco lingustico16 ao qual faziam parte: tupis-guaranis (litoral), macro-j ou tapuias (planalto central), aruaques (Amaznia) e carabas (Amazonas e norte do planalto mato-grossense). Essas tribos dividiam-se em aldeias ou tabas, diviso que mesmo separados mantinham os mesmos costumes. Nesse modo de organizao havia uma diviso na qual se destacava o cacique que chefiava os guerreiros e o paj. O primeiro ocupava-se das guerras e dos contatos de paz, o segundo era uma espcie de curandeiro ou l-der religioso, tambm responsvel por ensinar as tradies.

    16 Trataremos da lngua indgena a seguir.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena54

    Apesar de essas tribos apresen-tarem algumas diferenas, a exem-plo do canibalismo17, elas tinham em comum a crena nas foras so-brenaturais que representavam o

    bem e o mal. Seus deuses estavam relacionados natureza18.

    Sabemos que os ndios, assim como os negros africanos, foram alvos de preconceito cons-trudos historicamente na sociedade brasileira. Temos clareza tambm que esse preconceito ainda se faz presente at os dias atuais. Ento vamos conhecer as representaes a respeito do ndio.

    Historicamente eles foram objetos de vrias imagens e conceitos, por parte dos no ndios. Essas vises esto relacionadas aos comporta-mentos, s capacidades, natureza e lgica es-piritual das mesmas. Para alguns catlicos europeus eles no tinham alma, outros tinham dvida quanto natureza humana, pois mais pareciam animais selva-gens. Essas so algumas concepes, predominante na Europa Ocidental, e que pautou as relaes entre ndios e brancos no Brasil desde a chegada de Cabral.

    A discriminao contra o ndio gerou uma srie de contravenes e ambiguidades que povoaram o imaginrio de grande parte dos brasileiros que, im-budos dos princpios evolucionistas, considerou a

    17 Prtica de comer carne humana, existente em algumas tribos.

    18 O trovo, a lua, o relmpago, o sol, entre outros.

  • 55Tema 2 | Os indgenas no Brasil

    cultura indgena como inferior, cuja nica perspec-tiva a integrao e a assimilao cultura global (LUCIANO, 2006, p. 34). O preconceito contra o n-dio e sua cultura diz respeito ao desconhecimento de seu mundo, enquanto a sociedade dita civili-zada no conhecer de fato esse povo no haver democracia racial, cultural e poltica e eles continu-aro sendo vtimas de preconceitos.

    As atitudes contraditrias tanto quanto o preconceito aos povos indgenas atualmente re-sumiu-se em trs perspectivas sociais. A primeira est relacionada representao romntica criada pelos cronistas, romancistas e intelectuais, desde a chegada de Cabral e perdura at os dias de hoje. Nessa viso o ndio est ligado natureza, prote-tor das florestas, ingnuo, pouco capaz ou incapaz para compreender o mundo do branco com suas regras e valores (LUCIANO, 2006, p. 35).

    Essa representao foi construda num mo-mento histrico em que os valores do romantismo impregnavam os literatos brasileiros. Eles se vol-taram para a natureza, o extico to exuberante em nosso pas. Esses elementos associados ao nacionalismo caracterstico do estilo romn-tico, apoiaram-se no indianismo criando um modelo de heri que se adaptava para representar a tradio de um pas sem sagas exemplares. O ndio foi convertido num heri imagem do cavaleiro medieval. Essa imagem representa na condio de pri-meiros habitantes, o smbolo da nacionalidade brasileira, e sua imagem positiva fornece s elites certo orgulho de uma ascendncia nobre, e contribui na legitimao do poder no Brasil independente. Essa representao ignorou tudo que se referia de fato verdadeira cultura indgena.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena56

    Escritores passaram a representar e apresentar em seus trabalhos o fruto de suas criaes a exem-plo do Guarany de Jos de Alencar e tantos outros que em diferentes etapas do Romantismo no Brasil dedicaram seus escritos ao indianismo. importante lembrar que na representao dessa perspectiva ins-titucionalizou-se a percepo do ndio como vtima, um coitado que necessita de proteo.

    Na segunda perspectiva tm-se a viso do ndio cruel, brbaro, animal selvagem, canibal, pre-guioso, traioeiro e vrios outros adjetivos depre-ciativos. Essa viso formou-se tambm a partir da chegada do europeu no Brasil e est relacionada s questes econmicas. As denominaes procura-vam justificar a escravizao e os massacres impos-tos aos nativos, como autodefesa dos interesses da Coroa Portuguesa. Essa diviso permanece sendo defendida por grupos capitalistas que tm preten-ses de se apropriarem dos territrios indgenas e de suas riquezas naturais.

    Os massacres aos ndios foram desde o incio da colonizao uma forma de apropriao de suas terras. Os que no morriam em combate, ou fugiam para regies distantes ou eram escravizados. Essas fugas proporcionavam ao conquistador a posse de vastos territrios transformados em propriedades monocultoras, as quais abrigariam o regime escravis-ta no Brasil. As terras indgenas tambm foram teis aos criadores de gado, que soltavam seus rebanhos tanto nas regies ribeirinhas quanto nos sertes.

    Atualmente os ndios ainda so tratados por muitos grupos como um empecilho ao desenvol-vimento e progresso da economia brasileira. Isso ocorre pelo fato de os indgenas no aceitarem submeter-se explorao dos mesmos. As crticas tambm esto relacionadas intolerncia cultural da qual o ndio sempre foi vtima.

  • 57Tema 2 | Os indgenas no Brasil

    A terceira perspectiva est pautada numa viso mais cidad, cuja amplitude coincide com o recente processo de redemocratizao do Brasil, a promulgao da Constituio de 1988, que crista-lizou uma viso na qual os ndios so concebidos como sujeitos de direitos e, portanto, de cidada-nia. Essa cidadania baseada em direitos espec-ficos, que resultou numa cidadania plural, atravs da qual eles ganharam o direito de preservar seus modos de vida, suas culturas e seus valores. E lhe concedido tambm o direito19 de acesso a outras culturas, s modernidades tcnicas, enfim, a outros valores de mundo.

    Teoricamente, esse direito e essa pluralidade cidad indica que os povos indgenas tm um direi-to jurdico diferenciado. Por exemplo,

    concedido a eles o direito de terra coletiva sufi ciente para a sua produo fsica, cultural e espiritual, de educao escolar diferenciada baseada nos seus prprios processos de ensino-aprendizagem e produo, repro-duo e distribuio do conhe-cimento (LUCIANO, 2006, p, 36).

    Percebe-se que apesar de os povos indge-nas ainda serem vtimas de descaso e preconceito algumas mudanas j so visveis no que se refere s representaes a eles deferidas. A opinio pbli-ca brasileira j expressa um determinado grau de conscincia de que os povos indgenas so de fato um dos pilares da nossa sociedade e uma importan-tssima referncia da identidade do povo brasileiro.

    O reconhecimento do ndio como cidado brasileiro, e a valorizao de sua cultura, viabili-zou uma nova conscincia tnica nos mesmos. Ser ndio passou a ser sinnimo de orgulho identitrio,

    19 Fragmentos dos Direitos Indgenas na Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Seo II Da Cultura Artigo 215 O Estado garantir a todos o pleno exerccio de direitos culturais e acesso s fontes da cultura nacional, e apoiar a valorizao e a difuso das manifes-taes culturais. 1. O Estado proteger as manifestaes indgenas.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena58

    o qual ele passa de uma genealidade social para uma expresso sociocultural de destaque no pas. O ndio tratado como sujeito de direito na sociedade, o que representa um marco na histria do ndio bra-sileiro. Aps cinco sculos de dominao e represso cultural na atualidade eles tentam reiniciar e retornar suas identidades, atravs do resgate de suas tradi-es culturais e da reivindicao de suas terras.

    Diante das representaes acerca do ndio no Brasil uma questo nos chama a ateno. Como o livro didtico representou e representa o ndio?

    Sabemos que o livro didtico um instru-mento importantssimo na construo do iderio do alunado tanto no espao da sala de aula quan-to em seu universo letrado. Seus textos e imagens passam ideias a respeito de como a sociedade constitui-se e se transformou no decorrer dos pro-cessos histricos. Atualmente os manuais escolares procuram valorizar a nacionalidade que tem suas origens na diversidade de trs raas: ndios, bran-cos e negros. No entanto, basta uma leitura mais criteriosa dos mesmos para detectar a dificuldade que os autores apresentam em lidar com a presen-a das diferenas tnicas e sociais no Brasil atual.

    O ndio mostrado sempre como aquela imagem produzida nos primeiros sculos de colo-nizao mostrada pelos cronistas, viajantes e mis-sionrios. A imagem do ndio inocente sempre em contato com a natureza, apresentando enfeites e uma bela pena de ave na cabea. Essa a imagem congelada do ndio descrito no primeiro contato com o conquistador. Outra representao a do ndio selvagem praticando a matana e o caniba-lismo. E por fim a do ndio massacrado em suas aldeias, ou seja, essas representaes jogam os in-dgenas no passado. Isto no prepara o aluno para compreender as informaes das mdias a respeito dos ndios nos dias atuais.

  • 59Tema 2 | Os indgenas no Brasil

    Outra referncia que no contribui para a con-textualizao atual do ndio pelo aluno a do n-dio genrico, na qual ele apresentado de forma homognea. Como vimos nesse contedo ele tem caractersticas em comum, mas so extremamen-te diversificados em sua cultura. Enfim, podemos afirmar que os manuais escolares ainda ignoram as pesquisas histricas e antropolgicas relacionadas ao conhecimento do outro, dando preferncia s formulaes esquemticas de modelos ultrapassados.

    INDICAO DE LEITURA COMPLEMENTAR

    Para conhecer mais sobre a representao do ndio no livro didtico leia ndios: passado, presente e futuro.

    MARI, Donisete Benzi. ndios: passado, presente e futuro. So Paulo. Grupo de Educao Indgena/ USP. . Acesso: 10 de jan. de 2011.Esse artigo discute a representao que os livros didticos mostram acerca dos ndios. No texto so tratadas tambm as contradies a respeito dos indgenas nos diferentes processos histricos.

    Para conhecer mais a respeito do ndio no imagin-rio do europeu leia O imaginrio colonial.

    FREIRE, Carlos Augusto da Rocha; OLIVEIRA, Joo Pacheco de. A presena indgena na formao do Brasil. Braslia: MEC/ Unesco. Coleo Educao Para Todos, 2006, pp.25-31.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena60

    Nessa parte do livro o autor tenta mostrar a maneira como o ndio era tratado no imaginrio da sociedade colonial brasileira. Tambm discute o modo como foi disseminada a ideia de selvagem e inocente atribuda aos ndios nos diferentes momentos histricos.

    PARA REFLETIR

    Caro aluno, espero que voc tenha entendido o modo como o ndio visto pela sociedade e a maneira como ele foi representado no campo inte-lectual. E voc, qual a concepo que tem a res-peito dos indgenas na atualidade? Discuta com seus colegas suas reflexes.

    2.2 Padres e ndios: o trabalho missionrio

    Caro aluno, neste contedo trataremos da relao padres/ndios. Mostraremos de que maneira foi implantado o trabalho dos padres jesutas na Colnia portuguesa na Amrica. O contato entre povos de culturas to distintas aconteceu no momento em que o europeu procurava expandir seus domnios, impondo-se aos povos considerados por eles brbaros. Nesse sentido, a misso jesuta prestou grande auxlio ao Estado europeu. Foram eles com seus ensinamentos fundamentados no catolicismo que se encarregaram de aculturar os habitantes da nova terra. No trabalho missionrio tornaram-se figuras contraditrias, horas protegendo, horas explorando-os.

  • 61Tema 2 | Os indgenas no Brasil

    O relacionamento entre padres e ndios variou conforme as caractersticas de ambos e o momento em que ocorreram as relaes. Ao chegar a terras braslicas o europeu deparou-se com um mundo que a ele causou admirao. Tudo que o rodeava era inteiramente desconhecido. A fauna e flora da nova terra causavam-lhe fascnio, mas a surpresa maior foi a viso dos habitantes que nela viviam. A apario desses seres em meio s flo-restas gerou sentimentos contraditrios no branco europeu. Em momentos acreditava estar num para-so, noutros pensava estar rodeado de selvagens. Como vimos no contedo anterior desse tema, foram essas vises que originaram a representao a respeito dos ndios.

    Acerca da empreitada missionria no Brasil pode-se afirmar que teve incio com a chegada dos primeiros padres jesutas em 1549, chefiados por Manuel da Nbrega20,(1517-1570) que se fixaram no litoral, deslocando-se posteriormente para o inte-rior. Ao se lanarem ao Novo Mundo tinham como tarefa religiosa expandir o cristianismo, o que ocor-reria com a converso dos ndios religio catlica. A vinda dos mesmos colnia representava para o governo portugus um meio no s de converter, mas tambm abrandar o esprito selvagem do gentio.

    A ao missionria definiu o direito de padroa-do na organizao das misses religiosas no Brasil Colnia. Atravs desse direito a Igreja era sub-metida ao Estado Portugus, era uma espcie de funcionrio, e a Igreja funcionava como depar-tamento do reino, representando a religio catlica como oficial. Assim coube ao rei e a outras ins-tncias catlicas do Estado a definio da poltica religiosa para o Brasil.

    20 A Companhia de Jesus foi criada em 1534, por Incio de Loyola.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena62

    A catequese deveria gerar as possibilidades de uma rpida expanso do sistema colonial. Com esse objetivo foram instalados conventos, colgios e igrejas para disseminao dos smbolos religio-sos a exemplo dos cruzeiros e dos oratrios. Essas instalaes viabilizaram a institucionalizao das ordens religiosas e possibilitaram a ao dos mis-sionrios junto aos aldeamentos indgenas (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 47).

    A conquista, o combate e a dominao faziam parte da evangelizao dos gentios. A conquista das tribos representava em teoria a dominao, fosse pelo combate fsico caso houvesse resistncia, ou por fins pacficos, pois havia tambm mecanismos contemporneos que em vrios momentos serviram de meios para efetuao do projeto colonial. Den-tre eles a conquista de pores territoriais, inclusive de tribos rivais, pagamento de salrios ou proteo contra tribos inimigas.

    A evangelizao dos gentios podia ser realiza-da nas prprias aldeias nativas atravs das visitas dos padres, nas misses, aldeamentos organizados pelos padres em colgios jesutas. O colgio criado por Jos de Anchieta (1534-1597) e outros jesutas em 1554 no Planalto de Piratininga, regio da atu-al cidade de So Paulo representou um marco na catequizao e ensino na Colnia, vale citar que as primeiras instituies de ensino jesutas eram pre-crias, barraces de taipa com poucos mobilirios onde os smbolos da Igreja Catlica ganhavam des-taque. Era ento entre a cruz e a imagem de santos que os curumins aprendiam os ensinamentos catlicos.

    Mas como os padres comunicavam-se com osndios?

  • 63Tema 2 | Os indgenas no Brasil

    A adoo de intrpretes ou o aprendizado do idioma indgena foram estratgias do empregadas pelo projeto missionrio. Isso permitia o ensino do evangelho aos indiozinhos, eles eram educados tambm atravs dos cantos religiosos e de prticas litrgicas, um dos instrumentos pedaggicos utili-zados pelos jesutas foram os catecismos, estrate-gicamente o ensino das letras estava relacionado catequizao, que por sua vez impunha aos nativos, disciplina e submisso.

    A imposio do catolicismo e da disciplina aos ndios ia de encontro a costumes e prticas milenares. Frequentemente eles recusavam-se a aprender os novos ensinamentos, muitos deles abandonavam os aldeamentos e buscavam no refgio das matas a liberdade para viver a seu modo. A fuga no era apenas a resistncia ao cristianismo, mas a dificul-dade que tinham em abandonar seus costumes.

    Essa atitude contribuiu para que os jesutas Manuel da Nbrega e o prprio Jos de Anchieta alterassem suas prticas. A princpio eles no acei-tavam a escravido indgena, posteriormente passa-ram a acreditar que somente aps a sujeio seria possvel a converso.

    A sujeio de ndios tupiniquins, por exemplo, foi resultante da aliana entre o governo de Mem de S (1500-1572) e Nbrega. Aps essa sujeio foram construdos 11 aldeamentos para abrigar e por que no dizer domesticar a modos cristos os gentios do sul da capitania da Bahia. Nesses locais procuravam difundir uma concepo crist do tra-balho, enquanto procuravam fugir da dependncia do padroado. O aumento das populaes aldeadas propiciou a implementao da produo agrcola nas terras das misses, o que viabilizou a expanso da catequese e diminuiu a dependncia dos padres em relao Coroa.

  • Cultura Afro-Brasileira e Indgena64

    As atividades agrcolas e a pecuria, nos aldeamentos das misses, eram mantidas pela mo de obra indgena, o que causava revoltas nos colonos que acusavam os padres de defenderem os ndios da escravido, mas eles prprios se apro-veitavam de seu trabalho. Graas a essa produo os jesutas puderam integrar o circuito mercantil colo-nial. Alguns desses missionrios dominaram exten-sas reas de terra e outros bens, como centros de ensino. A deteno desses bens materiais e o po-der que eles adquiriram causaram desconfiana nos dirigentes metropolitanos que os acusavam de ali-mentarem projetos contrrios poltica colonial21.

    O trabalho catequtico dos jesutas do sculo XVIII pode ser dividido em trs ciclos: litorneo, ser-tanejo e maranhense. O primeiro ciclo colocou os missionrios frente aos povos que viviam no litoral brasileiro, a exemplo dos tupinambs. Vale ressaltar que as misses nesse perodo no foram de controle nico dos jesutas, mas tambm dos franciscanos e dos carmelitas que foram mais submissos ao projeto expansionista do sistema colonial. Esses chegaram a apoiar as guerras e a escravido indgenas, os francis-canos integraram as bandeiras de prao de ndios e no nordeste e na guerra contra os potiguaras no ano de 1585 (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 48).

    O ciclo da ao litornea foi marcado por caractersticas que demarcaram a ao missionria no Brasil. Como j foi citado acima houve um es-foro por parte dos padres para dominar a lngua tupi. O prprio Jos de Anchieta elaborou em 1595 a primeira gramtica do Tupinamb ou como tam-bm foi chamada a primeira gramtica braslica e o estabelecimento de um sistema de aldeamento no qual era definido: normas de trabalho, convivncia,

    21 Com a alegao de que pretendia separar os interes-ses do estado dos objetivos religiosos o Marqus de Pombal, primeiro ministro portugus, em 1759 expulsou os jesutas dos territrios portu-gueses.

  • 65Tema 2 | Os indgenas no Brasil

    costumes, leis internas, r