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Cultura afro-religiosa e regionalismo na obra musical de Ari Lobo e de Raymundo Satyro
de Mello1
Antonio Maurício Dias da Costa
UFPA/Pará, Brasil
Duas trajetórias consecutivas. Dois artistas negros paraenses do século XX que buscaram
o meio musical do Rio de Janeiro como trampolim para o sucesso nacional. O primeiro: Raymundo
Satyro de Mello, compositor e instrumentista do município de Cametá, radicou-se no Rio de Janeiro
em 1929, onde se dedicou a intensa atividade musical até 1957. O segundo: Ari Lobo, cantor e
compositor nascido em Belém, revelado no rádio paraense nos anos 1950. Transferiu-se para o Rio
de Janeiro em 1955 e iniciou uma profícua carreira de artista da “música nordestina” ao longo dos
anos 1960 e 1970. Duas carreiras que tomaram como base o centro de atuação dos meios de
comunicação no Brasil ao longo do século XX e que convergem para um campo em comum: a
produção musical associada à expressão regional e a conteúdos culturais afro-religiosos e populares.
Este texto aborda a conformação de uma via de acesso ao sistema de estrelato da música
popular, particularmente para artistas negros oriundos das classes populares. Isto é feito por meio
do estudo de aspectos da trajetória dos dois artistas em foco. Estes, ao lado de intelectuais,
empresários e gestores públicos, foram interlocutores fundamentais na constituição dos significados
relacionados à conformação do campo da música brasileira popular, relacionada ao mercado de
bens culturais, ao longo do século XX. A produção musical popular de conteúdo regionalista e afro-
religioso apresenta-se, neste caso, como campo produção e projeção do sucesso musical no mercado
fonográfico e em programas de rádio no país.
Satyro de Mello, compositor regional e expoente da música negra urbana brasileira
A formação musical de Satyro de Mello, de acordo com Vicente Salles (2000, p. 9, 19),
ocorreu em, pelo menos, duas etapas principais: primeiro, o aprendizado ocorrido nos anos 1910
junto ao pai, Benedito Sátiro de Melo, músico integrante da banda Euterpe Cametaense (criada em
1874); depois, na década seguinte, Satyro ingressou na jazz-band Los Creollos, atuante na capital
paraense. A mudança para a capital teria ocorrido em função do seu engajamento no exército, onde
tomou parte também da banda de música do 26º Batalhão de Caçadores.
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014,
Natal/RN, Brasil.
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Tanto no caso de Satyro de Mello como no de vários outros artistas de origem pobre,
interiorana ou suburbana, o ingresso nas forças armadas contribuiu para o início da autonomia
profissional. O fato é que a vida na caserna possibilitava a jovens de origem humilde, muitos deles
negros e mulatos, o desenvolvimento de suas habilidades musicais, especialmente para os que
visavam profissionalização no mundo da música popular.
A experiência musical de Satyro na caserna foi estendida com sua remoção em 1926 para
Corumbá, no Mato Grosso, período marcado pela movimentação tenentista no país. De Corumbá,
o jovem compositor enviava partituras de suas composições para intérpretes cariocas, numa
tentativa de atrair o interesse de cantores famosos para o registro de suas canções em disco
(SALLES, 2000, p. 09).
Com efeito, Satyro seguia os passos de seu pai na divulgação de sua obra, já que o músico
da Euterpe Cametaense havia conseguido publicar partituras no suplemento musical da revista
carioca O Malho, em 1904 e 1905 (SALLES, 2000, p. 09). A diferença, no entanto, é que a
divulgação das composições de Satyro poderia garantir-lhe, de forma concreta, o ingresso no
mercado musical da Capital Federal, o que de fato veio a ocorrer.
O Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX era, no dizer de Cunha (2004, p.115),
o “centro vital do país nos setores industrial, comercial e bancário, além de centro produtor e
consumidor de cultura”. Daí o interesse de Satyro em divulgar suas criações junto a cantores do
meio musical carioca. O desenvolvimento agudo dos meios de comunicação havia transformado o
Rio em centro de irradiação de “índices de modernização” para o restante do país, como no caso de
bens de consumo culturais e artigos industrializados (SEVCENKO, 1998, p. 522-539).
De fato, o meio artístico e cultural em ebulição no Rio de Janeiro do início do século XX
promovia a cidade à condição de polo de atração para os intelectuais de todas as regiões do país
(LEAL, 2011, p. 40). Mas além dos intelectuais, muitos artistas de origem de humilde, como Satyro
de Mello, foram atraídos pela vitrine artístico-popular carioca, trazendo consigo sua bagagem
musical forjada em diferentes regiões do país.
Este magnetismo da produção artístico-cultural da capital do país ajuda a explicar o
desenvolvimento de uma “moda regionalista” na canção popular, especificamente nas décadas de
1910 e 1920. Temas musicais tomados como folclóricos passam a ser recriados por compositores
populares para execução de “orquestras típicas ou características” e “conjuntos regionais”, que se
apresentavam em cafés, halls de cinemas, teatros de revista, dentre outros (BESSA, 2010, p. 168-
169).
O mais conhecido e bem sucedido conjunto representativo desta tendência foram os “Oito
Batutas”, que se apresentaram com indumentária “regional” até os anos 1920. No início daquela
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década, após uma excursão à França, adotaram a “performance negra” dos jazz band norte-
americanos como marca registrada (BESSA, 2010, p. 181-184). O novo perfil performático deu
bom resultado. A combinação de jazz com ritmos apresentados como nacionais foi bem recebida
pelo público carioca da década de 1920, de acordo com Bessa (2010, p. 179).
Expressões musicais rurais e negras (como o Jazz) se combinavam numa mesma fórmula
de sucesso musical. Deriva daí o sucesso alcançado pela excursão do conjunto pernambucano
“Turunas da Mauricéia” no Rio de Janeiro nos anos de 1928 e 1929 (CUNHA, 2004, p. 151-155).
O espetáculo dos Turunas combinava ritmos populares como coco, embolada, baião, trizada e
martelo com o uso de indumentária sertaneja: chapéus de cangaceiro, calças curtas e sandálias de
couro (SEVCENKO, 1998, p. 592).
O fato das apresentações dos Turunas no rádio carioca promoverem o “delírio coletivo”,
como diz Sevcenko (1998, p. 593), se explicaria pelo ambiente sociocultural favorável estimulado
pelo mercado musical e pela constante combinação de tradições folclóricas com sonoridades
urbanas e com a música popular estrangeira difundida na cidade (BESSA, 2010, p. 167). Era como
se o “Brasil verdadeiro” estivesse se dando a conhecer nas cidades, muito embora a maioria dos
compositores fosse gente do meio urbano que, principalmente nos anos 1920, passou a divulgar
suas gravações regionalistas junto ao público do interior (BESSA, 2010, p. 197).
É em função desta tendência que Sevcenko (1998, p. 593) afirma que “a música popular
lançou o rádio de massas”. Isto é, o sucesso massivo das programações musicais veio a tornar aquele
veículo de comunicação um meio de fruição musical e de entretenimento popular. Cantores e
compositores, tendo isso em mente, produziam combinações ligadas ao que entendiam como gosto
popular, relacionando elementos folclóricos e urbanos. Um exemplo característico desta tendência
é a gravação do primeiro samba de grande sucesso popular, “Pelo Telefone”, em 1917. Como
ressalta Moura (1995, p. 122), a canção incorporou o refrão de um tema folclórico nordestino numa
letra repleta de elementos urbanos.
Vicente Salles, por sua vez, assinala que Satyro de Mello “seguiu os rastros dos Turunas”,
pelo fato de ter criado canções na forma de cocos e emboladas que, segundo Salles, “há muito
haviam se estabelecido também na Amazônia, em especial no Pará” (2000, p. 10). Mais do que isso,
Salles destaca a combinação inusitada ocorrida na música de Satyro, num repertório onde cabia a
toada mato-grosssense, os banguês e os lundus cametaenses e o samba urbano carioca (SALLES,
2000, p. 12, 13). Em outras palavras, Satyro introduziu-se no mercado musical carioca em 1929,
após a saída do exército, como compositor de música regional. Mas manteve-se apto a aderir às
modas musicais da capital nacional e a buscar a projeção da sua obra na voz das estrelas da canção.
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A produção musical de Satyro de Mello no Rio de Janeiro nos anos 1930 buscou sintonizar-
se com o sucesso de conjuntos “típicos” como o Grupo do Caxangá e o Bando de Tangarás, ligados
à ideia de regionalidade vigente na época. O sentido do regional, neste campo de produção musical,
se refere a um conjunto de “enunciados e imagens que se repetem” (ALBUQUERQUE Jr, 1994,
p. 06), acervo temático de grande eficácia no mercado musical.
Ao lado dos sambas e marchas predominantes no repertório de Satyro de Mello, produzidos
entre os anos 1930 e o início da década de 1950, destacam-se os chamados ritmos regionais. Nesta
categoria, por sua vez, despontam gêneros nordestinos como embolada, coco e baião,
acompanhados por outros gêneros de origem estrangeira como valsa, tango e fox. A variedade da
obra de Satyro, na verdade, acompanhava e atendia às demandas do mercado musical carioca e se
adequava ao repertório de intérpretes famosos.
Em termos burocrático-institucionais, a difusão do termo “Nordeste” como delimitação
regional torna-se efetiva com a criação da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (IFOCS), em
1919 (ALBUQUERQUE Jr, 1994, p. 110). No campo político, o Nordeste passa a ser concebido
como a região brasileira associada às secas, imagem que ganha forte repercussão nos jornais
cariocas e paulistas da época. Foi neste momento em que se processou a separação discursiva entre
Norte e Nordeste, antes concebido como conjunto setentrional indistinto da grande parcela do país.
Aliás, Norte e Nordeste permaneceram intercambiáveis na imprensa da Capital Federal ao longo
dos anos 1920 (ALBUQUERQUE Jr, 1994, p. 111).
A nova configuração espacial regional do norte de país, em termos discursivos passa a
distinguir a área Amazônica, ocidental, da porção oriental de colonização mais antiga. A Bahia, por
sua vez, emerge como espaço singular na divisão regional, separada do Nordeste no debate político,
embora estivesse incluída na mesma região em termos administrativos (ALBUQUERQUE Jr,
1994, p. 112). A produção da chamada “cultura nordestina” se processa em termos midiáticos, neste
momento, em diferentes campos, como no caso da música popular. Ela se fez, por exemplo, nas
canções criadas por compositores como Satyro de Mello no meio musical carioca da primeira
metade do século XX.
Ao mesmo tempo em que Francisco Alves, Sílvio Caldas e Carmen Miranda gravavam
composições regionalistas de Satyro de Mello (SALLES, 2000, p. 10, 11) e as divulgavam
especialmente no carnaval, intelectuais do assim chamado “Movimento Autonomista de
Pernambuco”, liderado por Gilberto Freyre, defendiam a preservação das “tradições nordestinas”
(OLIVEN, 1986, p. 02-03).
A pedra angular do movimento teria sido o lançamento do “Manifesto Regionalista” escrito
por Gilberto Freyre e lido no Congresso Regionalista do Recife em 1926. O texto propugnava a
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defesa da região como unidade de organização nacional e a necessidade de conservação dos valores
tradicionais nordestinos e brasileiros contra a imposição de “modelos externos de nação”
(OLIVEN, 1986, p. 03).
O movimento regionalista, segundo Albuquerque Jr. (1994, p. 116), buscava barganhar a
manutenção de espaços políticos para a elite agrária nordestina em fins da República Velha. Ao
mesmo tempo, seus representantes pretendiam barrar a expansão das relações sociais capitalistas na
região em favor da manutenção da sociabilidade tradicional chefiada pela aristocracia rural. É por
esta razão que Albuquerque Jr. (1994, p. 122) caracteriza este movimento como “anti-moderno”,
voltado para a manutenção ideológica de uma suposta “continuação do passado”.
Esta perspectiva encontra eco no discurso regionalista do Estado Novo, que associava o
interesse pela modernização do país à um projeto de restauração da tradição, isto é, das raízes
culturais populares e regionais brasileiras integradas na totalidade nacional (OLIVEIRA, 1987, p.
64). Ao mesmo tempo, este horizonte político-intelectual correspondia às aspirações estilísticas dos
modernistas de São Paulo relativas à defesa do “Ser Nacional”. Propunha-se, com isso, à formação
de um campo autônomo da linguagem artística brasileira (OLIVEN, 1986, p. 03) (CUNHA, 2004,
p. 196).
Na prática, o nativismo modernista promoveu a exaltação dos temas rurais e sertanejos
como representativos do que constituiria a cultura e a arte “genuinamente nacionais”, separados dos
estrangeirismos (CUNHA, 2004, p. 34). Da mesma forma como os literatos pernambucanos
haviam se aliado intelectualmente aos herdeiros da aristocracia do açúcar em seu “Movimento
Autonomista”, os artistas e intelectuais paulistas contavam com a simpatia da elite cafeicultora
decadente suplantada pela industrialização (CUNHA, 2004, p. 35).
Enquanto ocorria esta reorientação dos horizontes intelectuais da vanguarda artística e
intelectual brasileira, o ritmo acelerado das transformações urbanas nas capitais brasileiras,
especialmente no eixo Rio-São Paulo, compunha o cenário da formação da música popular urbana
no país. O olhar distante, protetor e condescendente (e, portanto, superior), aplicado nas pesquisas
dos intelectuais-folcloristas sobre as manifestações “primitivas” da arte e cultura popular
(LANDES, 2002, p. 102), era contemporâneo do crescente interesse popular pelos motivos
sertanejos, de viola e violão, desde fins da década de 1910 no Rio de Janeiro (CUNHA, 2004, p.
83).
De certa forma, tanto intelectuais-folcloristas quanto o público consumidor de música
popular, nas primeiras décadas do século XX, tendiam a assumir uma posição distanciada e
simbolicamente “branca”, relativa ao universo cultural rural e negro. De um lado, temos o exemplo
apresentado por Leal (2011) de folcloristas interessados em expressões da cultura negra no Pará que
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tendiam a posicioná-las na situação “do outro a ser estudado”. Isso mesmo no caso de intelectuais
negros como Bruno de Menezes e Nunes Pereira, marcados por experiências familiares ligadas a
religiões de matriz africana e a folguedos populares de origem negra e rural.
Do outro lado, ressalta-se o impulso de consumidores e jornalistas não negros ao
reconhecimento dos ritmos e melodias de artistas negros surgidos no mercado musical carioca do
início do século XX (PRANDI, 2000, p. 59). Tal reconhecimento, no entanto, não resultou em
melhor sorte no final da carreira destes artistas, ao contrário das muitas trajetórias bem sucedidas de
artistas brancos identificados com a música negra (CUNHA, 2004, p. 187).
A relação próxima entre o samba dos primeiros tempos e o universo cultural afro-religioso
no Rio explica o ingresso dos chamados “pontos de macumba” no mercado musical carioca já nos
anos 1930. Satyro de Mello, por exemplo, chegou a orquestrar o ponto de macumba “Cosme e
Damião” de J.B. de Carvalho (SALLES, 2000, p. 40)
Aliás, o maior sucesso musical de Satyro de Mello foi uma assim denominada “batucada”
com claro conteúdo afro-religioso, que recebeu o nome de “General da Banda”. Seu último e maior
sucesso, gravado em 1949 e lançado no carnaval de 1950, “General da Banda”, foi composto em
parceria com José Alcides e Tancredo Silva. Este último era um conhecido pai de santo carioca dos
anos 1940, apresentado por Lopes (2005, p. 06) como “verdadeiro elo entre o mundo do samba e o
dos cultos afro”.
Mas os trabalhos de Satyro como compositor, orquestrador e instrumentista não lhe
renderam prospectos favoráveis como artista sênior. A pista que nos indica Vicente Salles, sem
muito detalhamento ou indicação de fontes, sobre o preconceito racial sofrido por Satyro se coaduna
com os resultados da pesquisa de Pereira (1967, p. 174) sobre a situação profissional do negro no
rádio paulista. O autor destaca a manutenção de um jogo racial, em que o negro convive com o
temor de ser estigmatizado e, ao mesmo tempo, reforça certos estereótipos da figura do artista negro
ligado à “indústria do entretenimento”. A consciência desta condição subalterna permite a este
artista defender-se do mecanismo típico do racismo brasileiro, que se manifesta quando “fronteiras
são ultrapassadas” e quando insinuações ou mesmo discursos preconceituosos vêm à tona
(PEREIRA, 1967, p. 164, 174, 253, 254).
É nestas condições que emerge o negro caricatural na música popular de massa, como no
caso do “desafio” “Tracuá me Ferrô”, composto por Satyro de Mello e gravado por Brenno Ferreira
e Silvio Caldas em 1930 (SALLES, 2000, p. 26). O desafio foi criado segundo a roupagem do
banguê cametaense, na forma de trovas que, num dado ponto, reportam a conversa de dois
compadres: “Meu compadre me arresponda / Esta primêra pregunta / Proquê um casal de nêgo /
7
Em veis de casá se ajunta?”. A resposta vem da seguinte forma: “Meu cumpadre Zé Mutuca / Não
mexa comigo não / Nêgo não casa se ajunta / Prá não tê mofinação” (Idem, Ibidem).
Versos espirituosos como esses, de feição interiorana, estavam em sintonia com a
legitimidade ideológica vigente na prática do sistema social hierarquizado recorrente no país no
início da Era Vargas. Como enfatiza DaMatta (1987, p. 68), o racismo à brasileira se faz pela
conciliação de impulsos contraditórios que preconiza posições superiores ou inferiores numa ordem
social verticalizada.
É surpreendente reconhecer o alcance desta ideologia mesmo nas religiões afro-brasileiras.
O estudo de Luca (2010), por exemplo, aponta os rituais devotados aos “senhores de toalha”, na
Mina Nagô paraense, como uma exaltação transcendental dos nobres católicos portugueses,
representantes do Estado Nacional e do Absolutismo Lusitano (LUCA, 2010, p. 18). O branco é
apresentado nestes rituais como entidade dotada de status e poder, representativa de retidão,
seriedade, ancestralidade, ancianidade e respeito (Idem, p. 184). Neste caso, imaginário e ideologia
se combinam na reprodução da “fábula das três raças”.
É evidente que a exaltação da mestiçagem, típica da pregação ideológica estadonovista
tomava como referência de legitimidade a popularização do discurso da democracia racial. Aliás,
artistas e intelectuais socialmente embranquecidos, isto é, dotados de relativo status e poder,
contribuíram para o enaltecimento da identidade mestiça da cultura brasileira (LEAL, 2011, p. 178).
Isto, por sua vez, ajudou a encobrir a percepção da diferença e das desigualdades raciais no país.
Só em eventos excepcionais é que se manifestam a convivência das diferenças e o
enfrentamento do preconceito no Brasil. Representativo disso foi o nome atribuído ao rancho
carnavalesco criado pelo grupo de amigos e irmãos de fé iorubana de Tia Ciata, promotora do samba
e do carnaval no centro do Rio desde a primeira década do século XX (MOURA, 1995, p. 43). O
rancho “Macaco é o outro” pode ser entendido como uma criação ao mesmo tempo chistosa e
sarcástica, pela qual os irmãos na fé dos orixás e apreciadores do samba amaxixado enfrentavam de
forma elegante o que é sempre declarado com ferocidade ou com escárnio.
Foram provavelmente estes os obstáculos vividos por Raymundo Satyro de Mello na
condução de sua carreira musical no Rio de Janeiro dos anos 1930 aos anos 1950. Sua fidelidade
musical aos “temas negros”, acentuada por Vicente Salles (2000, p. 18), teria a especificidade da
vinculação aos movimentos artísticos intelectuais promovidos por negros cariocas. Aliás, Salles é
pouco específico sobre esse assunto, mas dá pistas concretas dessa vinculação ao ressaltar a
colaboração de Satyro com o Conjunto Tupi, organizado pelo cantor e compositor João Paulo
Batista de Carvalho, o J.B. de Carvalho (SALLES, 2000, p. 19).
8
O Tupi dedicou-se aos temas negros em sua atuação musical na gravação de discos e em
apresentações em várias emissoras de rádio cariocas dos anos 1930. Os “pontos de macumba”,
recriados nas composições do filho de santo J.B. de Carvalho, tornaram-se o carro-chefe das
apresentações do grupo, particularmente executados no pioneiro programa de radiofônico de
umbanda, irradiado pelo mesmo Carvalho na Rádio Cajuti.
Apesar do espaço ocupado nas rádios e na gravação de discos, muitas apresentações do
Tupi foram interrompidas pela polícia, que invadia os auditórios sob a alegação de que músicos e
ouvintes caiam em transe ao ouvir o repertório religioso (SALLES, 2000, p. 19). O fato é que neste
período era corriqueira a repressão do Estado a qualquer manifestação pública relacionada às
religiões de matriz africana no país, mesmo no espaço dos terreiros.
A relação de Satyro com o Conjunto Tupi foi muito próxima, atuando como seu regente
nas apresentações em teatros de revista e no rádio, além de integrar o elenco musical da escola de
samba vinculada ao conjunto (SALLES, 2000, p. 19). Assim, várias de suas composições foram
lançadas em disco pelo conjunto nos anos de 1935 e 1936, associadas sempre ao universo cultural
negro-brasileiro nas suas expressões rítmico-musicais e poéticas. Não é à toa a predominância de
marchas e sambas no repertório de Satyro, bem como o sucesso de seus “batuques”, como a canção
“General da Banda”, sua obra de maior sucesso popular e canto do cisne de sua carreira.
Vale ressaltar a proximidade do samba carioca com o candomblé assimilado pela cultura
banta no Rio das primeiras décadas do século XX (PRANDI, 2005, p. 04). O nascente mercado
musical e sua “indústria de entretenimento” expandiram seu alcance popular na Capital da
República justamente por conta da assimilação de expressões culturais populares vigentes na cidade
(SILVEIRA, 2012, p. 124-125). É o caso da musicalidade negra, originalmente veículo de força
sagrada no candomblé carioca desde fins do século XIX. Esta veio a alcançar o mercado da música
popular e ganhar contornos não exatamente religiosos no disco, no carnaval e nos programas de
rádio nas primeiras décadas do século XX (PRANDI, 2005, p. 05).
Este processo teria promovido, no caso da música popular, uma espécie de
“desafricanização” das expressões musicais negras, difundidas nas grandes cidades como criação
cultural heterogênea da população negra. Para Roger Bastide (1983, p. 161), esta transformação
estaria em sintonia com os “símbolos ou estereótipos originados das interações entre brancos e
negros” nas metrópoles brasileiras. Em outras palavras, a indústria da canção radiofônica e do disco
teriam ajudado a recriar as expressões de música negra tornadas fenômeno cultural de massa. Esta
passagem para a estética mercadológica de cultura negra e popular teria garantido mais espaço para
a “voz” dos negros nas grandes cidades (MOURA, 1995, p. 15). Isto nos leva a mitigar o risco atual
9
de “desafricanização” da música brasileira, visto por Nei Lopes (2005, p. 08) como uma forma de
usurpação identitária.
De fato, o samba ajudou a projetar artistas populares identificados com a cultura negra
carioca, que alcançaram reconhecimento social por meio da música e do carnaval. Os ranchos
carnavalescos associados à musicalidade negra teriam se originado, no Rio do início do século XX,
a partir de embaixadas, congadas e cucumbis praticados nas pequenas cidades, vilas e fazendas do
interior (LOPES, 2005, p. 08). Os antigos “ranchos de reis”, característicos festejos natalinos,
tornaram-se ranchos carnavalescos na capital do país, em função das atividades culturais e festivas
realizadas pelas lideranças negras da chamada “Pequena África”, do centro do Rio (MOURA,
1995, p. 43).
Foi neste ambiente em que surgiram personagens como o dançarino Getúlio Marinho,
também conhecido como “Amor”. Marinho era frequentador das casas das tias baianas do centro
da cidade, bem como dos pioneiros terreiros de umbanda surgidos no Rio. Amor era baiano e havia
se transferido para a Capital Federal junto às levas de negros migrantes vindos dos estados do norte
após a Proclamação da República. Integrado à comunidade negra do Bairro da Saúde, Amor passou
a participar em ranchos carnavalescos, destacando-se como mestre-sala nos eventos do carnaval.
Por conta disso, ele recebeu o título de “Cidadão-Samba” continuamente entre os anos de 1940 e
1946, que era conferido pela União Geral das Escolas de Samba do Brasil (LOPES, 2005, p. 05)2.
Paralelamente à dedicação à dança e às coreografias carnavalescas, Amor desenvolveu uma
bem sucedida carreira como compositor, especialmente devotada à coleta e à gravação de pontos
de macumba. A ligação com importantes pais de santo como João Alabá, Assumano e Abedé
facilitou e legitimou a seleção das músicas religiosas e o posterior registro na voz de cantores negros
identificados com o gênero afro-religioso, como Elói Antero Dias, conhecido como “Mano Elói”3.
O próprio Mano Elói, aliás, já havia sido contemplado com o título de Cidadão Samba no
carnaval de 1936, em função de sua atuação como cantor de samba e, indiretamente, por ter sido
um dos pioneiros divulgadores de cânticos rituais afro-brasileiros em disco (LOPES, 2005, p. 05).
Esta divulgação, afirma Lopes, era uma vertente da produção musical popular brasileira desde
Chiquinha Gonzaga em fins do século XIX. Mas o advento do disco e do rádio viria a projetar estas
obras musicais como bens simbólicos de consumo, componentes regulares do repertório de artistas
como Pixinguinha, João da Baiana, Donga, J.B. de Carvalho, Getúlio Marinho, Mano Elói e Satyro
de Mello, por exemplo.
2 Ver também sítio “Cifra Antiga”, disponível em http://cifrantig3.blogspot.com.br/2010/10/getulio-marinho.html, acesso
em 23/02/2014. 3 Idem.
10
Este tipo de registro musical ganhou inclusive notoriedade nos meios intelectuais, como
atesta a execução radiofônica de cânticos litúrgicos de candomblé em Salvador, em 1937, em
função da ocorrência do II Congresso Afro-Brasileiro na capital baiana (LEAL, 2011, p. 172). O
fato é que a indústria do entretenimento teve papel decisivo na formação da “música negra” como
campo de produção musical popular no século XX. No dizer de Pereira (1967, p. 198-199), formou-
se um “neomusicalismo” ligado ao emergente modo de vida urbano no país. Daí porque o samba
carioca passou a ter, de forma crescente, a presença de temas urbanos nas letras das canções
produzidas ao longo da primeira metade do século XX.
Neste contexto, as expressões musicais negras foram sendo vertidas em representantes da
cultura popular geral, o que não significou, no entanto, a extinção de preconceitos e estereótipos
desabonadores relativos à população negra. Tratou-se, portanto, de uma valorização ambígua, pela
qual é atribuído um espaço delimitado de expressão da cultura negra, nacionalizada e limitada ao
que era entendido pela elite intelectual brasileira como popular e primitivo.
E seria exatamente neste espaço de ambiguidade em que os artistas negros e de origem
pobre encontravam possibilidades de ascensão no meio musical. As alianças com representantes
das camadas superiores, como políticos, altos funcionários públicos e jornalistas garantiam proteção
e reconhecimento social, além de facilitarem a aquisição de recursos para a promoção de eventos
como o carnaval. Os bailes da casa de Tia Ciata, acompanhados de partido alto e batuque, gozavam
deste tipo de proteção, especialmente pelo fato de seu marido ser funcionário público com relações
na polícia (MOURA, 1995, p. 99).
Da mesma forma, Satyro de Mello lograva livrar-se da prisão, quando das batidas policiais
nas apresentações do Conjunto Tupi, por conta da amizade alardeada por J.B. de Carvalho com o
Presidente Getúlio Vargas (SALLES, 2000, p. 19). Neste caso, o Presidente da República era
invocado pelo parceiro de Satyro como uma espécie de protetor artístico. O mesmo recurso foi
possivelmente pretendido por Getúlio Marinho com o lançamento de seu samba “Gegê” no
carnaval de 1932. A letra da marcha carnavalesca deixava claro o destinatário: “Tenha calma, Gegê
(...) / O seu pedido / Já foi, meu bem, despachado / O decreto já saiu / É na enxada e não no
machado”4. Vislumbramos aqui o indício de uma anunciada simpatia com a ideologia trabalhista
em formação.
Neste mesmo ano de 1932, Getúlio Marinho ganhou destaque em matéria do Jornal do
Brasil (07/02/1932, p. 14) intitulada “A Vitória da Nostalgia Africana...”. O texto do jornalista
Carlos Santos, lançado às vésperas do carnaval, destacava o sucesso de sonoridades negras e de
4 “Cifra Antiga”, disponível em http://cifrantig3.blogspot.com.br/2010/10/getulio-marinho.html, acesso em 23/02/2014.
11
elementos afro-religiosos nos festejos carnavalescos do Rio. Uma foto de Marinho é apresentada
com a legenda “o introdutor das músicas de macumba, também denominada de músicas bravias de
Congo”. A menção ao “bravio” correspondia ao sentido de “exótico-selvagem”, associado à cada
vez maior presença cultural negra no “arraial do samba”. Com isso, o autor supõe a ocorrência da
universalização dos conteúdos das religiões negras, já que as “macumbadas” se faziam ouvir tanto
nos “casebres humildes”, quanto nos “salões austeros através do rádio e vitrolas”.
Matérias como esta, em particular, indicam uma relativa familiaridade do jornalista com
expressões da cultura afro-religiosa. Isto talvez seja explicável por um possível contato com pais e
mães de santo na condição de mediador cultural. Neste caso, os jornalistas atuam como uma espécie
de elo de comunicação entre grupos culturais distintos, lidando com códigos e papéis sociais
diferentes (VELHO, 2001, p. 25-26).
Mais à frente no jornal, o autor faz a descrição de duas “toadas africanas” de Getúlio
Marinho, que haviam sido lançadas para o carnaval de 1932. A familiaridade do jornalista com
termos bantos aponta para um possível conhecimento prévio de pontos de macumba, talvez
resultante de visitações a terreiros afro-religiosos.
O texto destaca também a resistência de alguns religiosos à divulgação fonográfica das
doutrinas, que poderia ser avaliada como prática sacrílega de revelação de segredos místicos.
Ferretti (1995, p. 142), por exemplo, aponta a proibição de alguns chefes religiosos da Mina
maranhense, ao longo do século XX, quanto à gravação e à reprodução externa de alguns cânticos
doutrinários, limitados ao contexto ritual.
A execução de músicas de transe e de homenagem às divindades das religiões de matriz
africana é uma forma de comunicação com o transcendental. De acordo com Prandi (2005, p. 09-
11), o conhecimento das cantigas, mais que o domínio de um repertório musical específico, implica
no exercício de um “saber religioso”, pelo meio do qual corpo e som tornam-se uma unidade
associada aos deuses. Daí a reserva de líderes religiosos quanto à divulgação dos pontos nos discos
e no rádio, que interpõe um veículo intermediário entre homens e divindades.
Apesar disso, artistas como Marinho seguiram gravando pontos de macumba com
regularidade até o final de suas carreiras. Getúlio Marinho, Mano Elói e J.B. de Carvalho são
exemplos de artistas que encontraram suporte junto a mediadores no rádio e no mercado musical
para a difusão e a comercialização de suas obras de conteúdo afro-religioso.
Foi exatamente neste meio musical onde floresceu a obra de Satyro de Mello: um campo
profissional em que as relações com gente de posição social elevada garantiam o prosseguimento
regular da carreira musical (CUNHA, 2004, p. 182). Demonstrativo destas relações é a menção de
Moura (1995, p. 100) às consultas de membros da alta sociedade carioca a “feiticeiros africanos”
12
como prática cada vez mais frequente a partir da década de 1910. Este tipo de relação social, por
exemplo, é cultivado inclusive nos meios afro-religiosos como “estratégia de sobrevivência”, como
aponta Silva (1976, p. 85, 86, 208) em seu estudo sobre a Federação Umbandista do Pará nos anos
1970.
Estas possibilidades relacionais propiciaram a produção, a difusão e a comercialização de
pontos de macumba como um gênero musical a partir dos anos 1930. Além das características
específicas de harmonia, ritmo e melodia, os pontos afro-religiosos foram introduzidos no mercado
musical a partir de referências culturais adaptadas às condições de produção e consumo. Tais
condições são definidoras de ordens de classificação manipuladas pelos agentes do mercado
musical (JANOTTI, 2006, p. 38-41).
O paradoxo instituído por esta prerrogativa relacional emergiu mais ou menos ao mesmo
tempo em que batuques religiosos e rodas de samba eram perseguidos pela polícia da capital do
país. O samba de função ritualística era estilizado na indústria de entretenimento e vertido no
mercado na forma de “ponto de macumba” e de “batucada” (CUNHA, 2004, p. 235-241). A
ampliação da difusão da música negra no mercado de entretenimento instituiu uma nova esfera de
acesso profissional ao negro nas grandes cidades brasileiras. Isto, por sua vez, serviu para consolidar
uma espécie de consenso entre produtores musicais em torno de uma “marca negra” característica
da música brasileira popular (PEREIRA, 1967, p. 24).
O rádio e o disco tenderam a ser identificados no imaginário popular como espaços ideais
de superação de barreiras e de ascensão social, na medida em que se expandiam os novos meios de
comunicação no país (PEREIRA, 1967, p. 29-30). A idealização, no entanto, não era infundada. O
crescimento e a maior diversificação da população nos grandes centros do país, na primeira metade
do século XX, orientava os produtores midiáticos a investirem em criações artísticas que
atendessem às crescentes demandas dos consumidores do mercado de entretenimento.
No caso do Rio de Janeiro dos anos 1920 e 1930, o sucesso popular de diferentes gêneros
musicais se combinava com a heterogeneidade social carioca, formada por populações oriundas dos
estados do norte, negros de origem baiana e de estados do centro-sul, além de imigrantes europeus
de origem latina (CUNHA, 2004, p. 241). Forma-se assim uma espécie de nicho do mercado
musical, que permanecerá ativo até os dias atuais. Discos com pontos de macumba e outras músicas
de terreiro tenderam então a alcançar um largo espectro de consumidores, para além dos clientes de
lojas de artigos de umbanda.
13
Daí o surgimento de combinações inusitadas como o gênero misto “macumbaião”, lançado
em disco por J.B. de Carvalho em 19515. Na época do sucesso do baião de Luiz Gonzaga no eixo
Rio-São Paulo, nada mais natural que combinar expressões da música com o gênero identificado
com o discurso relativo à identidade “nordestina”. Também ao lado dos sambas e marchas de
sucesso no carnaval, era correntemente destacada pela imprensa a grande vendagem de discos de
pontos de macumba em lojas do Rio de Janeiro e de São Paulo no início dos anos 1930 (JORNAL
DO BRASIL, 10/01/1932, p. 39).
Naquele período, a música afro-religiosa ganhou espaço nos teatros cariocas, mas sempre
apresentada como manifestação residual de primitivismo, a ser dramatizada como relíquia
folclórica, sobrevivência de práticas em vias de extinção. Corroborando a reflexão de Certeau, este
tipo de manifestação cultural tornou-se relevante para os círculos eruditos de elite, “quando seu
perigo foi eliminado” (CERTEAU; JULIA; REVEL, 1995, p. 55). Tal visão folclorística tende a
associar o popular ao natural, buscando resguardá-la de seu provável desaparecimento (Idem, p.
73).
Exemplo disso foram os espetáculos da dançarina Eros Volusia, ocorridos em teatros
cariocas nos anos 1930 e fartamente anunciados pelo Jornal do Brasil. Estas apresentações, por
sinal, ganharam momento com o estabelecimento do Estado Novo, a partir de 1937 (CUNHA,
2004, p. 196, 235). O conteúdo primitivista de seu espetáculo combinou-se com a retórica
nacionalista do estado de exceção, ao ponto de ser patrocinado pelo próprio Ministério da Educação
(JORNAL DO BRASIL, 02/07/1937, p. 12). Na apresentação organizada para fevereiro de 1937
havia congada, lundu e a apresentação do “bailado folclórico ‘No Terreiro de Umbanda’”.
O sucesso das canções afro-religiosas estendeu-se, neste período, até a alguns clubes
recreativos da alta sociedade da Capital Federal. No carnaval de 1939, o Jornal do Brasil anunciou
reiteradamente o baile “Noite na Macumba”, realizado no Atlantic Refining Clube. O evento era
uma espécie de baile à fantasia carnavalesco onde seriam emuladas pelos participantes expressões
“primitivas” do transe, das danças ritualísticas e dos timbres instrumentais característicos afro-
brasileiros. Particularmente, a nota divulgada em fevereiro de 1939 deixava bem claro o público
alvo: “(...) o diretor geral do Atlantic (...) vai homenagear as elites desta Cidade Maravilhosa,
momentaneamente transformada num império de ‘Ogun’” (JORNAL DO BRASIL, 02/02/1939,
p. 16).
Porém o mundo dos efetivos filhos, mães e pais de santo, da Cidade Nova e do subúrbio,
permanecia apartado destes círculos sociais que celebravam a “legítima” cultura brasileira. Somente
5 Ver “Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira”, disponível em http://www.dicionariompb.com.br/j-b-de-
carvalho/discografia, acesso em 14/01/2014.
14
haveria, episodicamente, a aproximação destes “mundos” com a presença de músicos e de
empregados negros que trabalhavam em eventos como o baile do Atlantic Refining Clube. A
“macumba civilizada” dos clubes e teatros, de fato, era uma versão branqueada e distante dos
batuques praticados nos terreiros suburbanos.
Os “mundos” da “alta sociedade” e das populações negras urbanas estavam certamente
mais próximos quando se tratava do universo do rádio e dos discos. Estes foram os espaços
principais de projeção de Raymundo Satyro de Mello quando no exercício de sua carreira musical
no Rio de Janeiro. O centro dinamizador do mercado musical do país favorecia a atuação de artistas
que se dedicavam à escritura musical, à produção de arranjos e de orquestrações, como era o caso
de Satyro. No entanto, para os músicos negros e de origem pobre, eram limitadas as possibilidades
de consolidação do sucesso, aliadas à estabilidade financeira. Muitos, assim como Satyro de Mello,
viveram experiências de desencanto com o preconceito racial e com as dificuldades econômicas,
que acabaram por moldar o perfil de sua obra.
Foi exatamente neste meio artístico, que combinava elementos das religiões afro-brasileiras
com o samba, permanentemente aberto às contribuições de músicos de outras regiões do país, que
floresceu a música de Raymundo Satyro de Mello. Já nos anos 1950, ele intensificou sua produção
de escritura de partituras e de orquestração, trabalhos que lhe rendiam pouco e que marcaram as
dificuldades econômicas dos últimos anos de sua carreira até sua morte em 1957 (SALLES, 2000,
p. 20).
Ari Lobo, cantor de Música do Norte e de Temas Afro-Religiosos
Um fato marcante do início da carreira de sucesso de Ari Lobo para seu sobrinho Raimundo
Nonato foi o primeiro retorno triunfal do cantor à Belém no período dos festejos religiosos do Círio
de Nazaré. O cantor veio numa comitiva de artistas nacionais para apresentações no auditório da
Rádio Marajoara6 em fins dos anos 1950. Aliás, as únicas duas emissoras paraenses existentes à
época7 costumavam organizar programas musicais e humorísticas especiais com artistas nacionais
e estrangeiros durante o período do Círio nos anos 1950. A programação artística mais intensa
ocorria por conta do grande número de romeiros e demais visitantes na cidade (COSTA, 2012, p.
155, 158).
6 Entrevista com Raimundo Nonato da Silveira Filho, funcionário municipal aposentado, 82 anos, em janeiro de 2014. 7 A outra emissora era o Rádio Clube do Pará (assim chamada no masculino), fundada em 1928. A Rádio
Marajoara, integrante da rede dos Diários e Emissoras Associadas de Assis Chateaubriand, foi fundada em
Belém em 1954.
15
Raimundo tinha só três anos à menos que o tio. Por isso, recorda vivamente as
apresentações de Ari Lobo, Nelson Gonçalves e Zé Trindade no auditório da Marajoara. Mais
importante ainda para ele foi ter Ari Lobo apresentado os artistas famosos aos familiares e depois
recebê-los em sua casa no Bairro do Guamá para um almoço organizado pelo pai. A vinda das
estrelas do rádio foi anunciada para a vizinhança por meio de um equipamento sonoro, porque Ari
Lobo faria uma apresentação aberta ao final do banquete. Houve ainda outro show de Ari Lobo no
bairro quando de um segundo retorno, mas em seguida Raimundo só teve notícias esparsas do
sucesso do tio famoso no Rio e em São Paulo8.
Dentre os cantores/compositores paraenses dos anos 1950, a repercussão nacional de Ari
Lobo foi um caso à parte. Ele foi detentor de marcas importantes como a gravação de 9 long plays,
o registro de mais 700 músicas e a projeção de nacional através do rádio e do disco por quase três
décadas. Seu ingresso na carreira ocorreu a partir de concursos de calouros. Tornou-se integrante
do elenco do Rádio Clube do Pará em 1954. No ano seguinte, foi contratado pela Rádio Marajoara,
onde se tornou conhecido como cantor de samba.
Com a transferência para o Rio de Janeiro em 1955, Ari Lobo assumiu um perfil artístico
de cantor regionalista, vinculado a ritmos como baião, coco e rojão. Seus primeiros discos lhe
granjearam grande notoriedade, com canções como “Último Pau de Arara”, “Vendedor de
Caranguejo”, “Súplica Cearense” e “Eu vou pra Lua”.
Na avaliação Raimundo Nonato, o sucesso do jovem cantor significou, principalmente, sua
rápida ascensão econômica. As muitas apresentações em casas noturnas do Rio e de São Paulo,
segundo o entrevistado, não só tornaram Ari Lobo conhecido como lhe proporcionaram muito
dinheiro, em quantidade suficiente “pra ele comprar um apartamento”9. E neste ponto surgiu na
entrevista um termo com qual já havia me deparado no registro da Revista Amazônia sobre a
gravação do primeiro compacto de Ari Lobo: a menção à sua condição de vitorioso10.
Apesar do início de carreira não ter sido tão promissor quanto foi divulgado pela imprensa
local, o final dos anos 1950 e a década seguinte foram a fase culminante da carreira de Ari Lobo. E
isso especialmente por conta de sua inserção artística no mercado fonográfico e de apresentações
musicais nas duas maiores capitais do país.
A filha Lucy Martins recorda que o período mais abundante financeiramente da família foi
a época em que o pai fazia muitos espetáculos no eixo Rio-São Paulo. Mais tarde, a partir de meados
8 Entrevista com Raimundo Nonato da Silveira Filho, funcionário municipal aposentado, 82 anos, em janeiro de 2014. 9 Idem. 10 Revista Amazônia. Ano 2, N. 18, junho de 1956, Coluna: “Aqui se fala de rádio”, Título: “Sorriso de um vitorioso: o
de Ari Lobo”.
16
dos anos 1960, a família mudou de residência num périplo por diferentes capitais nordestinas, à
medida que o pai seguia em busca de oportunidades de trabalho, cada vez mais rarefeitas11.
Reforça-se, neste período, a centralidade simbólica do sucesso artístico no circuito Rio-São
Paulo. Exemplo disso foi a notória convergência de artistas vinculados ao regionalismo musical
para este centro em busca de projeção nacional através da canção popular.
Assim é possível entender a ênfase da imprensa paraense de fins dos anos 1950 em
apresentar Ari Lobo como “o nosso valor que venceu na Maravilhosa”12. A frase, aliás, poderia ser
adaptada a outros exemplos de artistas locais que ainda planejavam caminhos para o sucesso
nacional à época.
Mas, é necessário perguntar: do ponto de vista dos que acompanharam de forma mais
próxima a trajetória de Ari Lobo, o que exatamente significou esta condição vitoriosa? Lucy
Martins e Gabriel Lobo relembram que tanto os shows quanto as reuniões do pai com os colegas de
profissão em casa eram envoltos numa atmosfera boêmia. Para eles, este ambiente profissional
ligava-se a um estilo de vida marcado pela despreocupação com o futuro e com a obrigação de
acumular bens e dinheiro13.
Diz Lucy Martins: “Eles eram maravilhados com aquilo...”14. Em outras palavras, a
realização profissional significava, em primeiro lugar, fazer parte do mundo do rádio, dos discos e
dos shows. Porém, este não se tratava de um comportamento meramente materialista, mas sim
associado a aspirações de popularidade e respeitabilidade, no sentido que é identificado por Pereira
(1967, p. 131-137) em seu estudo sobre músicos e radialistas negros de São Paulo no início dos
anos 1960.
E esta era uma conquista, de fato, mais ainda significante para artistas negros e mulatos,
oriundos de contingentes pauperizados da sociedade brasileira. Com isso, torna-se mais fácil
compreender por que o dinheiro obtido com o sucesso musical fosse gasto de forma conspícua em
função do prazer em ser uma estrela da canção.
A busca pela realização profissional tende a significar, nestes casos, uma mudança quase
completa do modo de vida. Ao mesmo tempo, ela pode se encaminhar para a incorporação de um
projeto artístico-cultural que ganha corpo na performance artística e nas interações com os
produtores, os colegas de profissão e o público.
11 Entrevista com Lucy Lobo Martins (47 anos, empresária) e com Gabriel Carlos Alves Lobo (43 anos, técnico em
eletrônica), em março de 2013, em São Luís do Maranhão. 12 Revista Amazônia. Ano 4, N. 42, junho de 1958, Coluna: “Rádio”, Título: “Rádio em Revista”. 13 Entrevista com Lucy Lobo Martins (47 anos, empresária) e com Gabriel Carlos Alves Lobo (43 anos, técnico em
eletrônica), em março de 2013, em São Luís do Maranhão. 14 Idem.
17
A constituição deste projeto, no caso de artistas da música regional, tem relação com certas
formas de intercâmbio com o público, com a escolha do gênero musical e do repertório de canções
definidor de seu personagem artístico, além da forma como o artista se insere no campo de interação
com seus pares de profissão. É isto que Velho (1994) chama de “negociação da realidade” em sua
reflexão sobre a noção de projeto. Nas palavras de Goffman (1983, p. 40), tal negociação é “a prática
de ajustes dos sujeitos às expectativas do seu círculo social na forma de uma representação”.
Para entendermos como isto se processou na carreira de Ari Lobo, tomarei aqui como
exemplo a presença regular nos seus discos de canções com temas afro-religiosos. Apesar de
Raimundo Nonato destacar que o tio “era quase como um ateu”, por não saber de qualquer hábito
religioso que ele tivesse, a presença constante de canções com temas de religiões afro-brasileiras
em seus discos pode nos revelar alguns sentidos importantes de seu projeto artístico-cultural.
O trânsito de Ari Lobo do samba para o baião e o coco não significou uma ruptura, mas a
ampliação de um repertório compreendido como eminentemente popular. Particularmente nas
canções com referências afro-religiosas, elementos musicais do samba e dos ritmos nordestinos se
fundem, situando-se de forma predominante no universo simbólico da cultura negra brasileira.
Nei Lopes (2005, p. 02) e Câmara Cascudo (1972, p. 109-110), por exemplo, destacam que
o antigo “baiano”, música sincopada de viola praticada no interior do nordeste brasileiro no século
XIX, era uma modalidade de samba rural. O baiano foi a matriz a partir de onde foram
desenvolvidos o rojão e o baião no século XX. Ao mesmo tempo, coco, calango, lundu e jongo têm
raízes coligadas como modalidades de samba rural e que se urbanizaram paralelamente ao samba
urbano, criação tipicamente carioca do século XX.
Daí a linha sequencial que explica a conexão entre o cantor de sambas do rádio paraense e
o cantor de gêneros nordestinos do mercado musical carioca. A sincopa e seus desdobramentos
poético-musicais se expressou com diferentes feições nas gravações da Ari Lobo. A combinação
entre o samba urbano e os ritmos nordestinos ganhou ênfase especial nas canções de temática afro-
religiosa em seus discos, algo como uma marca típica performática, um dos emblemas da carreira
do cantor mulato paraense.
Aliás, a macumba era também concebida como um gênero musical no mercado
fonográfico brasileiro em meados do século XX. A edição de maio de 1955 da Revista Amazônia,
por exemplo, dava destaque à macumba “Meia Noite” como composição da “sambista morena”
Geruza Sousa, que a apresentou numa das festas de aniversário do Rádio Clube do Pará15. A cantora
era colega de trabalho de Ari Lobo e fazia parte do elenco sambista da emissora. Os dois, por sinal,
15 Revista Amazônia. Ano 1, N. 5, maio de 1955, Coluna: “Aqui se fala de rádio”, Título: “Você Sabia...”.
18
compuseram o cast do programa musical “Viva o Samba” e eram, por isso, apresentados pela
Revista Amazônia como “festejados intérpretes de nossa música popular”16.
Vale destacar o sentido de “atenuação” da marca/aspecto racial da cantora com o título de
“sambista morena”. Como nos lembra Nogueira (1955), esta prática é um componente
característico do preconceito racial brasileiro. No caso da divulgação midiática de uma estrela da
canção radiofônica, a denominação se associa à preconcepção de um suposto talento nato, jeito,
autodidatismo dos artistas negros e mulatos para o samba e demais expressões musicais de raiz afro-
brasileira (PEREIRA, 1967, p. 86-87).
No dizer de Pereira, o suposto discurso elogioso da aptidão musical esconde a visão
preconceituosa da inadequação do negro a outras funções de trabalho consideradas de maior
responsabilidade (1967, p. 138, 144, 147). Além disso, a lógica do racismo brasileiro supõe sua
intervenção imperativa em situações críticas de interação e/ou competição aberta entre negros e
brancos.
Um episódio narrado de forma jocosa por Gabriel Lobo sobre a situação em que seus pais
se conheceram exemplifica esta potencialidade conflituosa das relações raciais no Brasil. Segundo
ele, o pai teria sido convidado para uma entrevista na Rádio Gurupi de São Luís do Maranhão,
provavelmente no início dos anos 1960, para divulgar seu show na cidade. Ao avistar a bela
entrevistadora no saguão da emissora, Ari Lobo pronunciou um gracejo, que foi prontamente
censurado com a frase: “Que negro saliente!”17.
Logo em seguida os dois se encontraram no estúdio da rádio para a surpresa da
entrevistadora. Pouco tempo depois eles se casaram e deram início à família que se tornou o lar de
Ari Lobo até o fim de sua vida em 1980. A convivência desconfortável dos cantores negros e
mulatos com o preconceito pode ser, no entanto, grandemente atenuada por sua ascensão sócio
profissional (CUNHA, 2004, p. 179), mesmo relacionada a expressões culturais negras como o
samba e os temas musicais e poéticos afro-religiosos.
Importa destacar também que a música de cunho afro-religioso já ocupava uma posição
importante no mercado musical brasileiro de meados do século XX (CUNHA, 2004, p. 235).
Segundo Bakke (2007, p. 85), alguns artistas da música popular nos anos 1960 e 1970 aderiram aos
valores das religiões de matriz africana em sua performance e em suas gravações sem se tornarem
necessariamente adeptos. Neste período, a canção popular tornou-se definitivamente um veículo de
16 Idem. Ano 1, N. 6, julho de 1955, Coluna: “Aqui se fala de rádio”, Título: “Rádio Acontecimentos”. 17 Entrevista com Lucy Lobo Martins (47 anos, empresária) e com Gabriel Carlos Alves Lobo (43 anos, técnico em
eletrônica), em março de 2013, em São Luís do Maranhão.
19
divulgação de expressões afro-religiosas. Isto se daria, segundo Rachel Bakke (2007), na forma de
um imaginário religioso positivado e diluído no universo amplo e diversificado da cultura brasileira.
Vale lembrar, de acordo com a mesma autora, que samba e candomblé se formaram e se
expandiram no Rio de Janeiro a partir do início do século XX de forma integrada, promovidos por
um mesmo setor da sociedade carioca. No caso do mercado musical, a produção de uma imagem
artística associada ao tema afro-religioso estipulava uma via de diferenciação e de especialização
(BAKKE, 2007, p. 88). Ao mesmo tempo, este caminho reivindicava uma pronta identificação com
o popular, como uma esfera específica do mercado fonográfico (Idem, p. 93).
Entre os artistas cujas performances estiveram associadas ao tema afro-religioso nos anos
1960 e 1970, Bakke (2007, p. 98) separa os que gravavam pontos religiosos estilizados dos que
registravam canções com letras genéricas de temas religiosos. Ari Lobo se situa na segunda
categoria. Embora a maior parte de seus registros com esses temas tenham sido compostos por
outros artistas, como Paulo Vanzolini e João do Vale, por exemplo, a performance vocal de Ari
Lobo promove uma recriação dessas obras, assim incorporadas ao seu personagem artístico de
cantor popular.
Seus registros em LP e em compacto para distribuição nacional foram em grande parte
produzidos pela gravadora RCA Victor e estão, na maioria, disponíveis atualmente na internet18.
São baiões e cocos, majoritariamente, alternando sempre no canto o solo do intérprete e o coro,
próximo ao estilo de samba de roda e dos batuques rurais do Norte e Nordeste (LOPES, 2005, p.
02). O timbre instrumental de suas músicas é marcado pela combinação entre triângulo, sanfona e
zabumba, seguindo o padrão estabelecido por Luiz Gonzaga.
Vejamos alguns exemplos19. Comecemos com a canção “Visite o Terreiro”, presente no
primeiro disco de Ari Lobo gravado na RCA Victor em 1958. O disco chamava-se “Último Pau de
Arara” e, por isso, tinha como carro chefe a canção homônima de Venâncio, Corumbá e J.
Guimarães. Destacam-se também no mesmo disco “Vendedor de Caranguejo”, de Gordurinha e
mais duas composições de Pires Cavalcante.
“Visite o Terreiro” é composição de Edgar Ferreira e foi apresentada no disco como
“batuque”, repleto de elementos do baião. Triângulo, sanfona e zabumba são acompanhados na
música pelo agogô, o instrumento de múltiplos sinos presente também em rituais afro-religiosos e
18 Ver por exemplo, o site Forró em Vinil, que põe à disposição vários discos de Ari Lobo para download. Disponível em
www.forroemvinil.com. As letras das canções estão disponíveis para consulta em Letras.com.br, consultar
www.letras.com.br/ary-lobo. 19 Para além das canções aqui citadas, há outras de temática afro-religiosa no repertório de Ari Lobo que não foram
analisadas em função dos limites do artigo. Alguns exemplos são: “Capoeira do Arnaldo” (1972), “Mais uma homenagem
à Bahia” (sd), “Festa no Mar” (1979), Filho de Xangô (1974), Ei Pomba Gira (1979), Aniversário de São Benedito (sd)
dentre outras canções.
20
que faz a introdução e o fechamento da canção. A alternância entre canto e coro reforça a sincopa
do batuque, associada ao estilo de coco/repente combinado à embolada.
No longo texto de apresentação na contracapa do disco, o autor Elmo Barros destaca Ari
Lobo como cantor representante do “setor nortista”, que associa o batuque ao rojão e ao coco,
tomados como gêneros afins. Para Barros, aquele era o “intérprete ideal das canções regionais do
nosso Norte (da Bahia pra cima)”, apto a traduzir os ritmos do caboclo sertanejo.
O discurso promocional estimulado pela gravadora identifica perfeita integração musical
entre Norte e Nordeste, tomando como ponto de partida a Bahia, estado “nortista” mais próximo do
Sudeste. Não à toa a canção “Visite o Terreiro” apresenta a Bahia como o centro afro-religioso
brasileiro que irradia uma promessa de felicidade a partir da religião dos orixás. Vejamos a letra da
canção:
“Você vai à Bahia / Visite o terreiro de Maria Orixalá / Leve incenso e cravo branco / Pra
jogar no mar de encanto / Antes de desembarcar / Os que falam é porque não conhecem
a razão / Da Bahia do meu coração / E do grande São Jorge Guerreiro / O Senhor do
Bonfim padroeiro / E os filhos da grande nação / Veio Ogum fazer sua oração / Rezar e
curar para o mundo inteiro / Vá a Bahia pra você vê / Que vive os irmãos de fé / Da grande
lei de Orixá / Você vê o Ogum baixar / Pega a lei de amor / Que entregou nosso senhor /
Você vai acreditar / Pois tem fim o seu azar / Você vai viver feliz / O terreiro é umbanda
e lá se diz / O presente, o passado e o futuro / Por isso amigo é que eu juro / Que de santo
você vai se tornar.”
A canção se apresenta como um convite a visitar um centro afro-religioso e, ao mesmo
tempo, a viver a devoção aos orixás na Bahia. Ao lançar mão da orientação sincrética com o
catolicismo, nas referências ao Senhor do Bonfim e a São Jorge Guerreiro, a canção combate “os
que falam” com preconceito das religiões afro-brasileiras. Isto nos reporta aos estereótipos
associados à Mina do Pará identificados Silva (1976, p. 28), que depreciam e inferiorizam a religião
e seus adeptos. No discurso da canção, a oportunidade de assistir ao ritual ajuda dissipar tais
estereótipos: o transe e as revelações orientam o neófito a encontrar a felicidade, a “lei do amor”, ao
tornar-se filho de santo.
Outra referência direta aos orixás está presente na canção “Saravá Cosme e Damião”,
gravada no compacto duplo “Eu vou pra lua”, lançado em 1962 pela RCA Victor. A música de
trabalho com título homônimo ao do compacto foi a primeira composição de Ari Lobo (feita em
parceria com Luiz França) lançada no mercado nacional. Na contracapa do disco, Ari Lobo é
apresentado como possuidor de uma “inconfundível bossa nordestina”.
“Saravá Cosme e Damião” é musicalmente um típico baião, em comunicação com o coco
e acompanhado pela indefectível alternância entre canto e coro. A composição de Anísio Nazário e
de Nelinho é uma homenagem às crianças na festa religiosa sincrética que combina a devoção aos
21
santos católicos Cosme e Damião e aos orixás Ibejis, divindades infantis gêmeas do culto iorubano.
Vamos à letra:
“Eu vou contar a papai / Eu vou contar a papai / Para vir ver quem chegou / Para vir ver
quem chegou / Foi ibejê e ibejada / Que fazem anos também / Ora vamos brincar com as
crianças / Cosme e Damião lhe dou um / Andorinha que voa nos astros / Que chega
pertinho do céu / Avise o papai Oxalá / Que hoje é dia das crianças.”
A homofonia do verbo beijar com o nome das divindades gêmeas iorubanas é um destaque
importante da letra. Ao mesmo tempo, é feita a relação com os gêmeos santos cristãos curadores,
Cosme e Damião. No entanto, a diferença entre o festejo católico e a homenagem aos erês-orixás
permanece, pois são os Ibejis que “fazem anos” na festa de Cosme e Damião.
A relação sincrética aqui se regula segundo o princípio identificado por Ferretti (1995, p.
143), em que as crenças religiosas são “compartimentos paralelos, que se aproximam e não se
confundem”. A última estrofe indica outra combinação sincrética, talvez inconsciente. O aviso a
“papai Oxalá”, que está entre os astros do céu, sobre a festa dos Ibejis se aproxima da referência
espacial do mito grego que indica a moradia dos “gêmeos celestes”, Castor e Pólux, em uma
constelação (VERNANT, 2000, p. 90, 91).
Para além dos toques dos terreiros (percussão sagrada) e da gira (dança inicial) das festas
de santo, as canções de Ari Lobo com temas afro-religiosos eram apresentadas ao público como
expressões artísticas eminentemente populares e brasileiras. Por certo, era o que tinham em mente
os produtores e divulgadores destas canções. Emissoras de rádio e gravadoras difundiam estas
criações com o rótulo de “música do Brasil”, acima de suas referências étnicas, religiosas e regionais
(PRANDI, 2005, p. 13). Ao conquistar este reconhecimento por parte de seu público, Ari Lobo
conseguiu realizar seu projeto artístico-cultural, construído num percurso de interações e mediações
diversas.
Da Música Regional e Negra à Música Brasileira
Raymundo Satyro de Mello e Ari Lobo combinaram em sua atuação profissional um
repertório semelhante de referências musicais regionais e negras, estas últimas relacionadas ao
samba e a temas afro-religiosos. Apesar da distância temporal entre os dois artistas, suas carreiras
apresentam uma linha de continuidade em termos dos meios de ascensão profissional para os
músicos negros e de origem pobre no mercado da música popular.
O enfrentamento do preconceito racial e as dificuldades econômicas foram presenças
constantes nas trajetórias dos artistas paraenses. Estes obstáculos foram confrontados com a
22
inserção bem sucedida no mercado musical e no campo de interação e intercâmbio com seus pares
de profissão. O acesso destes artistas ao prestígio e à popularidade por meio de programas de rádio
e do disco tornava-se um meio de projeção de expressões culturais negras e populares cultivadas no
meio urbano.
A atuação desses artistas no centro dinamizador do mercado musical do país foi o elemento
chave na produção e na projeção da canção regional. O encontro entre cantores e compositores do
Norte e Nordeste com artistas de demais regiões do país no cenário musical carioca contribuiu
decisivamente para a formação dos sentidos basilares do que é difundido no presente como a música
popular tipicamente brasileira.
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