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L. INTRODUÇÃO Literatura e identidade nacional foi originalmente tema de uma disciplina que ministrei no Curso de Pós-Graduação em Letras da UFRGS (Mestrado em Literatura Brasileira), em 1990. Os principais objetivos foram os de estabelecer as domi- nantes literárias (convenções dominantes) do processo que vai da autonomização à construção de uma identidade nacional, apontando os mecanismos de exclusão (ocultação ou invenção do outro) e de transgressão (resgate dos discursos excluídos ao longo deste processo). Para tanto, vali-me de narrativas épicas fundamentais da Literatura Brasileira, do período colonial ao Romantismo, chegando ao Modernismo e aos autores contem- porâneos como Darcy Ribeiro e João Ubaldo Ribeiro. É evidente que fui obrigada a trabalhar por amostragem, es- colhendo aquelas obras em que me pareceu mais evidente e ex- plícito o projeto de participar da construção (e também da des- construção) da nacionalidade no qual, como sabemos, a litera- tura - como texto privilegiado na medida em que pode conter outros textos, como o histórico, o científico, o bíblico, etc. - teve um papel exponencial. Para efetivar este projeto, uma reflexão preliminar sobre o conceito de identidade se impôs, bem como a utilização de um referencial teórico especializado que tornei de empréstimo a au- tores cuja reflexão teórica poderia contribuir para o desvela- mento deste intrincado processo de construção da identidade nacional no qual interferem outros discursos além do literário. Nesta medida, este trabalho torna-se devedor de autores como Antônio Gomez-Moriana, Régine Robin, Marc Angenot e Mi- cheline Cambron, da "Escola" de Montreal; Edouard Glissant,

Cultura Brasileira

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INTRODUÇÃO

Literatura e identidade nacional foi originalmente tema deuma disciplina que ministrei no Curso de Pós-Graduação emLetras da UFRGS (Mestrado em Literatura Brasileira), em1990. Os principais objetivos foram os de estabelecer as domi-nantes literárias (convenções dominantes) do processo que vaida autonomização à construção de uma identidade nacional,apontando os mecanismos de exclusão (ocultação ou invençãodo outro) e de transgressão (resgate dos discursos excluídos aolongo deste processo). Para tanto, vali-me de narrativas épicasfundamentais da Literatura Brasileira, do período colonial aoRomantismo, chegando ao Modernismo e aos autores contem-porâneos como Darcy Ribeiro e João Ubaldo Ribeiro.

É evidente que fui obrigada a trabalhar por amostragem, es-colhendo aquelas obras em que me pareceu mais evidente e ex-plícito o projeto de participar da construção (e também da des-construção) da nacionalidade no qual, como sabemos, a litera-tura - como texto privilegiado na medida em que pode conteroutros textos, como o histórico, o científico, o bíblico, etc. - teveum papel exponencial.

Para efetivar este projeto, uma reflexão preliminar sobre oconceito de identidade se impôs, bem como a utilização de umreferencial teórico especializado que tornei de empréstimo a au-tores cuja reflexão teórica poderia contribuir para o desvela-mento deste intrincado processo de construção da identidadenacional no qual interferem outros discursos além do literário.Nesta medida, este trabalho torna-se devedor de autores comoAntônio Gomez-Moriana, Régine Robin, Marc Angenot e Mi-cheline Cambron, da "Escola" de Montreal; Edouard Glissant,

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poeta, crítico e romancista do Caribe, além do eterno mestre daliteratura brasileira, Antônio Cândido.

É preciso cnfali/ar também que procurei afastar-me deconceitos de nacionalidade que julgo etnocêntricos por enten-derem a construção da identidade nacional como um alvo fixo aser atingido, como a expressão de um "caráter nacional" . Estavisão redutora imperou em nossa literatura até os anos 60 e tevecm Afrânío Coutinho um de seus defensores:

O processo de nacionalização brasileira constitui-se antes emum movimento de afirmação nacional, de busca da própria identida-de de conquista de um caráter nacional, de afirmação de qualidadespeculiares (Coutinho,1973, p.24).

Do meu ponto de vista, esta busca de identidade não devecoincidir com a "conquista de um caráter nacional" pelo simplesmotivo de que não existe "um" caráter nacional, nem uma "es-sência" brasileira, pois já está sobejamente comprovado, pelamoderna antropologia, que não há nenhuma relação necessáriaentre a existência de determinadas raças e a produção de obje-tos culturais. Logo, a questão da identidade nacional será enca-rada como um dos pólos de um processo dialético; portanto,como "meio" indispensável para entrar em relação com o outro,c não como um "fim" em si mesmo. A busca de identidade deveser vista como processo, em permanente movimento de deslo-camento, como travessia, como uma formação descontínua quese constrói através de sucessivos processos de reterritorializa-çâo e dcsterritorialização, entendendo-se a noção de "território"(Dclcu/e c Guattari, 1977) como o conjunto de representaçõesque um indivíduo ou um grupo tem de si próprio.

Um ensaio que pretende enfocar a questão da "identidadenacional" não pode deixar de mencionar que este é um debateb.isi.mte ant igo em nossa literatura, remontando a Alencar (verp r e l . u i o de Sonhos d'ouro}. Machado de Assis, em um famosoa t t i f o de 1S73, "Literatura Brasileira - instinto de nacionalida-de , re toma o debate alertando que a "fisionomia própria doju -M' . . unen to nacional" não se fará de um dia para outro, maspausaiJaiuente. Ali já se pode colher uma instigante e atual li-

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cão: já naquela época Machado criticava a opinião "que só reco-nhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local"(Machado,1873, p.32). Evidentemente, que uma literatura emfase de afirmação irá nutrir-se da seiva que lhe oferece a sua re-gião; contudo, o excesso de "cor local" pode vir a empobreceresta literatura. O que se deve esperar do escritor, completa Ma-chado, é "certo sentimento íntimo que o torne homem de seutempo e de seu país". Deste artigo emana uma fecunda visãoque, sem se reclamar de um pretenso universalismo, onde asidentidades se dissolvem, defende um conceito de "literatura na-cional" que não se circunscreva ao superficialismo das "cores dopaís", mas que assuma plenamente sua fisionomia literária, semdeixar de incorporar os problemas universais que permitem quequalquer ser humano neles se reconheça.

Com relação aos autores escolhidos, talvez possa parecerestranha, ao leitor atento e conhecedor da Literatura Brasileira,a ausência de alguns autores basilares de nossa literatura comoMachado de Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Érico Verís-simo entre outros que, à sua maneira, intentaram retraçar e in-fluir na trajetória de uma literatura em sua busca de autonomia ,visando sair da situação periférica à qual está condenado todoprojeto literário de passado colonial. Talvez, num estágio poste-rior desta pesquisa, se possa incluir estes e outros autores cujaobra revela preocupação com a reconstituição e o desvelamen-to de verdades escamoteadas pela história escrita dos homens arespeito das etnias fundadoras e de seu papel na constituição do"povo brasileiro" e de sua identidade.

Esclareço ainda que a seção intitulada "As falas do povobrasileiro" foi anteriormente publicada no número 17 (1991) daRevista Organon, do Instituto de Letras da UFRGS; trechos dasseções "O maravilhoso e a possibilidade de reler a história" e "Atransgressão dos conceitos" foram publicados no número 18(1990) da Revista Estudos Afro-Asiáticos, do CEAA do Conjun-to Universitário Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Os mes-mos trechos foram publicados em francês sob o título "Lê peu-ple brésilien montre son visage: lê noir et Ia construction de1'identité nationale dans Vive lêpeuple brésilien", no volume co-

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letivo organizado por Moriana, A.G. e Hart, C.P., Parole exclu-sive, parole exclue, parole transgressive (Montreal, Lê Préambule,1990). O item "Nossa ancestralidade canibal" foi publicada noD.O. Leitura, de São Paulo (v.10 n.118, p.2-3, de março de1992), sob o título "O elogio do canibalismo".

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IDENTIDADE

ORIGEM, EMPREGO E ARMADILHAS DO CONCEITO

Origem

Conceito operatório de larga utilização em ciências huma-nas, sobretudo a partir dos anos 60, quando se passa do concei-to de identidade individual ao de identidade cultural (coletiva),o conceito de identidade torna-se recorrente no domínio dos es-tudos literários a partir do momento em que as literaturas mino-rizadas no interior dos campos literários hegemônicos recusama classificação de literaturas periféricas, conexas e marginais ereivindicam um estatuto autônomo no interior do campo insti-tuído.

Construindo-se como um desafio à instituição literária, asliteraturas emergentes, às vezes ainda próximas de seu passadocolonial (como por exemplo, as jovens nações africanas), estãodestinadas a desempenhar um papel fundamental na elaboraçãoda consciência nacional. Igualmente, as literaturas dos gruposdiscriminados - negros, mulheres, homossexuais - funcionamcomo o elemento que vem preencher os vazios da memória co-letiva e fornecer os pontos de ancoramento do sentimento deidentidade, essencial ao ato de auto-afirmação das comunidadesameaçadas pelo rolo compressor da assimilação.

No interior destas literaturas fortemente voltadas para aconsolidação de um projeto identitário, o sujeito emergenteprocura reapropriar-se de um espaço existencial. Se as socieda-des escravocratas, cujos modelos se conservaram mesmo apósas Abolições, se caracterizaram pela apropriação não somentedo corpo e da força de trabalho dos negros, mas também de seu

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devir, a tomada de consciência desta situação deveria, forçosa-mente, passar por um movimento inverso, ou seja, pela elabora-ção de mecanismos visando à reapropriação do que foi violado.Conseqüentemente, o discurso literário produzido nestas cir-cunstâncias é marcado pelo desaparecimento do "eu" individualem favor de um "nós" coletivo que pode tender ao monologismoe à coesão onde as vozes dissidentes são dificilmente admissí-veis.

A poesia que se inspira na tomada de consciência da negri-tude (termo usado aqui no sentido mais amplo do termo) estáduplamente vinculada à questão da identidade: ela se origina daconsciência de sua perda e se desenvolve na busca de sua re-construção. O essencial destas literaturas é precisamente suaforça de resgatar as formas onde subsistem as culturas de resis-tência, matéria-prima da identidade cultural.

Emprego

Lévi-Strauss (1977) definiu identidade como uma entidadeabstrata, sem existência real, mas indispensável como ponto dereferência. Enquanto entidade abstrata, a identidade não possuireferente empírico. Logo, referentes empiricamente verificáveiscomo, por exemplo, a cor da pele, o sexo, etc. não são suficien-tes para compor a identidade dos negros ou das mulheres. Umaidentidade construída a partir da cor da pele ou da pertençabiológica ao sexo feminino - dados empíricos - revela-se comouma identidade de primeiro grau ou aquela que se constrói comounidade discreta e circunscreve a realidade a um único quadrode referências, visto que inumeráveis são os referentes que po-dem intervir para "identificar" um indivíduo: referentes de or-dem biológica, histórica, cultural, sociológica, psicológica, etc.Admitir correlações imediatas entre características raciais ougeográficas, por exemplo, e a construção de uma determinadacultura, é não apenas cientificamente falso como ideologica-mente perigoso e pode levar a conclusões racistas segundo asquais somente indivíduos pertencentes à raça X, ou o habitanteda região Y. são capazes de produzir certos objetos culturais.

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A identidade é um conceito que não pode afastar-se do dealterídade: a identidade que nega o outro, permanece no mesmo(idem).-Excluir o outro leva à visão especular que é redutora: éimpossível conceber o ser fora das relações que o ligam ao ou-tro. Por outro lado, a identidade que nJo se concretiza em fun-ção de um único referente empírico, mas de vários, é a identida-de de segundo grau ou reflexiva, a que possui uma dimensão deexterioridade (fora-dentro) (Robin, 1989). Trata-se, pois deapreender a identidade como uma entidade que se constrói sim-bolicamente no próprio processo de sua determinação. A cons-ciência de si toma sua forma na tensão entre o olhar sobre sipróprio - visão do espelho, incompleta - e o olhar do outro oudo outro de si mesmo - visão complementar.

No que diz respeito à identidade coletiva, é preciso encará-la como um conceito plural: os conceitos estáveis de "caráter na-cional" e "identidade autêntica" são modernamente substituídospor uma noção pluridimensional onde as identidades construí-das por diferentes grupos sociais em diferentes momentos desua história se justapõem para constituir um mosaico. As partesse organizam para formar o todo. No caso, por exemplo, das es-critoras mulheres e negras no Brasil, o texto literário torna-se oespaço onde diversas dimensões identitárias são convocadas aintegrar a trama discursiva: a escritora quer fazer-se reconhecerpor sua pertença ao sexo feminino, ao grupo étnico negro e à

sociedade brasileira.

Armadilhas

A busca identitária, inevitável durante os períodos de crise,corre o risco, contudo, de transformar-se em etnocentrismo, istoé, em "erigir, de maneira indevida, os valores próprios da socie-dade à qual se pertence, em valores universais" (Todorov, 1989,p.19). Em literatura, esta tendência cantona os escritores, con-denando-os a uma espécie de guetização devido à extrema esta-bilidade de uma escritura imobilizada pelas determinações damissão que ela própria se impôs: a de contribuir para o rcagru-pamento dos membros de uma comunidade.

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Trata-se, pois, de um conceito traiçoeiro na medida em queele pode transformar-se em um conceito de circunscrição darealidade a um único quadro de referências. Felix Guattari, apropósito dos movimentos atuais das "minorias", prefere aban-donar o termo identidade cultural, que ele considera redutor, epropõe a expressão "processos de singularização". Para o autor,enquanto identidade é um conceito de referenciação , a singula-rização é um conceito existencial. Segundo ele, existem riscosimplícitos ao conceito de identidade os quais podem levar à fal-sa idéia de que existe uma "natureza", ou uma "essência" femini-na, homossexual, negra, etc. (Guattari e Rolnick, 1986).

A busca identitária pode, pois, funcionar de duas diferentesmaneiras:

a) como sistema de vasos estanques (primeiro grau) que ori-gina cristalizações discursivas que condenam à morte a "litera-riedade" dos textos, pois a inquietação da linguagem é a própriaessência do literário; ou

b) como processo (segundo grau) em permanente movimen-to de construção/desconstrução, criando espaços dialógicos eintegrando a trama discursiva sem paralisá-la. Nesta últimaacepção, concebido como continuidade, como síntese inacaba-da, o conceito de identidade se sustenta logicamente e, se revelaextremamente útil para iluminar a leitura de textos que, produ-zidos cm situações de cruzamento e de dominação cultural, pro-curam reencontrar ou redefinir seu território.

A reflexão sobre esses conceitos é basilar para aceder às li-teraturas emergentes, onde se põe fundamentalmente a questãoda identidade nacional, às literaturas da negritude, que surgi-ram na África e no Caribe a partir dos anos 30, bem como à lite-ratura negra brasileira que tem sua gênese no resgate de umamemória coletiva solapada pelo monologismo da historiografiaoficial.

Se, para essas literaturas, a construção de um projeto iden-titário foi a seiva primeira que as nutriu, desde logo alguns es-critores foram capazes de perceber que este projeto poderia re-verter contra eles próprios como o feitiço às vezes recai sobre o

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feiticeiro. Quando a identidade leva os escritores a acreditaremque o mundo finda nos limite de sua tribo, em vez de interna-cionalizarem-se estes autores se fecham em um etnocentrismoque reduz sensivelmente a sua legibilida !.:. Desta forma, a utili-zação que aqui se fará do conceito de identidade será semprerelativizada, procurando dar conta dos momentos em que aidentidade tendeu à guetização (conceito etnocêntrico e reacio-nário) ou amplificou-se, construindo-se como uma diferença,sem negar o outro.

LITERATURA E IDENTIDADE NACIONAL

Ricoeur (1985, p.432) afirma que a "identidade não poderiater outra forma do que a narrativa, pois definir-se é, em últimaanálise, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo se definiria,portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre simesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essên-cia da definição implícita na qual esta coletividade se encontra".Portanto, a construção da identidade é indissociável da narrati-va e conseqüentemente da literatura.

Esta busca de definição identitária por um indivíduo ou poruma comunidade pode caracterizar duas funções da literaturacomo apontou o poeta e crítico antilhano, Edouard Glissant, es-tudando a formação das literaturas nacionais (Glissant, 1981,p.189-201):

há a função de dessacralização, função de desmontagem dasengrenagens de um sistema dado, de pôr a nu os mecanismos escon-didos, de desmistificar. Há também uma função de sacralização, deunião da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, deseu imaginário ou de sua ideologia.

Uma literatura que se atribui a missão de articular o projetonacional, de fazer emergir os mitos fundadores de uma comuni-dade e de recuperar sua memória coletiva, passa a exercer so-mente a função sacralizante, unificadora, tendendo ao MESMO,ao monologismo, ou seja, à construção de uma identidade do

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tipo etríocêntrico, que circunscreve a realidade a um único qua-dro de referências.

No Brasil, o Romantismo realizou unia revolução estéticaque, querendo dar à literatura brasileira o caráter de literaturanacional, agiu como força sacralizante "que seria própria deuma consciência ainda ingênua" (Glissant, 1981, p. 192), traba-lhando somente no sentido da recuperação e da solidificação deseus mitos. Neste nível, o literário incorpora uma imagem inven-tada do índio, excluindo sua voz. Certamente a que melhor cor-respondia à edificação do projeto nacional. Por outro lado, oModernismo concebeu a identidade nacional no sentido de suadessacralização, o que corresponde, segundo Glissant, a umpensamento politizado, eqüivalendo a uma abertura contínuapara o DIVERSO, território no qual uma cultura pode estabele-cer relações com as outras.

Só bem recentemente a literatura brasileira começa a ope-rar a síntese - ainda inacabada - deste jogo dialético, associandoo resgate dos mitos à sua constante desmitificação, o redesco-brimento da memória coletiva a um movimentar contínuo dostextos, o que eqüivale a um perseverante questionamento de si-mesma, como podemos constatar, por exemplo, na leitura dosromances de João Ubaldo Ribeiro e de Darcy Ribeiro.

A formação da literatura brasileira caracterizou-se, pois,por uma espécie de errância, por movimentos alternados depredominâncias ora de forças sacralizantes, ora de forças dessa-cralizantes, favorecendo a Relação, isto é, a construção identitá-ria concebida sem excluir o outro.

No Brasil como na América Latina, o processo de autono-mização e de transformação de manifestações literárias em lite-raturas nacionais se instituiu através da lenta gestação de umaexpressão americana (Lima, 1988).

Através da análise de narrativas épicas fundamentais da Li-teratura Brasileira (das epopéias fundadoras ao Modernismo,chegando a autores contemporâneos) se procurará estabeleceras dominantes literárias do processo que vai da autonomização àconstrução de uma identidade nacional, apontando os mecanis-mos de exclusão (ocultação ou invenção do outro) e de trans-

gressão (resgate dos discursos excluídos ao longo deste proces-so) (cf. Moriana e Hart, 1990).

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FUNÇÃO DESSACRALIZADORADA LITERATURA

FIGURAÇÕES DO CARÁTER INACABADOA INCLUSÃO DOS EXCLUÍDOS: MÁRIO DE ANDRADE (1893-1945)

Será somente no Modernismo, com Macunaíina (1928), queo propósito de construir uma narrativa épica para representar aorigem do povo brasileiro será realizado. Mário de Andrade inte-gra pela primeira vez o mito indígena aos mitos africanos paraexplicar a formação do brasileiro, representado no romance porMacunaíma, o herói "sem nenhum caráter" que, conforme o pró-prio autor, é uma alegoria à cultura brasileira e seu caráter "ina-cabado". Como salienta Brookshaw, o fato de o herói de Máriode Andrade não ter caráter não se constituiu em uma críticapessimista da alma brasileira. "Ao contrário, afirma o autor, aausência de caráter era sintoma de uma mentalidade culturalcom possibilidades revolucionárias" (Brookshaw, 1983, p.86).

Enquanto o projeto de Alencar consistiu em atribuir quali-dades positivas ao índio, fundando a ancestralidade a partir doprocesso de aculturação e desculturação das duas etnias (bran-ca e indígena), e o de Euclides, ao erigir o sertanejo como sím-bolo desta miscigenação primordial, consistiu em preservar aproposta alencariana de duas etnias fundadoras, a criação deMário de Andrade surge como um contradiscurso a esta consis-tência hegemônica que vinha se firmando ao longo de nossa his-tória.

O herói aqui é carnavalizado, concentrando em si própriovirtudes mas também defeitos que, como sublinhou CavalcantiProença, nunca se encontram reunidos em um único indivíduoMacunaíma que "era preto retinto e filho do medo da noite" ,

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embora se torne "branco louro e de olhos azuizinhos", enquantoseus irmãos continuam a ser um índio e outro negro, não assumeos valores brancos, reunindo cm si as características das três ra-ças. Vale aqui lembrar as reflexões de Donaldo Schüler a res-peito do "preto retinto" de Macunaíma. Para o autor, embora te-nha havido uma tribo indígena de pele escura, não há dúvidasde que este atributo se relaciona com os escravos que vieram daÁfrica. "Os negros submetidos a trabalhos forçados nas planta-ções litorâneas, buscaram em repetidas revoltas, abrigo nas flo-restas contra o açoite dos feitores. Protegidos pela fortaleza na-tural da selva, negros e índios, a espaços, se encontraram, seacoplaram e marginalizados se reproduziram" (Schüler, 1989,p.21).

Os espaços paradisíacos evocados por Alencar para situarIracema, são subtraídos no texto de Mário de Andrade, num fla-grante ato, típico do Modernismo, de destruição dos modelos ri-tualizados, que são substituídos por outros caracterizados basi-camente pela inversão parodística. Assim, os heróis "altos" sãodestronados pelo anti-herói Macunaíma que sai do fundo damata virgem para deixar-se assimilar pelo mundo "civilizado"do litoral.

Entretanto, talvez mais importante do que este processo decrioiiüzação dos modelos artísticos europeus que caracteriza-ram o Modernismo e mais especificamente a Antropofagia, foi aadoção de formas orais (populares) de narrativa. A identifica-ção de Mário com a visão do mundo do povo e a adesão à suaconcepção mítica, que se opunha frontalmente ao esquema lógi-co-racional da tradição européia, fez com que incluísse no fluxonarrativo elementos insólitos, a exemplo do que se verifica natradição latino-americana do realismo maravilhoso. Estes ele-mentos não se apresentam como paradoxos: eles se incorporamao real (verossímil) que é posto lado a lado com o maravilhoso(inverossímil) sem nenhum mecanismo de distanciamento.

No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubâ e deu uma chega-da até a foz do Rio Negro pra deixar a consciência na ilha de Mara-patâ. Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de de/, metros, pra

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n3o ser comida pelas saúvas. Voltou pró lugar onde os manos espe-.ravam e no pino do dia os três rumaram pra margem esquerda daSol. (Macunaíma, p.47)

Macunaíma se põe assim como contradição, inaugurandocaminhos que subvertem os rituais discursivos até então pratica-dos pelos escritores que intentaram fixar as diferentes fases daedificação da consciência nacional, alterando todos os itens doesquema que vimos propondo.

Nesse sentido, a rapsódia de Mário de Andrade integra oespaço e o referencial mítico maravilhoso americano, porém dei-xa de fazê-lo com base em um olhar exógeno (superficial), masprocura captá-lo a partir de pesquisas etnográficas que levam oautor a descrevê-lo com real intimidade. Como escreveu RaulAntelo (1986, p. 131), Mário de Andrade, a exemplo dos negris-tas e indigenistas latino-americanos dos anos 20 e 30, compreen-deu "o fenômeno do negro e do índio como uma realidade po-pular que exigia solução aos seus problemas fora do âmbito es-tético", escapando, deste modo à perspectiva da classe domi-nante que os vira apenas como tipos exóticos e literários

A concepção do tempo deixa de fundar-se em um retornonostálgico ao passado, para introduzir a noção de busca simbo-lizada pelos constantes deslocamentos - viagens - do persona-gem. Como se sabe a viagem simboliza a procura do conheci-mento, da verdade e da própria identidade. Através das diferen-tes literaturas, o símbolo da viagem remete a uma aventura e auma busca (Chevalicr e Ghcerbrant). Assim, ao criar Macunaí-ma como um viajante , Mário de Andrade rompe com a idéia detempo voltada para o desejo de reencontro com a origem, con-cebendo-o como distância: o viajante constrói seu próprio espa-ço. Após as aventuras cm São Paulo, a volta de Macunaíma, lon-ge de corresponder a uma utopia realizada, revela-se um inevi-tável fracasso: tudo o que o herói encontra em seu retorno éfome, miséria, solidão e devastação que o levam a constatar"que não achava mais graça na Terra" e a tomar a decisão de "irpró céu".

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Vemos aí as marcas da função dessacraüzante da literatura,ou seja, aquela que corresponde à desmontagem do sistema quevinha se construindo. A emergência de uma consciência críticae a inclusão sistemática de temas e processos retirados da cultu-ra popular oral - cultura considerada espúria e até então excluí-da do "campo da transcendência" -, f a/cm circular o Diversoque porá cm cheque as formas literárias sacralizantcs ainda vi-gentes, nos anos 30 na Literatura Brasileira, apesar de autorescomo Machado de Assis e Lima Barreto já haverem subvertidoprofundamente os ri tuais discursivos alicerçados na exaltação eno ufanismo.

Nessa medida, a obra de Mário de Andrade constitui-se emuma tentativa de captar o discurso excluído, de escutar as vozesaté aqui mantidas na periferia do sistema, marginalizadas pelafala hegemônica das elites culturais do país.

Revertendo o procedimento dos séculos 18 e 19 de constru-ção do índio como herói emblemático, o herói do Modernismo"não tem nenhum caráter". Esse c o elemento que introduz defato o novum na Literatura Brasileira, pois corresponde à supe-ração das ideologias do caráter nacional brasileiro que "buscamconvencer um povo de suas boas qualidades, ao mesmo tempoem que demonstram as características indesejáveis do inimigo,real, ou potencial" (Moreira Leite, 1983, p.361). Mostrando anatureza compósita do "herói de nossa gente", Mário de Andra-de implode as noções etnocêntricas empenhadas em descrever eexaltar a alma brasileira. Assim, a trajetória de Macunaíma des-constrói os estereótipos fundados na existência de uma essênciabrasileira imutável, fugindo da armadilha de circunscrever abusca identitária de Macunaíma a um único quadro de referên-cias. Essa fase de nossa história literária caracteri/a-se, pois,pela carência de heróis .

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FIGURAÇÕES DA TRANSGRESSIVIDADEA FALA DOS EXCLUÍDOS

. Darcy Ribeiro (1922-...)

Avançando este panorama que visa a esboçar as principaislinhas de força das obras que, explícita ou implicitamente, con-têm a reflexão sobre a formação do "povo" brasileiro, apresenta-mos Utopia selvagem ... (1982) de Darcy Ribeiro que alinha-se àvertente inaugurada por Mário de Andrade, no Modernismo.

A fábula, de Darcy Ribeiro, dá continuidade ao doído la-mento de Macunaíma diante da inocência perdida. O processode fabulação, na obra, é sustentado pela constatação de que aproximidade com o branco foi trágica não só para os brasileiroscomo para os latino-americanos em geral, pois a perda da ino-cência se deu sem a contrapartida do ganho de uma consciêncianacional. Daí suas indagações perturbadoras: "Quem somosnós? Nós mesmos? Eles? Ninguém?". Este é o verdadeiro "he-róico brado retumbante": a denúncia de que na origem de nos-sos males está a perda de nossa identidade cultural: "Quem so-mos nós, se não somos europeus, nem somos índios, senão umaespécie intermediária entre aborígenes e espanhóis?" (Ribeiro,1982).

Praticando constantemente a intertextualidade, o pastiche ea paródia, elementos típicos das narrativas pós-modernas, Dar-cy Ribeiro recria o herói de sua fábula em cima da personagemshakespeariana, Calibã (The tempest). Em Utopia selvagem... ,Calibã é um índio que, unindo-se sexualmente a uma monja(branca), por interferência de Pitum (negro), consegue "ser edeixar de ser todos os seres que contém". Os três unidos recupe-ram sua identidade e, através dela, obtêm a vitória sobre as for-ças da repressão, passando a habitar em uma ilha onde índios,brancos c pretos, fundidos e metamorfoseados, vencem a arti-lharia do exército brasileiro.

Apesar do título Utopia selvagenvsaudades da inocência per-dida, a obra de Darcy Ribeiro não é nostálgica de um passadoperdido, mas alicerça-se na necessidade de resgate de nossas

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raízes culturais, a partir do qual se fabricará algo novo, baseadoem uma outra coerência (Ana Pi/arro, 1988). Segundo A. Pizar-ro, a história da América Latina é a história de um discurso quese constrói através da busca permanente de sua expressão pró-pria a qual se articula como uma outra coerência, através deprocessos contínuos de apropriação da produção cultural autóc-tone.

Seguindo na esteira de Mário de Andrade c valendo-se dosprincípios da Antropofagia, Darcy Ribeiro logra, através^ deuma linguagem cm contínuo processo de deslocamento, revivera revolucionária experiência modernista, em um Brasil emergin-do de quase duas décadas de repressão política. Assim, sua pro-posta, embora se atualize como continuidade a uma dominanteliterária dos anos 25-30, é inovadora na proporção em que re-lança, numa cena brasileira caracterizada pelo marasmo intelec-tual, conseqüência natural do autoritarismo político, a icono-clastia modernista que se instaurou, em sua época, como verda-deira práxis social revolucionária. Darcy Ribeiro faz o elogio do"pensamento selvagem", na t r i lha de Mário e Oswald de Andra-de, reafirmando-o como valor positivo e prospectivo e comocontrafacção do pensamento domesticado e assimilado da ca-mada ilustrada da sociedade brasileira.

Incorporando a alemporalidade do mito, Darcy relativiza aperspectiva a partir da qual as populações autóctones foram vis-tas como desprovidas de cultura pelo simples fato de que suacultura era diferente da dos conquistadores. Tal perspectiva foiherdada pelas elites americanas que impuseram esta visão trági-ca, convertendo a arbitrariedade em direito.

O fina! apocalítico da fábula darciniana, seguido de uma es-pécie de ressurgimento após uma completa metamorfose dascoisas e dos seres, constitui-se no procedimento literário criadopelo autor para desvelar o processo de formação de uma culturasincrcíica, crioulizadu. No Caribe surgiu recentemente (Bernabéet alii, 1989) o conceito de crioulidade para designar o processode busca idcntitária por parle de populações culturalmente di-ferentes colocadas em um mesmo espaço - o Novo Mundo -,processo este que deve culminar em uma cultura sincrética, isto

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é, crioula. Os autores fazem o "elogio da crioulidade", na medi-da em que a vislumbram como uma "especificidade aberta", con-trariamente à negritude que se circunscreveu a um único quadrode referência, a raça negra. O conceito de crioulidade remete,assim, à entrada em contato brutal na América de populaçõescom heranças culturais diversas - africanos, europeus, índios - aqual originaria um sistema de "coabitação não problemática dasdiferenças" (Bernabé, 1989, p.30-1).

Vê-se, pois, Utopia selvagem... como uma metáfora criadapor Darcy Ribeiro para expressar sua visão sobre a afirmaçãoda identidade cultural latino-americana, como identidade de se-gundo grau, ou seja, a que se constrói sem negar as diferençasdo outro. Assim, pois, sua obra entra em interlocução privilegia-da com os autores caribenhos que atualmente, após a superaçãode fases que tenderam ao etnocentrismo, como a negritude, in-terpretam a formação cultural nas Américas através do conceitode crioulidade, ou seja, da harmonização do DIVERSO.

João UbaldoRibeiro (1940-...)\

O romance de João Ubaldo Ribeiro, Viva Q povo brasileiro(1984), se constrói como um impressionante afresco da históriabrasileira, sendo, portanto, de fundamental importância situar aobra em relação às dominantes literárias que se encenaram nopanorama da literatura brasileira as quais vimos tentando carac-terizar ao longo deste ensaio. ;^.

Não é por acaso que a publicação de Viva o povo brasileiro(VPB) coincide com o período de abertura política: a propostade releitura da história brasileira que a obra encerra só poderiaser encenada em uma atmosfera livre de quaisquer cerceamen-tos.

O pensamento em epígrafe, síntese da postura do autor,contém a principal chave interpretativa do romance: "não exis-tem fatos, só existem histórias". Esta epígrafe, que iluminou nos-sa leitura, revela que nunca temos acesso direto aos fatos: elesnos são transmitidos por uma linguagem (histórias), logo, só alinguagem tem existência real, mediatizando nosso contato com

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o mundo. Posto que quem possui o domínio da linguagem são aselites, é segundo seus critérios e seus interesses que os fatos setransformam cm histórias. As 673 páginas que compõem estamonumental epopéia do povo brasileiro, constroem-se como umesforço para contrapor à fala autorizada das elites, a fala dopovo, fazendo vir à tona as verdades contidas no saber popular,quase sempre oral, ocultado pela inegável legitimidade que pos-sui, no mundo ocidental, a palavra escrita.

Donaldo Schüler aponta VPB como um feliz exemplo de ro-mance dialógico, onde uma multiplicidade de vozes "distribuem-se em duas vozes gerais: a voz dos dominadores e a voz dos do-minados. As vozes se conjugam como máscaras que alternada-mente encobrem o narrador, hostilizam-se sem que uma silenciea outra. O romance de João Ubaldo Ribeiro representa bem odiscurso carnavalesco descrito por M. Bukhlin. O discurso mo-nolítico, monológico, autoritário é solapado pela instabilidade,pelo movimento, pela liberdade, pela invenção, pela novidade,pelo imprevisto" (Schüler, 1989, p.33-4).

Esta estratégia narrativa estabelecida por João Ubaldo Ri-beiro oferece ao leitor um segundo Brasil, voluntariamente não-oficial, exterior à História oficial. Recriando a realidade brasi-leira como dualidade o autor realça o caráter heterogêneo daformação cultural brasileira, revalorizando os aportes indígenase africanos, sem folclorizá-los subvertendo uma tradição literá-ria vigente até os anos 60 (Jorge Amado, Jorge de Lima) queprivilegiava a dimensão exótica da cultura do outro.

O maravilhoso como possibilidade de reler a história

Esta característica constitui-se cm um fator de transtextua-lidade com os autores do Caribe de língua francesa (Haiti) ouespanhola (Cuba) que optaram pela via do Real Maravilhosopara produzir seus romances que eqüivalem - como VPB - averdadeiros inventários de cosmogonias. Que relação tem o ma-ravilhoso com o desvendamento das verdades históricas esque-cidas?

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Vejamos primeiramente como ele foi definido por Jacqucs-Stephen Alcxis. Para o escritor haitiano, o Maravilhoso é "oconjunto de imagens com as quais o povo reveste sua experiên-cia e reflete sua concepção do -r.undo e da vida, sua fé, sua es-perança, sua confiança no homem e a explicação que dá aosobstáculos do progresso. Assim, o povo transpõe naturalmentesuas noções de 'relatividade' e de 'maravilhoso' em sua visão darealidade cotidiana" (Alexis, 1970, p.49-50). O realismo maravi-lhoso seria o resultado do aproveitamento que o escritor fazdeste maravilhoso , trazendo-o para dentro da escrita realista.

Como já foi sublinhado, a História retém os fatos que cor-respondem, de algum modo, às exigências do momento e aospreconceitos do vencedor. Libertando o saber intuitivo, mani-festo nos mitos, nas tradições orais e nos ritos religiosos de umacomunidade, o escritor resgata fragmentos da História, secreta-da no inconsciente da comunidade, impossíveis de serem aces-sados de outro modo.

João Ubaldo Ribeiro, nas inúmeras descrições dos rituaisafro da Bahia que oferece ao leitor, longe de pretender evocar oexotismo neles contido, descortina pouco a pouco o mundo dosnegros, principalmente o mundo da noite (tempo da prática dosrituais), desconhecido dos brancos que conhecem apenas omundo do dia, tempo do trabalho e da humilhação dos castigos .

Sim, não eram os mesmos, esses negros antes foliando no terrei-ro da capela e agora espalhados em pequenos grupos aqui e ali nacapoeira. Eram mandingueiros, isso sim, feiticeiros da noite, gentemandraca que só ela, gente versada nas coisas da pedra cristalina, dopoder das almas e das divindades trazidas da África nas piores condi-ções e mal podendo sobreviver ali, gente capaz de com as plantas domato infusar os mais terríveis filtros envenenados e os amavios maisirresistíveis, capaz de costurar e amarrar os espíritos por toda espéciede sortilégio, capaz de ver o futuro em toda sorte de prcsságio, capazde conhecer o lado mágico de todas as coisas (VPlí, p. 148).

O espaço da capoeira, onde se praticam os ritos sagrados,transforma os escravos dóceis e humilhados, em mandingueiros,feiticeiros da noite capazes de utilizar plantas para curar c para

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matar, capa/cs de ver o fu turo e de conhecer o lado mágico dascoisas.

Assim, duram.. :m r i tual de possessão, a personagem Dadi-nha, representando na trama romanesca a testemunha de umpovo sem testemunhas - os escravos - decide, no dia em quecompleta cem anos c sabendo que vai morrer, transmitir aos de-mais escravos da ilha de Itaparica, a memória que possui da his-tória de sua gente. Neste relato, a vo/ do narrador desaparecetotalmente, cedendo lugar à personagem que, na condição demembro mais velho da comunidade conhece a gênese de sua tri-bo. A função deste discurso é semelhante à das longas narrati-vas orais dos gríots na África: fa/er passar de geração em gera-ção a tradição oral c, ao mesmo tempo, convocar os membrosda tribo a transformarem-se de receptores em novos emissorespara que a tradição se perpetue.

No sctechcmo, no setenta ou no oitenta, quando nem sombrade nada disso tinha aqui, só as baleias c as mesmas gentes, assim ounão assim, chegou Darissa da Bissínia, que era maluco, maluco, mui-tíssimo variado. A cidade da Bissímnia é Diz-Abobra, ele porém nãotrazendo abobra, trazendo religião antiga, que aqui não pôde com-bater. O povo dele é galinha, nem fazia cococó. Foi antes que bota-ram os padres regular zixuítas para fora, lê conto, hum-hum (W*/?,p.75-76).

Pela boca de Dadinha, fala também o caboclo Capiroba queé cafu/o (negro com índio) e um dos primeiros personagens aserem descritos no romance, uma espécie de rccscritura de Ma-cunaíma, que se deleita com a prática da antropofagia. Estepersonagem mítico, que o autor situa em 1647, é , segundo alembrança de Dadinha, o ancestral fundador, tendo gerado Vu,que gerou Dadinha, que é mãe de Vevé, a que nasceu predesti-nada com um sinal na testa, sendo a primeira de sua genealogiaa ser violada por um branco (Perilo Ambrósio), dando origem àheroína do romance, Maria da Fé (mestiça).

Na medida em que Dadinha incorpora o caboco (na fala deDadinha é caboco e não caboclo) Capiroba, este revive, passan-do a funcionar como um supernarrador que, embora s i tuado

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fora do espaço e do tempo ia narração, possui autoridade espi-ritual sobre o auditório. Maximilien Laroche, ao estudar as pro-duções orais (oralitura) no Haiti (contos nitos, etc.) destacaque o papel c possuído num ritual vociuj -o c o de um ser du-plo (desdobrado) que adquire os poderes do espírito que o ca-valga. Logo, Dadinha é apenas um porta-voz do caboco, veículode sua mensagem, cuja interpretação, conforme Laroche, "sópode se dar como resultado de uma cooperação, de uma transa-ção entre o narrador e o auditório" (Laroche, 1987, p.43).

A longa elocução, que provém desta simbiose dos dois per-sonagens durante a possessão, traz à tona, além da descrição daancestralidade que remonta aos reis da Abissínia dos quais des-cendem os escravos da Bahia, uma detalhada nomeação do pan-teão dos orixás oriundos de uma "religião muito antiga" que aquisincretixaram com os santos católicos. O discurso-testamcnto deDadinha finali/a com a menção de uma extensa seqüência demáximas, síntese da sabedoria popular, que pode parecer cansa-tiva ao leitor dcsprevcnido, mas que corresponde a uma técnicanarrativa própria dos autores latino-americanos e caribenhos denomear as coisas da América até a exaustão, pois que nomear édar um destino às coisas:

Bicheira de boi, reze pelas cinco chagas de Nosso Senhor, come-çando: mal que corneis a Deus não louvais! E nesta bicheira nãomais comerais! Asma, moa buzo peguari, ou sinãp cavalinho do martorrado, bem moidinho, tome com água, passa tgsse e pio do peito!Samambaia do brejo, cravo-da-índia e mel de abeia, bom, bom,bom! Garrafada e cmprasto de erva santa! Arueira! Mulungu! Paude leite! Leve aguiri debaixo do subaco quando for à luta, aperparebem aperparado! (Vl>li, p.77-8)

Fica evidente a intenção do autor de valorizar e de legitimaresta fala, como aquela que traz as marcas da verdadeira históriado negro no Brasil, opondo-a a discursos de outras personagensque representam o cientificismo do século 19. Esses pretensosdiscursos científicos são desmontados pelo autor que, através daironia, dessacraliza-os, desmistificando as falácias que contêmmalgrado o impressionante e rebarbativo léxico que os veicula .

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Durante uma reunião social onde se encontram represen-tantes da elite in te lec tual do Brasil na época - a aristocracia (obarão) e o clero (o cônego) - este último introdux os conceitosmaldigeridos sobre a desigualdade das raças que são demolidospelo autor que os envolve em uma retórica parnasiana e ultra-passada, recheada de citações latinas:

As classes sociais das cidades gregas oferecem preciosas lições, aserem aproveitadas dentro das exigências modernas. Somente o ócio,o ochnn cwn dignitate, permitiu o florescer do pensamento grego,pois do resto cuidavam os escravos. Mas eram escravos de raças le-tradas e inteligentes, brancos da Ásia menor, as vezes gregos mesmo.As circunstancias eram diversas, bem diversas (...) E com que conta-mos, como elemento servil? Com os negros, com a raça mais atrasa-da sobre a face da terra, os descendentes degenerados das linhagenscamíticas, cuja selvageria nem mesmo a mão invencível da Cristan-dade conseguiu ainda abater ou sequer mitigar (K/Vi, p. 119).

Com este procedimento narrativo, João Ubaldo Ribeirovisa restabelecer o equilíbrio perdido, desarticulando ideologiasque ao se apresentarem como racionais e científicas projetaramcones de sombra sobre a cultura popular: tudo que era autócto-ne no Brasil era marginalizado pela palavra onipresente dos le-trados.

Adotando a perspectiva do maravilhoso, o autor reverteeste esquema sublinhando que é este discurso, aparentementedesconexo, bárbaro e não-cartesiano, que traz cm seu bojo a sa-bedoria, o conhecimento da vida e a outra face da história dosoprimidos. Esta focalização o coloca em interlocução privilegia-da com os autores do Caribe que souberam compreender quepor trás da magia do vodu e do maravilhoso dos contos e mitospopulares , se inscreve uma outra visão da história dos vencidos,assim como Freud vislumbrou que a decifração da linguagemsimbólica dos sonhos poderia ser um caminho para a compreen-são da consciência humana.

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A transgressão dos conceitos

Em estudos anteriores 'Bernd, 1988), concluiu-se que o ele-mento que caracteriza fundamentalmente a poesia negra é oconstante ritual de transgressão que pratica, revertendo os valo-res estabelecidos c questionando a ordem simbólica geralmenteimposta pela elite dominante. Este movimento carreia uma pro-posta de reconstrução do mundo sob novos parâmetros de re-presentação simbólica.

Nessa vertente se alinha João Ubaldo Ribeiro cuja obracorresponde a uma revisão sistemática de todos os discursos deautoridade, que excluem a cultura das classes populares, e auma conseqüente reordcnação deste universo considerado apartir da ótica dos excluídos. Esse trabalho se concretiza basica-mente na subversão de dois conceitos: o conceito de povo e oconceito de herói.

O conceito de povo

A questão do povo brasileiro nucleia a narrativa, fazendoparte do título que, sendo o primeiro elemento de contato doleitor com a obra, configura-se como sua principal chave de de-cifração.

Quem é o povo brasileiro de que fala João Ubaldo Ribeiro?O autor tira partido da polissemia do termo, empregando-o empelo menos duas acepções, que dividem as personagens em doispólos opostos. De um lado, as elites dominantes utilizam povosempre com o valor pejorativo de "aglomeração de gente, multi-dão" e, muito freqüentemente, em referência ao conjunto depessoas pertencentes às classes menos favorecidas, como sinôni-mo de "plebe" ou "ralé". De outro, as classes subalternas recupe-ram o sentido primeiro do dicionário, ou seja, aquele referente"ao conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm cos-tumes e hábitos idênticos, afinidades de interesses, uma históriae tradições comuns", ou "ao conjunto de pessoas que constituemo corpo de uma nação".

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A expressão povo brasileiro surge, no romance, de uma reu-nião de escravos que, por volta de 1827, passam a se encontrarna casa da farinha, próxima à sen/ala da Armação de Bom Je-sus. Durante essas reuniões, Júlio Dandão transmite seus segre-dos e fala de uma misteriosa "canastra" que contém saberes queseus irmãos precisam conhecer. Abre a tampa da canastra eprincipia

a puxar segredos, um segredo atrás do outro, cada qual mais maio-ral, havendo quem afirme tenham sido libertados inúmeros espíritosde coisas, maneiras de ser, sopros trabalhadores, papéis que não sepodia ver com os dois olhos para não cegar, influências aéreas, asverdades por trás do que se ouve (VPB, p.212).

Estava com isso a personagem fornecendo o substrato co-mum ao qual poderia ancorar-se a identidade do "povo brasilei-ro". Ao final do ritual maravilhoso, Dandão convoca os assisten-tes para juntos fundarem uma i rmandade clandest ina: a irman-dade do povo brasileiro.

Vê-se que na origem do povo brasileiro, do ponto de vistadas camadas subalternas, está uma comunidade de negros uni-dos por partilharem o manancial comum de tradições que esta-va aprisionado na canastra à espera de quem as libertasse. Esta-va assim fundada a irmandade do Povo Brasileiro (com maiús-culas), cuja saudação passou a ser "Viva nós!", "Viva o povo!".

A esta voz, ecoa em contraponto, outra que veicula o con-ceito de povo segundo a ótica dos poderosos, o qual exclui defi-nitivamente os negros c mestiços.

Q^o1 será aquilo que chamamos de povo? Seguramente não éesta massa rude, de {letrados, enfermiços, cncarquilhados, impaluda-dos, mestiços e negros. A isto não se pode chamar um povo, não eraisso o que mostraríamos a um estrangeiro como exemplo de nossopovo. O nosso povo é um de nós, ou seja, um como os próprios eu-ropeus (VPB, p.245).

Como se pode depreender, apesar dessa cena do romancese passar em 1827, portanto com o Brasil já independente dePortugal, a mentalidade das elites cont inuou ainda por longo

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tempo colonizada, correspondendo a um prolongamento dopensamento europeu. Os ilegrantcs dessa elite letrada, com-posta por proprietários rurais, comerciantes, padres, além daintelectualidade institucionalizada, consideravam-se "europeustransplantados", defendendo com unhas e dentes a ideologia dobraiiqiieaniento , segundo a qual a miscigenação crescente dosnegros com estoques raciais europeus terminaria por branqueara população brasileira.

Na esteira do que comprovou Eduardo Galeano, em seu li-vro As caras e as máscaras, João Ubaldo Ribeiro, através de su-tis estratégias discursivas que abalam os alicerces das ideologiascristalizadas como verdades incontestáveis, reafirma a tese deque a tão-propalada "dependência cultural" da América Latinarestringiu-se à camada ilustrada, enquanto a massa, compostaquase que em sua totalidade por negros, soube preservar um le-gado cuUural graças ao qual podemos hoje falar em cultura bra-sileira.

O conceito de herói

A construção de uma nação passa pela recuperação e afir-mação da identidade nacional a qual se funda num patrimôniocomum de mitos, lendas, tradições orais e feitos históricos comseus respectivos heróis. A preservação desse patrimônio é o le-gado maior que uma geração transfere à outra.

E recorrente, em VPB, o projeto do autor de desmascarar oprocesso de mistificação que sempre cercou, na formação daHistória do Brasil, a construção de heróis. Do início ao fim desua caudalosa crônica épica, João Ubaldo Ribeiro "denuncia oapressado processo que presidiu a transformação de pessoassimples (e mesmo mal-intencionadas) cm heróis, procurandomostrá-los pelo avesso através da ironia e da paródia.

Já nas primeiras páginas, o autor apodera-se do discursohistórico para subvertê-lo, mostrando que a necessidade decriar "mais e mais heróis" levou os historiadores a transformarem herói o alferes José Francisco Brandão Galvão, morto demaneira acidental. Em seguida, a origem espúria da heroicidade

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de Pcrilo Ambrósio, o Barão de Pirapuama, é desmascarada,numa manobra explícita do autor de violar os textos históricosfundadores de nossa nacionalidade os quais ignoraram delibcra-damentc a participação de outras etnias que não a branca nosfeitos épicos.

Contracenam com esses heróis agônicos, heróis obscurosoriundos das camadas populares como Maria da Fé, mulata, queé vista pela sociedade branca como bandida e malfeitora, "aque-la que semeava o terror e a desordem". Da Fé c uma espécie deversão feminina de Zumbi dos Palmarcs e Antônio Conselheiroque, retirando-se para o espaço intocado da floresta, tenta uniros negros cm torno da valorização de sua cultura e da revitaliza-ção de sua linguagem, vistas pelos brancos como bárbaras, como"algaravias néscias e primitivas". O objetivo de sua luta é a liber-tação dos escravos e a união do povo a qual só ocorrerá no mo-mento em que for recuperado o orgulho de ser brasileiro.

É através da confecção dessa figura de herói alto, que pos-sui qualidades superiores as dos comuns dos mortais e que é ca-paz de sacrificar a própria vida cm nome de seus ideais, queJoão Ubaldo cria um pólo de positividade antagônico ao com-posto pelas elites dominantes. Dito de outra forma, em torno daheroína, gravitam valores altamente positivos como a preocupa-ção com a memória coletiva, o elogio do trabalho e da mortedigna, o espírito de revolta c de luta contra a opressão, enquan-to, em torno das elites, circulam valores negativos como a falsi-dade, a corrupção, a mentalidade colonizada, a alienação cultu-ral e a morte indigna.

A figura do herói resume a tomada de consciência coletivade que existem meios de lutar contra a opressão. A zona de ten-são entre opressores e oprimidos se adensa, ficando nítido queos primeiros são capazes apenas de atos individuais e competiti-vos que lhes garanta a situação de dominação, enquanto entreos últimos medra a consciência de que o caminho da liberdadepassa necessariamente pela organização coletiva.

É lícito concluir que a construção do herói aqui difere dade Mário de Andrade que concebeu o "herói de nossa gente"como um anti-herói, assim como a de Jorge Amado, cm Jubiabá,

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onde o negro impera como um rei festivo 10 território livre darua. Em VPB, a feição de herói épico traa;cional que assume apersonagem Maria da Fé é justificada pela intenção do autor demostrar que este País carece de lideranças extraídas das classesdesfavorecidas que possam guiá-las para destinações outras quenão as da miséria e da exploração.

Maria da Fé, falando de um lugar fora do poder, se consti-tui como heroína pela posse da ;nguagem: em sua fala ressoamoutras falas através das quais c possível recuperar uma tradiçãoautóctone que remonta ao caboclo Capiroba e suas práticas an-tropofágicas. Distanciada deste ideal de devoração do outro, afala das elites é a fala do poder na qual ecoa uma tradição euro-péia, dando origem a personagens dominados por falares repe-tidos e esclerosados. As duas falas, evidentemente, não podementender-se por estarem inscritas em formações discursivas dis-tintas, historicamente determinadas de modos totalmente diver-sos.

As falas do povo brusilci:

Scguindo na esteira de Mário de Andrade, em Macunaíma,João Ubaldo Ribeiro logra reviver, nos anos 80, a revolucionáriaexperiência modernista de proceder a revisão de nossa forma-ção histórica e cultural, questionando a figura do herói no inte-rior dessa formação. Assim, Viva o povo brasileiro revisita osmomentos decisivos da história nacional, deslocando saberes es-tratificados como verdades inquestionáveis, e traz para o pri-meiro plano os personagens obscuros oriundos das camadas po-pulares, flagrando-os em sua busca de afirmação.

A resultante é um vasto painel mulliforme onde a hegemo-nia da camada ilustrada da população é relativizada e onde opapel do negro na construção da identidade nacional é reavalia-do.

Associação de escolas ReuniJasr— ASSER —

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A falei hegemônica cias eliles

Iniciando o romance com a história da gênese do "povo"brasileiro, João Ubaldo evidencia, desde as primeiras páginas, africção entre os três principais grupos étnicos formadores danacionalidade brasileira, enfati/ando que o negro c o índio fo-ram sempre vistos como outros pelo colonizador branco, princi-palmente pelos jesuítas, cuja visão ctnocêntrica determinou,desde logo, uma postura fóbica em relação às culturas autócto-nes. Para esses missionários, a cultura européia era a cultura e,portanto, negros e índios não passavam de "selvagens de pérfi-dos costumes". Isso gerou necessariamente um choque de con-ceitos étnicos que certamente inibiu o intercâmbio cultural , poisa produção autóctone era desqualificada pelos brancos.

Este é o tom das páginas iniciais de Viva o povo brasileiro oqual determina a estrutura da narrativa que se desdobrará comouma tentativa de compor o diálogo que não houve entre domi-nadores e dominados, através do qual o autor demonstra que acamada letrada da população brasileira será marcada, ao menosaté o final do século 19, pela trágica herança colonial de privile-giar o estrangeiro em detrimento do nacional.

Nessa medida, João Ubaldo reatualiza a visão poética pau-brasil, de 1928, e sua recusa do lado "doutor" de nossa cultura,caracterizada pelo estilo importado da vida intelectual. Confor-me afirma Benedito Nunes, este foi

um estilo imitativo, que se desafogou na erudição c na eloqüência,na mental idade hacharelc.se;!, comum ao nosso jurista c ao nossogramático, o primeiro imaginando o império das leis sobre a socieda-de c o segundo o da gramática sobre a linguagem. O bacharclismo, ogubinetismo c o acadcmismo, as frases feitas da sabedoria nacional, amania das citações, tudo isto serviria de matéria à poesia pau-brasil,que decompõe humoristicamcnte o arcabouço intelectual da socie-dade brasileira, para retomar, através dele ou contra ele, no amálga-ma primitivo por este arcabouço recalcado, a originalidade nativa, cpara fa/.cr desta o ingrediente de uma arte nacional exportável (Nu-nes.. 1978. p.21).

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De fato, a lição oswaldiana é reencenada no romance deJoão Ubaldo que irá criar várias personagens que encarnarãoeste "estilo importado da vkla intelectual" caracterizado, princi-palmente, pelo bovarismo, pelo falso cientismo, pelo germanis-mo e pela francomania. Um desses personagens é o mulato Am-leto Ferreira que nega sua origem negra e introjeta de tal ma-neira os valores brancos que não consegue mais ouvir os escra-vos falarem em suas línguas de origem - as quais considera "lín-gua de animais" - preferindo exprimir-se em um português tãorecheado de citações latinas e francesas que se torna pratica-mente incompreensível.

Em um diálogo entre Amleto (representando a burguesiaemergente do início do século 19), o côncgo (representando aIgreja) e o barão (representando os senhores de escravos), o au-tor destaca, através de um hábil jogo interdiscursivo, o vazio re-tórico que caracteriza o discurso das classes dominantes im-pregnado do cientismo que marcou o século 19 e que serviu,com suas teorias racistas, de justificativa à manutenção do insti-tuto escravista.

Conforme sublinha Dante Moreira Leite , será somente du-rante o século 19 que as ciências naturais se popularizam noBrasil, sobretudo a sua aplicação ao estudo das raças humanas.Assim, os trabalhos de Gobineau terão grande repercussão en-tre as camadas ilustradas brasileiras que se valerão delas paraperpetuar certas instituições como o escravismo.

No texto de João Ubaldo, transparece esse mosaico discur-sivo que constitui a convenção dominante do século passado naqual se justapõem as teorias científicas da época, todas elas nu-cleadas pela idéia de que "as debilidades latinas" tinham que sercorrigidas pelo exemplo das nações anglo-germânicas. Isso esti-mulava as elites a olhar o longe para compensar a convivênciaobrigatória com o elemento servil, ou seja, com os negros, "araça mais atrasada sobre a face da terra".

É esse saber livresco das elites que João Ubaldo tenta des-construir, mostrando, ainda segundo a receita oswaldiana, suavacuidade através do humor e da paródia. Contrariamente aodiscurso popular, sempre transmitido através de uma linguagem

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espontânea e mesclada de africanismos, como é hoje a línguaportuguesa do Brasil, o discurso das elites vem sempre envoltopor um estilo grandiloqüente e obscuro, uma espécie de parna-sianismo empolado e tardio, necessário para dar aparência deverdade às mistificações que vciculava.

Se a geração de Amleto (primeira metade do século 19)deixou-se sedu/.ir pelo brilho do discurso científico, a geraçãode seu filho, Bonifácio Odulfo, que viverá em um Brasil já inde-pendente de Portugal, é a própria representação da intelectuali-dade francomaníaca finissecular que vive a trágica experiênciade se relacionar com a cultura do outro, no caso a européia emais especificamente a francesa, considerando-a como superiorà sua a qual será, por conseguinte, subestimada e interiorizada.

Bonifácio, que é poeta, vê o povo a partir de uma focaliza-ção externa, totalmente desvinculada da realidade, revelandouma completa falta de consciência nacional. Seus gestos deixamtransparecer, a cada página, seu bovarismo que consiste emconceber-se outro do que é na realidade. Odulfo faz o elogioconstante das metrópoles européias: "Se tivesse nascido naFrança ou na Inglaterra, nas mesmas condições em que nascerano Brasil, a que alturas já não teria chegado?" (VPB, p.477)

Com João Ubaldo, o texto literário torna-se o espaço privi-legiado de encontro de várias tipos de discurso como o históri-co, o científico, o bíblico, o etnográfico, etc., que se interpene-tram, reconstituindo os discursos flutuantes dos vários momen-tos da nossa História. A rede intcrdiscursiva resultante autori/.ao leitor a concluir que entre as elites dominantes, desde o perío-do colonial até os dias de hoje, medrou sempre uma consciênciade hipervalori/ação da cu l tura européia, conformando a condi-ção periférica do Novo Mundo em relação ao Centro (Europa).Assim, a l i teratura praticada por Bonifácio Odulfo, represen-tando a crítica do autor à dependência cultural da intelectuali-dade brasileira do século passado, não ó mais do que um reflexode uma consciência ingênua, de uma visão da l i teratura como"sorriso da sociedade" a qual perdurou até o Modernismo de1922.

Tal postura traz, como conseqüência lógica, o desorezo rIas culturas do País, manifestando-se pela negação daSa^êdo negro e do índio que são degradados ao estatuto de objetoO discurso desses segmentos autóctones é seqüestrado pelosdoadores, pois deixar falar o outro, citar o discurso do ou'

ro, e uma operação perigosa: implica em correr o risco de réiar à posição de sujeito f. Moser). Esse risco a classe do-

uiante brasileira não estava aisposta a correr.

A fala resgatada do povo

Enquanto a fala autorizada da aristocracia é sabotada pelotratamento corrosivo que dispensa-lhe o autor, a fala popular érecuperada e convocada a integrar a trama discursiva num pro-jeto consciente do narrador de resgatar a "originalidade nativa"de que falava Oswald de Andrade, mediante a qual se constrói aconsciência crítica dos oprimidos.

A exemplo dos romancistas do Caribe que se debruçaramsobre o maravilhoso dos contos e mitos populares, transmitidosoralmente, para através deles captar uma versão diferente dahistória caribenha subtraída dos textos escritos, que privilegia-ram a visão dos dominadores, João Ubaldo Ribeiro volta suaatenção para o verdadeiro cadinho de manifestações culturaispopulares que é a Bahia.

Deixando-se contaminar pela linguagem e pela visão domundo dos personagens extraídos das camadas mais humildes,o autor identifica-se com a sua interpretação do Brasil e assumea via do maravilhoso que lhe possibilitará a redescoberta e a re-valorização da cultura brasileira. Assim, os rituais do candom-blé e outros ritos praticados pelos descendentes de escravos nãosão descritos como bárbaros e nem tampouco como exóticospara dar cor local; eles integram a estrutura romanesca comoformas alternativas de narrar um outro Brasil.

Os rituais são para Hubert Fichte (1987, p.17) formas de or-ganização da relação do ser humano com o mundo. O autor,que estudou a antropologia poética das religiões afro-america-

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nas, entende o ritual como o espaço onde o tempo de vida ind i -vidual liga-se ao tempo universal coletivo,^ como uma construçãode apoio, como uma espécie de psiquiatria e de higiene menul .Em Viva o povo brasileiro, João Ubaldo focaliza numerosos ri-tuais de iniciação, descrevendo-os do mesmo ponto de vista deFichte: para o povo, a experiência da salvação ocorre através dotranse, ou melhor, através da transformação do próprio crente,ao contrário do cristianismo que prega a redenção como algovindo de fora. Nas religiões afro-americanas, durante o transe, ocrente torna-se um deus, podendo vencer a morte, a miséria eoutros males.

Eusébio Macário, o único personagem pertencente à e l i teque se interessa pelos saberes do povo e que decide empreen-der uma volta épica às suas origens, regressando "ao país natal",a ilha de Itaparica, para entender o seu passado, transforma-setotalmente durante um ritual de iniciação. Entendeu que

a magia não é feita de fora, mas de dentro. Por isto 6 que se fala tan-to na necessidade de ter fé para que as coisas aconteçam, pois a K.afinal, não passa de uma maneira de ver o mundo que torna possí-veis aquelas coisas que se deseja que aconteçam. A fé, portanto, íum conhecimento, conhecimento que ele não tinha e que ninguímpoderia lhe dar, só ele mesmo, embora pudesse ser ajudado

Esta e outras passagens onde o narrador detalha as meta-morfoses que ocorrem durante os rituais afro-brasileiros vincu-lam o autor à linhagem latino-americana do realismo maravilho-so cujo objetivo é , como explica Irlemar Chiampi, o de "problc-matizar os códigos sociocognitivos do leitor, sem instalar o pa-radoxo. Manifesta-se nas referências freqüentes à religiosidade,enquanto modalidade cultural capaz de responder à sua aspira-ção de verdade supra-racional. Em El reino de este mundo, deAlejo Carpentier, a série de acontecimentos legendários que an-tecederam a independência do Haiti é sistematicamente vincu-lada ao pensamento mítico dos negros, para evitar o efeito defantasticidade que converteria a própria História num impossí-vel referencial" (Chiampi, p.63).

Esse apelo recorrente às aparições, metamorfoses, transesprofundos e outros efeitos sobrenaturais utilizados no romancelatino-americano e em Viva o povo brasileiro, não são evocadospor seu colorido e exotismo, mas com o propósito de problema-tizar a racionalidade da tradição européia e, sobretudo, de no-mear até a exaustão tudo que define o continente americanocom "as vozes daqueles cujo discurso lão foi turvado pela tenta-ção de dominar o mundo", como escreveu Wolfgang Bader, noprefácio ao livro de Hubert Fichte.

Assim, no capítulo 14, João Ubaldo narra a batalha deTuiuti, episódio da Guerra do Paraguai ocorrido em maio de1866, do ponto de vista do humilde ajudante de cozinha, ZéPopó, que oferecerá um relato desse episódio totalmente diver-so dos encontrados nos livros de História, pois, iniciado no can-domblé, o personagem vale-se do panteão dos orixás para reveros principais lances da batalha.

As mitologias ocidentais são aqui totalmente substituídaspela mitologia afro-americana e o leitor é levado a confrontar-se com a revisão de fatos históricos que eleja conhece, mas quelhe são apresentados como obra dos orixás que, incorporandonos soldados vão se tornando os verdadeiros responsáveis pelosacontecimentos. Deste modo, cada episódio da batalha é trans-mutado em obra de algum orixá, tudo sob a supervisão geral deOxalá, pai dos homens, que convocando Oxóssi, senhor das ma-tas, Xangô, mestre do fogo e do machado, e Ogum, senhor doferro, entram "pelos corações e cabeças de seus filhos, trazendo-lhes às gargantas os gritos de guerra dos ancestrais" (VPB,p.442).

Tudo acontece pela intervenção das entidades dos cultosafro-brasileiros que traduzem os conflitos subjetivos das cama-das subalternas do Exército brasileiro. Recriando o concilio dosdeuses na Guerra do Paraguai, João Ubaldo propõe uma "expli-cação" para os eventos tecendo os elementos do maravilhoso detal forma que o leitor não se vê obrigado a escolher entre a ver-são histórica e a sobrenatural, mas a revisar a separação existen-te entre ambas. Isso o insere na tradição latino-americana doreal maravilhoso onde, como assinala Irlemar Chiampi, o real e

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o maravilhoso "combinam-se harmonicamente, sem antagoni/aras duas lógicas" (Chiampi, p.65).

Esse capítulo sintetiza a proposta ficcional do autor a qu.iise configura no resgate das crenças religiosas, das tradições cmitos populares com o intento de restaurar a capacidade dopovo de olhar o perto , trazendo de volta o "familiar coletivo"oculto pela repressão da racionalidade. A proposta se completacom a integração do leitor neste processo enquanto "ser da co-letividade, enquanto membro de uma (desejável) comunidadesem valores unitários e hierarquizados". Esta forma narrativaconsubstancia, segundo a definição de Irlemar Chiampi, o rea-lismo maravilhoso, trilhado pelos melhores autores caribenhusde língua espanhola e francesa, como Carpentier e JacquesStephen Alexis, cujo "efeito de encantamento restitui a funçãocomunitária da leitura, ampliando a esfera de contato social e oshorizontes culturais do leitor" (Chiampi, p.69).

A população, no período colonial brasileiro, era compostade 75% de negros e mulatos. Portanto, a cultura popular tão-va-lorizada por João Ubaldo é essencialmente a cultura negra. Efoi por acreditar que os mitos que permeiam esta cultura são fa-las verdadeiras, mais reveladoras que as formas escritas da His-tória, que João Ubaldo pôde compor este painel multiformepara explicar a construção de nossa identidade nacional , semcircunscrevê-la a um quadro único de referências, mas tentandoflagrar o seu contínuo processo de engendramento.

Incorporando fragmentos de toda sorte de documentosorais e escritos, VPB se integra na vertente de nossa literatura,mencionada no início deste trabalho, que tentou, pela via doépico, explicar a nossa formação cultural e exaltar os heróis de"nossa gente". Marcas da tradição revolucionária do modernis-mo podem ser percebidas na obra que, contudo, ultrapassa asconvenções literárias anteriores, na medida em que os efeitos desentido produzidos por uma linguagem despida de convenciona-lismos destroem sistematicamente a idéia de transparência con-tida nas ideologias veiculadas desde o início da colonização quesó serviram para instituir, entre os brasileiros, um eterno pro-cesso de autodesvalorização.

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Viva o povo brasileiro se tornará, sem dúvida, um clássicoem nossa literatura não só por trazer até o leitor os ecos dos ás-peros tempos de nossa história colonial como por utilizar umalinguagem que, agregando a "contribuição milionária de todosos erros", logra captar o espírito brasileiro em todas as suasnuanças. A obra fascina por ser um ponto de encontro de cami-nhos, um mosaico de diversidades, onde a relação dialética en-tre nós (grupo social e cultural ao qual se pertence) e os outros(os que são percebidos como não fazendo parte deste grupo) sevolatiliza. O emaranhado de falas que se interseccionam no teci-do narrativo permite-nos concluir que a identidade do povo bra-sileiro, como a dos povos caribenhos e latino-americanos, seráforjada a partir da reconciliação das diferentes formações cultu-rais que estão na sua origem.

À obra de João Ubaldo Ribeiro pode ser lida como um lon-go poema épico, embora subverta a lição aristotélica, segundo aqual toda epopéia deve ter um epílogo, de preferência verossí-mil e feliz. Efetivamente, a aula de História do Brasil fica incon-clusa: o livro termina com a canastra de Júlio Dandão, agoraem posse de Macário, sendo aberta indevidamente por ladrões.É reativado aqui o simbolismo do cofre que sempre contém se-gredos, encerrando e separando do mundo o que é precioso,frágil ou temível. Sua abertura deve corresponder a uma revela-ção, entretanto, para o "povo brasileiro", isso não acontece, poisque a abertura ilegítima da canastra compromete a revelação dotesouro da tradição nela contido. Assim, os ladrões nada pude-ram ver, exatamente porque, conforme ensinam as antigas mito-logias, "os cofres só podem ser abertos em hora providencial-mente desejada e apenas por aquele que legitimamente possuira chave" (Chevalier e Gheerbrant). No entanto, este caráter ina-cabado não é sintoma de pessimismo, mas talvez esteja a assina-lar que a incompletude é própria da identidade e seu movimen-to de eterno devir. Com o estrondo e a tempestade que a aber-tura da canastra provocaram e a conseqüente explosão da casada farinha,

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ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no nv do tempo-ral, o Espírito do Homem, erradio mas cheio de esperança, vagandosobre as águas sem luz da grande baía (VPB, p.673).

Para concluir, poderíamos tentar desenhar o esquema quese pode depreender destas obras cuja função dessacralizante fã/emergir o discurso excluído:

- o escritor se apropria do espaço e do referencial míticoamericano, descrevendo-o a partir de um ponto de vista endógc-no (a partir de seu interior);

- concepção de tempo baseada na constatação do inevitávelfracasso que representa a volta nostálgica às origens : o passadonão é evocado com o intuito de fazer do presente um tempo depermanência, mas para permitir que se vislumbrem as potencia-lidades do futuro;

- construção de um discurso transgressivo que através demecanismos múltiplos procura relativizar o discurso hegemôni-co cuja função primordial é "criar e manter um consenso em tor-no de uma concepção de mundo que visa, em última análise, de-finir a identidade coletiva" (Cambron, 1989, p.182). Entre estesmecanismos de relativização estão a ironia, a paródia, a intcr-discursividade, enfim, a heterogeneidade de linguagens;

- em relação à construção do herói, observam-se duas ten-dências: a presença do anti-herói, ou a falência do conceito deherói tradicional, e a construção do herói emblemático oriundodas camadas populares, no caso de Viva o povo brasileiro, a figu-ra do herói é representada por uma mulher, mestiça, logo du-plamente excluída, cujo papel é resgatado;

- construção da identidade é relativizada pelo que se pode-ria chamar de críoulidade,.ou seja: da multiplicidade de diferen-ças pode emergir uma relação harmoniosa, equidistante da"guetização" (obsessão pela identidade onde é impossível surgi-rem vozes dissidentes) e da universalização absoluta (negaçãototal da noção de qualquer tipo de identidade ou de especifici-dade) .

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NÓS E OS OUTROS

Tomamos de empréstimo a Todorov o título destas reflexõ-es finais: "nós e os outros". Para o autor, nós remete aos mem-bros de uma mesma comunidade, enquanto outros são os quenão pertencem a ela.

Na verdade, o processo de autonomização das manifesta-ções literárias que têm sua gênese em situação colonial será fa-talmente marcado pelo jogo dialético nós/outros. No início doperíodo colonial, aquele que escreve não se sente ainda parte deum nós brasileiro e sabe que para ser lido terá que presumircomo receptor o outro, o europeu, pela falta de um sistema local(autor-público-leitor), como já assinalou Antônio Cândido. Es-sas são as regras da escritura em situação periférica as quais de-terminam que o centro é "ailleurs", isto é, além-mar. A trajetóriaem direção à autonomização c, finalmente, à construção de umaliteratura nacional com identidade própria implica um lento pro-cesso de reccntramento, um percurso que inicia pela sensaçãopor parte do escritor de sentir-se "em casa" com os objetos cul-turais que o cercam e pela certeza de que escreve para pessoasque junto com ele compõem o nós.

O texto literário, como integrante do discurso social, (enten-da-se por discurso social "tudo o que se diz e se escreve em um es-tado de sociedade; tudo o que se imprime, tudo o que se fala pu-blicamente ou se representa na mídia eletrônica; ou melhor (...)as regras de encadeamento de enunciados que, em uma socieda-de dada, organizam o dizível - o narrável e o opinável - e assegu-ram a divisão do trabalho discursivo", Angenot, 1988), será umdos mediadores privilegiados do processo de afirmação e deconsolidação da consciência nacional, devido a sua própria es-pecificidade que é a de conter em si mesmo uma infinidade de

ReunidasAssociação oe

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discursos como o histórico, o político, o filosófico, etc. Paraalém da cacofonia discursiva resultante da soma dos discursoscm circulação na sociedade, existem dominantes intcrdiscur.si-vas, maneiras de conhecer c de representar o mundo que sãopróprias a uma sociedade. E a isso que, desde Antônio Granis-ci, se dá o nome de hegemonia .

A hegemonia funciona, pois, como "um instrumento de con-trole, como uma vasta sinergia de poderes, de imposições, demeios de exclusão arbitrários" (Angcnot,1988). Assim, o texto li-terário atua ora como fator de reforço desta hegemonia, corro-borando a ideologia "oficial", ora como tentativa de sabotá-la,de agir corrosivamente sobre ela, constituindo-se como dissi-dência à fala exclusiva do poder. Na maioria dos casos, os dis-cursos que realmente se agenciam como dissidência, ocuparãoas sombrias regiões da marginalidade, pois a hegemonia possuiuma extraordinária força Icgitimantc impondo as regras da "nor-malidade", deixando, portanto, à margem qualquer tentativa desubversão desta normalidade.

Deste modo, vimos a literatura brasileira constituir-se, até uinício de nosso século, com um alto grau de aderência ao proje-to nacional hegemônico orientado para a formação de uma na-ção brasileira mestiça, porem preponderantemente branca. A li-teratura exerceu, então, uma função sacralizante, empenhando-se em aderir c solidificar este projeto. O negro foi o grande "au-sente da história", para usarmos expressão de Michel de Cer-teau, bem como o índio, incluído apenas para justificar uma an-cestralidade original, logo diluída pela pretendida supremaciaétnica c cultura! do colonizador.

O tempo foi para os autores dessa fase (Basílio da Gania.Santa Rita Durão, Alencar), o da memória coletiva, visando auma totali/.ação mítica do presente, do passado e do futuro, poiscomo escreveu o crítico qucbequcnse, Pierre Ncpveu, "a conti-nuidade e uma certa repetição são essenciais ao tempo nacio-nal". Afastando-se desta perspectiva, Euclides da Cunha t raba-lha a tcmporalidade em termos de progresso e de evolução, es-tabelecendo uma ligação mais efetiva entre presente e f u t u r o .

Foi nosso intento demonstrar que, a partir do Modernismo(1922), a literatura passou a exercer preponderantemente umafunção dessacralizadora, na medida em que pretendeu contra-por-sc à excessiva cristalização dos discursos que, da última dé-cada do século 19 às primeiras do séculos 20, imperavam nacena brasileira, solidificando-se cm torno "da definição de umaentidade abstrata corporificada nas obras, criações individuaisque refletiriam um 'caráter' ou 'espírito coletivo': o ser nacional"(Ventura, 1991, p. 166). Injetando no tecido narrativo a hetero-geneidadc das linguagens, a ironia, a paródia, a "contribuiçãomiraculosa de todos os erros", a antropofagia, a poesia pau-bra-sil, enfim o trabalho de Mario e Oswald de Andrade e dos de-mais modernistas, desencadeia um processo de desestabilizaçãode uma visão homogeneizante que tendia a consolidar-se.

Contudo, é preciso lembrar que estes períodos não foramestanques, isto é, ao mesmo tempo em que atuavam predomi-nantemente as forças sacralizantcs, autores como Lima Barreto,Manoel Bomfim e Araripc Júnior, por exemplo, tentaram, cadaqual à sua maneira, criar zonas de tensão, distanciando-se efragmentando os rituais discursivos dominantes da época. Deoutra parte, após a revolução modernista com sua extraordiná-ria capacidade de curto-circuitar práticas culturais e linguagei-ras esclerosadas, portanto no momento em que a literatura bra-sileira exercia em sua plenitude a função dessacralizante, auto-res houve que retomaram a orientação sacralizadora c celebrati-va na criação de suas obras. Vejamos alguns exemplos:

O CONTRADISCURSO DE MANOEL BOMHM E DE LIMA BARRETO

Em fins do século 19, inícios do século 20, a intelectualida-de brasileira vive um clima de euforia pela adesão a teoriascientíficas, em grande circulação na Europa, quase todas elasfundadas no princípio da desigualdade entre as raças. Muitosescritores brasileiros como Euclides da Cunha, Sílvio Romcro,Tobias Barreto, Afrânio Peixoto entre outros deixaram-se sedu-zir pelo transformismo de Darwin, o evolucionismo de Spenccr,

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o racismo "científico" de Gobincau e Max Müllcr, o positivismode A. Comte e o naturalismo de H. Taine. Transformado, subs-crito cm parte, adaptado à realidade nacional, este cicniismotransformou-se em ideologia servindo, ao mesmo tempo, de a l i -cerce à formação da nação brasileira c de justificativa de meca-nismos discriminatórios c racistas. Evidentemente que enire osfrutos desta absorção científica estão obras medíocres, mas tam-bém, inegavelmente, grandes obras da literatura brasileira comoOs sertões e a produção crítica de Silvio Romero. O que é im-portante assinalar, contudo, c que as vozes dissidentes, isto c, asvozes daqueles autores que já na época ergueram-se cm disso-nância em relação ao que a ciência atual provou tratar-se deequívocos, ficaram à margem da instituição literária.

O caso de Manoel Bomfim ilustra muito bem o que estamospretendendo mostrar. A historiografia l i terária não pode ser vis-ta como série fechada, ou seja, dentro de uma diacronia, de uma"evolução", mas como série aberta (Jauss, 1970), sujeita a cons-tantes redefinições. Assim, em meio a um esforço sacrali/.antepor parte da maioria dos autores empenhados na definição docaráter nacional brasileiro, o contradiscurso da dissidência per-maneceu inaudível. A partir de 1910, Bomfim critica as basescientíficas e ideológicas das teorias racistas e chama "a teoria dainferioridade racial de 'sofisma abjeto do egoísmo humano' e'etnologia privativa das grandes nações saltcadoras'" (Ventura,1991, p.62). Em sua trilogia: O Brasil nação, O Brasil na históriae O Brasil na América, é praticamente o único, à época, a salien-tar as virtudes do indígena e do negro c as vantagens do cru/a-mento com o português, e a criticar os republicanos que qual i f i -cava de ignorantes por desconhecerem o marxismo e estarem"dissolvidos no molho de um positivismo cego" (Bomfim, 1940,p.295).

Contrariamente aos consagrados Joaquim Nabuco, SílvioRomero , Afrânio Peixoto e Euclidcs da Cunha que aceitam apremissa básica do racismo, a superioridade da raça branca,Manoel Bomfim considerava que "é anti-patriótico e ignorantedefinir o negro , que caracteri/a a massa de nossa população,como sendo inferior". Acreditava que isto consistia em uma

"imitação grotesca da ciência" pelo bacharelismo, em referênciaaos bacharéis da Escola de Recife (Bomfim, 1931,p.243).

A atualidade do pensamento de Bomfim é tão grande quetalvez a mais lúcida interpretação da situação de subdesenvolvi-mento do Brasil, feita por Antônio Cândido, no antológico arti-go "Literatura e subdesenvolvimento", de 1973, coincide, em suaessência, com teses defendidas por Bomfim: "a única inferiori-dade de que sofrem os brasileiros não é de raça", podendo serexplicada pela "nossa evolução social que foi desigual, turbada ehesitante".

Enquanto os autores "triunfantes" têm a sua obra legitimadapela historiografia literária brasileira, Bomfim, assim comoLima Barreto (1883-1922) e Cruz e Sousa (1861-1898), vão cons-tituir a periferia do sistema discursivo, estabelecendo um anta-gonismo explícito ao pensamento hegemônxj dominante, sendoque o valor de suas obras só será resgatado muitos anos depois.

A utilização das teorias científicas que dominavam a cenaliterária brasileira no apagar das luzes do século 19 e na viradapara o século 20 permitiu a elaboração de uma literatura extre-mamente homogênea e "coerente". A experiência estética deLima Barreto - que teve, entre outros, o infortúnio de ser con-temporâneo do maior escritor da literatura brasileira de todosos tempos, Machado de Assis (1839-1908), - se instala como umantagonismo explícito às idéias recorrentes de seu tempo. Éatravés de seus textos que entramos em contato com um Rio deJaneiro dos pobres, da pequeno-burguesia, dos proletários, dosdiscriminados e dos fracassados. Mulato e alcólatra, ocupandocie próprio enquanto indivíduo o espaço da margem, ele produ-ziu seguramente a obra mais corrosiva de seu tempo. Sua timi-dez e sua aversão às luzes da academia, bem como as teses dis-sonantes que ele defendia a contrario da formidável doxa doinício do século, são as principais razões da rejeição e da incom-preensão da crítica a seu respeito durante um longo período.

Em Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), LimaBarreto se identifica ao seu personagem, o jornalista humilhadoIsaías Caminha. Não se pode afirmar que o autor foi o primeiro

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de sua geração a introduzir o tema do destino trágico do mesti-ço no "mundo dos brancos". O escritor romântico BernardoGuimarães introduzira o tema, de maneira aliás bastante ambí-gua, cm A escrava Isaura, em 1875, tendo sido seguido pelos na-turalistas Aluísio de A/cvcdo que publicou, cm 1881, às véspe-ras da Abolição, O mulato, c por Adolfo Caminha, autor de Obom crioulo, em 1895.

O autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha apre-senta, contudo, algo de novo na medida em que, contrariamentea seus contemporâneos, não se deixa seduzir pela magia daciência, mas a vê como fonte de preconceitos. Não somente elenão adere à moda que assimila cegamente o modelo europeu dateoria das raças, como o condena e o rejeita. Foi, sem dúvida, oprimeiro a compreender que as razões pelas quais acusavam-senegros c mulatos não eram devidas às suas características indivi-duais, mas essencialmente às condições sociais desfavoráveis emque viviam em sua maioria os membros das comunidades ne-gras.

Isaías Caminha, duplo de Lima Barreto, conheceu na carneo estereótipo cm circulação na época e ainda hoje na sociedadebrasileira: os negros devem aprender a conhecer o seu "lugar"que é, evidentemente, inferior ao dos brancos. O racismo seexerce ferozmente quando negros e mulatos decidem mudar de"lugar" e subir na escala social. O narrador exprime assim o dra-ma dos descendentes de escravos ou de ex-escravos que têm po-tencialidades intelectuais e que representam uma ameaça vir-tual à ecologia do sistema:

Verifiquei, que, ate o curso secundário as minhas manifestaçõ-es, quaisquer, de inteligência e trabalho, de desejos e ambições, t i -nham sido recebidas, senão com aplauso ou aprovação, ao menoscomo cousa justa e do meu direito; e que daí por diante, dós que medispus a tomar na vida o lugar que parecia ser de meu dever ocupar,não sei que hostilidade encontrei, não sei que estúpida míi vontademe veio ao encontro, que me fui abatendo, decaindo de mim mes-mo, sentindo fugir-me toda aquela soma de idéias c crenças que nualentaram na minha adolescência e puerícia.

Cri-me fora de minha sociedade, fora do agrupamento a que ta-citamente eu concedia alguma cousa c que em troca me dava tam-bém alguma cousa (Lima Barreto, 1984, p. 17).

A troca de lugar, isto é, a ascensão do negro na sociedadebrasileira do início do scculr rcvcla-se impossível, pois o dis-curso social da época negava aos negros a possibilidade de par-ticipar da vida intelectual da nação. Segundo a doxa dominante,a falta de inteligência estava na base da inferioridade dos ne-gros. A ingenuidade do personagem Isaías Caminha, que acre-ditava que com um diploma poderia apagar o "pecado originalde sua origem modesta", choca-se contra a força destes precon-ceitos. Progressivamente o personagem descobre que, para seupatrão no jornal como para a maioria dos brasileiros, "os ho-mens e as mulheres de (sua) origem são todos iguais". O resulta-do de toda esta violência da sociedade onde Isaías era apenas o"mulatinho", apesar de sua instrução e de suas capacidades inte-lectuais, foi a perda progressiva de sua ingenuidade política esocial. O personagem acaba por compreender que nesse meiosocial hostil aos negros, seria preciso empregar violência paraimpedir que "os canalhas e os covardes" o liquidassem comple-tamente.

Como afirma Silviano Santiago, no prefácio da edição fran-cesa de Memórias do escrivão Isaías Caminha , a exemplo de

(...) Machado de Assis, Lima Barreto e Isaías Caminha acabampor retirar de suas sucessivas experiências, tristes c decepcionantes,de seus anos de formação e de seus primeiros anos de vida profissio-nal uma visão cética da realidade. Eles acabam por descrever comcrueldade os jogos do poder e da hipocrisia na sociedade brasileira,de um modo que ainda hoje nos seduz (Santiago, 1989, p. 11).

A FORÇA CELEBRATIVA DO ROMANCE DE JOSUÉ MONTELLO

A obra de Josué Montello, Os tambores de São Luís (1978)que se constrói como tentativa de narrar, através de uma famí-lia, a saga de três gerações de escravos no Brasil desde a chcga-

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da nos navios negreiros até a Abolição, deixa de introdu/ir notecido literário - em que pese o valioso resgate da memória dapresença negra em nosso País - elementos que consideramossubversores de uma ordem tradicional, no que concerne à re-presentação literária do negro, entre as quais privilegiamos: anarração em primeira pessoa, ou a estratégia do narrador-tcstc-munho que liberta a "voz" do negro que passa a contar a histó-ria de seu ponto de vista. Ao contrário, o autor preserva o quese pode chamar de convenção romântica , pois que remonta aCastro Alves, alongando-se em excessivas descrições dos casti-gos físicos impostos aos escravos, ressuscitando, assim, o marti-rológio, além de pôr cm cena a figura estereotipada do senhorde escravos como "monstro vil", recaindo no tipo de interpreta-ção, já criticada por Mário de Andrade, em Aspectos da literatu-ra brasileira, a qual se fundamenta na visão do instituto escravo-crata como deformação moral, em vez de denunciá-lo como de-formação da sociedade.

Nesse sentido, o romance de Josué Montello se chega a des-mascarar alguns aspectos importantes ainda não desvendadospela literatura brasileira, mascara outros na medida em que suaestrutura narrativa se constrói como adesão a uma ordenaçãodiscursiva tradicional, tendendo à função sacralizadora. O textorecupera o uso nostálgico da temporalidade, mantendo-a presaao horizonte mítico, dado pela totalização entre presente, pas-sado e futuro.

Sua concepção de mestiçagem reforça o discurso hegemôni-co e se filia sobretudo aos argumentos paternalistas de GilbertoFreyre (Casa-grande e senzala) no sentido em que faz o elogioda miscigenação, mas da miscigenação que tende ao branqitea-inento dos brasileiros. Quando Damião olha seu bisneto, afirma:"Ele não é negro, nem mulato, mas um bom brasileiro". Segundoeste ponto de vista, as tensões entre brancos c negros no Brasiltenderiam a acabar à medida que se daria a mistura das raças.Montello reedita assim os argumentos de seu mentor intelec-tual, Gilberto Freyre, e conclui, no fim do romance que, à medi-da que o sangue negro se dilui, de geração em geração, d i m i n u io ressentimento da escravidão.

POR UMA ESTÉTICA DA DEVORAÇÃO

Entre as formas da construção (função sacralizante), quetendem ao homogêneo e até mesmo à negação radical da alteri-dade, e as formas da desconstmção (função dessacralizante), queintroduzcm o heterogêneo, condição primeira do literário (Ro-bin, 1989, p.171), logo, entre uma construção identitária de pri-meiro grau, que se inclina por vezes ao etnocentrismo e à gueti-zação, e a negação total da identidade, isto é, a renúncia categó-rica ao que é particular e específico, neste entre-lugar, estariamsituadas as obras onde interagem e se alternam os mecanismosde construção/descontrução, introduzindo o que Glissant chamade Poética da Relação. Nas bases desta poética - concebida peloautor a partir do estudo da problemática cultural que envolve asAntillhas de língua francesa que, tendo vivido um processo deassimilação à cultura européia e de conseqüente perda das raí-zes culturais africanas, base de sua população, encontrava-se emuma situação de completa alienação cultural - está a possibilida-de de as culturas que se originaram em situação colonial - comoa nossa - de construírem uma cultura "compósita", afastada aomesmo tempo de renúncias fáceis de sua especificidade culturale de um enquistamento excessivo em torno, no caso, dos valoresnegros, o que seria um processo cstcrilizante.

A Poética da Relação concebe, pois, o resgate da identida-de cultural, portanto o resgate das raízes culturais, o conheci-mento dos elementos fundadores da cultura a que se pertence,como fundamental na medida em que permitirá o comércio, ointercâmbio, a relação com a cultura do outro. Este equilíbrioevidentemente não é fácil de ser atingido: Octavio Paz já afir-mou que "o conhecimento da cultura do outro é um ideal con-traditório, pois exige que mudemos sem mudar, que sejamos ou-tros sem deixar de ser nós mesmos". Assim, a história da relaçãoentre as culturas tem oscilado entre a hipervalorização da cultu-ra estrangeira, caracterizando a mania (francomania, no Brasildo século 19, anglomania na França do Iluminismo, etc.); a re-jeição total da cultura do outro, configurando-se como fobia(cultura alemã durante c pós-Segunda Guerra Mundial, cultura

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negra no Brasil até bem pouco tempo atrás) , e afilia que seria arelação harmoniosa entre as diversas culturas (tT. Pagcaux eMachado, 1981, p.50-51). Assim define Edouard Glissanl o sercapa/ de viver esta harmonia assegurando sua entrada na mo-dernidade:

Trata-se (através do> aval ares das lutas particulares que ocorre-ram cm toda a parte ao longo da cadeia das Américas) da apariçãode um homem novo que eu definiria, tratando-se de sua "ilustração"literária, como um homem que está cm condições de viver o relativodepois de ter sofrido o absoluto. Chamo de relativo, o Diverso, a ne-cessidade opaca de consentir na diferença do outro; e chamo de ab-soluto a procura dramática de imposição de uma verdade ao Outro(Glissant, 1981, p. 156).

Talvcx. se possa afirmar que autores como Darcy Ribeiro eJoão Ubaldo Ribeiro se situem neste espaço intervalar, prati-cando alternadamente a construção e a dcsconstrução, incorpo-rando elementos da cul tura oral exilados da li teratura "culta",dcsfa/.endo hierarquias e buscando continuamente reinventar acul tura brasileira e encontrar novas formas de aprcendc-la e deprojetá-la na perspectiva do diverso c da relação.

Embora seja apenas a part ir do Modernismo que a Antro-pofagia será pensada e proposta enquanto manifesto c progra-ma estético, a literatura brasileira constituiu-sc gradualmenteatravés de mecanismos sucessivos de devoração dos modelospreexistentes. Mesmo na prática da imitação que foi rcali/adanos primeiros séculos, sempre houve adaptações, transforma-ções, formas de marronage a partir das quais o "modelo" não eramais exatamente o mesmo, sendo freqüentemente transgredido.

A formação da l i teratura brasileira corresponde a momen-tos sucessivos de estcti/ação das formas híbridas tra/idas pelasdiferentes culturas cm presença no Brasil. Houve uma espéciede compreensão implícita do fato de que o nacional não seriaatingido por subtração, isto é, pela eliminação das "influenciasestrangeiras invasoras", mas pela absorção, a deglutição e a di-gestão destas diferentes influências (cf. Schwartz, 1987, p.29-48). Entretanto, será somente com a Antropofagia que se passa-

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rá a aceitar a cópia "rcgcneradora", de que nos falava Oswald deAndrade, e a viver sem sentimento de culpa o pecado oricinalde ter copiado.

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