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7/26/2019 Cultura e Tradies negras no Mesquita- Um estudo da matrifocalidade numa comunidade remanescente de quilo
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Cultura e Tradies negras no Mesquita:Um estudo da matrifocalidade numa comunidade
remanescente de quilombo
Suelen Gonalves dos Anjos1
Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar os resultados finais do projeto deiniciao cientfica vinculada ao programa PIBIC-UniCeub/CNPq e ao grupo de estudosPAD:estudos em filosofia, raa, gnero e direito humanos, a pesquisa teve por objetivoverificar a permanncia de prticas culturais de matriz africana na comunidaderemanescente de quilombo Povoado do Mesquita situada a 24km de Luzinia-GO. Talinvestigao foi realizada sob uma perspectiva de gnero e, uma vez que entendemos ser amatrifocalidade o ponto central da existncia das comunidades negras e afro-descendentesempenhamo-nos em verificar o papel das mulheres negras na preservao e transmisso deprticas materiais e simblicas de origem africana na comunidade do Mesquita. Ascategorias gnero e raa, as teorias das representaes sociais, da anlise, do discurso e docotidiano nortearam nosso trabalho.
Palavras-chave:historia da cultura afro-brasileira, histria regional, histria das mulheres,matrifocalidade
Culture and black traditions in Mesquita: A study of matrifocal in a community of quilomboremaining
Abstract: This article has as an aim to report the final outcomes of the scientificalbeginning project linked to the PIBIC UniCEUB / CNPq project and group of studiesknown as PAD: studies in philosophy, race, gender and human right, the research hasas aim to check the stay of cultural practices of African origin in the quilombo remainingcommunity namely Povoado de Mesquita situated 24 km from Luziania in the state ofGoias. Such investigation was achieved under a perspective of gender, and since thematrifocal is understood as being a central point of the existence of black communities andAfrican descendants. The role of black women was checked in the preservation andtransmission of material and symbolical practices from black origin in the community ofMesquita. The gender and race categories, the theories of social representations, the
analysis, the discourse and the everyday guided the work.
1 Licenciada em Historia pelo Centro Universitrio de Braslia- UniCEUB. Orientadora: Dr JoelmaRodrigues da Silva, Faculdade de Cincias da Educao - FACE , curso: licenciatura plena em Histria,UniCEUB Centro Universitrio de Braslia
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Key words: history of African Brazilian culture, regional history, women history,matrifocal.
Introduo
O Povoado do Mesquita, uma comunidade remanesceste de quilombo
goiano, foi o cenrio escolhido para a realizao do projeto de iniciao cientfica
vinculado ao programa PIBIC-UniCeub/CNPq e ao grupo de estudos PAD: estudos em
filosofia, raa, gnero e direito humanos, ao longo do artigo sero apresentados os
resultados de trabalhos realizados junto a comunidade durante um ano e quatro meses.
No Brasil a famlia patriarcal africana ter fortalecida sua
matrifocalidade, isto : sob a escravido, as mulheres negras sero, na maior parte dos
casos, as nicas responsveis pela manuteno da cultura material e simblica, alm da
sobrevivncia dos membros do grupo familiar. Sero elas as figuras centrais dessa nova
famlia estruturada sob a escravido e no perodo ps-abolio. As mulheres negras no
Brasil que, quando escravas eram negras de ganho, quando livres passaram a negociar
bens materiais e simblicos; a respeito do trabalho feminino desenvolvido nos dois lados do
atlntico, Terezinha Bernado informa:
Fui para a frica, encontrei as africanas ocupando oespao pblico: estavam nas feiras, trocavam bens. Masno eram s objetos materiais que elas trocavam, astrocas dirigiam-se tambm para os bens simblicos:eram msicas, oraes, danas, receitas para curar ocorpo, receitas para aconchegar os coraes.(...)Acompanhei essas mulheres na dispora, em terrasbrasileiras presenciei as lutas para sua sobrevivncia e ade seus filhos, uma vez que, no lugar da poliginia,grande parte das africanas e suas descendentes viverama matrifocalidade. Saram pelas ruas de grande parte dascidades brasileiras vendendo artigos de primeiranecessidade, quitutes preparados com suas prpriasmos. Eram as famosas negras de tabuleiro. Foramtambm para as feiras, abriram suas quitandas econtinuaram a trocar bens materiais e simblicos.2
2 BERNARDO, Terezinha. Negras, mulheres e mes : lembranas de Olga de Aleketu. SP/EDUC,RJ/Pallas,2003. pp. 16
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A famlia negra no Brasil ir, por presso do modelo escravista,
reformular sua organizao e transmitir estas reformulaes as suas descendentes. A
respeito da famlia negra Russel-wood escreve:
A discusso dos arranjos domsticos e familiares dosescravos deve centrar-se no papel e na condio damulher. A instituio da escravatura, os caprichos dosdonos e os costumes predominantes na Amricaespanhola e portuguesa exerciam sobre as escravas umaserie de presses sociosexuais. Estas milhavam contrauma famlia escrava composta de pai, me e filhos.Disso resultou a intensificao do papel da me e atendncia das famlias escravas de serem matrifocais.3
A populao negra no Brasil, durante aproximadamente 400 anos, foi
marcada pelo trabalho escravo. Milhes de homens, mulheres e crianas reduzidos
condio de coisas/objetos/ferramentas construram o que identificamos com as riquezas do
pas. A atual historiografia brasileira tem se esforado para mostrar que os quatro sculos
de escravismo no foram capazes de fazer calar as vozes dfrica, sendo os quilombos a
expresso mais concreta dessa resistncia. O negro s se humaniza pelo crime, afirmou
Jacob Gorender e os quilombos foram percebidos como um aglomerado de criminosos j
que a fuga era crime passvel de morte4.
Mesmo na tradicional historiografia brasileira os Quilombos so
apresentados como smbolos da resistncia negra. Espalhados por todo territrio brasileiro
significam que em nenhum momento os escravos acataram a absoluta desumanizao a
qual eram submetidos. Se, como ensinou Foucault, onde h poder h resistncia, e se a
existncia dos quilombos, seu nmero e durao nos dizem que a resistncia foi uma
constante no perodo escravista, a presena das comunidades remanescentes de quilombos
nos informa tanto da recusa da sociedade brasileira em conviver com a presena dos negros
livres e reconhecer que a liberdade implicaria necessariamente em cidadania, quanto damanuteno de formas de vida cotidianas herdadas da frica e transmitidas de gerao a
3RUSSEL-WOOD, A.J.R.Escravos e libertos no Brasil colonial.RJ:Cvivilizao Brasileira,2005.p.34.4Clovis Moura esclarece que (...)No podemos deixar de ver o quilombo como um elemento dinmico dedesgaste das relaes escravistas.No foi a manifestao espordica de pequenos grupos de escravosmarginais, desprovidos de conscincia social, mas um movimento que atuou no centro do sistema nacional, e
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gerao. Assim, possvel afirmar que a resistncia negra se deu por meio da formao de
espaos de luta e tambm pela preservao do simblico.
A pesquisa bibliogrfica nos mostra que as prticas culturais
tradicionais protegidas por mos femininas foram e so fundamentais para a existncia do
povo negro, Fernanda Carneiro assinala ser :
(...) indiscutvel a extraordinria fora das religiescomo fonte de aprendizado, apoio e sustento daexistncia negra no Brasil. H muitas formas deproteger a liberdade humana movidas por algo designificao verdadeira. Impedir a desorientaoatesta entre os negros no Brasil colonizado, a isto,tambm, chamamos tica. A expresso estticaancestral se manifesta nos cultos e nos modos deviver, danar, brincar, procriar, adoecer ou buscar acura. E o sentir-se feliz em sua existncia, comunicaa tica negra. A expresso corporal negra retoma odevir das particularidades e garante umacontinuidade e permanncia tnica que no sejustifica por leis naturais. 5
A formao do quilombo do Mesquita tem uma peculiaridade que a
imagem das trs mulheres negras fundadoras da comunidade que legaram a preservao das
tradies culturais de matriz africana. Em princpio, uma comunidade que possui - j no seu
mito fundador - a imagem feminina, no poderia deixar de ter mulheres exercendo papis
de grande importncia, por isso resta-nos verificar quais foram/so estes papeis e os modos
como so apreendidos, interpretados e resignificados pelos membros da comunidade.
Acreditamos que o esquecimento e desvalorizao das tradies culturais de origem
africana devem-se tanto ao racismo inscrito na estrutura da sociedade brasileira, quanto ao
fato de terem sido as mulheres, as responsveis pela guarda e transmisso dessa cultura, que
ento duplamente desvalorizada. De maneira extraordinariamente forte, sutil e violenta,
permanentemente(...) MOURA, Clvis.Africa & Brasil.In: Quilombos do Brasil, Revista Palmares n5.Fundao Cultural Palmares/MinC, Brasilia,2000.5 CARNEIRO, Fernanda. Nossos passos vem de longe.In:WERNECK, Jurema (org).O livroda sade das mulheres negras: nossos passos vm de longe. RJ, Palla/Criola,2000.p.24(sublinhados meus)
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racismo e machismo se conjugam e mantm solidamente erguidas as muralhas do
preconceito e da discriminao no Brasil contemporneo.
Um breve histrico...
De acordo com a Associao Brasileira de Antroplogos :
O termo Remanescente de quilombo hoje no se referea resduos ou resqucios de ocupao temporal ou decomprovao biolgica. Tambm no se trata de gruposisolados ou de uma populao estritamente homognea.Da mesma forma nem sempre foram constitudos apartir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas,
sobretudo, consistem em grupos que desenvolveramprticas de resistncia na manuteno e reproduo deseus modos de vida caractersticos num determinadolugar.6
Embora o primeiro pensamento para remanescente remeta ao
Quilombo de Palmares, atualmente, compreende-se por remanescentes, tambm as
comunidades fundadas aps o fim oficial (legal) da escravido, ou seja, aquelas no
fundadas por negros/negras fugidos/fugidas, mas por pessoas negras e livres que
construram espaos para sobrevivncia , uma vez que o processo abolicionista foiextremamente excludente e perverso com a populao negra e afro-descendente brasileira.
A respeito da importncia das comunidades quilombolas, a antroploga Leinard Ayer de
Oliveira esclarece ser preciso, primeiramente, mostrar
(...) que a data de 1888, embora seja um marco formalpara os negros no Brasil, no tem importncia central noque dia respeito aos quilombos.Enquanto vigora aescravido, e sabemos que a Lei urea s vemformalizar uma realidade conquistada pelas populaes
negras uma vez que quase todos os escravos j sehaviam liberto quando da assinatura da lei, osquilombos sero o nico espao onde muitos negros,excludos pela nova ordem que se configura, poderosobreviver fsica e culturalmente. Os quilombos
6 Comisso pr-indio de So Paulo: http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/oque/home_oque.html,acessado em 2001/2006
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continuam representando a resistncia negra. ,portanto, perfeitamente lgico falar-se em quilombosmesmo aps 1888 (...)7
As Comunidades remanescentes de quilombos constituem grupos que
compartilham uma identidade que os distingue dos demais. Tal identidade assenta-se emdiversos fatores como: ancestralidade comum, estrutura de organizao poltica prpria,
sistema de produo particular (inclui-se a as formas especficas de explorao e
relacionamento com a terra) e partilha de elementos lingsticos e religiosos ou de smbolos
especficos. A posse de algumas destas caractersticas possibilitou ao Povoado do Mesquita
receber em junho de 2006 o titulo de Remanescente de Quilombo pela Fundao Palmares 8.
O remanescente de quilombo Povoado do Mesquita localiza-se no
municpio da Cidade Ocidental a 24 quilmetros da cidade de Luzinia, no estado de
Gois, entorno sul do Distrito Federal, possuindo pouco mais de 3 (trs) mil habitantes.
Formado h 150 anos, por uma populao quase que totalmente negra, o Arraial do
Mesquita, comporta descendentes dos escravos trazidos na poca da minerao para a
antiga cidade de Santa Luzia, hoje Luzinia,.
Os negros foram os primeiros moradores do Povoado do Mesquita
numa regio fortemente tingida pela escravido. Em 1763, durante o perodo ureo da
explorao das minas de ouro, a antiga Santa Luzia chegou a ter 16.529 habitantes, dos
quais 12.900 eram escravos. Entretanto, a fartura do ouro durou pouco; de 1746 a 1775,
neste perodo, muitos escravos foram mortos pela dureza da minerao, especialmente pela
febre nascida do Ribeiro do Inferno, hoje Santa Maria.
Com o declnio da minerao, muitos senhores preferiram abandonar
as terras na Capitania de Gois, uma vez que esta se tornara local de difcil sobrevivncia.
Segundo os relatos, foi esse o momento em que trs negras forras receberam as terras das
mos de seu antigo senhor, um certo Mesquita, e l fixaram suas famlias. A fundao da
comunidade, segundo seu mito fundador, ocorreu dessa forma.
7OLIVEIRA, Leinad Ayer de.Identificao dos remanescentes das comunidades dos quilombos. In:SUNDFELD,Carlos Ari (org).Comunidades Quilombolas:direito terra. Braslia: Fundao CulturalPalmares/MinC, Ed. Abar,2002,p.69-86.
8Conforme disposies da Lei n. 6.165, de 2 de dezembro de 1998
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A religiosidade uma das caractersticas marcantes da comunidade. A
Festa de Reis que ocorre em todo o estado de Gois, tambm faz parte das festividades
dessa comunidade e hoje alvo de investimentos do governo9. O Estado tem incentivado
financeiramente as atividades culturais dos Remanescentes de Quilombo, e este
investimento deve-se sobretudo ao lucro advindo do turismo proporcionado pela realizao
das festas.
Cada famlia do povoado responsvel por sua produo, o excedente
vendido nas feiras da Cidade Ocidental, de Luzinia e do Plano Piloto. O doce de goiaba,
a marmelada e a farinha de mandioca, que em sua feitura remete ao cotidiano do Brasil
colonial, so exemplos dos produtos que so produzidos e vendidos pelo povoado.
Desde a construo da Cidade Ocidental, o Mesquita vem sendo
privado, de forma contnua, da posse de suas terras. Isto se d de trs maneiras: pelasinvases de terceiros, pela compra para o estabelecimento de produo nos moldes do
latifndio monocultor, e pela especulao da terra - visando uma futura valorizao para
construo de condomnios, em decorrncia disto, vemos a perda das antigas construes,
verdadeiros documentos histricos que so sistematicamente derrubadas para construo de
outras, de alvenaria ou apenas por ocuparem ,agora, terras privadas.
Grande parte dos moradores do povoado desloca-se diariamente ou
semanalmente em direo a Braslia onde ocupam lugares subalternos no mercado de
trabalho. O crescimento da migrao dos mais jovens um fato e um problema que deriva
em grande parte da perda das terras da comunidade, eles saem procura de novas
oportunidades de trabalho e estudo nas cidades vizinhas (principalmente Braslia e
Luzinia). Este movimento responsvel, em parte, pelo abandono e/ou perda de uma
srie de referncias e prticas, uma vez que Braslia e Luzinia apresentam-se (e so
percebidas) como modernas : logo hierarquicamente superiores ao universo de sentidos
do Mesquita.
A partir da criao do Distrito Federal (DF) e do conseqente
crescimento da regio do entorno, as migraes e emigraes na comunidade se tornaram
mais freqentes, resultando em modificaes nas relaes culturais, econmicas e
9 Nas entrevistas realizadas nas Secretarias municipais tivemos informaes sobre investimentosprincipalmente do Governo Federal ligados a aes de promoo da cultura.
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simblicas na comunidade. A relao com a terra foi e continua sendo alterada pela
conurbao urbana decorrente da criao da nova capital e a grande procura por espaos
prximos a Braslia que levou muitos moradores a vender suas terras, bem como provocou
invases s terras de propriedade da comunidade, no difcil encontrar casos de
desapropriaes indevidas, viabilizadas pelo poder econmico e poltico. Por fim, cito o
exemplo de um processo que tramita h sete anos - de desapropriao das terras onde hoje
existe um condomnio na rea da Regio Administrativa (RA) de Santa Maria - DF. A
populao aguarda a deciso judicial a seu pedido de reviso da desapropriao das terras
pelo governo do Distrito Federal e pede indenizao justa pelas terras.
Em uma comunidade agrcola mudanas nas relaes com a terra
transformam toda a estrutura social vigente, os espaos das relaes de gnero tambm so
atingidos por essas mudanas, como demonstra a fala de d. Antonia:
Nossa casa era perto da Marinha10, mas l era terra dogoverno n? Ai a gente teve que se mudar, compramoscasa aqui mais perto, perto da casa da Sandra. L agente cuidava de tinha criao (de gado), aqui agora templantao de mandioca (...) eu ajudo mais na hora defazer a farinha n?11
Nos tempos que se cuidava da criao dona Antonia cuidava apenas da
sua horta, o gado era vendido para o matadouro e pronto, j a farinha exige um trabalho
diferenciado e a sua participao ganha outra dimenso, mas no menos importncia no que
se refere a manuteno de atividades produtivas tradicionais que implicam diretamente na
sobrevivncia do grupo familiar. Na fala de d. Antonia, vemos ainda o que o discurso
hegemnico capaz de produzir: a Marinha tem o poder de dizer-se proprietria das terras
e ao fazer isto, retira de d. Antonia a legitimidade de sua memria e histria, sem poder de
manter a posse da terra, d.Antonia teve que se mudare alterar as relaes de produo e a
organizao/distribuio do trabalho familiar, seu trabalho hoje classificado comoajuda, sem lugar, d. Antonia tambm no se percebe com poder, nem centralidade.
10 A Marinha um condomnio pequeno, perto de Santa Maria construdo h cerca de 10 anos parafuncionrios da Marinha, fia localizado e prximo tambm a estao de radio da Marinha.11Antonia Pereira Braga, entrevistada em 10 de abril de 2006.
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So mudanas como esta que nos permite perceber e confirmar as
relaes entre o territrio e as tradies. As formas de trabalho e as relaes entre os
gneros so estruturadas e perpetuadas acopladas ao uso do territrio, o Mesquita sofre no
perodo aps a criao do DF, uma mutilao territorial. Alm da criao dos novos
municpios12, um grande nmero de fraes de terra foram vendidas a moradores do DF
que procuravam reas para a construo de casas de fim de semana. Dona Antonia fala de
mais uma forma de mutilao que a desapropriao de terras do governo que, com a
expanso urbana do DF,foram reivindicados pela Unio.
As formas de mutilao condensaram a comunidade do Mesquita em
um territrio consideravelmente menor e cercado de municpios, o que inviabiliza algumas
atividades, no caso da famlia de Dona Antonia a pecuria extensiva foi substituda pela
casa de farinha, e neste caso tanto o plantio de mandioca quanto de seu beneficiamentonecessitam de espaos menores.
Estas transformaes , notadamente perdas, no/do territrio do
Mesquita, se dramaticamente experienciada pelos membros da comunidade, aparentemente
aguardada por outros setores da sociedade que , ao assinalar o l e o eles realam
pelo silncio - a importncia e centralidade do ns:
(...) eu costumo dizer o seguinte: lvai deixar de sertradicional, o Mesquita vai acabar porque j temgente de Braslia que comprou l que est comprandosabe! Vai acabando com aquela cultura que eles tem,vai chegar uma hora que s vai tera Festa da NossaSenhora de Abadia13( itlicos nossos)
O espao do cotidiano
O Cotidiano um espao, um lugar propriamente dito, e neste
lugar que interao entre indivduo e grupo social, engendra personalidades, capacidades ecomportamentos que se misturam em disputa pela escolha dos traos identitrios.
12Municpios em questo: Cidade Ocidental e Valparaizo.13Joo Antonio de Arajo funcionrio do Departamento de desenvolvimento agrcola e pecuria, entrevistadoem 15/11/2005
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O territrio do cotidiano define-se assim por um lugar onde age o
indivduo tornando humana a sua vida. Somos seres sociais, existimos como humanos por
que pensamos,nos construmos e partilhamos o mundo com os outros. Somos no apenas
produtos do meio social, mas somos parte de um grupo social. Dialoga o cotidiano com o
estranho e o diferente, mas somente diante destes que se reconhece..
Ao longo da pesquisa percebemos o cotidiano como guardio das
tradies, isto : verificamos o quanto prticas corriqueiras nos remetem ao passado,
principalmente numa comunidade agrcola onde o tempo parece passar mais devagar e as
tradies tendem a permanecer, aparentemente alheias fugacidade do mundo dito ps
moderno14.
Assim, o cotidiano pode ser o ponto de partida dainterpretao histrica; a sua percepo nainterpretao histrica depende da observao dosacontecimentos dirios a partir de um olharinvertido: aquilo que parece irrelevante pararepresentar uma dada realidade, ali que se revelao histrico, em seu ponto de partida; h algo deemprico na investigao histrica do cotidiano; astcnicas da histria oral e a descrio densa uma etnografia podem fazer se revelar oesquecido na histria. Sua importncia? O fatohistrico no paira no ar. Pertence ao mundo docotidiano, foi ali gerado e o seu retorno a esteterritrio que lhe confere sentido; mais que ocurioso e o novo olhar que concede histria, ocotidiano revela o quanto ela humana, marcadapelo esforo da afirmao do humano em ns e asua incerteza. Este, o conflituoso territrio docotidiano.15
exatamente nas atividades do dia-a-dia que encontramos o que
buscvamos : as culturas e tradies de matriz africana. Ao adentrar nos espaos ocupados
pelas mulheres do Mesquita, encontramos mulheres fortes que lutam por seu territrio, por
14O conceito de ps-moderno ou modernidade tardia diz respeito as sociedades contemporneas e o sistemamundial que passam por processo de transformao social muito rpido e profundos que pemdefinitivamente em xeque as teorias e os conceitos, os modelos e as solues anteriormente consideradoseficazes para diagnosticar e resolver as crises sociais.15
DESDEDITHI, Junior, O territrio do Cotidiano.Publicado em: www.historianet.com.br, acessado em30/08/2005
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sua cultura, pela educao de seus filhos, por melhores condies para sua comunidade. Ao
longo do artigo algumas delas se faro presentes por intermedio de suas falas registradas
ao longo da pesquisa.
E foi no territrio do cotidiano que as entrevistas foram realizadas,
sempre abertas16, foram realizadas nas casas das mulheres, em seus espaos, durante suas
prticas, podemos assim conhecer as prticas das mulheres-mes-trabalhadoras-filhas-
professoras, e tantos outros papis que elas desempenham.
Conhecemos mulheres de muita fibra como Sandra Pereira Braga, a
presidente da Associao de Moradores, que lutou pelo reconhecimento da comunidade
como remanescente de quilombo, o que possibilitou que durante o perodo em que
pesquisvamos, pudssemos ler no Dirio Oficial o reconhecimento pelo INCRA e
Fundao Palmares. Conhecemos tambm jovens com grupos musicais que resignificamem suas letras, a cultura local e professoras que tentam implementar propostas para uma
educao de (re) conhecimento e (re) valorizao das tradies da comunidade.
Durante o perodo destinado s entrevistas foi possvel participar da
Folia de Reis e da Folia para Nossa Senhora da Abadia, acompanhar a colheita do marmelo
e os trabalhos17 desenvolvidos na nica escola da comunidade18. Esta convivncia tornou
possvel experienciar a cultura local, suas formas de resistncia e transmisso.
As folias: a celebrao da comunidade e da religio
Eu gostaria tanto de mostrarO encanto magistral da natureza
Seus olhos iriam deslumbrarAo contemplar assim tanta beleza
A passarada no romper do diaGorjeia em forma de orao
16As entrevistas poderiam acontecer principalmente de duas formas: fechadas e abertas, no primeiro caso oentrevistado responderia as perguntas feitas e eles, e no segundo ( o que optamos) as entrevistas eram abertaso entrevistador apenas sugeria temas, como por exemplo: infncia, as folias e trabalho.17Devido a esta pesquisa, outras estudantes tiveram contato com a comunidade e estamos desenvolvendo umprojeto de Comunicao comunitria com os jovens, com a inteno de resgatar, (re) significar e (re) valorizara cultura local sobre a qual pouco se tem escrito, pretende-se a partir do projeto, fundar uma radio comunitriagerida pelos prprios moradores.18Centro de Ensino Fundamental
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O galo no poleiro anunciaUm outro amanhecer no meu serto.
Revoam sobre a relva verdejanteLindas borboletas multicores
Velozes colibris a todo instanteNo cansam de provar o mel das floresCenrio de rarssimo esplendor
Recanto de amor paz e unioParece que o divino criador
Tambm reside aqui no meu serto19
A folia representa o ciclo da Santssima Trindade, uma festividade
comum a todas as cidades do Gois e entorno do Distrito Federal representando um
momento de f e de comunho da populao. Dona Antnia demonstra isso quando diz:
Eu dou pouso l em casa todo ano na Folia deNossa senhora da Abadia, meus filhos giram20,nela...21
Aos cavaleiros da folia so oferecidos os pousos, o pouso uma
grande festa, realizada noite, com um banquete e oferecida a casa para que todos os
cavaleiros possam dormir (pousar). A folia tem sua lgica prpria e reflete as divises de
gnero presentes na comunidade:
Antigamente mulher no girava no, hoje j tem muita,as filhas do seu Francisco mesmo giram as trs, na Foliade Reis, eu acho que mulher no tem que girar no, isso coisa de homem, eu num acho bonito no22
Quando ela diz eu dou o pouso, percebe-se o espao da mulher como o
espao domstico, mais que isso : s pode dar quem de alguma forma dono, e ela dona
da casa, que pode ou no dar pouso. Nas comunidades agrcolas reservado o espao
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Aquarela Sertaneja Tio Carreiro e Pardinho Composio: Luiz de Castro/Tio, cantada em um dos pousos
da Folia de Nossa Senhora da Abadia.20Para explicar a gira preciso explicar primeiramente a folia, a folia uma espcie de procisso e novenaem que os devotos (os folies) durante os dias que compes a folia seguem em devoo a um santo. Para cadadia h uma casa que sede um pouso (que seria a dormida), e para tal, os folies so recebidos com uma grandefesta, muito comida, bebida e musica, parte do pouso tambm que os folies abenoe a casa e seusmoradores. Girar sair como folio.21Antonia Pereira Braga
22Antonia Pereira Braga.
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domstico s mulheres, porm mais que o espao domstico a elas pertence a cozinha, a
este respeito, Heloisa Capel aponta em artigo,
Surpeendo-me ao visitar, pela primeira vez, uma casa
de fazenda colonial em Gois. Entro pela cozinha eadmiro os utenslios expostos: tachos de cobre e panelasbrilham nas prateleiras dispostas pelo espao. Nosarmrios, compotas de doces, cuidadosamentepreparadas com frutas regionais. Hospedo-me poralguns dias e percebo a dinmica dos afazeres da donade casa. Suas atividades giram em torno da cozinha(...)observo que a cozinha o corao da casa.23
A fala de dona Antonia assinala a cozinha, o privado, o interno como
espao feminino, pois, dar o pouso principalmente oferecer o jantar a todos os folies e
comunidade que comparece folia , ela, junto com as outras mulheres da familia, que
preparam tudo para na vspera da Folia.
As mulheres participam das festividades das folias, no entanto durante
muito tempo no danavam catira24, no giravam, no cantavam25, mas como Dona
Antonia deixa claro, a mulher passa a participar dos outros espaos da festa, quando diz
antigamente mulher no girava no, hoje j tem muita, agora,as mulheres podem tambm
expor sua devoo aos moldes dos homens da comunidade, ainda que as donas Antonias
possam no achar bonito.Um dos folies da Folia do Divino Esprito Santo fala sobre a mulher
na folia:
Mulher pode girar sim, mas s se o dono da foliadeixar, j girei com uma mulher, mas era o dono dafolia que deixa (..) acho que mulher no gira por que agente dorme no mato, toma banho de crrego, se ajeitaem qualquer lugar, por que o pouso na verdade para o
santo n? No tem espao na casa para todo mundoficar, o santo que fica na casa, a gente fica emqualquer lugar, arma rede, ou se ajeita no cho.26
23CAPEL, Heloisa, Cozinha como espao do contra poder feminino In: Fragmentos da Cultura. V. 14 n.6Goiania: IFITEC, 1991. pp. 118424Dana tradicional25A cantoria das modas de viola tambm era uma prtica predominantemente masculina.26Jos Roberto Meireles. Entrevistado em 30/05/2006.
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Desnecessrio assinalar que as mulheres s podem ultrapassar as
fronteiras do privado e ocupar algum lugar no espao pblico se, e quando autorizadas por
um homem (ou grupo de homens), querer girar ou ter devoo no so suficientes para
legitimar a presena das mulheres. Sob uma suposta proteo devida s mulheres, vemos adesqualificao das mesmas enquanto sujeitos, Joelma Rodrigues esclarece:
A inocncia idealizada, imposta e exigida usadacomo instrumento de opresso sobre o inocente.Sepensarmos em relaes generizadas, a defesa dainocncia das mulheres e crianas o solo onde seencontram fixadas sua excluso, submisso e violao.Isto s possvel por um mecanismo que associainocncia a incapacidade, debilidade, incompetncia edependncia. Na verdade, a mulher/menina adjetivada
como inocente tem negados os meios que lhepossibilitam conduzir-se no mundo. A condio deinocente tece a trama que as mantm presas aoprivado, ao pai/marido.27
O espao da cura: sabedoria e f
A tradio da cura um outro espao importante para a preservao da
cultura, e nesse espao que o conhecimento dos africanos, ndios e portugueses mais semisturaram. Uma das faces da cura a benza28que cura no apenas os males do corpo, mas
tambm os provenientes de mal olhado entre tantos outros males. A fitoterapia uma das
mais conhecidas e praticadas formas de cura tradicional nas comunidades rurais e cidades
de pequeno e mdio porte existentes no Brasil:
No mato tem remdio para tudo, tem quebra-pedrapara dor, tem sete-dor, cidreira, e a gente aproveitatudo29
J havia entre ndios e africanos, enorme e variado conhecimento a
respeito da flora tropical e o contato entre eles fez ainda mais frtil o uso de plantas. No
27Joelma Rodrigues, Sobre mulheres e destino, Revista Pad: estudos em filosofia,raa,gnero e direitoshumanos, ano 1 numero 1, Braslia:UniCEUB,2006.28Benzer no apenas medicar mas inclui tambm rezas, palavras especificas para os mais diversos males.
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somente as comunidades rurais negras faro uso freqente desta forma de medicina, bem
como nos espaos urbanos brasileiros. Benzedeiras podem ser encontradas em quase todas
as cidades brasileiras, como diz dona Jeronima:
Antigamente a gente chamava a benzedeira parabenzer os meninos logo depois que o umbigo caia, hojequais no se faz mais isso.30
E elas possuem cura no apenas para males da sade fsica, mas
tambm espiritual:
Benzedeira serve para muitas coisas, se a pessoa estadoente ai depende tambm do que a pessoa estasentindo, por que ela pode tambm curar de mau-olhado, de vento cado31de criana, livrar de encosto.32
Prticas como essas, de benzer as crianas, so, ainda hoje no Brasil,
realizadas.A benzedeira, com seus conhecimentos sobre as plantas e suas palavras de cura e
proteo, remete-nos as razes africanas dessas prticas, a este respeito, Terezinha Bernardo
informa que:
Entre os africanos e seus descendentes, a utilizao dasfolhas simultaneamente fora da palavra, muitas vezestem o sentido de cura (...) colocando lado a ladoOmulu33e Ossaim34, senhor bosques e das ervas.35
O pouco mais de um ano de pesquisa na comunidade permitiu-nos
conhecer um povo de muita luta e fibra, mulheres que consigo trazem sculos das lutas das
populaes negras no Brasil. As descendentes das trs primeiras forras que fundaram o
povoado lutam diariamente para preservar suas razes tendo que competir com a mutilao
29
Dona Jernima de Braga, entrevistada em 12/11/2005.30Idem.31Mal que acomete crianas que ainda no foram batizadas, ou seja, ainda pags.32Edith Gomes de Oliveira. Entrevistada em 20/01/200633Omulu , o Filho do Senhor o deus da varola e das doenas contagiosas, ligado simbolicamente aomundo dos mortos, este orix tanto castiga com doenas como cura os males.34Ossain(Osanyn) o orix das folhas medicinais e litrgicas, nenhuma cerimnia pode ser realizada sem suapresena uma vez que ele o detentor do ax o poder imprescindivel aos outros deuses.35 BERNARDO, Terezinha. Negras, mulheres e mes: lembranas de Olga de Aleketu. SP/EDUC,RJ/Pallas,2003. pp. 76
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de seus territrios, com o racismo, com a falta de oportunidades, no entanto, salta aos olhos
a determinao dessas mulheres em no perder a forma amorosa que possuem de educar
seus filhos, trabalhar, festejar e pedir a deus por um futuro melhor. So assim as mulheres
que encontramos no Mesquita, so assim as mulheres que nos receberam e que
responderam as nossas demandas e curiosidades, so assim nossas irms.
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