Cultura e Tradições negras no Mesquita- Um estudo da matrifocalidade numa comunidade remanescente de quilombo

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    Cultura e Tradies negras no Mesquita:Um estudo da matrifocalidade numa comunidade

    remanescente de quilombo

    Suelen Gonalves dos Anjos1

    Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar os resultados finais do projeto deiniciao cientfica vinculada ao programa PIBIC-UniCeub/CNPq e ao grupo de estudosPAD:estudos em filosofia, raa, gnero e direito humanos, a pesquisa teve por objetivoverificar a permanncia de prticas culturais de matriz africana na comunidaderemanescente de quilombo Povoado do Mesquita situada a 24km de Luzinia-GO. Talinvestigao foi realizada sob uma perspectiva de gnero e, uma vez que entendemos ser amatrifocalidade o ponto central da existncia das comunidades negras e afro-descendentesempenhamo-nos em verificar o papel das mulheres negras na preservao e transmisso deprticas materiais e simblicas de origem africana na comunidade do Mesquita. Ascategorias gnero e raa, as teorias das representaes sociais, da anlise, do discurso e docotidiano nortearam nosso trabalho.

    Palavras-chave:historia da cultura afro-brasileira, histria regional, histria das mulheres,matrifocalidade

    Culture and black traditions in Mesquita: A study of matrifocal in a community of quilomboremaining

    Abstract: This article has as an aim to report the final outcomes of the scientificalbeginning project linked to the PIBIC UniCEUB / CNPq project and group of studiesknown as PAD: studies in philosophy, race, gender and human right, the research hasas aim to check the stay of cultural practices of African origin in the quilombo remainingcommunity namely Povoado de Mesquita situated 24 km from Luziania in the state ofGoias. Such investigation was achieved under a perspective of gender, and since thematrifocal is understood as being a central point of the existence of black communities andAfrican descendants. The role of black women was checked in the preservation andtransmission of material and symbolical practices from black origin in the community ofMesquita. The gender and race categories, the theories of social representations, the

    analysis, the discourse and the everyday guided the work.

    1 Licenciada em Historia pelo Centro Universitrio de Braslia- UniCEUB. Orientadora: Dr JoelmaRodrigues da Silva, Faculdade de Cincias da Educao - FACE , curso: licenciatura plena em Histria,UniCEUB Centro Universitrio de Braslia

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    Suelen Gonalves dos Anjos - Cultura e tradies negras no Mesquita :um estudo damatrifocalidade numa comunidade remanescente de quilombo

    PAD : estudos em filosofia, raa, gnero e direitos humanos. Braslia, UniCEUB,FACJS,Vol.1,n.1/06.ISSN 1980-8887

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    Key words: history of African Brazilian culture, regional history, women history,matrifocal.

    Introduo

    O Povoado do Mesquita, uma comunidade remanesceste de quilombo

    goiano, foi o cenrio escolhido para a realizao do projeto de iniciao cientfica

    vinculado ao programa PIBIC-UniCeub/CNPq e ao grupo de estudos PAD: estudos em

    filosofia, raa, gnero e direito humanos, ao longo do artigo sero apresentados os

    resultados de trabalhos realizados junto a comunidade durante um ano e quatro meses.

    No Brasil a famlia patriarcal africana ter fortalecida sua

    matrifocalidade, isto : sob a escravido, as mulheres negras sero, na maior parte dos

    casos, as nicas responsveis pela manuteno da cultura material e simblica, alm da

    sobrevivncia dos membros do grupo familiar. Sero elas as figuras centrais dessa nova

    famlia estruturada sob a escravido e no perodo ps-abolio. As mulheres negras no

    Brasil que, quando escravas eram negras de ganho, quando livres passaram a negociar

    bens materiais e simblicos; a respeito do trabalho feminino desenvolvido nos dois lados do

    atlntico, Terezinha Bernado informa:

    Fui para a frica, encontrei as africanas ocupando oespao pblico: estavam nas feiras, trocavam bens. Masno eram s objetos materiais que elas trocavam, astrocas dirigiam-se tambm para os bens simblicos:eram msicas, oraes, danas, receitas para curar ocorpo, receitas para aconchegar os coraes.(...)Acompanhei essas mulheres na dispora, em terrasbrasileiras presenciei as lutas para sua sobrevivncia e ade seus filhos, uma vez que, no lugar da poliginia,grande parte das africanas e suas descendentes viverama matrifocalidade. Saram pelas ruas de grande parte dascidades brasileiras vendendo artigos de primeiranecessidade, quitutes preparados com suas prpriasmos. Eram as famosas negras de tabuleiro. Foramtambm para as feiras, abriram suas quitandas econtinuaram a trocar bens materiais e simblicos.2

    2 BERNARDO, Terezinha. Negras, mulheres e mes : lembranas de Olga de Aleketu. SP/EDUC,RJ/Pallas,2003. pp. 16

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    A famlia negra no Brasil ir, por presso do modelo escravista,

    reformular sua organizao e transmitir estas reformulaes as suas descendentes. A

    respeito da famlia negra Russel-wood escreve:

    A discusso dos arranjos domsticos e familiares dosescravos deve centrar-se no papel e na condio damulher. A instituio da escravatura, os caprichos dosdonos e os costumes predominantes na Amricaespanhola e portuguesa exerciam sobre as escravas umaserie de presses sociosexuais. Estas milhavam contrauma famlia escrava composta de pai, me e filhos.Disso resultou a intensificao do papel da me e atendncia das famlias escravas de serem matrifocais.3

    A populao negra no Brasil, durante aproximadamente 400 anos, foi

    marcada pelo trabalho escravo. Milhes de homens, mulheres e crianas reduzidos

    condio de coisas/objetos/ferramentas construram o que identificamos com as riquezas do

    pas. A atual historiografia brasileira tem se esforado para mostrar que os quatro sculos

    de escravismo no foram capazes de fazer calar as vozes dfrica, sendo os quilombos a

    expresso mais concreta dessa resistncia. O negro s se humaniza pelo crime, afirmou

    Jacob Gorender e os quilombos foram percebidos como um aglomerado de criminosos j

    que a fuga era crime passvel de morte4.

    Mesmo na tradicional historiografia brasileira os Quilombos so

    apresentados como smbolos da resistncia negra. Espalhados por todo territrio brasileiro

    significam que em nenhum momento os escravos acataram a absoluta desumanizao a

    qual eram submetidos. Se, como ensinou Foucault, onde h poder h resistncia, e se a

    existncia dos quilombos, seu nmero e durao nos dizem que a resistncia foi uma

    constante no perodo escravista, a presena das comunidades remanescentes de quilombos

    nos informa tanto da recusa da sociedade brasileira em conviver com a presena dos negros

    livres e reconhecer que a liberdade implicaria necessariamente em cidadania, quanto damanuteno de formas de vida cotidianas herdadas da frica e transmitidas de gerao a

    3RUSSEL-WOOD, A.J.R.Escravos e libertos no Brasil colonial.RJ:Cvivilizao Brasileira,2005.p.34.4Clovis Moura esclarece que (...)No podemos deixar de ver o quilombo como um elemento dinmico dedesgaste das relaes escravistas.No foi a manifestao espordica de pequenos grupos de escravosmarginais, desprovidos de conscincia social, mas um movimento que atuou no centro do sistema nacional, e

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    gerao. Assim, possvel afirmar que a resistncia negra se deu por meio da formao de

    espaos de luta e tambm pela preservao do simblico.

    A pesquisa bibliogrfica nos mostra que as prticas culturais

    tradicionais protegidas por mos femininas foram e so fundamentais para a existncia do

    povo negro, Fernanda Carneiro assinala ser :

    (...) indiscutvel a extraordinria fora das religiescomo fonte de aprendizado, apoio e sustento daexistncia negra no Brasil. H muitas formas deproteger a liberdade humana movidas por algo designificao verdadeira. Impedir a desorientaoatesta entre os negros no Brasil colonizado, a isto,tambm, chamamos tica. A expresso estticaancestral se manifesta nos cultos e nos modos deviver, danar, brincar, procriar, adoecer ou buscar acura. E o sentir-se feliz em sua existncia, comunicaa tica negra. A expresso corporal negra retoma odevir das particularidades e garante umacontinuidade e permanncia tnica que no sejustifica por leis naturais. 5

    A formao do quilombo do Mesquita tem uma peculiaridade que a

    imagem das trs mulheres negras fundadoras da comunidade que legaram a preservao das

    tradies culturais de matriz africana. Em princpio, uma comunidade que possui - j no seu

    mito fundador - a imagem feminina, no poderia deixar de ter mulheres exercendo papis

    de grande importncia, por isso resta-nos verificar quais foram/so estes papeis e os modos

    como so apreendidos, interpretados e resignificados pelos membros da comunidade.

    Acreditamos que o esquecimento e desvalorizao das tradies culturais de origem

    africana devem-se tanto ao racismo inscrito na estrutura da sociedade brasileira, quanto ao

    fato de terem sido as mulheres, as responsveis pela guarda e transmisso dessa cultura, que

    ento duplamente desvalorizada. De maneira extraordinariamente forte, sutil e violenta,

    permanentemente(...) MOURA, Clvis.Africa & Brasil.In: Quilombos do Brasil, Revista Palmares n5.Fundao Cultural Palmares/MinC, Brasilia,2000.5 CARNEIRO, Fernanda. Nossos passos vem de longe.In:WERNECK, Jurema (org).O livroda sade das mulheres negras: nossos passos vm de longe. RJ, Palla/Criola,2000.p.24(sublinhados meus)

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    racismo e machismo se conjugam e mantm solidamente erguidas as muralhas do

    preconceito e da discriminao no Brasil contemporneo.

    Um breve histrico...

    De acordo com a Associao Brasileira de Antroplogos :

    O termo Remanescente de quilombo hoje no se referea resduos ou resqucios de ocupao temporal ou decomprovao biolgica. Tambm no se trata de gruposisolados ou de uma populao estritamente homognea.Da mesma forma nem sempre foram constitudos apartir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas,

    sobretudo, consistem em grupos que desenvolveramprticas de resistncia na manuteno e reproduo deseus modos de vida caractersticos num determinadolugar.6

    Embora o primeiro pensamento para remanescente remeta ao

    Quilombo de Palmares, atualmente, compreende-se por remanescentes, tambm as

    comunidades fundadas aps o fim oficial (legal) da escravido, ou seja, aquelas no

    fundadas por negros/negras fugidos/fugidas, mas por pessoas negras e livres que

    construram espaos para sobrevivncia , uma vez que o processo abolicionista foiextremamente excludente e perverso com a populao negra e afro-descendente brasileira.

    A respeito da importncia das comunidades quilombolas, a antroploga Leinard Ayer de

    Oliveira esclarece ser preciso, primeiramente, mostrar

    (...) que a data de 1888, embora seja um marco formalpara os negros no Brasil, no tem importncia central noque dia respeito aos quilombos.Enquanto vigora aescravido, e sabemos que a Lei urea s vemformalizar uma realidade conquistada pelas populaes

    negras uma vez que quase todos os escravos j sehaviam liberto quando da assinatura da lei, osquilombos sero o nico espao onde muitos negros,excludos pela nova ordem que se configura, poderosobreviver fsica e culturalmente. Os quilombos

    6 Comisso pr-indio de So Paulo: http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/oque/home_oque.html,acessado em 2001/2006

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    continuam representando a resistncia negra. ,portanto, perfeitamente lgico falar-se em quilombosmesmo aps 1888 (...)7

    As Comunidades remanescentes de quilombos constituem grupos que

    compartilham uma identidade que os distingue dos demais. Tal identidade assenta-se emdiversos fatores como: ancestralidade comum, estrutura de organizao poltica prpria,

    sistema de produo particular (inclui-se a as formas especficas de explorao e

    relacionamento com a terra) e partilha de elementos lingsticos e religiosos ou de smbolos

    especficos. A posse de algumas destas caractersticas possibilitou ao Povoado do Mesquita

    receber em junho de 2006 o titulo de Remanescente de Quilombo pela Fundao Palmares 8.

    O remanescente de quilombo Povoado do Mesquita localiza-se no

    municpio da Cidade Ocidental a 24 quilmetros da cidade de Luzinia, no estado de

    Gois, entorno sul do Distrito Federal, possuindo pouco mais de 3 (trs) mil habitantes.

    Formado h 150 anos, por uma populao quase que totalmente negra, o Arraial do

    Mesquita, comporta descendentes dos escravos trazidos na poca da minerao para a

    antiga cidade de Santa Luzia, hoje Luzinia,.

    Os negros foram os primeiros moradores do Povoado do Mesquita

    numa regio fortemente tingida pela escravido. Em 1763, durante o perodo ureo da

    explorao das minas de ouro, a antiga Santa Luzia chegou a ter 16.529 habitantes, dos

    quais 12.900 eram escravos. Entretanto, a fartura do ouro durou pouco; de 1746 a 1775,

    neste perodo, muitos escravos foram mortos pela dureza da minerao, especialmente pela

    febre nascida do Ribeiro do Inferno, hoje Santa Maria.

    Com o declnio da minerao, muitos senhores preferiram abandonar

    as terras na Capitania de Gois, uma vez que esta se tornara local de difcil sobrevivncia.

    Segundo os relatos, foi esse o momento em que trs negras forras receberam as terras das

    mos de seu antigo senhor, um certo Mesquita, e l fixaram suas famlias. A fundao da

    comunidade, segundo seu mito fundador, ocorreu dessa forma.

    7OLIVEIRA, Leinad Ayer de.Identificao dos remanescentes das comunidades dos quilombos. In:SUNDFELD,Carlos Ari (org).Comunidades Quilombolas:direito terra. Braslia: Fundao CulturalPalmares/MinC, Ed. Abar,2002,p.69-86.

    8Conforme disposies da Lei n. 6.165, de 2 de dezembro de 1998

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    A religiosidade uma das caractersticas marcantes da comunidade. A

    Festa de Reis que ocorre em todo o estado de Gois, tambm faz parte das festividades

    dessa comunidade e hoje alvo de investimentos do governo9. O Estado tem incentivado

    financeiramente as atividades culturais dos Remanescentes de Quilombo, e este

    investimento deve-se sobretudo ao lucro advindo do turismo proporcionado pela realizao

    das festas.

    Cada famlia do povoado responsvel por sua produo, o excedente

    vendido nas feiras da Cidade Ocidental, de Luzinia e do Plano Piloto. O doce de goiaba,

    a marmelada e a farinha de mandioca, que em sua feitura remete ao cotidiano do Brasil

    colonial, so exemplos dos produtos que so produzidos e vendidos pelo povoado.

    Desde a construo da Cidade Ocidental, o Mesquita vem sendo

    privado, de forma contnua, da posse de suas terras. Isto se d de trs maneiras: pelasinvases de terceiros, pela compra para o estabelecimento de produo nos moldes do

    latifndio monocultor, e pela especulao da terra - visando uma futura valorizao para

    construo de condomnios, em decorrncia disto, vemos a perda das antigas construes,

    verdadeiros documentos histricos que so sistematicamente derrubadas para construo de

    outras, de alvenaria ou apenas por ocuparem ,agora, terras privadas.

    Grande parte dos moradores do povoado desloca-se diariamente ou

    semanalmente em direo a Braslia onde ocupam lugares subalternos no mercado de

    trabalho. O crescimento da migrao dos mais jovens um fato e um problema que deriva

    em grande parte da perda das terras da comunidade, eles saem procura de novas

    oportunidades de trabalho e estudo nas cidades vizinhas (principalmente Braslia e

    Luzinia). Este movimento responsvel, em parte, pelo abandono e/ou perda de uma

    srie de referncias e prticas, uma vez que Braslia e Luzinia apresentam-se (e so

    percebidas) como modernas : logo hierarquicamente superiores ao universo de sentidos

    do Mesquita.

    A partir da criao do Distrito Federal (DF) e do conseqente

    crescimento da regio do entorno, as migraes e emigraes na comunidade se tornaram

    mais freqentes, resultando em modificaes nas relaes culturais, econmicas e

    9 Nas entrevistas realizadas nas Secretarias municipais tivemos informaes sobre investimentosprincipalmente do Governo Federal ligados a aes de promoo da cultura.

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    simblicas na comunidade. A relao com a terra foi e continua sendo alterada pela

    conurbao urbana decorrente da criao da nova capital e a grande procura por espaos

    prximos a Braslia que levou muitos moradores a vender suas terras, bem como provocou

    invases s terras de propriedade da comunidade, no difcil encontrar casos de

    desapropriaes indevidas, viabilizadas pelo poder econmico e poltico. Por fim, cito o

    exemplo de um processo que tramita h sete anos - de desapropriao das terras onde hoje

    existe um condomnio na rea da Regio Administrativa (RA) de Santa Maria - DF. A

    populao aguarda a deciso judicial a seu pedido de reviso da desapropriao das terras

    pelo governo do Distrito Federal e pede indenizao justa pelas terras.

    Em uma comunidade agrcola mudanas nas relaes com a terra

    transformam toda a estrutura social vigente, os espaos das relaes de gnero tambm so

    atingidos por essas mudanas, como demonstra a fala de d. Antonia:

    Nossa casa era perto da Marinha10, mas l era terra dogoverno n? Ai a gente teve que se mudar, compramoscasa aqui mais perto, perto da casa da Sandra. L agente cuidava de tinha criao (de gado), aqui agora templantao de mandioca (...) eu ajudo mais na hora defazer a farinha n?11

    Nos tempos que se cuidava da criao dona Antonia cuidava apenas da

    sua horta, o gado era vendido para o matadouro e pronto, j a farinha exige um trabalho

    diferenciado e a sua participao ganha outra dimenso, mas no menos importncia no que

    se refere a manuteno de atividades produtivas tradicionais que implicam diretamente na

    sobrevivncia do grupo familiar. Na fala de d. Antonia, vemos ainda o que o discurso

    hegemnico capaz de produzir: a Marinha tem o poder de dizer-se proprietria das terras

    e ao fazer isto, retira de d. Antonia a legitimidade de sua memria e histria, sem poder de

    manter a posse da terra, d.Antonia teve que se mudare alterar as relaes de produo e a

    organizao/distribuio do trabalho familiar, seu trabalho hoje classificado comoajuda, sem lugar, d. Antonia tambm no se percebe com poder, nem centralidade.

    10 A Marinha um condomnio pequeno, perto de Santa Maria construdo h cerca de 10 anos parafuncionrios da Marinha, fia localizado e prximo tambm a estao de radio da Marinha.11Antonia Pereira Braga, entrevistada em 10 de abril de 2006.

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    So mudanas como esta que nos permite perceber e confirmar as

    relaes entre o territrio e as tradies. As formas de trabalho e as relaes entre os

    gneros so estruturadas e perpetuadas acopladas ao uso do territrio, o Mesquita sofre no

    perodo aps a criao do DF, uma mutilao territorial. Alm da criao dos novos

    municpios12, um grande nmero de fraes de terra foram vendidas a moradores do DF

    que procuravam reas para a construo de casas de fim de semana. Dona Antonia fala de

    mais uma forma de mutilao que a desapropriao de terras do governo que, com a

    expanso urbana do DF,foram reivindicados pela Unio.

    As formas de mutilao condensaram a comunidade do Mesquita em

    um territrio consideravelmente menor e cercado de municpios, o que inviabiliza algumas

    atividades, no caso da famlia de Dona Antonia a pecuria extensiva foi substituda pela

    casa de farinha, e neste caso tanto o plantio de mandioca quanto de seu beneficiamentonecessitam de espaos menores.

    Estas transformaes , notadamente perdas, no/do territrio do

    Mesquita, se dramaticamente experienciada pelos membros da comunidade, aparentemente

    aguardada por outros setores da sociedade que , ao assinalar o l e o eles realam

    pelo silncio - a importncia e centralidade do ns:

    (...) eu costumo dizer o seguinte: lvai deixar de sertradicional, o Mesquita vai acabar porque j temgente de Braslia que comprou l que est comprandosabe! Vai acabando com aquela cultura que eles tem,vai chegar uma hora que s vai tera Festa da NossaSenhora de Abadia13( itlicos nossos)

    O espao do cotidiano

    O Cotidiano um espao, um lugar propriamente dito, e neste

    lugar que interao entre indivduo e grupo social, engendra personalidades, capacidades ecomportamentos que se misturam em disputa pela escolha dos traos identitrios.

    12Municpios em questo: Cidade Ocidental e Valparaizo.13Joo Antonio de Arajo funcionrio do Departamento de desenvolvimento agrcola e pecuria, entrevistadoem 15/11/2005

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    O territrio do cotidiano define-se assim por um lugar onde age o

    indivduo tornando humana a sua vida. Somos seres sociais, existimos como humanos por

    que pensamos,nos construmos e partilhamos o mundo com os outros. Somos no apenas

    produtos do meio social, mas somos parte de um grupo social. Dialoga o cotidiano com o

    estranho e o diferente, mas somente diante destes que se reconhece..

    Ao longo da pesquisa percebemos o cotidiano como guardio das

    tradies, isto : verificamos o quanto prticas corriqueiras nos remetem ao passado,

    principalmente numa comunidade agrcola onde o tempo parece passar mais devagar e as

    tradies tendem a permanecer, aparentemente alheias fugacidade do mundo dito ps

    moderno14.

    Assim, o cotidiano pode ser o ponto de partida dainterpretao histrica; a sua percepo nainterpretao histrica depende da observao dosacontecimentos dirios a partir de um olharinvertido: aquilo que parece irrelevante pararepresentar uma dada realidade, ali que se revelao histrico, em seu ponto de partida; h algo deemprico na investigao histrica do cotidiano; astcnicas da histria oral e a descrio densa uma etnografia podem fazer se revelar oesquecido na histria. Sua importncia? O fatohistrico no paira no ar. Pertence ao mundo docotidiano, foi ali gerado e o seu retorno a esteterritrio que lhe confere sentido; mais que ocurioso e o novo olhar que concede histria, ocotidiano revela o quanto ela humana, marcadapelo esforo da afirmao do humano em ns e asua incerteza. Este, o conflituoso territrio docotidiano.15

    exatamente nas atividades do dia-a-dia que encontramos o que

    buscvamos : as culturas e tradies de matriz africana. Ao adentrar nos espaos ocupados

    pelas mulheres do Mesquita, encontramos mulheres fortes que lutam por seu territrio, por

    14O conceito de ps-moderno ou modernidade tardia diz respeito as sociedades contemporneas e o sistemamundial que passam por processo de transformao social muito rpido e profundos que pemdefinitivamente em xeque as teorias e os conceitos, os modelos e as solues anteriormente consideradoseficazes para diagnosticar e resolver as crises sociais.15

    DESDEDITHI, Junior, O territrio do Cotidiano.Publicado em: www.historianet.com.br, acessado em30/08/2005

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    sua cultura, pela educao de seus filhos, por melhores condies para sua comunidade. Ao

    longo do artigo algumas delas se faro presentes por intermedio de suas falas registradas

    ao longo da pesquisa.

    E foi no territrio do cotidiano que as entrevistas foram realizadas,

    sempre abertas16, foram realizadas nas casas das mulheres, em seus espaos, durante suas

    prticas, podemos assim conhecer as prticas das mulheres-mes-trabalhadoras-filhas-

    professoras, e tantos outros papis que elas desempenham.

    Conhecemos mulheres de muita fibra como Sandra Pereira Braga, a

    presidente da Associao de Moradores, que lutou pelo reconhecimento da comunidade

    como remanescente de quilombo, o que possibilitou que durante o perodo em que

    pesquisvamos, pudssemos ler no Dirio Oficial o reconhecimento pelo INCRA e

    Fundao Palmares. Conhecemos tambm jovens com grupos musicais que resignificamem suas letras, a cultura local e professoras que tentam implementar propostas para uma

    educao de (re) conhecimento e (re) valorizao das tradies da comunidade.

    Durante o perodo destinado s entrevistas foi possvel participar da

    Folia de Reis e da Folia para Nossa Senhora da Abadia, acompanhar a colheita do marmelo

    e os trabalhos17 desenvolvidos na nica escola da comunidade18. Esta convivncia tornou

    possvel experienciar a cultura local, suas formas de resistncia e transmisso.

    As folias: a celebrao da comunidade e da religio

    Eu gostaria tanto de mostrarO encanto magistral da natureza

    Seus olhos iriam deslumbrarAo contemplar assim tanta beleza

    A passarada no romper do diaGorjeia em forma de orao

    16As entrevistas poderiam acontecer principalmente de duas formas: fechadas e abertas, no primeiro caso oentrevistado responderia as perguntas feitas e eles, e no segundo ( o que optamos) as entrevistas eram abertaso entrevistador apenas sugeria temas, como por exemplo: infncia, as folias e trabalho.17Devido a esta pesquisa, outras estudantes tiveram contato com a comunidade e estamos desenvolvendo umprojeto de Comunicao comunitria com os jovens, com a inteno de resgatar, (re) significar e (re) valorizara cultura local sobre a qual pouco se tem escrito, pretende-se a partir do projeto, fundar uma radio comunitriagerida pelos prprios moradores.18Centro de Ensino Fundamental

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    O galo no poleiro anunciaUm outro amanhecer no meu serto.

    Revoam sobre a relva verdejanteLindas borboletas multicores

    Velozes colibris a todo instanteNo cansam de provar o mel das floresCenrio de rarssimo esplendor

    Recanto de amor paz e unioParece que o divino criador

    Tambm reside aqui no meu serto19

    A folia representa o ciclo da Santssima Trindade, uma festividade

    comum a todas as cidades do Gois e entorno do Distrito Federal representando um

    momento de f e de comunho da populao. Dona Antnia demonstra isso quando diz:

    Eu dou pouso l em casa todo ano na Folia deNossa senhora da Abadia, meus filhos giram20,nela...21

    Aos cavaleiros da folia so oferecidos os pousos, o pouso uma

    grande festa, realizada noite, com um banquete e oferecida a casa para que todos os

    cavaleiros possam dormir (pousar). A folia tem sua lgica prpria e reflete as divises de

    gnero presentes na comunidade:

    Antigamente mulher no girava no, hoje j tem muita,as filhas do seu Francisco mesmo giram as trs, na Foliade Reis, eu acho que mulher no tem que girar no, isso coisa de homem, eu num acho bonito no22

    Quando ela diz eu dou o pouso, percebe-se o espao da mulher como o

    espao domstico, mais que isso : s pode dar quem de alguma forma dono, e ela dona

    da casa, que pode ou no dar pouso. Nas comunidades agrcolas reservado o espao

    19

    Aquarela Sertaneja Tio Carreiro e Pardinho Composio: Luiz de Castro/Tio, cantada em um dos pousos

    da Folia de Nossa Senhora da Abadia.20Para explicar a gira preciso explicar primeiramente a folia, a folia uma espcie de procisso e novenaem que os devotos (os folies) durante os dias que compes a folia seguem em devoo a um santo. Para cadadia h uma casa que sede um pouso (que seria a dormida), e para tal, os folies so recebidos com uma grandefesta, muito comida, bebida e musica, parte do pouso tambm que os folies abenoe a casa e seusmoradores. Girar sair como folio.21Antonia Pereira Braga

    22Antonia Pereira Braga.

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    domstico s mulheres, porm mais que o espao domstico a elas pertence a cozinha, a

    este respeito, Heloisa Capel aponta em artigo,

    Surpeendo-me ao visitar, pela primeira vez, uma casa

    de fazenda colonial em Gois. Entro pela cozinha eadmiro os utenslios expostos: tachos de cobre e panelasbrilham nas prateleiras dispostas pelo espao. Nosarmrios, compotas de doces, cuidadosamentepreparadas com frutas regionais. Hospedo-me poralguns dias e percebo a dinmica dos afazeres da donade casa. Suas atividades giram em torno da cozinha(...)observo que a cozinha o corao da casa.23

    A fala de dona Antonia assinala a cozinha, o privado, o interno como

    espao feminino, pois, dar o pouso principalmente oferecer o jantar a todos os folies e

    comunidade que comparece folia , ela, junto com as outras mulheres da familia, que

    preparam tudo para na vspera da Folia.

    As mulheres participam das festividades das folias, no entanto durante

    muito tempo no danavam catira24, no giravam, no cantavam25, mas como Dona

    Antonia deixa claro, a mulher passa a participar dos outros espaos da festa, quando diz

    antigamente mulher no girava no, hoje j tem muita, agora,as mulheres podem tambm

    expor sua devoo aos moldes dos homens da comunidade, ainda que as donas Antonias

    possam no achar bonito.Um dos folies da Folia do Divino Esprito Santo fala sobre a mulher

    na folia:

    Mulher pode girar sim, mas s se o dono da foliadeixar, j girei com uma mulher, mas era o dono dafolia que deixa (..) acho que mulher no gira por que agente dorme no mato, toma banho de crrego, se ajeitaem qualquer lugar, por que o pouso na verdade para o

    santo n? No tem espao na casa para todo mundoficar, o santo que fica na casa, a gente fica emqualquer lugar, arma rede, ou se ajeita no cho.26

    23CAPEL, Heloisa, Cozinha como espao do contra poder feminino In: Fragmentos da Cultura. V. 14 n.6Goiania: IFITEC, 1991. pp. 118424Dana tradicional25A cantoria das modas de viola tambm era uma prtica predominantemente masculina.26Jos Roberto Meireles. Entrevistado em 30/05/2006.

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    Desnecessrio assinalar que as mulheres s podem ultrapassar as

    fronteiras do privado e ocupar algum lugar no espao pblico se, e quando autorizadas por

    um homem (ou grupo de homens), querer girar ou ter devoo no so suficientes para

    legitimar a presena das mulheres. Sob uma suposta proteo devida s mulheres, vemos adesqualificao das mesmas enquanto sujeitos, Joelma Rodrigues esclarece:

    A inocncia idealizada, imposta e exigida usadacomo instrumento de opresso sobre o inocente.Sepensarmos em relaes generizadas, a defesa dainocncia das mulheres e crianas o solo onde seencontram fixadas sua excluso, submisso e violao.Isto s possvel por um mecanismo que associainocncia a incapacidade, debilidade, incompetncia edependncia. Na verdade, a mulher/menina adjetivada

    como inocente tem negados os meios que lhepossibilitam conduzir-se no mundo. A condio deinocente tece a trama que as mantm presas aoprivado, ao pai/marido.27

    O espao da cura: sabedoria e f

    A tradio da cura um outro espao importante para a preservao da

    cultura, e nesse espao que o conhecimento dos africanos, ndios e portugueses mais semisturaram. Uma das faces da cura a benza28que cura no apenas os males do corpo, mas

    tambm os provenientes de mal olhado entre tantos outros males. A fitoterapia uma das

    mais conhecidas e praticadas formas de cura tradicional nas comunidades rurais e cidades

    de pequeno e mdio porte existentes no Brasil:

    No mato tem remdio para tudo, tem quebra-pedrapara dor, tem sete-dor, cidreira, e a gente aproveitatudo29

    J havia entre ndios e africanos, enorme e variado conhecimento a

    respeito da flora tropical e o contato entre eles fez ainda mais frtil o uso de plantas. No

    27Joelma Rodrigues, Sobre mulheres e destino, Revista Pad: estudos em filosofia,raa,gnero e direitoshumanos, ano 1 numero 1, Braslia:UniCEUB,2006.28Benzer no apenas medicar mas inclui tambm rezas, palavras especificas para os mais diversos males.

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    somente as comunidades rurais negras faro uso freqente desta forma de medicina, bem

    como nos espaos urbanos brasileiros. Benzedeiras podem ser encontradas em quase todas

    as cidades brasileiras, como diz dona Jeronima:

    Antigamente a gente chamava a benzedeira parabenzer os meninos logo depois que o umbigo caia, hojequais no se faz mais isso.30

    E elas possuem cura no apenas para males da sade fsica, mas

    tambm espiritual:

    Benzedeira serve para muitas coisas, se a pessoa estadoente ai depende tambm do que a pessoa estasentindo, por que ela pode tambm curar de mau-olhado, de vento cado31de criana, livrar de encosto.32

    Prticas como essas, de benzer as crianas, so, ainda hoje no Brasil,

    realizadas.A benzedeira, com seus conhecimentos sobre as plantas e suas palavras de cura e

    proteo, remete-nos as razes africanas dessas prticas, a este respeito, Terezinha Bernardo

    informa que:

    Entre os africanos e seus descendentes, a utilizao dasfolhas simultaneamente fora da palavra, muitas vezestem o sentido de cura (...) colocando lado a ladoOmulu33e Ossaim34, senhor bosques e das ervas.35

    O pouco mais de um ano de pesquisa na comunidade permitiu-nos

    conhecer um povo de muita luta e fibra, mulheres que consigo trazem sculos das lutas das

    populaes negras no Brasil. As descendentes das trs primeiras forras que fundaram o

    povoado lutam diariamente para preservar suas razes tendo que competir com a mutilao

    29

    Dona Jernima de Braga, entrevistada em 12/11/2005.30Idem.31Mal que acomete crianas que ainda no foram batizadas, ou seja, ainda pags.32Edith Gomes de Oliveira. Entrevistada em 20/01/200633Omulu , o Filho do Senhor o deus da varola e das doenas contagiosas, ligado simbolicamente aomundo dos mortos, este orix tanto castiga com doenas como cura os males.34Ossain(Osanyn) o orix das folhas medicinais e litrgicas, nenhuma cerimnia pode ser realizada sem suapresena uma vez que ele o detentor do ax o poder imprescindivel aos outros deuses.35 BERNARDO, Terezinha. Negras, mulheres e mes: lembranas de Olga de Aleketu. SP/EDUC,RJ/Pallas,2003. pp. 76

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    de seus territrios, com o racismo, com a falta de oportunidades, no entanto, salta aos olhos

    a determinao dessas mulheres em no perder a forma amorosa que possuem de educar

    seus filhos, trabalhar, festejar e pedir a deus por um futuro melhor. So assim as mulheres

    que encontramos no Mesquita, so assim as mulheres que nos receberam e que

    responderam as nossas demandas e curiosidades, so assim nossas irms.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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