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Autor Valdemar Valente Junior Cultura Luso-Brasileira 2008

Cultura Luso-Brasileira · 2014-12-03 · dimento de questões passadas como proposta à situação presente. ... como Retrato do Brasil, de Paulo Prado, ... de 1937, Geografia da

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AutorValdemar Valente Junior

CulturaLuso-Brasileira

2008

© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Todos os direitos reservados.IESDE Brasil S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR

www.iesde.com.br

V154 Valente Junior, Valdemar. / Cultura Luso-Brasileira. / Valdemar Valente Junior. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2008.

120 p.

ISBN: 978-85-7638-880-7

1. Brasil – Cultura Popular. 2. Portugal – Usos e costumes 3. Literatura Brasileira. 4. Formação social. I. Título.

CDD 306

Sumário

Origens da história cultural brasileira | 7Presença portuguesa no Brasil: viajantes e missionários | 10Mito e decadência: sebastianismo e domínio espanhol | 13

A grandeza do Barroco e a riqueza da colônia | 21A colônia e a metrópole: conflitos do século XVIII | 24Transição da colônia ao império | 28

Independência política e nacionalismo cultural | 35O índio, o negro e o branco | 37A abolição e o fim da monarquia | 40

A república de cartolina | 47Nacionalismo e Positivismo | 50O parnaso é aqui | 51

Visões do arcaico e do moderno | 59Cultura erudita e expressão popular | 61A explosão do novo | 64

1922 e o século XX | 71As contradições do Brasil | 74Cultura e pesquisa etnográfica | 76

1930 e os efeitos da crise | 83O rádio e a música popular | 85O Carnaval e o futebol | 87

Da casa-grande às raízes do Brasil | 95O olhar estrangeiro | 97Conservadorismo e participação | 99

Gabarito | 105

Referências | 111

Anotações | 117

Apresentação

Este trabalho sintetiza uma proposta de estudo sobre aspectos da cultura luso-brasileira, tendo início nas origens de nossa colonização, no século XVI, e indo até a primeira metade do século XX, aproximadamente, quando se consolida o perfil de nacionalidade que nos acompanha até os dias atuais.

Com o objetivo de dotar o estudante de condições básicas de en-tendimento sobre nossa formação, pensamos ser procedente a ampliação de sua visão sobre aspectos socioculturais acerca do país em que vive-mos. Além disso, acreditamos poder tornar possível o acesso a este mate-rial através de uma linguagem compatível de entendimento sem com isso abrir mão do rigor formal da linguagem que o caracteriza.

A divisão capitular deste material atende à cronologia dos acon-tecimentos históricos e culturais que tiveram lugar em diferentes etapas. Assim sendo, relacionamos os momentos históricos ao florescimento de uma cultura artística e literária que acompanha nossa trajetória servindo-lhe de base e entendimento necessário.

Por fim, pensamos oferecer um material de bom nível, fundamental ao preenchimento de lacunas acerca da cultura luso-brasileira, como par-te integrante da matriz curricular do nosso curso.

Da casa-grande às raízes do Brasil

Depois de um longo período em que viajantes, missionários e religiosos, além de missões artís-ticas e científicas tentam dissecar a terra brasileira e o homem que nela habita, além de constituírem estudos sobre animais e vegetais de um país tão singular, o século XX oferece pela primeira vez a possi-bilidade do Brasil ser estudado em suas mazelas e reentrâncias mais profundas através do crivo de duas grandes obras: Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, de 1936.

Ao tratarmos dessas duas obras, pensamos serem elas responsáveis por uma espécie de redesco-brimento do Brasil na medida em que ambas promovem um desvelamento da terra brasileira. Esse des-velamento relaciona-se às raízes de nossas relações afetivas e simbólicas, buscando a identificação de elementos do cotidiano e a socialização regionais gravados na memória coletiva. Desse modo, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda ajudam a pensar o Brasil, assim como a pluralidade de Brasis que se faz anunciar nos ícones de representação que marcam nossa cultura. Há, portanto, uma maneira de ser brasileiro tratada como herança a ser transmitida por toda uma rede de propagação, seja através da po-esia, da prosa ou do sistema educacional.

Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda ao buscarem uma interpretação do Brasil abordam a herança cultural dos primórdios da colonização como forma de exercício de entendimento do país no século XX. Gilberto Freyre destaca a questão do patriarcalismo na colonização brasileira em que a casa-grande torna-se um meio termo contemporizador decorrente da adaptação do europeu à nova terra. Assim, aponta para a modificação das raças européia e africana ao contato com o meio tropical, o que serve para contemporizar as condições de existência nesse novo espaço. A casa-grande do engenho de cana-de-açúcar, ao ser erguida, a partir do século XVI, reúne características próprias referentes ao am-biente físico, não representando outro modelo senão o do sedentarismo tropical, patriarcal e escravo-crata. Desde esse momento, o português, resguardadas as reminiscências de origem, passa a sentir-se luso-brasileiro, transpondo as distâncias oceânicas.

A concepção da casa-grande difere por completo da arquitetura portuguesa marcando a distin-ção entre o português reinol e o português adaptado à colônia, o que serve para caracterizá-lo quase que como uma raça apartada de sua origem. A casa-grande é, portanto, o centro formador de uma tra-

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dição patriarcal e religiosa, o que resulta em um sistema de organização. Com a inclusão da senzala, a casa-grande é ainda um complexo sistema, como nos sugere Gilberto Freyre (1999, p. 53) num trecho do prefácio à primeira edição da obra:

A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político: de produção (a mo-nocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo da família, com capelão subordinado ao pater famílias, culto dos mortos etc.) de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o “tigre”, a touceira de bananeira, o banho de assento, o la-va-pés); de política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericór-dia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos.

Ainda segundo Gilberto Freyre, a casa-grande sobrepõe-se à igreja no que diz respeito à proprie-dade da terra. Os jesuítas sucumbem à ação do senhor de engenho no domínio do Brasil, acima de vice-reis e bispos. Construída sob fortes alicerces, com liga de óleo de baleia, a casa-grande reflete o poder dos seus senhores, com base no trabalho, no suor e no sangue dos escravos e convertida em fortaleza inexpugnável de poder. Ao contrário do aspecto nômade dos bandeirantes, os donos de engenho são um retrato de características portuguesas transportado para o Brasil, com vistas a uma formação na-cional. Assim, a estabilidade da civilização, sem dúvida, deve-se à implantação dos engenhos de cana-de-açúcar. A casa portuguesa transforma-se em casa brasileira por excelência. Grandes cozinhas, vários quartos, capelas, filhos casados, agregados etc., como Gilberto Freyre (1999, p. 65) ainda nos explica:

Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa comunidade social. No estudo de sua história íntima despreza-se tudo o que a história política e milenar nos oferece de empolgante por uma quase roti-na de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos an-tepassados, sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido”. Outro meio de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se antecipam à nossa.

Ao lado de Casa-Grande e Senzala, sem dúvida, Raízes do Brasil interfere decisivamente no enten-dimento de questões passadas como proposta à situação presente. Marco do ensaísmo brasileiro, a relei-tura de nossa história tem lugar, abordando as transformações sociais a partir da precariedade de nossa formação. De natureza avançada em oposição a certa dose de conservadorismo em algumas das demais análises sobre o Brasil, essa obra de Sérgio Buarque de Holanda questiona as contradições decorrentes de um sistema retrógrado em poder da elite e submisso a uma dependência que gera pobreza e injusti-ça social, servindo ainda para depredar a natureza e marginalizar a população.

A revolução proposta consiste na viabilidade de uma democracia que tenha por base a plurali-dade do sistema político-ideológico. Assim, propõe essa transformação para fins de superação do fosso abissal entre as classes, visando a construção de um Estado voltado para o interesse coletivo, a supe-ração do atraso do universo agrário e a modernização das cidades, rompendo com a dependência ex-terna. Para tanto, Raízes do Brasil agrava a discussão sobre nossas contradições. A saída de natureza democrático-popular busca encerrar a tradição colonial luso-brasileira ainda vigente no século XX, pro-pondo a ocupação dos espaços políticos pelas massas populares.

Outro elemento importante dessa obra diz respeito ao que conceitua como “homem cordial”:

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade – daremos ao mun-do o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permane-ce ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. (HOLANDA, 1991, p. 106-107).

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E prossegue:

[...] Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de mani-festações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indi-víduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce permitir a cada qual preservar sua sensibilidade e suas emoções. (HOLANDA, 1991, p. 107).

A configuração desse “homem cordial” transforma-se quase que num tipo de representação e modo de existir do homem brasileiro, sendo ainda uma visão errônea e generalizada de nossa bondade e passividade, o que nos leva ao autoritarismo. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, a cordialidade diz respeito à certa dificuldade do brasileiro em relacionar-se com as questões sociais e políticas de manei-ra lógica e racional, considerando a ambiência política de modo impessoal, ou como espaço de contra-dições e conflitos coletivos, que excluem a esfera pessoal. A cordialidade é assim um aspecto do homem brasileiro que constitui sua visão de mundo, baseado na paixão, sendo um sentimento egocêntrico. A raiz etimológica da palavra cordial remete a coração. A paixão é irracional e violenta, não havendo es-paço para a afabilidade. Dessa mistura de questões públicas e privadas, presente na sociedade brasilei-ra, podemos ter como o melhor exemplo os descaminhos inerentes à política, cuja classe é um retrato de nossa contradição.

A questão social brasileira envolvendo a superação de nosso atraso é o tema de outros estudos como Retrato do Brasil, de Paulo Prado, de 1927, Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., de 1937, Geografia da Fome, de Josué de Castro, de 1946, Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, de 1958, Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, de 1959, Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, de 1964, A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes, de 1975, e O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, de 1995, que lançam luzes à questão brasileira e suas injunções de natureza diversa.

O olhar estrangeiroO olhar estrangeiro sobre o Brasil, desde o início da colonização, atém-se à peculiaridade e ao

exotismo que atrai tanto quanto repele o viajante. Vários são os relatos sobre fontes da eterna juven-tude, monstros marinhos e frutos da longevidade. Assim, a terra desperta a curiosidade de quem se vê compelido por uma cultura marcada pela exigência e pelo rigor – no caso da Europa – e se transporta para o Brasil, onde as regras de sociabilidade são muito mais flexíveis. Não obstante a tradição que se constrói ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX no que tange às diferentes formas de se enxergar o Brasil, o século XX representa, para certo tipo de viajante estrangeiro, a perspectiva do país jovem que tem todas as condições para se tornar uma potência mundial. A observação de Roger Bartide em Brasil, Terra de Contrastes, Claude Levi-Strauss em Tristes Trópicos e Stefan Sweig em Brasil, País do Futuro ex-pressam a perspectiva da transformação com vistas à modernização e ao progresso sem perder de vista o atraso social que marca de maneira indelével nossa vida.

Roger Bastide é professor da recém-fundada Universidade de São Paulo, fazendo parte de um grupo de grandes educadores que a instituição de ensino traz para o Brasil. Ficando por aqui por qua-se dezessete anos, incorpora valores de nossa cultura estudando não só a sociologia como também a literatura, o folclore, a arte etc., tomando parte nos movimentos de reformulação da atividade cultural

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brasileira. Tendo ajudado a criar a Escola de Sociologia de São Paulo, Roger Bastide vive uma profunda paixão pelo Brasil, o que faz estendê-la ao tempo em que, de regresso à França, divulga sua cultura.

Sua obra publicada no Brasil ou no exterior em boa parte se baseia em temas e observações brasi-leiras. Entre esses estão Estudos Afro-Brasileiros, Sociologia do Folclore Brasileiro e O Candomblé da Bahia. Neles, Roger Bastide ajuda as constituir uma espécie de literatura sociológica do Brasil, analisando os di-versos elementos da cultura e do homem. Em Brasil, Terra de Contrastes ajuda a trilhar o caminho já per-corrido por estudiosos como Gilberto Freyre, abordando o tema da disparidade que nos caracteriza:

Como a América hispânica, o Brasil poderia ter-se fragmentado numa multidão de nações diferentes, segundo as linhas de recortes geográficos, étnicos, sociais: o Brasil índio da Amazônia; Brasil negro do Nordeste, branco do Sul. O que há de comum, à primeira vista, entre o gaúcho hispanizante dos pampas e os homens-cipó ou as mulheres aquáticas do Amazonas? Os choques entre estes diversos tipos de Brasil, aliás, sempre existiram; houve movimentos separatistas, re-voltas sangrentas de civilizações diferentes. O sertão da seca contra o litoral da cana-de-açúcar. As cidades senhoriais contra os portos de comércio. A aristocracia rural contra os comerciantes portugueses. Mas todas estas lutas eram, no fundo, apenas lutas de família, entre gente da mesma língua, com o mesmo Deus, educada nas mesmas escolas religio-sas ou nos mesmos conventos de jesuítas. (BASTIDE, 1980, p. 13)

Na linha de reflexão sobre o Brasil, o antropólogo Claude Levi-Strauss aventura-se na condição de professor e viajante que escreve suas impressões sobre o Brasil no célebre Tristes Trópicos. Nele estão re-gistros de um país estranho aos olhos do viajante que percorre cidades como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo coletando imagens do povo. Em seguida, aventura-se pelos confins de Goiás e Mato Grosso, onde entra em contato com as tribos caduveo, bororo, nanbikwara, tupi-kawahib, com quem convive, fotografando e escrevendo minuciosos relatos:

O ano Nambikwara divide-se em dois períodos distintos. Durante a estação chuvosa, de Outubro a Março, cada grupo estabelece-se numa pequena eminência, dominando o curso de um riacho; aí, os indígenas constroem palhotas gros-seiras com ramos e palmas. Abrem queimadas na floresta – galeria que ocupa o fundo húmido dos vales e plantam e cultivam campos, onde vêem sobretudo a mandioca (doce e amarga), diversas espécies de milho, tabaco, por vezes fei-jão, algodão, amendoins e abóboras. As mulheres ralam a mandioca em tábuas incrustadas de espinhos de certas es-pécies e, se trata de variedades venenosas, espremem o sumo, apertando a polpa fresca num bocado de casca torcida. A horticultura fornece os recursos alimentares suficientes durante uma parte da vida sedentária. Os Nambikwara che-gam a conservar os paus da mandioca no solo, donde os tiram, meio apodrecidos, após algumas semanas ou alguns meses. (LEVI-STRAUSS, 1986, p. 270).

O interesse e o entusiasmo do antropólogo dizem respeito à abertura do pensamento moderno propiciado pela vontade de nossos artistas e intelectuais em assumir uma posição de reconhecimento de nossa peculiaridade e distinção diante do mundo. Nessa mesma linha de pensamento, o austríaco Stefan Zweig vem ao Brasil e sobre nossa terra escreve o belíssimo Brasil, País do Futuro, no qual des-creve de modo singular e comovente alguns dos principais aspectos do modus vivendi encontrado em São Paulo, em Minas Gerais e na Bahia. Sobre a Bahia, relata o ritual de lavagem da igreja do Senhor do Bonfim, ponto alto da devoção dos baianos como espécie de transe da multidão de devotos:

[...] Sob constantes exclamações de júbilo da multidão – despejou-se água das jarras no piso e alguns indivíduos to-maram das vassouras. Mas estes primeiros indivíduos ainda o fizeram de uma maneira piedosa, humilde, inteiramente com o respeitoso intuito de executar um serviço religioso, em primeiro lugar inclinaram-se diante do altar e benzeram-se. Mas em breve os outros que também queriam servir ao Senhor do Bonfim não puderam conter-se; a impaciência da espera, os gritos e as exultações os tinham exaltados. E subitamente teve início na igreja uma atividade que pare-cia realizada por uma centena de diabos irrequietos. Um tirava a vassoura da mão do outro, muitas vezes uma vassoura passava sucessivamente pelas mãos de três, quatro, dez indivíduos; outros não tinham vassoura, ajoelhavam-se e esfre-gavam o piso com as mãos e todos gritavam: “viva o Senhor do Bonfim”, as crianças, com suas vozes finas e estridentes, as mulheres e os homens. Era um verdadeiro delírio, a mais violenta histeria coletiva que até hoje tive ocasião de ob-servar. Uma jovem, certamente fora disso, calma e circunspecta, ergue os braços e, com o semblante de gozo e extáti-co como o de uma bacante, começou a gritar “viva o Senhor do Bonfim”, “viva o Senhor do Bonfim”, até lhe faltar a voz.

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Outra que de tanto gritar e exaltar-se desmaiou, foi carregada para fora da igreja, e os demônios loucos continuavam a esfregar e lavar como se os seus dedos tivessem que sangrar. Havia algo de tão violentamente arrebatador e contagio-so nessa lavação cheia de gozo que não tive certeza de que, se me achasse no meio daqueles indivíduos exaltados, não agarrasse uma das vassouras. Foi verdadeiramente o primeiro acesso de loucura coletiva que vi e que ainda se tornou mais inverossímil pelo fato de ocorrer numa igreja, sem uso de álcool, de estimulantes, sem música, e em pleno dia, sob um céu magnífico e radiante. (ZWEIG, [s.d.], p. 281-282).

A visão dos visitantes estrangeiros, em pleno século XX, reitera um otimismo que deve alavancar as proposições futuras de um povo em formação. Do mesmo modo, a presença de elementos arcaicos da religiosidade herdada dos portugueses não serve de entrave, mas como fator de uma peculiaridade do país que consegue conciliar diferenças culturais, étnicas e religiosas sem maiores dificuldades.

Conservadorismo e participaçãoSe no Brasil ocorre, com o advento da Revolução de Outubro de 1930, uma abertura capaz de

proporcionar a consolidação de uma classe média e a expansão de algumas de nossas cidades princi-pais, no cenário político, a ascensão do regime Vargas promove um processo acelerado de polarização ideológica nunca visto até então. De um lado, os ecos da Revolução de 1917, que dão origem à União Soviética, propiciam o surgimento do Partido Comunista Brasileiro e de ações revolucionárias como a Coluna Prestes, que percorre o Brasil e alguns países latino-americanos nos anos 1920, ou ainda, a inten-tona Comunista, que malogra em sua tentativa de tomada do poder, em 1935. Do outro lado, a expan-são do nazismo na Alemanha de Adolf Hitler e do fascismo na Itália de Benito Mussolini consolidam-se como forças totalitárias que influenciam – quando não atuam diretamente em ações militares como na Guerra Civil Espanhola, de conseqüências trágicas, ou nos governos totalitários como a ditadura salaza-rista, em Portugal, ou mesmo o Estado Novo –, manifestação autoritária do governo de Getúlio Vargas, que fecha o Congresso e reprime as liberdades democráticas.

Diante desses dois pesos, a classe política e intelectual no Brasil tende a dividir-se, havendo uma linha limítrofe entre as posições de esquerda e direita. Escritores como Oswald de Andrade, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos enfrentam problemas com prisões, exílio e confisco de suas obras. Oswald de Andrade, por exemplo, o corifeu da Semana de Arte Moderna, uma década mais tarde é o crítico acerbo do sistema que se impõe em obras definitivas como A Revolução Melancólica1 e Chão2, dois volumes da obra cíclica Marco Zero, que têm como tema a Revolução Constitucionalista de 1932, ponto de divergência dos paulistas com relação ao regime Vargas, preteridos que são da direção dos destinos do país.

Por sua vez, a questão ganha uma outra direção com o surgimento de uma direita católica de que tomam parte, por exemplo, o escritor Otávio de Faria e o crítico Alceu Amoroso Lima. Essa contraposi-ção de forças se robustece com a polarização radical de elementos contrários à vida democrática, de cla-ra orientação nazi-fascista, representada pelo movimento conhecido como Integralismo. Concentrado em torno da figura emblemática de Plínio Salgado, o integralismo decorre da crise econômica que a Primeira Guerra Mundial deflagra e que tem efeitos devastadores. O crescimento das camadas urba-nas médias e o descontentamento de setores da burguesia concorrem para que o Integralismo se cor-porifique como tomada de posição alinhada a uma ação contrária ao que representa o crescimento do Socialismo, como resultado da Revolução Russa, em 1917. Baseado num sentimento de nacionalismo

1 ANDRADE, Oswald de. Marco Zero I: a revolução melancólica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.2 ANDRADE, Oswald de. Marco Zero II: chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

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radical, o Integralismo visa a extirpação total do cancro social que, segundo eles, apodrece nossas insti-tuições e condena o país ao atraso. Para os integralistas, o poder deve ser concentrado nas mãos de um Estado forte, que não faça concessões de qualquer tipo às demandas socialistas em expansão, caracte-rizando assim uma situação de totalitarismo sem margens à discussão democrática.

No âmbito da criação artística e literária, o Integralismo, a partir de Plínio Salgado, sua figura de maior relevo, filia-se ao Verdeamarelismo, tendência de configuração nacionalista, que rivaliza com o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. Essa tendência constitui, na prática, um tipo de nacionalismo acrítico e conservador, profundamente marcado por uma visão unilateral das questões brasileiras, o que inviabiliza a relativização do debate que se instaura com o Modernismo. Por seu tur-no, o cosmopolitismo que se desenvolve no Brasil, decorrente do crescimento urbano e a expansão das camadas médias da sociedade, é criticado pelos integralistas como sendo um programa à moda brasi-leira dos elementos vigentes numa sociedade européia já desgastada, que serve ainda para agravar o abismo entre a cidade e o campo. As ideologias exóticas devem, portanto, serem banidas em nome de uma atitude de integração que afaste de uma vez a permissividade da massa urbana permeável, o que constitui um mal. A nova sociedade, por sua vez, deve pautar-se pela afirmação de uma cultura de va-lorização das coisas nacionais sem que haja qualquer interferência de fatores externos, como vê a ten-dência chamada de Verdeamarelismo a presença dos movimentos da Vanguarda européia no Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade.

Sobre a ascensão da direita nos anos posteriores à Revolução de Outubro de 1930, destacamos a leitura de Hélgio Trindade (1979, p. 97) sobre o tema:

A influência das idéias fascistas européias faz da década de 1930 no Brasil um período de ascensão das idéias radicais

de direita. Este fato se constata pela presença nas livrarias de uma abundante literatura sobre o fascismo italiano e o

novo estado português. A publicação, neste período, de uma série de livros analisando a situação política brasileira,

numa perspectiva antiliberal, bem como o aparecimento de várias revistas e movimentos ideológicos de orientação

política fascista, monarquista ou corporativista, comprovam a receptividade das idéias autoritárias na década de 1930.

A importância desses grupos políticos ou intelectuais vai se amalgamar na Ação Integralista Brasileira.

E prossegue:

A ascensão da direita na década de 1930 caracteriza-se também pela organização de vários movimentos de inspiração

fascista: Ação Social Brasileira (Partido Nacional Fascista); Legião Cearense do Trabalho; Partido Nacional Sindicalista e o

movimento monarquista Ação Imperial Patrionovista. Com exceção da Legião Cearense, que tem uma penetração regio-

nal importante, estes movimentos são organizações reunindo um pequeno grupo de indivíduos e com audiência po-

lítica restrita, cuja relevância é ter precedido e reforçado a convergência ideológica de direita. Nascidos à margem das

forças revolucionárias no poder, eles são dirigidos pelos líderes civis e militares, em geral hostis à Revolução de 1930,

mas conscientes das novas perspectivas à ação política abertas pelo movimento revolucionário com a derrubada da

Velha República. (TRINDADE, 1979, p. 103).

O período anterior à Revolução de 1930 apresenta-se também como propício ao aprofundamento do pensamento doutrinário católico através de figuras de expressão da intelectualidade como Jackson de Figueiredo, que dá continuidade a uma cruzada apostólica e funda o Centro D. Vital, além da revista A Ordem, que reúnem setores da juventude em torno de uma recatolização brasileira. De natureza rea-cionária e temperamento exaltado, Jackson de Figueiredo advoga em favor das mais iníquas violências desde que mantida a ordem. A favor da censura e do arbítrio, caracteriza sua trajetória pela prática de-sumana contra seus adversários de idéias, sendo figura de proa do reacionarismo de que faz escola.

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Texto complementar

Em cena as massas urbanas(ALENCAR; CARPI ; RIBEIRO, 1996)

A vitória das oligarquias nas eleições de março de 1933 para a Assembléia Constituinte coin-cidia com o enfraquecimento de uma das forças vitoriosas de 1930, tenentismo. Organizados em clubes e legiões, onde dominavam as correntes centristas e timidamente reformistas, os tenentes li-gavam-se cada vez mais às máquinas administrativas estaduais e federal. Não souberam ou não qui-seram ampliar sua base social, nem mantiveram a autonomia do movimento.

A maioria dos tenentes interventores aliou-se às facções regionais das oligarquias, repetindo de certa forma a experiência adesista da “campanha salvacionista” de 1910. Era o caso, por exemplo, de Juraci Magalhães, na Bahia, de Punaro Blay, no Espírito Santo, que fundaram partidos de caráter oligárquico. Outros, como Juarez Távora e Góes Monteiro, abandonaram as concepções liberais e re-formistas e retornaram ao Exército, defendendo a volta aos princípios hierárquicos e disciplinares (o Exército “hierárquico” e “profissional”). Como então se dizia, “os tenentes de ontem tornaram-se os generais de hoje”.

Os anos de 1933 e 1934 foram de relativa recuperação do poder oligárquico. Os constituintes – especialmente os ditos democráticos – estavam diante de uma encruzilhada: a participação das massas crescera nos últimos anos e eles tinham agora de optar entre reconhecer o fato e continuar a tradicional política elitista de exclusão do povo. Era a “tarefa trágica de toda democracia burguesa” no dizer do sociólogo Francisco Weffort: a incorporação das massas ao processo político.

Havia duas correntes principais na Assembléia Constituinte: uma tradicional, formada pelos libe-rais herdeiros das idéias conservadoras e elitistas dos políticos da República Velha; outra, a dos críticos da Constituição de 1891 e do oligarquismo, reunia antigos tenentes, militares do esquema getulista e integralistas – estes mais que os outros, influenciados pelas idéias fascistas em voga na Europa.

[...]

As questões políticas e ideológicas externas (a conjuntura internacional) também influíam nas disputas internas. Desde os anos 1920, as idéias fascistas se propagavam sobretudo no Sul do Brasil, onde pequenos núcleos foram fundados. Em 1928, já havia aqui um partido fascista brasileiro. Mas a principal organização desse tipo foi a Ação Integralista Brasileira. Criada em 1932 pelo escritor Plí-nio Salgado, a AIB defendia o “Estado integral”, autoritário, nacionalista e anticomunista. Sua direção caberia às “elites esclarecidas”, com a função principal de “conciliar” os conflitos de classe. Para tan-to, o Estado acabaria com as organizações independentes de todas as classes, passando a controlar, totalitariamente, a sua atuação. O lema da AIB – “Deus, Pátria e Família” – sintetizava seus princípios conservadores, atraindo particularmente as parcelas mais reacionárias das camadas médias, insatis-feitas com o domínio oligárquico e temerosas da expansão do movimento comunista.

A propagação do “fascismo caboclo”, o agravamento das condições de vida das massas assala-riadas e as tendências autoritárias do Governo provocaram a união de outros setores. Em março de 1935, ex-tenentes reformistas e esquerdizantes, liberais alijados do esquema governamental, co-

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munistas, socialistas e líderes sindicais criaram, à semelhança das frentes populares antifascistas e antiimperialistas formadas na Europa, a Aliança Nacional Libertadora. Elegeram para presidi-la o ca-pitão Hercolino Cascardo que, na ação tenentista de 1924, liderou a revolta do couraçado São Paulo e para presidente de honra Luiz Carlos Prestes, que tinha aderido ao PCB.

Estudos literários1. Uma leitura do Brasil arcaico pode ser efetivada no século XX, a partir de obras como Casa-Grande

e Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. De que maneira isso se efetiva?

2. Sobre Raízes do Brasil, em que consiste o conceito de “homem cordial”?

103|Da casa-grande às raízes do Brasil

3. Ao discorrer sobre a festa do Senhor do Bonfim, na Bahia, Stefan Zweig surpreende-se com o tran-se coletivo decorrente da fé religiosa do povo. O que expressa essa idéia?

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4. O conservadorismo político no Brasil da década de 1930 tem no Integralismo sua principal repre-sentação. Explique essa afirmação.