Cultura Machista Faz Com Que Vítimas de Estupro Não Reconheçam Violência, Diz Psicóloga - BBC Brasil

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  • 7/26/2019 Cultura Machista Faz Com Que Vtimas de Estupro No Reconheam Violncia, Diz Psicloga - BBC Brasil

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    10/06/2016 Cultura machista faz com que vtimas de estupro no reconheam violncia, diz psicloga - BBC Brasil

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    30 maio 2016 Compartilhar

    Cultura machista faz com que vtimas de estupro noreconheam violncia, diz psicloga

    Camilla Costa

    Da BBC Brasil em So Paulo

    Cultura machista faz com que homens "normais" que cometem violncia no se enxerguem comoagressores, diz Scarpati

    No existe o "grande monstro estuprador". Na maioria dos casos de violncia sexual, osperpetradores so considerados "homens normais", que no acham que cometeram um atoviolento. Mas o que exatamente eles pensam?

    o que investiga a brasileira Arielle Sagrillo Scarpati, de 28 anos, que faz doutorado empsicologia forense na Universidade de Kent, na Inglaterra.

    "Quando voc olha a literatura sobre o tema, observa que a maioria dos casos de estuproso cometidos por agressores que no tm nenhuma patologia. A gente tem essa noo deque o estuprador um monstro, um psicopata. Mas na verdade esses homens so o quechamamos de normais, em geral tidos como pessoas boas, salvo raras excees. Issosempre me chamou muito a ateno", disse BBC Brasil.

    Scarpati tenta entender o que faz com que pessoas que cometem violncia sexual noreconheam seus atos como violentos. E aponta valores culturais e os "mitos do estupro",tanto no Brasil quando na Inglaterra, como os principais responsveis.

    "A maioria das pessoas acha que estupro envolve o monstro, o beco escuro, a mulherjogada no cho ensanguentada. Por isso, em muitos dos casos, a prpria vtima noreconhece o que sofreu como violncia."

    REUTERS

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    Segundo a pesquisadora, uma cultura machista tambm dificulta o acolhimento das vtimaspela polcia britnica, que enfrenta crticas de culpabilizao da vtima semelhantes brasileira.

    Confira os principais trechos da entrevista:

    BBC Brasil: Quais so as principais diferenas e semelhanas que voc encontrou

    entre Brasil e Inglaterra quando se trata de violncia sexual?

    Scarpati: Enquanto no Brasil h uma cultura machista mais geral, que abarca qualquerfaixa etria, aqui na Inglaterra o fenmeno parece mais forte nas universidades, que o queeles chamam de "lad culture".

    Para fazer parte de um grupo na universidade e ser considerado um bom membro, preciso fazer certas coisas. Isso inclui muita bebida e, frequentemente, abusar de mulheresem festas. H uma quantidade de violncia sexual altssima e muitos desses casos no so

    reportados. Isso d a impresso de que a violncia sexual ocorre menos.

    Tanto na Inglaterra quanto no Brasil a polcia ainda no est preparada para acolher bemessas vtimas. Aqui os casos andam mais rpido, os servios funcionam melhor, mas oacolhimento inicial ainda ruim.

    Trabalhei como voluntria em um centro de acolhimento de vtimas aqui em Canterbury emuitas me diziam que preferiam no denunciar para no terem que ouvir perguntas como"que roupa voc estava usando?", "ser que voc no provocou?" e "voc vai denunciar

    mesmo, no quer voltar para casa e pensar melhor?'".

    Por outro lado, o debate a respeito do assunto acontece h mais tempo por aqui e existe umsistema um pouco mais bem estruturado para dar assistncia vtima e tratamento aoagressor. Eu vejo muito, por exemplo, uma preocupao com o tratamento dos agressores -o que, infelizmente, a gente ainda negligencia no Brasil.

    Alm disso, aqui h diferenas culturais como menor desigualdade de gnero, ndicesmenores de violncia e maior participao feminina no mercado, que se refletem na

    maneira como a violncia perpetrada aqui. Por exemplo: voc nao v - ou v raramente -mulheres sendo "puxadas pelo brao ou pelo cabelo" em uma festa, ou cantadas nas ruas.

    BBC Brasil: A comoo causada pelo caso da adolescente estuprada por diversos

    homens no Rio pode significar que a sociedade brasileira esteja menos tolerante

    violncia sexual?

    Scarpati:A gente est comeando a olhar para o fenmeno da violncia sexual agora.Ainda no enxergamos muito do que acontece.

    Quando voc tem casos envolvendo menores, tem a ateno das pessoas. Quando hcasos envolvendo muita brutalidade, eles tambm chamam a ateno do pblico de modogeral, despertam indignao.

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    Mas para alm desses casos, que envolvem grupos muito particulares, temos uma srie decasos de violncia que acontecem cotidianamente. E ns negligenciamos tanto a vtimaquanto os diferentes tipos de agressores.

    Esse caso agora definitivamente fora da curva. A violncia contra a mulher no Brasil temuma roupagem muito diferente. So principalmente mulheres que so vtimas de violncia esequer so capazes de nomear como violncia aquilo que elas vivenciaram.

    BBC Brasil: A lei brasileira considera que quaisquer "atos libidinosos" no

    consentidos so crime de estupro. Por que existe essa dificuldade de reconhecer a

    violncia sexual em suas diversas formas?

    Scarpati:Porque a gente tem uma ideia na cabea sobre o que violncia sexual, quem o agressor e quem a vtima.

    So esteretipos que chamamos de "mitos de estupro": o agressor um monstro, a vtima

    aquela que estava andando sozinha pelo beco escuro noite, atacada e deixada no choensanguentada ou aquela que estava se vestindo de maneira tida como vulgar, queestava bbada ou que "provocou".

    Qualquer coisa que fuja desse padro a gente tem muita dificuldade de reconhecer. Porisso, em muitos dos casos, a prpria vtima no reconhece o que sofreu como violncia e oagressor tambm no reconhece.

    comum que as pessoas no entendam como violncia sexual uma situao de estupro

    dentro do casamento, por exemplo. Mas o que caracteriza o estupro ausncia deconsentimento. Se a mulher est com o marido e diz no, mas ele fora e o sexo acontece,isso estupro.

    No interessa se os dois foram para o motel, se estavam pelados. Se a mulher diz: 'no,para'. E o homem continua, isso estupro. Mas muitos no acreditam.

    E isso no algo apenas dos homens. Homens e mulheres acreditam nesses mitos e osendossam.

    BBC Brasil: O caso da adolescente no Rio gerou discusses, especialmente nas

    redes sociais, sobre o papel dos homens no combate ao que se chama de cultura do

    estupro. Qual voc acha que deve ser este papel?

    Scarpati: Se um homem no enxerga como violncia e se posiciona diante de uma piadasexista, de um comportamento machista, de um colega que diminui uma mulher, estindiretamente contribuindo para esta cultura de violncia.

    H pesquisas aqui no departamento na Universidade de Kent que mostram uma relaoentre aceitar piadas sexistas e concordar com "mitos do estupro".

    E tambm h pesquisas mostrando que pessoas que concordam com mitos de estupro tm

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    mais chances de vir a cometer algum tipo de violncia. No uma relao direta de causa,mas uma correlao. So coisas que caminham juntas.

    Por isso defendo que no uma questo de patologia. Por causa de um ambiente muitopropcio - um caldo de normas e de valores, de discursos e prticas - as pessoas passam anaturalizar e legitimar determinados tipos de comportamento em relao mulher.

    Quando h algo que voc considera muito errado e voc faz, voc entra num debateconsigo mesmo. Cognitivamente, voc precisar entrar num acordo com sua conscincia.Mas se a sua ao no tida como equivocada, voc no precisa lidar com a conscincia.Faz e segue em frente.

    BBC Brasil: Se na maioria das vezes no um caso de patologia, como voc diz, o

    que passa pela cabea de homens que cometem atos de violncia sexual?

    Scarpati: Sabemos que, de maneira geral, a maioria dos agressores carregam uma

    hostilidade contra mulheres e de alguma maneira apoiam "mitos de estupro".

    Segundo as teorias mais aceitas atualmente: agressores geralmente trazem dentro de si osexismo ambivalente, os "mitos de estupro" e o que chamamos de "crena num mundo

    justo".

    A "crena num mundo justo" a ideia de que coisas ruins acontecem com pessoas ruins ecoisas boas acontecem com pessoas boas. Ento, cada um s tem o que merece. Isso algo que ajuda a deixar esses homens tranquilos com aquilo que fizeram.

    Outra coisa o que chamamos de "sexismo ambivalente". Ele tem uma face mais agressiva- a ideia de que mulher no presta, de que, se provoca o homem, merece apanhar mesmo ede que vale menos que o homem - e uma face benevolente - a ideia de que a mulher arainha do lar, de que frgil e de que o papel do homem cuidar dela.

    Arielle Scarpati: "Esse caso agora definitivamente fora da curva. A violncia contra a mulher noBrasil tem uma roupagem diferente."

    ARQUIVO PESSOAL

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    Essa face benevolente tem uma cara muito bonita, mas o problema com isso que ohomem, ao pensar assim, continua diminuindo a mulher. Ao dizer que ela frgil, sensvel edelicada, ele tambm est dizendo que ela no capaz de fazer as prprias escolhas e quequando ela diz no, ela no sabe muito bem o que est dizendo.

    Tambm est dizendo que o papel do homem fazer as escolhas da mulher por ela. E que,se ela no tiver o comportamento de princesa esperado, ele pode puni-la por isso.

    O sexismo ambivalente d margem a achar que a mulher deve se comportar dedeterminada forma: delicada, frgil, feminina, quieta.

    Se alguma mulher no se comporta desse jeito, no merece cuidado. Assim, mais fcilagir de maneira agressiva com uma mulher que no se encaixa nesse padro de mulherideal. Por isso frequente ouvir o discurso de "se ela no se comportasse de tal maneira,isso no teria acontecido".

    BBC Brasil: Alguns dos suspeitos do crime disseram nas redes sociais que a garotateria pedido para ter relaes sexuais com os homens, ainda que aparentasse no

    estar completamente consciente no vdeo. Seu perfil no Facebook tambm vem

    sendo criticado por referncias a sexo e drogas. Que importncia estas informaes

    tem na compreenso sobre o que estupro?

    Scarpati:Quando a gente fala de violncia sexual tudo gira em torno da potencial vtima ouda vtima em si. A gente pensa na roupa que ela usando, no passado dela, se ela provocouou no, se ela disse no claramente, se ela estava sob efeito de drogas.

    Em nenhum momento, paramos para discutir porque no estamos focando nas aes doagressor, ou nos homens de modo geral.

    Se ela estava sob efeito de drogas, o homem precisa entender que ela no est 100%consciente e no capaz de consentir de verdade um ato. Se ela est alcoolizada, no temcondies de dizer sim ou no claramente.

    Ao invs de dizermos aos meninos: "se a menina estiver alcoolizada, ao invs de lev-la

    para a cama, voc chama um txi e a leva pra casa". Ao invs de dizermos: "sexo envolvepessoas em plena razo para consentir que acontea", tiramos toda a responsabilidade dohomem e colocamos na mulher.

    Ela tem que estar s, consciente, capaz de dizer no e, mesmo quando diga no, tem queser capaz de fugir ou de reagir se isso no for respeitado.

    Esse tipo de estratgia (de falar do comportamento da vtima) muito eficaz. por isso quese continua utilizando at hoje, no Brasil e aqui na Inglaterra tambm. Uma srie de casos

    que foram para a Justia tiveram exatamente esse argumento: ela bebeu, ela provocou, elano gritou, no reagiu.

    E a vtima submetida a outra forma de violncia: desacreditada durante todo o processo.

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    Para fechar com chave de ouro, o agressor absolvido.