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Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

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Coletânea de artigos publicados pela Associação Imagem Comunitária

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Índice

Música, dança e socialidade no Brinquedo

do Nove (Médio Jequitinhonha) | Valéria de Paula Martins - p.07

Tentativas e tentações:

batidas no território da linguagem | Valter Filé - p.25

TV “à moda da praça pública”

Elementos para uma definição de TV comunitária | Rafaela Lima - p.37

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Música, dança e socialidade no Brinquedo do Nove (Médio Jequitinhonha)

Valéria de Paula Martins*

Resumo O Nove é um Brinquedo popular de música e dança tradicionalmente realizado no médio Jequitinhonha, região nordeste de Minas Gerais. Abarca uma série de danças coletivas e é marcado pela poesia cantada. Ao tratar da Brincadeira, busca-se ressonâncias das interações que se dão no âmbito dela em outros registros da vida social, como o do trabalho e do parentesco. Tomando o Nove a partir das concepções cosmo-religiosas dos cantores, que o afi rmam como um Brinquedo do princípio dos tempos, procura-se ainda perceber conexões entre essa caracterização e alguns dos aspectos formais dele, como o dispositivo de alternância do canto entre os cantores. Palavras-chave: música; dança; formas de socialidade

*Doutora em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB)

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Este trabalho focaliza o Nove, um evento musical e cinético realizado tradicionalmente por lavradores na região nordeste do estado de Minas Gerais, mais precisamente no médio Jequitinhonha. Trata-se de um Brinquedo ou Brincadeira onde a poesia cantada tem presença marcante, e no qual se encadeiam uma série de danças coletivas – os chamados brinquedos ou brincadeiras de viola1.

O Nove é um evento noturno que reúne velhos e jovens, mas é especialmente associado aos primeiros. O Brinquedo é antigo: “Isso é mesmo desde o nascimento do mundo. Que os mais velho gostava”2. Em uma noite de Brincadeira, brincam-se danças velhas, como o Caboclo, Paulista (ou Quatro), Serenata, Mariazinha, Roda, Batuque, Vilão, e a brincadeira do Nove, sempre realizada no evento, nomeando-o3.

Este trabalho apresenta alguns pontos tratados na tese de doutorado que defendi recentemente, e que consiste, por sua vez, em uma etnografia do Nove realizado ocasionalmente nas imediações do córrego do Machado, naquela região. A tese foi produzida a partir de pesquisa de campo realizada entre pequenos agricultores que habitam aqueles arredores4, e, de forma mais direta, entre dezesseis cantores que participam regularmente dos Noves realizados por ali. Dentre estes, onze são homens, cantadores (e alguns, violeiros), e cinco são mulheres, cantadeiras. Nascidos entre os anos de 1920 e 1965, grande parte deles é aposentada como trabalhadores rurais. Os mais novos contam com o provimento da colheita de pequenas plantações, e alguns costumam prestar serviços como o de pedreiro ou faxineira.

Além de contar necessariamente com a presença de cantadores e cantadeiras e ainda com a de apreciadores dos brinquedos, que também integrarão as danças, uma Brincadeira deve ser planejada e organizada por alguém – que se torna seu dono. Pode-se tratar de um cantador, ou de amantes do Nove, que tomam, então, as providências necessárias para que uma Brincadeira se dê – estas incluem o convite a cantadores e cantadeiras; a providência,

1 Na primeira vez em que termos ou categorias nativas forem citados no texto, serão marcados em itálico. Os termos

“Brinquedo” e “Brincadeira”, em maiúsculo, serão utilizados como uma referência ao evento do Nove. No caso de

estarem grafados em minúsculo, trata-se de uma menção aos brinquedos de viola.

2 Na transcrição de falas, conservo aspectos sintáticos que, apesar de se desviarem da norma culta, são sistemáticos

e característicos da variante do português da região (como no caso da concordância numérica, vista neste caso). Não

procurei registrar outras particularidades (realização fonética etc.).

3 Para diferenciar o evento da brincadeira de viola, o termo grafado em itálico – Nove – refere-se ao evento; grafado de

forma regular – Nove –, à brincadeira de viola.

4 Além dos que habitam o povoado de Machado, há aqueles que residem em Jenipapo de Minas, a oito quilômetros

daquele. Um dos cantores reside na cidade de Araçuaí, localizada a 45 quilômetros de Machado.

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se necessário, de um meio de transporte para deslocá-los ao local do Brinquedo; a disponibilização de um lugar – em geral um salão, como vemos na fotografia abaixo – onde se realizar a Brincadeira; a preparação de comida e, em alguns casos, o provimento de bebida para os cantores – vinho e refrigerante, em geral.

O Nove é realizado comumente em um final de semana, de preferência no sábado à noite, considerando-se a falta de obrigações a cumprir no dia seguinte, já que a expectativa é de que ele dure até amanhecer o dia.

Até cerca de 50 anos atrás, a realização de um Brinquedo estava em geral vinculada a eventos de caráter religioso (como festas de santos), ou ainda casamentos, finalização de trabalhos coletivos (em geral capinas de roça), viagens de parentes ou amigos e seu retorno à região, entre outras situações mais corriqueiras.

Nos dias de hoje, os Noves são menos frequentes e sua ocorrência parece estar tanto vinculada à visita de parentes ou amigos que, nascidos na região, residem em outras cidades e/ou estados (especialmente filhos, irmãos), quanto a situações diversas, como, por exemplo, a inauguração de um salão comunitário em dado povoado. Em Machado, o Nove é ainda realizado anualmente, no mês de julho, durante a Festa de Bom Jesus, padroeiro local

Até onde sei, a existência do Nove é limitada ao Jequitinhonha mineiro. Ali, as brincadeiras de viola acima citadas podem ser vistas em outros locais além do pequeno entorno em que esta pesquisa se baseou. A opção por limitá-la a este entorno, sem incluir todos os inúmeros lugares em que vi brincadeiras, na região, é “metodológica”: privilegia as conexões entre o Nove e a experiência específica e singular de determinadas pessoas. Meu interesse não está no Nove em abstrato, mas nas articulações entre ele e outros aspectos da vida das pessoas. Na análise do Brinquedo, tem-se em vista um Nove específico, cuja

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forma é dada por uma história concreta mais do que por um protocolo ou modelo de Brincadeira abstratamente concebido.

Ao enfocar o Nove de Machado e arredores, busquei realizar um estudo que levasse em conta as dimensões sociológica e cosmo-religiosa do Brinquedo, procurando ressonâncias das interações no âmbito do Nove em outros registros da vida social.

Antes de seguirmos adiante, porém, e tratarmos propriamente da etnografia da Brincadeira, faço uma brevíssima revisão bibliográfica do tema das festas e danças, buscando situar minimamente nesta literatura o leitor não familiarizado com o tema.

Em termos gerais, podemos dizer que o tema das festas e danças foi no Brasil comumente abordado segundo duas grandes vertentes. Uma delas, que teria como representantes os chamados folcloristas, está calcada na ideia de uma identidade a ser “expressa” por meio das “manifestações” ou, justamente, “expressões culturais”. Essa identidade aqui teria um caráter de essência: figuraria como a “alma brasileira”, perene, e imanente. O interesse primordial destes autores estava assim voltado para a revelação de uma “unidade essencial” do povo brasileiro (Carneiro 1965). O caminho escolhido para tal foi o registro, a catalogação ou documentação do maior número possível de festas, danças, músicas, em uma tentativa de apreensão do “ludus nacional” (Carneiro 1965). Nesses quadros, a maioria destes autores mostrava uma preocupação em identificar as “origens” ou “influências originárias” que teriam conformado seu objeto de estudo – numa discussão que parecia espelhar a discussão acerca da “formação” do próprio país como nação. Apesar de uma tal abordagem não propiciar o conhecimento em profundidade de uma festa ou dança específica – tomando “festa ou dança específica” enquanto forma singularizada por uma história concreta de performances específicas, e especificamente localizadas –, o esforço de registro em dimensões nacionais empreendido pelos folcloristas deixou contribuições bastante importantes a quem queira relacionar seu próprio objeto etnográfico a elementos apontados por eles nas inúmeras obras que produziram (Martins 2009).

A identidade percebida como expressa pelas danças, músicas e festas nas pesquisas folclóricas foi também tomada, em inúmeros outros estudos, como “construída” (na antropologia, ver, por ex., Braga e Ferreira 2005; Félix 2000; Montes 1998). As danças e festas, deste ponto de vista, produziriam e renovariam identidades coletivas, muitas delas ameaçadas ou postas em cheque por fenômenos como a globalização ou a urbanização. As festas e danças, por meio de elementos simbólicos como vestimenta, linguagem, etiquetas de consumo (de bebidas e/ou outras substâncias), acionados por ocasião das performances, seriam capazes de promover o sentimento de pertencimento a grupos variados (etários, econômicos, raciais etc.), configurando, então, identidades sociais.

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Na antropologia, o termo “folclore” é deslocado em favor da expressão “cultura popular” (como em Costa 2008; Braga 2001; Rodrigues da Silva e Ferreira 2008). Esta expressão guarda associações históricas e políticas importantes – como o contexto dos CPCs (Centros Populares de Cultura), nos anos 60, em que a “cultura popular” era associada a uma “arte popular revolucionária” capaz de transformar relações de poder e a estrutura socioeconômica brasileira (Garcia 2004). A determinação, porém, do que ou quem contaria como “povo”, e do que contaria como “cultura”, permanecia pouco sensível às concepções das próprias pessoas com quem realizamos nossas pesquisas. O uso desses termos muitas vezes dispensa ou esvazia assim a investigação acerca de noções que elas mesmas têm sobre quem são ou o que fazem: o quanto elas se veem como “povo” ou veem sua prática como “cultura” é indiferente do ponto de vista do enquadramento imposto por essas categorias5.

Por fim, uma assunção recorrente nestes estudos que se apoiam na noção de identidade é a de que o que reúne as pessoas é (necessariamente) aquilo que elas têm em comum. A conexão entre elas se faria, assim, às expensas de suas diferenças (que só poderiam subsistir como partes complementares de um todo maior que as engloba). Tomando-se a identidade como imagem da relação em geral, conectar tornar-se-ia uma questão de reduzir ou controlar a expressão de diferenças. Uma tal descrição deixaria de fora muito do que é importante no Nove – a sustentação de diferenças que ele implica. Isso não significa, todavia, que a identidade (assim como noções de “povo”, de “popular” ou de “cultura”) seja irrelevante para a compreensão desses fenômenos, sobretudo na medida em que pode ser acionada pelos próprios atores. Apenas sugeriria a necessidade de exercitar cautela no analítico do termo.

Eventos musicais e cinéticos (como festas, cerimônias, rituais) foram também objeto de abordagens culturalistas, estruturalistas ou fenomenológicas, geralmente focalizadas especialmente sobre a música que se produz, nestas (e outras) ocasiões, no seio de grupos sociais específicos, frequentemente conceituados como “sociedades” (noção ausente, note-se, das abordagens do folclore ou da cultura popular). Música aqui inclui muitas coisas: ela não pode ser dissociada da política, economia ou geografia de determinado grupo, tampouco dos movimentos corporais ou ocupação do espaço nas performances musicais; ela é capaz de criar aspectos da “vida social” e está intrinsecamente ligada a eles. Talvez essa seja a proposição geral que liga o trabalho desses pesquisadores – a maioria antropólogos com sólida formação musical (na tradição ocidental) e também em etnomusicologia, e que realizaram pesquisa junto a grupos autóctones diferenciados, como John Blacking, entre os Venda, na África do Sul; Anthony Seeger, entre os Suyá

5 Para uma análise detalhada da questão, ver Ortiz 1992.

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(autodenominados Kisêdjê), no Brasil; e Steven Feld, com os Kaluli, na Papua Nova Guiné.

Como ressalta Seeger (1987), a música que, na antropologia da música de Alan Merriam (1964), era apenas uma parte, seção ou subdivisão da cultura, passa a ser, na antropologia musical defendida por ele, vista em sua relação constitutiva com um determinado “grupo social” em sua integração com os mais variados aspectos de sua vida: quando as cerimônias, entre os Suyá, reúnem os meninos por grupos onomásticos; quando estes cantam cantos específicos de cada grupo; quando doadores e receptores de nomes têm seus corpos pintados da mesma maneira; quando a origem do canto entoado é atribuída a espíritos; quando todos podem cantar, mas em momentos determinados; quando quem está em luto não canta etc., o que está em jogo são os processos pelos quais as cerimônias, primordialmente por meio da música, constroem a pessoa. Criaturas e criadoras de ”estruturas”, elas seriam também capazes de (re)criar tempo, espaço e grupo social. A análise musical aqui é tão minuciosa quanto transversal, podendo por exemplo estabelecer relações entre o gênero, número de filhos e netos da pessoa e o fato de esta entoar cantos de grito (akia) mais graves, “na garganta”, ou dominar a oratória e fazer invocações.

Essa abordagem “estrutural-culturalista” permitiu o tratamento pormenorizado de questões e dimensões até então ignoradas. As conexões buscadas e afirmadas entre música – as “cerimônias”, festas, danças – e outros aspectos da “vida social” revelariam como a música, estruturada pelos mesmos princípios operantes em outras dimensões da sociedade que a produz, ao atualizá-los simultaneamente os renova: torna-se assim um princípio estruturante das formas de socialidade vigentes, na mesma medida em que as renova.

A força dessa abordagem, entretanto, é também seu risco, embutido em um uso de noções como cultura, sociedade e estrutura demasiado apoiado nas ideias de ordem e coesão. Essas análises correriam assim o perigo de constituir ou reproduzir uma imagem de sociedade – ou cultura – como totalidade hiper-integrada, imagem cujos limites a antropologia contemporânea tem explorado (Strathern 1996).

No trabalho sobre o Nove, não se pretendeu buscar uma função social ou explicações históricas e sociológicas para o Brinquedo. A ênfase é posta na relação de certas pessoas com o Nove, e na interação entre elas no Nove – destacadamente os cantadores e cantadeiras que dele participam regularmente. Nada se supõe sobre o sentido identitário dessas relações; em particular, procura-se evitar ver as conexões entre as pessoas como construídas às expensas de suas diferenças. Ao focalizar o Nove, o interesse está voltado para perceber os sentidos e efeitos que ele cria ou produz: o que está sendo “dito” e/ou

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“silenciado” no Brinquedo?; quais os afetos e relações nele implicados?; o que ele faz, e o que as pessoas fazem com ele?

Na análise da Brincadeira, buscou-se observar suas relações com outras dimensões da experiência social – como a do parentesco, do trabalho, das relações de gênero, da religiosidade. Para tal, foram focalizados tanto os textos das canções, quanto também a própria estrutura formal do Nove: o caráter e formas da presença e participação de cantadores e cantadeiras, o dispositivo de alternância do canto entre cantores, sua distribuição em posições vocais específicas, etc.

O Brinquedo foi considerado ainda a partir das concepções cosmo-religiosas dos lavradores, que o associam a um “tempo” determinado: trata-se de uma Brincadeira do princípio dos tempos, do começo dos séculos, do princípio do mundo. Tempo em que o mundo era habitado por pessoas (em geral lavradores), entidades divinas e diabólicas, corpos celestes e animais, cujas interações determinaram uma série de traços do mundo atual.

Até cerca de cinquenta anos atrás, havia turmas mais ou menos estáveis de cantores que animavam os Brinquedos de dado entorno. Nem todos os dezesseis cantores mencionados acima habitavam um mesmo local quando de sua infância ou juventude. Este é o caso de alguns deles, conectados por uma rede estreita de relações de parentesco, compadrio e aliança. Outros passaram a ter contato com esse núcleo já adultos e brincam, juntos, há menos tempo. Para fins de comodidade, nomeio estes dezesseis cantores como os da “turma atual”.

Apesar de o trabalho ter sido realizado com esta turma, percebi, com o tempo, que o Nove ao qual a pesquisa se ateve era aquele tal como o conhecem e praticam os cantores que, dentre os da turma atual, estão conectados por uma série de relações de parentesco, aliança e compadrio altamente localizadas: eles eram vizinhos, quando crianças, e habitavam as imediações do córrego do Machado. Desde muito novos, brincam neste povoado.

Este núcleo de cantores ocupa posições de canto destacadas no Nove de Machado e arredores. O “ritmo” da Brincadeira – o andamento das canções ou outras características formais dos brinquedos de viola – é determinado em boa medida por eles. Com diferenças de repertório das peças do Nove a partir dos diferentes lugares em que o Brinquedo se realiza, o repertório que se evoca no Nove de Machado e imediações é, em boa medida, aquele que estes conhecem.

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Quando conheceram o Brinquedo, os cantores eram ainda crianças – na companhia dos pais, tios, padrinhos, avós, vizinhos. Continuaram brincando com irmãos, primos, compadres. Pode-se dizer que há uma estreita proximidade entre o conhecimento e a experiência que se tem do Nove e o adensamento de relações de parentesco, compadrio e aliança de uma pessoa. Há um empenho tanto em classificar parentes como cantores quanto cantores como parentes.

Desde que os cantores conheceram o Nove, uma série de transformações se deram no Brinquedo. Elas estão associadas a transformações no modo de vida e formas de socialidade locais ocorridas desde a infância da maioria deles – cerca de 60 anos atrás – até os dias atuais.

Mas voltemos um pouco nesta história. Mais precisamente, ao princípio do mundo, de quando data o Nove. No começo dos séculos – expressão equivalente à anterior –, habitavam o mundo e interagiam, nele, lavradores, Deus, ou Jesus, o Diabo, Nossa Senhora, Pedro (o apóstolo), Adão e Eva, animais, corpos celestes, plantas. Todos estes seres tinham a capacidade de conversar6. O princípio do mundo é um tempo qualificado pela “simplicidade” e pela “inocência”. Vários fenômenos que o marcavam – como encantos, feitiços, transformação de mortos em bichos – foram rareando no decorrer dos anos, e alguns mal podem ser vistos nos dias de hoje. O tempo marcado pela conversação irrestrita e pelos encantos teve fim com o desvelamento de segredos, e com a falta de fé: o sigilo e a fé são o que condiciona a eficácia e a perpetuação de uma série de atos, operações ou fenômenos. Batizado pelo Divino Espírito Santo no princípio do mundo, o Nove é um Brinquedo abençoado. A associação da Brincadeira a este tempo, e às noções de segredo, sigilo, antiguidade e simplicidade vinculadas a ele pode ser percebida a partir de diferentes aspectos do Brinquedo, como veremos.

Na infância dos cantores, o Nove era bastante frequente, e realizado nas casas das pessoas, em ocasiões como rezas de terços, casamentos, finalização de trabalhos coletivos. A dispersão das turmas de cantores de dado entorno, em grande parte das vezes associada ao casamento e/ou à migração, esteve ligada à menor frequência dos Brinquedos especialmente nos anos 80 e 90. Nos dias de hoje, realiza-se o Nove em ocasiões diversas, como visita de parentes ou amigos, e, anualmente, na Festa de Bom Jesus, em Machado – o que começou a ocorrer em 2005, a partir da sugestão de machadenses residentes em Brasília. Na Festa, o Brinquedo é realizado um dia antes de seu início oficial, quando estão presentes quase somente os moradores do povoado, além de parentes deles, que costumam chegar ao local neste dia (nos três dias seguintes, a presença de pessoas de

6 “Diz que de primeiro, há muito tempo, tudo falava. O sol falava, a lua falava, a terra falava, tudo quanto é bicho, diz

que falava”, contou a cantadeira Antônia.

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outros povoados é enorme). Trata-se, portanto, de um encontro mais próximo, interno, a ser realizado antes de os outros convidados chegarem. Velado, de certa forma. Esse relativo apagamento da Brincadeira no contexto da Festa indicaria talvez a vinculação de uma e outra a tempos e a espaços diferentes: o Nove permaneceria associado a algo simples ou inocente, antigo. Por outro lado, esse velamento, essa discrição em relação ao Nove no contexto da Festa poderia representar uma forma de velar pelo segredo do Brinquedo, digamos assim: ocultá-lo, em alguma medida, mantendo-o vigoroso. Na enunciação dos textos das peças em uma Brincadeira, esse elemento também aparece: os textos são muitas vezes separados em partes, o que dificulta a apreensão do que está sendo dito, ou cantado. Há ainda, em cantigas e versos, o uso abundante de figuras de linguagem como metáforas e metonímias. Humanos tomam ali a forma de andorinhas e piabas; canários, curimatás e gaviões... A referência a uma pessoa, em específico, nem sempre fica explícita, portanto.

No Brinquedo, os cantores se dispõem e articulam de forma variável, mas uma formação que ocorre em muitas das brincadeiras de viola é o agrupamento dos cantadores em quartetos, nos quais atuam em posições específicas de canto. Em geral são formados dois quartetos, que cantam de forma alternada. Em outras brincadeiras, cantam-se individualmente versos – que são quadras, estrofes de quatro linhas7 –, entremeados a cantigas, canções, repetidas por um grupo maior de pessoas.

Em quarteto, os cantadores atuam em posições vocais específicas, cada um devendo emitir seu canto em determinado espectro do campo sonoro. Essas posições são quatro: Primeira, Segunda, Contrato e Requinta. O cantador que fala a primeira é também violeiro, e pode ser chamado tirador – é deste a responsabilidade de tirar cantigas e chamadas.

Quando os cantadores cantam a partir desta formação de quarteto, devem respeitar dois principais elementos: o tempo, ou o momento em que cada um profere seu canto, e o espaço (sonoro), ou o campo vocal em que cada um trafega. O canto é iniciado pelo tirador, que fala a primeira, cuja altura é referência para as demais vozes. Em seguida, o segundeiro anuncia, justamente, a segunda, cantando em uma tonalidade mais grave que o tirador. Então, o contrateiro soma-se ao conjunto, em um tom mais agudo que o do tirador. Por fim, o requinteiro fala a requinta, a mais aguda das vozes do quarteto. Antes de o requinteiro finalizar sua participação, o tirador já recolheu sua voz, seguido pelos outros dois companheiros. É aquele, então, que arremata o canto, cedendo espaço a um breve silêncio, que será interrompido pelo tirador: é deste, afinal, a responsabilidade de

7 Como, por exemplo: “Menina, diga seu nome/ Que eu também te falo o meu/ Meu nome é cambraia fina/ Daquele vestido seu”.

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iniciar cantos, tirar cantigas e chamadas, e escolher versos para conectar a estas, figurando como o timoneiro deste barco de cantadores.

As cantadeiras também costumam cantar agrupadas, próximas umas às outras, mas no caso delas não há uma formação específica nem posições vocais nomeadas. Não que isso exclua preceitos ou expectativas em relação ao seu canto, não exclui. Elas devem cantar em tons agudos – suas vozes devem soar “como cigarras”, e são assimiladas à do requinteiro, em termos de altura. Diz-se de algumas mulheres, inclusive, que elas já atuaram, atuam ou podem atuar como requinteiras. Nos Noves de que participei, entretanto, nunca vi alguma fazê-lo. Sempre havia requinteiros em número suficiente para compor os quartetos de cantadores e havendo-os, não me parece que se requisite a presença delas.

Os cantadores, exceto os violeiros, são chamados ajudantes – exceto os violeiros porque são eles a quem os ajudantes ajudam. Ou seja, há os violeiros, tiradores – aqueles que falam a primeira, tiram cantigas e escolhem versos para compor chamadas –, e os ajudantes deles – o segundeiro, o contrateiro e o requinteiro –, que somam suas vozes à daquele e seguem-no, por assim dizer, acompanhando o texto que ele profere e tomando sua posição vocal como referência para ocupar a sua. É comum ouvir de um tirador os termos “a minha segunda” ou “fulano estava falando o contrato para mim”.

Em um Brinquedo, violeiro e ajudantes costumam ficar lado a lado e, quando há dois quartetos, estes costumam ficar de frente um ao outro. Neste último caso, diz-se que um dos quartetos fala, e o outro, responde. A transmissão do canto entre tirador e ajudantes, lateralmente, parece, na verdade, ecoar outra, a que se dá entre os dois violeiros, frontalmente. São os violeiros que alternam o canto entre si. Para fazê-lo, entretanto, contam com a ajuda – reconhecida como imprescindível – dos outros cantadores. A relação entre violeiros e ajudantes sustenta ou possibilita, então, a que se dá entre violeiros, e vice-versa, mas há uma centralidade, digamos assim, da segunda. A primeira estaria em função da interação que um violeiro estabelece com outro.

Assim como segundeiro, contrateiro e requinteiro em relação ao violeiro, as cantadeiras e os demais participantes também são tidos, em relação aos cantadores, como aqueles que os ajudam em uma noite de Nove, especialmente nos brinquedos em cuja condução os cantadores atuam de forma mais marcante. As cantadeiras e os outros participantes do Brinquedo, diferentemente dos cantadores, não têm posições vocais ou mesmo espaciais estabelecidas, proferem seu canto em momentos coletivos, ou, ainda, põem versos, individualmente. Dentre os “demais participantes” das brincadeiras, contudo, incluindo as cantadeiras, há uma expectativa diferenciada em relação à participação delas, como veremos. Há ainda, como apontado, expectativas em relação ao canto feminino, às vozes

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delas, o que não ocorre em relação ao grupo de participantes genéricos.

Os cantadores são tidos como “chefes” no Nove. A eles é associada, de forma geral, a atribuição de iniciar e conduzir as brincadeiras, tanto em termos musicais quanto cinéticos. As cantadeiras ajudam-nos – assim como, dentre os cantadores, o segundeiro, o contrateiro e o requinteiro ajudam o tirador/violeiro.

Examinando a dinâmica das interações entre os cantadores, sugiro dois paralelos: um primeiro entre as relações no âmbito do quarteto e aquelas que se dão idealmente em um núcleo familiar (entre um chefe e seus ajudantes); e um segundo entre as relações que vinculam dois violeiros e aquelas estabelecidas por diferentes lavradores/ pais de família em uma série de arranjos cotidianos – por exemplo, nas trocas de dias e mutirões no âmbito do trabalho. Ajudantes ajudam o pai de família/chefe a falar com outro chefe/pai de família. As relações de reciprocidade entre estes últimos envolvem obrigações mais determinadas e específicas do que aquelas mais difusas denotadas pela categoria da ajuda.

O modelo ideal de relações em um núcleo familiar também pode ser evocado tendo em vista a atuação diferencial de homens e mulheres na Brincadeira: os homens, chefes de família, seriam responsáveis pelo estabelecimento da base de sustentação dela, enquanto o trabalho das mulheres seria visto como uma ajuda, algo a ser somado ou inserido sobre esta base8.

Há ainda outro elemento a se considerar nessa dinâmica das relações entre os cantores no Brinquedo e fora dali: a alternância do canto no Nove. Ao se referirem tanto à interação entre dois quartetos de cantadores quanto àquela entre dois indivíduos trocando versos, os cantores afirmam que uns falam e outros respondem. Em ambos os casos, o canto é alternado entre duas partes, e um proferimento parece suscitar o outro, ainda que não de forma necessariamente simétrica.

Uma série de versos é cantada em sequência em uma brincadeira – especialmente no Vilão e Roda. Contudo, versos sucessivos não necessariamente conformam uma alternância entre proferimentos que figurariam ou como fala ou como resposta. Quando os cantores afirmam que uns falaram e outros responderam, a propósito dos versos, estão se referindo a interações mais diretas entre duas pessoas. Interações que figuram como uma espécie de conversa, não apenas do ponto de vista do regime de enunciação, isto é, da alternância

8 Ao homem é ainda hoje em geral atribuída a responsabilidade pelo provimento da casa e o sustento da família, mesmo

que a mulher possa fazer serviços na roça e contar com alguma renda própria – proveniente, por exemplo, da prestação

de serviços como o de costureira ou faxineira. Como em relação à divisão do trabalho familiar, o protagonismo mascu-

lino aqui é um ideal que nem sempre corresponde à prática, especialmente nos dias atuais.

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de posições entre falante e ouvinte, mas no plano do enunciado, do ponto de vista do conteúdo dos versos mesmos.

Em uma sequência de versos alternados entre duas partes, é comum a atribuição de vitória ou derrota a uma e outra. Diz-se que alguém venceu enquanto outro foi vencido. A derrota está associada à ausência de resposta – ouvi muitas vezes, inclusive, o termo “vencer” como equivalente a “responder”.

A vitória no caso da interação entre os dois quartetos também está associada à capacidade de calar o outro, e é perseguida por meio da tentativa de suscitar a adesão dos participantes ao brinquedo – especialmente das mulheres – no momento em que se canta – se fala. Busca-se ser aquele capaz de tirar cantigas que entusiasmem os presentes – especialmente o público feminino – conquistando sua admiração e tornando o Brinquedo animado.

A ajuda das cantadeiras na brincadeira do Nove, cuja importância é recorrentemente afirmada pelos cantores, parece ter assim, primordialmente, a função de validar ou não a pretensão ao caráter de “fala” do canto dos homens; elas apontam, por meio de sua participação, quem são os vencedores. Os homens cantam, inúmeras vezes, fazendo referência às mulheres, como se pode notar nas peças. É como se proferissem o canto para elas, e as chamassem a participar do brinquedo – tornando-os por meio do reconhecimento expresso na ajuda feminina, vencedores diante de outros.

Nesse contexto, as mulheres não ocupam a posição de quem fala – mesmo que sejam elas, primordialmente, que indiquem por meio de sua participação no brinquedo quais dentre eles falaram melhor. O lugar delas em relação aos cantadores é análogo ao dos ajudantes em relação ao violeiro: os primeiros não chegam a alternar-se na posição de falador com os segundos. As mulheres só ocupam a posição de “falador” nas trocas de versos em brincadeiras como a Roda e especialmente o Vilão – na qual aqueles são proferidos seguidamente. Aqui, as mulheres são capazes de vencer homens reconhecidamente competentes nas artes do Nove – há relatos de interações por meio de versos entre um homem e uma mulher em que esta vence aquele; a maioria, mas não todos, narrados por mulheres.

A partir da análise da alternância do canto entre interlocutores no Brinquedo, um “falando” e outro “respondendo”, sugiro que a espécie de conversa que pode se estabelecer no Nove está associada à disputa pela posição de “falador”, e à atualização de um proferimento – potencialmente fala e resposta – como fala. A “derrota” está associada à ausência de resposta, ou mais precisamente à não transformação de uma resposta em fala, à não atualização de um proferimento como fala, que obrigaria o outro interlocutor, por sua vez, a responder, retribuir.

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Evocando o paralelo aventado entre as relações que se dão entre violeiros ou tiradores e aquelas estabelecidas por lavradores/ pais de família, sugiro uma aproximação da conversa que se dá no âmbito do Nove a uma troca de dons – por meio dela, os interlocutores se instigam a doar, agir. Assim como no âmbito laboral, em que a doação de um dia de trabalho de um lavrador, ou pai de família, a outro obriga-o a “pagar” o dia recebido – a doação, nesse sentido, produzindo uma dívida – doar uma fala ao outro interlocutor é uma forma de endividá-lo. Se este não for capaz de oferecer outra fala como um contra-dom, será “vencido”. Se atuar como um simples respondedor, e não ocupar assim a posição de falador – obrigando o doador original a agora responder a ele por sua vez – será derrotado. A derrota, nesse sentido, pode ser assimilada a uma dívida que não se conseguiu pagar. Quando uma resposta não se torna fala, não há mais circulação de dívida, e a conversa tem fim.

Enredar-se em uma conversa, como uma troca de dons, está associado à possibilidade de os interlocutores endividarem-se mutuamente: “A vinculação (o endividamento) estabelecida pela dádiva é um resultado da própria transação” (Strathern 2006:307). A dádiva, dívida, vincula-os, portanto. Diferenciando-os como doador e receptor, os relaciona.

No Nove, mesmo que a disputa norteie em boa medida uma conversa, e que vencer seja um desejo dos que dela participam, além de uma possibilidade intrínseca à estrutura interativa da conversa, a vitória é contingente, depende de uma combinação de fatores no momento em que uma interação se dá. A conversa consiste no jogo de transformar uma resposta em fala, doando-a ao parceiro, e forçando-o a dar algo em troca. Enquanto ambos os interlocutores forem bem-sucedidos nele, conversa-se indefinidamente.

Observando-se a alternância do canto entre os cantores no Brinquedo, notamos que na brincadeira do Nove, que toma a maior parte da noite do evento homônimo, os momentos em que os cantadores “falam” um ao outro são distanciados temporalmente. Na interação que se dá por meio de versos, em que a derrota e vitória de um e outro interlocutor podem ficar explícitas, sublinha-se o caráter de “brincadeira” do Nove para se afirmar que não há ofensas mútuas. Em ambos os casos, a disputa ou o conflito que norteiam a espécie de conversa estabelecida entre os interlocutores seriam encobertos ou ocultos.

Tomando a conversa como uma troca de dons, a revelação de seu caráter de embate talvez figurasse como o fim dela. Portanto, como o fim da vinculação e endividamento mútuo, da diferenciação entre doador e receptor e, assim, como o fim da relação entre ambos. Quando controla a medida da conversa entre interlocutores, o Brinquedo estabelece condições para que ela continue se dando.

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Há ainda outro componente do Brinquedo que deve ser levado em conta na análise: não devemos nos esquecer de que o Nove data do princípio do mundo. Como vimos, este era um tempo de segredos, cuja existência está condicionada ao sigilo. Trata-se ainda de um tempo em que a conversa era irrestrita: como sabemos, a capacidade de fala era estendida a todos os seres que habitavam o mundo, como a lua, o sol, o cavalo, a vaca, o feijão, a pulga... Homens, animais, corpos celestes, Deus e o Diabo interagiam entre si.

O Nove, por meio de uma estrutura formal que evita o confronto aberto e encobre o conflito (que é produtivo, como vimos) tomá-los-ia como um segredo a ser velado. De modo sigiloso, tomando a si mesmo como uma “brincadeira”, e disfarçando assimetrias em simetrias, o Nove atuaria no sentido de medir conversas, cuidando para que o componente de disputa delas não se revele por total. Como um motor de diferenciação, a conversa, como troca, separaria uns de outros, e os relacionaria. O Nove, encobrindo o segredo da disputa, ou do conflito, possibilitaria o estabelecimento de conversas – criação de dívidas e vínculos, diferenciação e relação – irrestritas. Nesse sentido, o Brinquedo refaria, assim, o princípio do mundo, tempo em que todos podiam falar.

Da ajuda feminina no Brinquedo depende a validação do canto masculino em sua pretensão de realizar-se como “fala” e, desta maneira, do lugar dos homens como “chefes” (ou sujeitos com voz própria, autônoma): as mulheres apontariam, por meio de sua participação no Brinquedo, quem são os vencedores dentre eles. Sem todavia esquecer que elas, além disso, por meio do proferimento de versos, podem em certas circunstâncias vencê-los.

Considerando-se o papel – a agência – feminino na determinação de quem é o “vencedor”, dentre os homens, e também a possibilidade de elas vencerem-nos por meio dos versos, gostaria de recuperar algumas associações envolvendo as mulheres: elas seriam vinculadas tanto às forças divinas quanto diabólicas, e aparecem como feiticeiras de excelência, mesmo que não o saibam. De qualquer forma, quando fazem orações ou operam malefícios, estes são mais eficazes que aqueles dos homens. Associa-se a mulher à Lua, e o homem, ao Sol. No princípio do mundo, quando conversavam, o Sol dizia à Lua que era mais forte que esta, e que era capaz de queimar o que estivesse sobre a terra; ela afirmou: “pois é, mas você, é só onde você passa, eu posso estar escondida. Pode ser antes de sair, ou tal e tal, eu governo até a terra”.

A partir da análise do Brinquedo, podemos sugerir que as mulheres, de certa forma “escondidas”, sob a chefia masculina, talvez exerçam nele uma governança velada. Se cada homem espera, fundamentalmente, vencer o outro, é a elas que cabe determinar quem de fato o fez. Com sua força divina/ diabólica seriam capazes, ainda, de figurar, elas mesmas, como as vencedoras.

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Podemos afirmar, por fim, que o Nove mantém alguns segredos por meio de uma série de aspectos de sua estrutura formal, permitindo que se fale de amores e rancores de forma não explícita, indireta e alusiva. Nesse sentido, o Brinquedo de certa forma reinstituiria o regime do princípio do mundo, figurando como um contexto em que este tempo emergiria com suas qualidades criativas, transformativas, comunicativas. Possibilitando a configuração de conversas irrestritas entre interlocutores, a Brincadeira restabeleceria o tempo em que homens, animais e corpos celestes conversavam entre si. Evocando relações de parentesco e vizinhança por meio das interações que se dão entre os cantores, a Brincadeira reinstalaria provisoriamente o princípio do mundo criando uma “Sociedade” feita de música, dança, e diferença.

Referências:

BRAGA, Sérgio Ivan Gil. 2001. Os bois-bumbás de Parintins. Tese de Doutorado, USP, São Paulo.

BRAGA, Sérgio Ivan Gil e FERREIRA, Hueliton da Silveira. 2005. Por uma antropologia do espaço social: os ensaios de Garantido e Caprichoso em Manaus. Somanlu - Revista de estudos amazônicos, 4(2).

CARNEIRO, Edison. 1965. Dinâmica do Folclore. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.

FÉLIX, João Batista de Jesus. 2000. Chic Show e Zimbabwe e a construção da identidade nos bailes black paulistanos. Dissertação de mestrado, USP, São Paulo.

GARCIA, Miliandre. 2004. A questão da cultura popular: as políticas culturais do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Revista Brasileira de História, 24(47):127-62.

MARTINS, Valéria C. de Paula. 2009. Uma etnografia do Nove: brincadeiras de viola em Machado e arredores (MG). Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, UnB, Brasília.

MERRIAM, Alan. 1964. The Anthropology of Music. Northwestern University Press.

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MONTES, Maria Lúcia. 1998. Entre o arcaico e o pós-moderno, uma cultura da festa. Revista Sexta-Feira, São Paulo, v. 2.

RODRIGUES DA SILVA, Carlos Benedito. e FERREIRA, Carla Georgea Silva. 2008. Estreitando Fronteiras: Territorialidade e Identidade no Bumba-meu-Boi do Maranhão. 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro, Bahia.

SEEGER, Anthony. 1987. Why Suyá sing: a musical anthropology of an Amazonian people. Cambridge: Cambridge University Press.

STRATHERN, Marilyn. 1996. The concept of society is theoretically obsolete? (For the motion). In: Ingold, Tim (org.). Key debates in Anthropology. New York: Routledge.

_____________________. 2006. O gênero da dádiva. Problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Ed. da UNICAMP.

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Tentativas e tentações:batidas no território da linguagem

Valter Filé

Tentativas e tentações: batidas no território da linguagem

Valter Filé

Um dia, em terras africanas dos povos iorubás, um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à procura de solução para terríveis problemas que na ocasião afligiam a todos, tanto os homens como os orixás. Conta o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas próprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a terra com o homem. Histórias que falassem da ventura e do sofrimento, das lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manutenção da saúde contra os ataques das doenças e da morte. Todas as narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por menos importantes que pudessem parecer, tinham que ser devidamente consideradas. Exu deveria estar atento também aos relatos sobre as providências tomadas e as oferendas feitas aos deuses para se chegar a um final feliz em cada desafio enfrentado. Assim ele fez, reunindo 301 histórias, o que significa, de acordo com o sistema de enumeração dos antigos iorubas, que Exu juntou um número incontável de histórias. Realizada esta pacientíssima missão, o orixá mensageiro tinha diante de si todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o governo do mundo dos homens e da natureza, sobre o desenrolar do destino dos homens, mulheres e crianças e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortúnios que a todo momento ameaçam cada um de nós, ou seja, a pobreza, a perda dos bens materiais e de posições sociais, a derrota em face do adversário traiçoeiro, a infertilidade, a doença, a morte (Prandi, 2001:17).

A saga de Exu serviu para que Ele aprendesse sobre a vida dos homens, sobre as coisas do mundo. Se é possível acreditarmos que ensinar e aprender são processos que envolvem­se com as narrativas, com o contar e ouvir histórias, então, talvez possamos pensar na educação como uma arte de entramar histórias. Uma arte que se materializa na criação autoral das nossas vidas como narrativas; dos personagens que somos, nas histórias que contamos e nas histórias que ouvimos.

Este texto está ligado ao que tem norteado minha vida, minhas pesquisas, meus fazeres em torno da educação, das pelejas pelos sentidos das praticas interculturais: ouvir, contar e re­contar histórias. Tentativas e tentações na lavra das linguagens – oral, escrita­verbal e audiovisual. Assim, vou escrevendo e re­escrevendo constantemente os diferentes capítulos da minha vida e dos meus envolvimentos: ora como comédia, ora como tragédia; ora como

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documentário, ora como encenação. Porém, sempre uma ficção!

Como estou envolvido a mais de vinte anos com o samba, trago para estas páginas o que resulta das incontáveis conversas que tenho tido com sambistas, com compositores de samba e com vários outros autores. Mas gostaria de, neste trabalho, começar enfrentando uma questão que tem me interessado muito: as implicações, imbricações entre aquilo que governa uma pesquisa, principalmente as pesquisas com narrativas e a forma de comunica­las. Ou seja, como sair de certos modelos de comunicação acadêmica? Como tornar parte do problema que se estuda, que se pesquisa, a própria escrita, a própria comunicação?

Para enfrentar tamanhos problemas, tenho buscado ajuda nas possibilidades do ensaio, na sua intimidade com a literatura e com as artimanhas da ficção. Por aí tenho feito desfilar as histórias em que vou vivendo, colocando­as para movimentar outras histórias nas praticas pedagógicas, na formação de professores.

Então, qual é o desejo destes escritos? Que em relação à educação, seja um “conselho” na forma de um “provérbio”. Estou usando aqui a idéia de conselho e provérbio entendidos como dois elementos fundamentais da narrativa, conforme as palavras de Walter Benjamin (1994). Para ele, o conselho não é uma indicação de cunho moral, externa aos envolvidos. É uma espécie de sugestão das possibilidades para a continuação de uma narrativa. O provérbio, por sua vez, diz o autor, é uma espécie de ideagrama de uma narrativa. Podemos dizer que os provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento como a hera no muro (p:221). Um conselho proverbial que vem da minha experiência de lidar com as experiências de outros. Espero que possa ajudar quando da lida de cada um com suas experiências, com suas leituras, com suas narrativas.

Envolvimentos

“Acho que eles não sabem o que era o ‘esquenta’. Vocês sabem o que era o ‘esquenta’? Pois bem. As baterias das escolas de samba, antigamente, todos os instrumentos eram de couro. Quando elas iam entrando na avenida os garotos

seguiam os ritmistas com jornal. Aí, de repente a bateria parava e dizia­se: “vamos fazer o ‘esquenta’!”. Os moleques tocavam fogo no jornal para esquentar

o couro. Passava o fogo e a pessoa ia batendo, ia ouvindo, até sentir que estava bom. Mas, não podia ‘assar’, ‘fritar’ o couro. Tinha uns que queriam ficar com o

couro mais

esticados que os outros e perdiam o toque e ‘fritavam’ o couro. Argemiro, diretor

de bateria da Mangueira já deu muito cascudo, muita bengalada porque o sujeito havia ‘fritado’ o couro”.

(Xangô da Mangueira no vídeo “Talento Mangueirense”, com Tantinho).

Como pesquisador interessado pelos estudos do cotidiano1 tenho pesando muito sobre o que poderia identificar este “campo”. Certamente que um estudo aí (veja que aqui já tenho uma enorme dificuldade de dizer um estudo no/do/com o cotidiano, principalmente pelo desgaste estético produzido pelas tentativas de enunciação) não se justifica apenas pelo tema que se evoca. Um tema não se basta por sua possível força em si. Podemos ter uma boa história e, muitas vezes, nem todos saberão conta­la bem. Muitas vezes, ainda, vemos bons temas perderem sua força potencial pela forma como são encaminhados, contados, comunicados, postos em movimento. Uma boa questão a ser enfrentada, uma boa história a ser narrada dependem daquilo que elas fazem conosco e o que fazemos com elas, o que fazemos delas. Não basta seguir um modelo de pesquisa que pela sua dinâmica vai sempre dar num tipo de “resultado” e de comunicação. A invenção de um outro modelo de pesquisa, de escritura, de comunicação corre em paralelo com as invenções dos praticantes que o pesquisador/a anda atrás e que é tema da sua pesquisa. Ou melhor, são indissociáveis, creio eu.

Supostamente as pesquisas com os cotidianos investem nas práticas, nos saberesfazeres das gentes condenadas pelas grandes narrativas ­ pelas generalizações ­ a ficarem mudas. Para trabalhar com tais práticas e as mil maneiras que as pessoas inventam para se virar, os pesquisadores são também praticantes, como diria Michel de Certeau (1998). Mesmo que freqüentem o campo da produção – a academia – e, aí neste lugar, busquem desferir golpes nas estruturas hegemônicas que operam contra a diferença, pela manutenção do status cartorial dos saberes inquestionáveis de uns sobre outros, das grandes verdades que tentam humilhar a vida de todos os dias. Tais pesquisadores devem estar atentos à sintonia da pesquisa que se pratica, como prática da pesquisa, ou seja, os saberesfazeres da empreitada.

Neste sentido, os relatos, as narrativas, as artes de dizer têm sido importantíssimos para mediar nossas relações de estudo e de pesquisa. Se as narrativas “materializam” as relações dos sujeitos da pesquisa, a sua escrita, a criação do discurso dos acontecimentos da empreitada, então, esta não deve ser uma mera formalidade. Ela, a narrativa, deve ser parte da problematização em se meteu.

Nas minhas pesquisas – sempre envolvendo narrativas e linguagens ­ esse é um problema medonho. Encontro­me com sambistas para ouvir seus sambas, suas histórias e, depois, quero mostrar suas “narrativas”, em vídeo, a outros. A tarefa acadêmica seria “re­visitar” estas narrativas através da linguagem audiovisual – linguagem que dá suporte, tanto ao ‘Puxando Conversa’2 quanto à pesquisa3. Então, embaralham­se, na minha tarefa, várias

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documentário, ora como encenação. Porém, sempre uma ficção!

Como estou envolvido a mais de vinte anos com o samba, trago para estas páginas o que resulta das incontáveis conversas que tenho tido com sambistas, com compositores de samba e com vários outros autores. Mas gostaria de, neste trabalho, começar enfrentando uma questão que tem me interessado muito: as implicações, imbricações entre aquilo que governa uma pesquisa, principalmente as pesquisas com narrativas e a forma de comunica­las. Ou seja, como sair de certos modelos de comunicação acadêmica? Como tornar parte do problema que se estuda, que se pesquisa, a própria escrita, a própria comunicação?

Para enfrentar tamanhos problemas, tenho buscado ajuda nas possibilidades do ensaio, na sua intimidade com a literatura e com as artimanhas da ficção. Por aí tenho feito desfilar as histórias em que vou vivendo, colocando­as para movimentar outras histórias nas praticas pedagógicas, na formação de professores.

Então, qual é o desejo destes escritos? Que em relação à educação, seja um “conselho” na forma de um “provérbio”. Estou usando aqui a idéia de conselho e provérbio entendidos como dois elementos fundamentais da narrativa, conforme as palavras de Walter Benjamin (1994). Para ele, o conselho não é uma indicação de cunho moral, externa aos envolvidos. É uma espécie de sugestão das possibilidades para a continuação de uma narrativa. O provérbio, por sua vez, diz o autor, é uma espécie de ideagrama de uma narrativa. Podemos dizer que os provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento como a hera no muro (p:221). Um conselho proverbial que vem da minha experiência de lidar com as experiências de outros. Espero que possa ajudar quando da lida de cada um com suas experiências, com suas leituras, com suas narrativas.

Envolvimentos

“Acho que eles não sabem o que era o ‘esquenta’. Vocês sabem o que era o ‘esquenta’? Pois bem. As baterias das escolas de samba, antigamente, todos os instrumentos eram de couro. Quando elas iam entrando na avenida os garotos

seguiam os ritmistas com jornal. Aí, de repente a bateria parava e dizia­se: “vamos fazer o ‘esquenta’!”. Os moleques tocavam fogo no jornal para esquentar

o couro. Passava o fogo e a pessoa ia batendo, ia ouvindo, até sentir que estava bom. Mas, não podia ‘assar’, ‘fritar’ o couro. Tinha uns que queriam ficar com o

couro mais

esticados que os outros e perdiam o toque e ‘fritavam’ o couro. Argemiro, diretor

de bateria da Mangueira já deu muito cascudo, muita bengalada porque o sujeito havia ‘fritado’ o couro”.

(Xangô da Mangueira no vídeo “Talento Mangueirense”, com Tantinho).

Como pesquisador interessado pelos estudos do cotidiano1 tenho pesando muito sobre o que poderia identificar este “campo”. Certamente que um estudo aí (veja que aqui já tenho uma enorme dificuldade de dizer um estudo no/do/com o cotidiano, principalmente pelo desgaste estético produzido pelas tentativas de enunciação) não se justifica apenas pelo tema que se evoca. Um tema não se basta por sua possível força em si. Podemos ter uma boa história e, muitas vezes, nem todos saberão conta­la bem. Muitas vezes, ainda, vemos bons temas perderem sua força potencial pela forma como são encaminhados, contados, comunicados, postos em movimento. Uma boa questão a ser enfrentada, uma boa história a ser narrada dependem daquilo que elas fazem conosco e o que fazemos com elas, o que fazemos delas. Não basta seguir um modelo de pesquisa que pela sua dinâmica vai sempre dar num tipo de “resultado” e de comunicação. A invenção de um outro modelo de pesquisa, de escritura, de comunicação corre em paralelo com as invenções dos praticantes que o pesquisador/a anda atrás e que é tema da sua pesquisa. Ou melhor, são indissociáveis, creio eu.

Supostamente as pesquisas com os cotidianos investem nas práticas, nos saberesfazeres das gentes condenadas pelas grandes narrativas ­ pelas generalizações ­ a ficarem mudas. Para trabalhar com tais práticas e as mil maneiras que as pessoas inventam para se virar, os pesquisadores são também praticantes, como diria Michel de Certeau (1998). Mesmo que freqüentem o campo da produção – a academia – e, aí neste lugar, busquem desferir golpes nas estruturas hegemônicas que operam contra a diferença, pela manutenção do status cartorial dos saberes inquestionáveis de uns sobre outros, das grandes verdades que tentam humilhar a vida de todos os dias. Tais pesquisadores devem estar atentos à sintonia da pesquisa que se pratica, como prática da pesquisa, ou seja, os saberesfazeres da empreitada.

Neste sentido, os relatos, as narrativas, as artes de dizer têm sido importantíssimos para mediar nossas relações de estudo e de pesquisa. Se as narrativas “materializam” as relações dos sujeitos da pesquisa, a sua escrita, a criação do discurso dos acontecimentos da empreitada, então, esta não deve ser uma mera formalidade. Ela, a narrativa, deve ser parte da problematização em se meteu.

Nas minhas pesquisas – sempre envolvendo narrativas e linguagens ­ esse é um problema medonho. Encontro­me com sambistas para ouvir seus sambas, suas histórias e, depois, quero mostrar suas “narrativas”, em vídeo, a outros. A tarefa acadêmica seria “re­visitar” estas narrativas através da linguagem audiovisual – linguagem que dá suporte, tanto ao ‘Puxando Conversa’2 quanto à pesquisa3. Então, embaralham­se, na minha tarefa, várias

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linguagens, muitas histórias e atos de palavra – falada e cantada.

Mas se os meus estudos com os cotidianos – das histórias dos compositores de samba, no ‘Puxando Conversa’ – são sobre discursos, encontros e conversas, enfim, sobre artes de dizer, sua escritura é também uma prática cotidiana. Então, um saberdizer de quem faz samba que se articula com o saberdizer que nasce deste encontro, do que pesquiso e preciso e quero contar.

Assim, se pelos estudos das narrativas (e mesmo em outros estudos e pesquisas nas ciências humanas) desfilam diversas experiências retóricas, em sua escrita deve­se buscar possibilidades discursivas que não aniquilem aquilo com o que se está trabalhando.

Para tentar evitar o empobrecimento da linguagem, do seu potencial criativo e criador, busco inspiração no ensaio. Trata­se, então, na opção pelo ensaio, de considerar suas relações com a literatura, com a ficção e desses saberes com os saberes acadêmicos. O ensaio como oportunidade ético­política, estética e epistemológica.

Portanto, o ensaio pode disponibilizar instâncias discursivas e recursos para ampliar, cruzar, atravessar zonas, disciplinas e conhecimentos. Aspiração de esfumaçamento das fronteiras da ciência com as coisas que ficam muitas vezes de fora, mas que são como mais­valias das conquistas acadêmicas.

Ensaio, sem estréias...

Os seres humanos

não temos outra forma de viver que não inventando­nos a nós mesmos, daí a ficção, as ficções, o papel da literatura.

(Michel Foucault)

A palavra ensaio leva­me a idéia de rascunho. O Ensaio, para alguns modelos de ciência, é algo que se usa como um sussurro, quase como uma coisa obscena ou como uma etapa intermediária, não tão séria, e que logo será superada.

O ensaio é quase como um pecado, pelo qual, depois de cometido, muitos são penitenciados. Um preço que se paga. É tido, por tantos, como uma forma “menor” de escritura e que não cumpre com os preceitos de rigor, de alcance e de profundidade que são

as exigências dos “escritos” científicos. Se há ensaios, exige­se a estréia. Que se passe a limpo. Que se tenha um espetáculo pronto, com saudáveis estabilidades, com coisas que se possa contabilizar, repetir como verdades apreendidas e que possam ser transmitidas, narradas, agora, como sabidas.

Ricardo Forster (2004), em um texto no mínimo inspirador sobre o ensaio, indica algumas paisagens a serem consideradas. Entende o ensaio como um artesanato da suspeita. Sua riqueza está justamente naquilo que se considera sua fragilidade: é uma escritura provisional, vai tateando o território pelo qual se locomove sabendo que não existe rumo fixo, caminho seguro para a certeza (p. 1). Ensaiar seria uma artimanha de Exu: de aprender com a experiência das diferentes encruzilhadas, dos múltiplos cruzamentos, dos tantos riscos, dos inúmeros perigos, dos prazeres e da dor; de misturar, inclusive o que se repele entre si; de tensionar o couro pelo fogo – o ‘esquenta’ de que fala Xangô da Mangueira, acima – a busca de uma percussividade, de uma sonoridade, de um tom, de um afinamento. Mesmo sabendo que, para conseguir tal afinação, o fogo pode fritar o couro, estragá­lo: o silêncio do instrumento (partiríamos, então, não para o fracasso, mas para outra história).

Talvez o ensaio seja sempre algo suspeito em alguns territórios do saber, em algumas formas de fazer ciência. Pela sua relação insidiosa com a literatura e a sua descrença numa verdade derradeira. Ensaio e literatura envolvem­se com as coisas que dizem respeito a nossa existência. No encontro do ensaio com a literatura, Cláudio Magris (2001) nos sugere que sem literatura a existência seria infinitamente mais pobre. Não porque ela – a literatura ­ nos movimente continuamente de um lugar a outro, atravessando regiões. Mas, precisamente, porque logra, sem abandonar nossa cotidianidade, fazê­la estilhaçar­se em mil direções, quebrando as univalências, as formas acabadas do verdadeiro, até fazer proliferar, como em um jogo misterioso, a plenitude marginal da realidade do mundo junto com a amplificação da própria interioridade dos homens (22).

Magris (e tantos outros) afirma que a literatura é que pode salvar as pequenas histórias, iluminar a relação existente entre a verdade e a vida, entre o mistério e a cotidianidade, entre o indivíduo concreto e a Babel da época (p. 25). A literatura dá condições da linha torta acolher a letra da história possível. Possibilita a recuperação dos corpos­conhecimentos que correm risco, quando das muitas incursões, safaris acadêmicos às reservas dos “saberes populares”. Possibilita a reclamação dos corpos/conhecimentos incinerados, desovados nas valas comuns das periferias, atrás de tapumes erguidos ao longo da paisagem das culturas oficiais, de sua regulamentação, de sua assepsia, de seu estreitamento, de sua voraz necessidade de repetição em série.

Forster (op.cit.) ressalta a importância de se cultivar o ensaio no espaço universitário, principalmente na pós­graduação. O uso do ensaio constitui uma atitude política, ética e estética. Segundo o autor, uma defesa de bens culturais ameaçados pela maquinaria acadêmica e suas plainas que operam para o homogêneo.

A escritura é o habitat dos nossos projetos, mas que transpassa aquilo que pesquisamos em

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as exigências dos “escritos” científicos. Se há ensaios, exige­se a estréia. Que se passe a limpo. Que se tenha um espetáculo pronto, com saudáveis estabilidades, com coisas que se possa contabilizar, repetir como verdades apreendidas e que possam ser transmitidas, narradas, agora, como sabidas.

Ricardo Forster (2004), em um texto no mínimo inspirador sobre o ensaio, indica algumas paisagens a serem consideradas. Entende o ensaio como um artesanato da suspeita. Sua riqueza está justamente naquilo que se considera sua fragilidade: é uma escritura provisional, vai tateando o território pelo qual se locomove sabendo que não existe rumo fixo, caminho seguro para a certeza (p. 1). Ensaiar seria uma artimanha de Exu: de aprender com a experiência das diferentes encruzilhadas, dos múltiplos cruzamentos, dos tantos riscos, dos inúmeros perigos, dos prazeres e da dor; de misturar, inclusive o que se repele entre si; de tensionar o couro pelo fogo – o ‘esquenta’ de que fala Xangô da Mangueira, acima – a busca de uma percussividade, de uma sonoridade, de um tom, de um afinamento. Mesmo sabendo que, para conseguir tal afinação, o fogo pode fritar o couro, estragá­lo: o silêncio do instrumento (partiríamos, então, não para o fracasso, mas para outra história).

Talvez o ensaio seja sempre algo suspeito em alguns territórios do saber, em algumas formas de fazer ciência. Pela sua relação insidiosa com a literatura e a sua descrença numa verdade derradeira. Ensaio e literatura envolvem­se com as coisas que dizem respeito a nossa existência. No encontro do ensaio com a literatura, Cláudio Magris (2001) nos sugere que sem literatura a existência seria infinitamente mais pobre. Não porque ela – a literatura ­ nos movimente continuamente de um lugar a outro, atravessando regiões. Mas, precisamente, porque logra, sem abandonar nossa cotidianidade, fazê­la estilhaçar­se em mil direções, quebrando as univalências, as formas acabadas do verdadeiro, até fazer proliferar, como em um jogo misterioso, a plenitude marginal da realidade do mundo junto com a amplificação da própria interioridade dos homens (22).

Magris (e tantos outros) afirma que a literatura é que pode salvar as pequenas histórias, iluminar a relação existente entre a verdade e a vida, entre o mistério e a cotidianidade, entre o indivíduo concreto e a Babel da época (p. 25). A literatura dá condições da linha torta acolher a letra da história possível. Possibilita a recuperação dos corpos­conhecimentos que correm risco, quando das muitas incursões, safaris acadêmicos às reservas dos “saberes populares”. Possibilita a reclamação dos corpos/conhecimentos incinerados, desovados nas valas comuns das periferias, atrás de tapumes erguidos ao longo da paisagem das culturas oficiais, de sua regulamentação, de sua assepsia, de seu estreitamento, de sua voraz necessidade de repetição em série.

Forster (op.cit.) ressalta a importância de se cultivar o ensaio no espaço universitário, principalmente na pós­graduação. O uso do ensaio constitui uma atitude política, ética e estética. Segundo o autor, uma defesa de bens culturais ameaçados pela maquinaria acadêmica e suas plainas que operam para o homogêneo.

A escritura é o habitat dos nossos projetos, mas que transpassa aquilo que pesquisamos em

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cada momento. Guardam legados e tradições ‘escondidos’ na memória dessa mesma escritura. A forma, na certeza de sermos portadores de um estilo, é algo corporal, é algo que penetra e marca nossos esforços intelectuais na busca por parceria.

Outras formas de relacionarmo­nos com o conhecimento, com a vida seriam necessárias, não pelo simples gozo ou algum diletantismo. Seria para fazer frente ao que acredita Forster (op. Cit.) como sendo a tragédia da reprodução do mesmo pela linguagem acadêmica – a desertificação dos territórios imaginativos, das possibilidades de narrar, da degradação da linguagem, do idioma, o que seria o mesmo que a degradação da comunidade de falantes.

Há muitas maneiras de degradação. Uma delas, e talvez a mais terrível, é converter a língua em uma língua da morte, uma sintaxe repetitiva capaz de fazer passar por normal o espantoso, o inumano. Porém, existem outras práticas degradatórias, outras metamorfoses que vão secando a linguagem, que vão convertendo em ruído comum, repetido, o sinistro.

A linguagem que configura o pensamento, que abre o mundo aos seres humanos, reinventando a ambos, também serve para embrutecê­los. A trama mágica das palavras esconde potencialidades divergentes, é possuidora de um fundo cuja profundidade nos escapa. Entre o amor e a morte, entre a felicidade e o sofrimento, as palavras dos seres humanos vão soltando seu mistério, tecendo, às vezes, um texto de esperança para, no interior desse mesmo trabalho, terminar por dar abrigo à linguagem do sinistro e da barbárie. O horroroso não está no descobrimento do mal que abriga o idioma, o pesadelo é perceber por de trás daquelas palavras que supostamente veiculavam o bem, toda a carga de violência civilizada, lembra­nos Forster. (op. cit.:23).

Finalmente, a lógica do ensaio é a lógica da suspeita frente aos saberes constituídos. Uma lógica da experimentação que deixa que as idéias surjam da vida sem um acabamento absoluto – um improviso. Uma lógica que reconhece a espessura das palavras. Uma lógica que se dedica às encruzilhadas (como Exu), como pontos de atravessamentos de sensibilidades diferentes e que supõe que não haja incompatibilidade entre a linguagem da arte, da ciência e da vida.

Optar pelo ensaio é, assim, optar por uma escritura que resista à barbárie da informação desertificante que aparece, sempre, como uma escritura explicativa que intimida outras formulações. Pela sombra que traz o “peso” da autoridade como representação do lugar de onde se fala ‘a verdade’. Informação e explicação que, muitas vezes, cobram a convergência de outras possibilidades de ser, de estar e de compreender o mundo para o mesmo ponto criado, como explicação, como informação. Decalque das formas hegemônicas de fazer ciência que insistem na proliferação de teorias como meios de comunicação. Comunicação entendida como forma de fazer proliferar a informação, tornando­nos, a cada dia, mais pobres de experiências (Benjamin, op. cit.), de histórias extraordinárias. Maquinaria moderna, ciência e mercado, vendem o gozo da tranqüilidade, divulgam o já pensado como esterilizantes químicos do pensamento. Um mercado que se espera feito de doutrinas, consumidores e crentes (Forster op. cit.:26).

O ensaio pretende­se como escrita em busca de outros, não para a doma, mas, para o convite à desenfreada aventura de pensar, de imaginar, de inventar, de inventar­nos. Uma manufatura feita de sobras – de tempo e de matérias­primas –, como diz Certeau (op. cit.), no uso de máquinas e de outras estruturas disponibilizadas pelas lógicas do mercado, do capital financeiro ou cultural, da indústria ou da Academia. Inventando sempre! Entre movimentos de resistências e rendições.

Vou tentar, na seqüência, mostrar alguns movimentos que tenho feito com as histórias que ouço. Não servem de exemplo, mas de apresentação de uma das maneiras de dizer que venho tentando.

Achados da composição – das histórias que ouço

Você se lembra, Surica, você era novinha e começou a trabalhar fora, a trabalhar lá embaixo, que a gente subia naquele ‘cinco e cinqüenta e oito’, aquele trem que uma vez bateu e matou

gente ‘pra xuxu’, lembra? Que a gente de manhã, quando ia fazer ‘gazeta’ do trabalho, chegava na Central – que era muita gente que faltava o serviço na segunda­feira, se reunia ali

porque o bonde fazia ponto ali. A gente juntava as marmitas todas e íamos fazer piquenique em Paquetá, lembra?

(Jair do Cavaquinho)

Um dia, eu estava decupando4 o programa do ‘Puxando Conversa’ “Escravo do bom samba” (1999) sobre o compositor Délcio Carvalho e fiz uma associação que me pareceu muito sugestiva. Délcio contava sua ligação com um certo compositor da Império Serrano, sua escola. Dizia que um amigo de nome Avaresi foi o responsável por sua rápida passagem pela ala de compositores da escola de Madureira. O nome do Avarezi veio à memória de Délcio pela lembrança de um samba enredo deste compositor. O samba tem o seguinte refrão: “baleiro, bala / grita o refrão assim / da Central à Madureira é pregão até o fim, oi...” Este simples refrão fez coisas na memória do Délcio e na minha.

Antes de prosseguir meu trabalho, comecei a pensar que este refrão incluía uma homenagem aos vendedores ambulantes dos trens. Pensei na forte ligação do trem com a vida das pessoas que vivem nos subúrbios e, logicamente, com os sambistas. O trem é referência fundamental no mundo do samba. Foi a “mídia” que os compositores usaram para mostrar e divulgar seus sambas, que não tocavam nas emissoras de rádio. Assim fez Paulo da Portela, Xangô, Jair do Cavaquinho, para ficar por aqui, pelo menos por enquanto.

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O ensaio pretende­se como escrita em busca de outros, não para a doma, mas, para o convite à desenfreada aventura de pensar, de imaginar, de inventar, de inventar­nos. Uma manufatura feita de sobras – de tempo e de matérias­primas –, como diz Certeau (op. cit.), no uso de máquinas e de outras estruturas disponibilizadas pelas lógicas do mercado, do capital financeiro ou cultural, da indústria ou da Academia. Inventando sempre! Entre movimentos de resistências e rendições.

Vou tentar, na seqüência, mostrar alguns movimentos que tenho feito com as histórias que ouço. Não servem de exemplo, mas de apresentação de uma das maneiras de dizer que venho tentando.

Achados da composição – das histórias que ouço

Você se lembra, Surica, você era novinha e começou a trabalhar fora, a trabalhar lá embaixo, que a gente subia naquele ‘cinco e cinqüenta e oito’, aquele trem que uma vez bateu e matou

gente ‘pra xuxu’, lembra? Que a gente de manhã, quando ia fazer ‘gazeta’ do trabalho, chegava na Central – que era muita gente que faltava o serviço na segunda­feira, se reunia ali

porque o bonde fazia ponto ali. A gente juntava as marmitas todas e íamos fazer piquenique em Paquetá, lembra?

(Jair do Cavaquinho)

Um dia, eu estava decupando4 o programa do ‘Puxando Conversa’ “Escravo do bom samba” (1999) sobre o compositor Délcio Carvalho e fiz uma associação que me pareceu muito sugestiva. Délcio contava sua ligação com um certo compositor da Império Serrano, sua escola. Dizia que um amigo de nome Avaresi foi o responsável por sua rápida passagem pela ala de compositores da escola de Madureira. O nome do Avarezi veio à memória de Délcio pela lembrança de um samba enredo deste compositor. O samba tem o seguinte refrão: “baleiro, bala / grita o refrão assim / da Central à Madureira é pregão até o fim, oi...” Este simples refrão fez coisas na memória do Délcio e na minha.

Antes de prosseguir meu trabalho, comecei a pensar que este refrão incluía uma homenagem aos vendedores ambulantes dos trens. Pensei na forte ligação do trem com a vida das pessoas que vivem nos subúrbios e, logicamente, com os sambistas. O trem é referência fundamental no mundo do samba. Foi a “mídia” que os compositores usaram para mostrar e divulgar seus sambas, que não tocavam nas emissoras de rádio. Assim fez Paulo da Portela, Xangô, Jair do Cavaquinho, para ficar por aqui, pelo menos por enquanto.

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Não é à toa que no dia dois de dezembro, dia nacional do samba, as comemorações circulam pelo trem; a Mangueira é a “Estação Primeira”, numa referência à sua localização ao longo da linha férrea. Eu poderia ficar aqui horas puxando exemplos da relação do trem com o samba.

Então, estava pensando nessa relação e me lembrei que a quadra da Império Serrano, que fica na estação de Magno (Madureira), já fora “invadida” pelo descarrilamento de um trem. Na hora, me veio à memória a seguinte “manchete” de uma emissora de rádio que eu ouvia: composição invade a quadra da Escola de Samba Império Serrano!. “Composição”! Achei muito interessante a palavra, composição ser usada para designar os carros de um trem. Transporte que circula pelos trilhos! Composição serve, também, para designar uma obra – literária, musical, etc. Então, composição é também a obra do sambista.

Achei que composição era uma boa metáfora para as movimentações do samba. Ao falar em metáfora, lembrei­me de que, além de uma figura de linguagem, essa palavra, metáfora, na Grécia, significa ‘meio de transporte’ e me permiti uma aproximação com composição: seria ela – a composição (o samba) – uma metáfora­transporte dos deslocamentos, das mobilidades, das comunicações e das trocas simbólicas do mundo do samba e de todos aqueles que se reconhecem nele? Trens que circulam nos trilhos da nossa complexa alegoria civilizatória. Desfiles de versos versus a vida. Duelos de vida e de morte decididos na ‘porrinha’! Circulação que põem em movimento tantas histórias!

Sobre narrativas: cantos e en­cantos

Meu pai vendou meus olhos

Pra eu não ver meu nêgo sambar

A batucada invadia meus ouvidos

E um batuque remexido me fazia rebolar

(Beto Sem Braço e Bandeira Brasil)

Nos meus envolvimentos com o samba, no Puxando conversa, ouvi e re­contei (em vídeo) muitas histórias. Histórias cotidianas de homens como Tio Hélio, que ficou cego pelo efeito

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do pó de cimento, quando descarregava navios no cais do porto do Rio de Janeiro. Que trabalhou na construção do estádio Mario Filho, o Maracanã, mas foi no samba que ele virou o prazer da Serrinha5. E com muita sutileza, com um samba feito em homenagem ao seu amigo Agenor de Oliveira – o Cartola – ele resume com sua arte aquilo que tem sido uma tarefa do samba desde o início do século XX :

Sambista, desce o morro

e vem cantar as suas melodias

é você quem traz toda alegria,

à sua memória, cantando samba que é sua glória,

pois você foi quem nos trouxe toda alegria,

porque a cidade, antes vivia em nostalgia

e depois que o sambista desceu a cantar

a cidade deixou de chorar 6 .

No dia da gravação do vídeo “Orgulho da Serrinha” (2004), depois de cantar este samba, Tio Hélio comenta: “mas não é uma verdade? O pessoal do morro, quando desceu, a cidade ficou sendo outra!”

O samba, então, nos conta muitas histórias sobre as diferentes maneiras de fazer que transformaram (e transformam ainda) a cidade, alterando seu “destino civilizado”, sonhado por uma elite intelectual, alterando­nos a todos.

Os versos das rodas de partido alto, as histórias narradas – que inclui aí os sambas – são o ensejo de nova história, que desencadeia outra, que traz uma quarta, etc.; essa dinâmica ilimitada da memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos. (Benjamin, 1994:13). Disto nos nutrimos, os seres humanos. Somos a constituição do relato em pessoa. Essa trama que se fia e se tece dos intermináveis fluxos narrativos, ensinandoaprendendo todo o tempo, em todas as redes educativas de que participamos. O samba tem­se dedicado a isso na trama das nossas histórias, tornando os compositores, cronistas do cotidiano.

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As palavras de Tio Helio dão pistas dos processos de interação, de socialização, de comunicação dos negros com o mundo dos brancos (e dos negros com o mundo dos negros).

As histórias e suas proliferações podem nos levar a perguntar, a cada instante, sobre o que queremos das nossas vidas e o que podemos fazer com elas. Não se trata de nos perguntarmos pelo ser que somos, senão, porque somos o que somos e, sobretudo, como podemos nos converter em outros. Como podemos chegar a ser de distintas maneiras (Foucault, 1996).

Paul Ricoeur, que se dedicou a estudar a narração, o mito e o relato, diz:

A compreensão de si é narrativa de um extremo a outro. Compreender­se é apropriar­se da história da própria vida. Pois bem, compreender essa historia é fazer o relato dela, conduzido pelos relatos, tanto históricos quanto fictícios, que compreendemos e amamos. É assim que nos fazemos leitores da nossa própria vida. (1991:42).

Escutando relatos e narrações, melhoramos nossa capacidade de compreendermos a nós mesmos e aos outros nas diferentes etapas das nossas vidas. (Cañellas & Sangrà, 2003:30).

Poderíamos, então, partir da idéia de que a educação, a formação, as práticas pedagógicas poderiam estar sempre baseadas na “criação e a recriação de histórias pessoais e sociais”. Histórias nas quais professores ou alunos são contadores de histórias e também personagens das histórias dos outros e das suas próprias.

Professor Adjunto da UFRRJ/Instituto Multidisciplinar ­ Nova Iguaçu. Membro dos grupos de pesquisas Educação, sociedade do conhecimento e conexões culturais http://pesccc.ning.com e Grupalfa.

[email protected]

1 Aqui estudos do cotidiano referem­se aos estudos dos valores, crenças, acordos e desacordos sobre tal “campo” e entre os grupos que articulam seus saberes e fazeres a partir daí, identificados, portanto, com tal “campo”.

2 Projeto de memória do samba do Rio de Janeiro, que registra em vídeo as histórias contadas e cantadas dos compositores. Os vídeos são apresentados em espaços públicos com a presença do(s) homenageado(s), familiares, amigos, outros compositores e público em geral.

3 O projeto Puxando conversa alimentou a minha pesquisa de doutoramento que deu origem a tese: “O que espanta miséria é festa!”, defendida em 2006, no PROPEd/UERJ, sob a orientação da Profa. Dra. Nilda Alves.

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4 Uma espécie de transcrição.

5 Morro localizado em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro – referência mítica-social da Escola de

Samba Império Serrano.

6 Samba de Tio Helio: “Sambista, desce o morro”.

Referências:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

CAÑELLAS, Antoni J. Colon & SANGRÀ. Joan­Carles Melich. Narratividad y educación. Texto apresentado no “XXI Seminário Interuniversitario de Teoría de la Educación: Otros lenguajes en educación. Barcelona: meio digital, junho de 2003.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis­RJ: Editora Vozes, 1998.

FORSTER, Ricardo. La artesania de la sospecha: el ensayo en las ciencias sociales. In: Revista Sociedad, n. 23, Buenos Aires, Facultad de Ciencias Sociales, UBA, otoño, 2004.

FOUCAULT, Michel. De lenguage y literatura. Barcelona: Paidos. 1996.

MAGRIS, Cláudio. ¿Hay que expulsar a los poetas de la Republica? em: Utopia y desencanto. Historias, esperanzas e ilusiones de la modernidad. Barcelona: Anagrama, 2001.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

RICOEUR, Paul. Los caminos de la interpretación. Barcelona: Antropos, 1991.

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TV “à moda da praça pública”Elementos para uma defi nição de TV comunitária

Rafaela Lima

Apresentação: proposta e metodologia deste trabalho

O presente trabalho é um estudo de caso1 da TV Beira Linha2, tendo como

eixo de abordagem a investigação das relações comunicativas envolvidas nesta TV,

que apontam elementos para uma possível definição de TV comunitária.

O estudo de caso envolveu análise qualitativa1 dos seguintes dados primários

e secundários:

• Dados primários: quinze entrevistas com pessoas da comunidade, cinco estagiários

e uma técnica que participaram da experiência, colhidos em setembro de 95 por

Rafaela Lima e equipe do projeto TV Sala de Espera (LIMA, 1995) com o objetivo

de avaliar a repercussão da TV Beira Linha.

• Dados secundários: textos ligados à experiência da TV Beira Linha - o projeto,

relatórios e artigos publicados por seus coordenadores (WAINER, 1995 e

KUPERMAN, 1995).

A análise empreendida valeu-se de pesquisa bibliográfica e das discussões

sobre o conceito de televisão e a relação entre televisão e cultura realizadas ao

longo do 1º semestre de 97, na disciplina "Televisão e Cultura" do Mestrado em

Comunicação Social da UFMG.

1 O estudo de caso consiste numa metodologia de pesquisa que enfoca determinado indivíduo, grupo ou comunidade, com a finalidade de obter generalizações (LAKATOS e MARCONI, 1983). No estudo de caso são examinadas experiências do sujeito e/ou grupo. Muitas vezes, as "histórias de vida" dos sujeitos ocupam papel central neste tipo de pesquisa. No estudo de caso, utiliza-se freqüentemente a análise qualitativa dos dados: "as informações colhidas sofrem uma análise de conteúdo capaz de fornecer algumas inferências qualitativas" (HIRANO, 1982). 2 Vide descrição no item 2 deste trabalho.

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Apresentação: proposta e metodologia deste trabalho

O presente trabalho é um estudo de caso1 da TV Beira Linha2, tendo como

eixo de abordagem a investigação das relações comunicativas envolvidas nesta TV,

que apontam elementos para uma possível definição de TV comunitária.

O estudo de caso envolveu análise qualitativa1 dos seguintes dados primários

e secundários:

• Dados primários: quinze entrevistas com pessoas da comunidade, cinco estagiários

e uma técnica que participaram da experiência, colhidos em setembro de 95 por

Rafaela Lima e equipe do projeto TV Sala de Espera (LIMA, 1995) com o objetivo

de avaliar a repercussão da TV Beira Linha.

• Dados secundários: textos ligados à experiência da TV Beira Linha - o projeto,

relatórios e artigos publicados por seus coordenadores (WAINER, 1995 e

KUPERMAN, 1995).

A análise empreendida valeu-se de pesquisa bibliográfica e das discussões

sobre o conceito de televisão e a relação entre televisão e cultura realizadas ao

longo do 1º semestre de 97, na disciplina "Televisão e Cultura" do Mestrado em

Comunicação Social da UFMG.

1 O estudo de caso consiste numa metodologia de pesquisa que enfoca determinado indivíduo, grupo ou comunidade, com a finalidade de obter generalizações (LAKATOS e MARCONI, 1983). No estudo de caso são examinadas experiências do sujeito e/ou grupo. Muitas vezes, as "histórias de vida" dos sujeitos ocupam papel central neste tipo de pesquisa. No estudo de caso, utiliza-se freqüentemente a análise qualitativa dos dados: "as informações colhidas sofrem uma análise de conteúdo capaz de fornecer algumas inferências qualitativas" (HIRANO, 1982). 2 Vide descrição no item 2 deste trabalho.

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1. "TV à moda da casa": o consumo privado da macrotelevisão

A TV surge em 19283, e é considerada por alguns autores "a invenção do

século XX" (PATERNOSTRO, 1987). No Brasil, a transmissão do primeiro

programa televisivo aconteceu em setembro de 1950.

Na década de 70, as emissoras de TV brasileiras inauguram, valendo-se da

recém-conquistada tecnologia de transmissão via satélite (1965, com o surgimento

da Embratel), uma programação nacional unificada. Desde então, são transmitidos

os mesmos programas em todo o país, em horário pré-fixado e simultâneo (LIMA,

1994). Surge, aí, o fenômeno da TV de massa no Brasil.

Desde então, a macrotelevisão firmou-se como o grande paradigma de

televisão brasileira4. A macrotelevisão envolve "todos os tipos de televisão voltados

para as grandes massas, como é o caso das tevês comerciais e estatais que utilizam

as ondas hertzianas como meio de propagação. A ‘alma’ dessa televisão é a

propaganda, seja ela de produtos de consumo [...], seja ela de valores institucionais

[...] A sua estrutura de funcionamento é one way ou unidirecional: a cada emissor

hegemônico estão conectados milhões de receptores isolados que não lhe podem

responder de forma autônoma. O seu esquema de operação é do tipo homeostático:

variações internas e externas apenas servem para que ela se ajuste aos ventos da

conjuntura, mas nada disso abala o sistema, que tende a se perpetuar através das

médias de audiência" (BERGER, apud MACHADO, 1990).

3 Ano em que a BBC de Londres realiza as primeiras transmissões televisivas bem sucedidas no mundo.

4

4 Não podemos deixar de considerar, entretanto, que o panorama brasileiro começa a sofrer modificações já na década de 70, quando a operação de cabos em condomínios fechados começou a aparecer no país. Esse serviço visava atender uma demanda específica de algumas localidades (a recepção do sinal das TVs abertas em local onde esta era difícil) (ALMAS, 1996). Desde então, com o desenvolvimento vertiginoso das tecnologias de transmissão via cabo, microondas e transmissores de baixa potência, consolida-se no Brasil a TV segmentada: a TV voltada para um público segmentado por afinidade regional ou temática.

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Homeostase

O termo homeostase, em sua acepção nas ciências biológicas, designa o

mecanismo de equilíbrio ou constância do meio interno das células. A célula

"desempenha um grande número de funções e deve, para isso, ter à sua disposição

um apreciável número de substâncias, ao mesmo tempo em que elimina outras.

Dessa forma, certas substâncias devem entrar em seu interior, enquanto que outras

devem ser rejeitadas. A membrana celular é a estrutura que possibilita esse

intercâmbio de substâncias; ela seleciona aquelas que devem entrar e aquelas que

devem sair, salvaguardando, assim, o equilíbrio essencial à vida"5.

A homeostase operada na TV de massa diz respeito à incorporação de

"vacinas contra seu próprio monolitismo" (BRITTO e LIMA, 1997). Tomemos

como exemplo programas como Domingão do Faustão e Casseta e Planeta. São

experiências que nascem em circuitos alternativos e são incorporados pela TV de

massa como novas substâncias capazes de nutrir seu repertório, que precisa manter

constante renovação.

Outro exemplo marcante de homeostase na TV de massa é o

desenvolvimento e aperfeiçoamento de um instrumento de garantia de audiência há

décadas utilizado pelo rádio: os programas interativos do tipo "participe por

telefone" (vide o programa "Você decide"). Neles, é oferecida ao telespectador a

possibilidade de interferir nos programas.

A participação do espectador nestes programas, entretanto, é limitada, de

caráter plebiscitário, com um limitado repertório escolhas pré-definido. Segundo a

pesquisadora Beatriz Bretas (BRETAS, 1994), estes programas interativos criam

um circuito tautológico: "as mensagens não passam de meras senhas em que todos

se reconhecem e que na verdade operam de maneira puramente ritual. Nada de fato

se comunica, nada de fato é transmitido, nada muda as posições ou opiniões

existentes. Isso porque, em realidade, não existem essas posições, mas a aceitação e

a livre circulação de todas elas ao mesmo tempo" (MARCONDES FILHO apud

BRETAS, 1994).

5

5 ENCICLOPÉDIA EXITUS DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA. São Paulo, Melhoramentos, 1982, vol. 6.

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Uma TV "à moda da casa" Apesar da restrita possibilidade de intervenção do telespectador apontada

acima, podemos caracterizar a TV de massa como esfera autonomizada, que exclui a participação do público em sua estrutura de produção. Constitui-se em um aparato organizacional complexo, tecnologicamente sofisticado, regido por procedimentos que tendem cada vez mais a instaurar valores, códigos e registros específicos ao seu funcionamento (CASTRO, 1996), não acessíveis ao telespectador. Outra característica marcante da TV de massa é que ela destina-se ao consumo doméstico: "irradia pulverizadamente universos domésticos (o privado por excelência)" (MEJÍA, 1993), visando audiências massivas, uma vez que "uma emissora de TV (como de rádio) sobrevive em função de seu público receptor. É o índice de audiência (a medição do interesse do telespectador) que 'elabora' a programação da emissora e cria condições de sustentação comercial" (PATERNOSTRO, 1987). A TV é um veículo broadcasting6 - na definição de Sérgio Dayrell Porto, um meio de comunicação destinado a atingir um público cada vez mais expressivo. A importância da televisão massiva está em seu poder de "entrar em contato com o maior número de lares possível. A TV fatura hoje o grosso da verba publicitária de todos os anunciantes [...] Por aí se mede a importância da casa como local de recepção de mensagens informativas e de entretenimento [...] À televisão cabe a missão de bater à porta de cada brasileiro ou cidadão do mundo, em seus momentos de tranqüilidade doméstica" (PORTO, 1987). Trata-se, portanto, de uma "TV à moda da casa". O padrão de consumo ditado é definido no eixo São Paulo - Rio de Janeiro - Belo Horizonte, que concentra mais de 70% dos telespectadores, bem como da indústria nacional, e os três principais mercados consumidores do país: a região metropolitana de São Paulo, o interior do Estado de São Paulo e o Rio de Janeiro (CAPARELLI, 1986)7.

6 O termo broadcasting significa "de distribuição ampla, massiva". Porto (1987) aponta que, apesar de ser indiscutível que a TV de massa é um veículo broadcasting (ou seja, de distribuição ampla), pois sua transmissão é massiva; contraditoriamente, ela se dirige às células familiares. Mais ainda: dirige seu discurso a você (vide o discurso publicitário), ao indivíduo.

6

7 A proporção de concentração de telespectadores, indústria e mercado comsumidor no eixo SP- Rio - BH, apontada por CAPARELLI em 1986, manteve-se na década de 90.

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O "Padrão Globo de Qualidade"

Segundo Sebastião Squirra, a maioria das redes de televisão reproduzem um

padrão de organização que visa garantir uma identidade de produção e de

programação: o Padrão Globo de Produção8 (SQUIRRA, 1990).

O Padrão Globo de Produção compreende as "rotinas internas e de equipes

técnicas capazes de realizar, a nível industrial, isto é, com regularidade e freqüência,

programas que atendam:

a) às necessidades manifestantes do mercado;

b) à dinâmica de comunicação que desperte a atenção, mantenha-a e consiga níveis

altos de emoção, adesão e sentimento;

c) à necessidade de clareza do mercado e simplicidade no contato com idéias novas;

d) à necessidade de entretenimento com base no princípio do prazer, marco

fundamental da atitude do telespectador;

e) à necessidade de informação e conhecimento dos problemas da comunidade;

f) à necessidade de exercícios interiores de emoção projetados em figuras de ficção;

g) à necessidade de fantasias e devaneio, principalmente entre as crianças;

h) a um mínimo de qualidade técnica;

i) a um mínimo de qualidade estética;

j) à consonância com os valores éticos médios aceitos pelo público;

k) à necessidade da existência, para faixas etárias presentes na audiência, de

matérias compatíveis com as suas várias preferências e aspirações.

Isso é o padrão de produção: a obtenção de todos esses elementos na média

da programação. É um patamar comum a toda a programação, que mistura vetores

diferentes no atendimento a necessidades subjetivas do mercado. É um produto

novo, típico da era eletrônica.

7

8 Lembramos aqui que a influência do padrão global dá-se em função do sucesso mercadológico das Organizações Globo. Segundo o jornal Folha de São Paulo, este grupo figura entre os sete impérios da mídia mundial, ao lado de: ABC-Disney (base: EUA), Time-Warner (base: EUA), Televisa (base: México), Viacom (base: EUA), News Corp (base: Austrália), e Bertelsmann (base: Alemanha). Estes grupos dominam os seguintes mercados, em nível mundial: jornais, revistas, livros, gráficas, vídeo, cinema, televisão, rádio, música, multimídia e fábrica de papel (FOLHA DE SÃO PAULO, 09 de março de 1997).

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A Rede Globo conseguiu esse padrão. Ou conseguiu um padrão próprio. Ele

é o responsável por essa relação constante e intensa do público com a televisão. O

telespectador já sabe o tipo de serviço que receberá. Pode discordar aqui ou ali,

gostar ou não desse ou daquele programa. Sabe, porém, o que o canal lhe deverá

oferecer em termos de um determinado comportamento previsível. O padrão

acostuma o telespectador a uma carga diária de emoção, informação, prazer,

devaneio e serviços gerais" (MELLO E SOUZA, 1984).

Notamos neste padrão de produção dois elementos básicos: a programação

estrutura-se em função do mercado consumidor, e busca uma homogeneização

desse mercado - o padrão deve acostumar o telespectador ao tipo de serviço que

receberá.

O consumo

O padrão de produção instituído pela TV de massa pressupõe um receptor

passivo. Entretanto, autores como Michel de Certeaud se opõem à idéia de que os

meios de comunicação de massa arrebanham os consumidores, aos quais "só

restaria a liberdade de pastar a ração de simulacros que o sistema atribui a cada

um/a" (CERTEAU, 1994). O ato de consumir, nessa perspectiva, é entendido como

ato de assimilar: de absorver, tornando-se semelhante àquilo que se absorve. O

consumidor é mero receptáculo, passivo.

Podemos perceber, nos depoimentos da comunidade envolvida na TV Beira

Linha, um consumidor que nada tem a ver com a imagem do consumidor-

receptáculo:

"Eu não assisto televisão por canais, assisto aquilo que está

oferecendo uma melhor programação"9.

"Eu assisto o TJ Brasil e o Aqui Agora. Eu gosto de assistir

também um da Globo pra eu comparar. Eu gosto de assistir o da

8

9 Depoimento de Amaro, morador do Conjunto Paulo VI que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

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Bandeirantes também pra comparar [...] Não sei se você já notou,

mas se você pegar 4 jornais por dia, a mesma notícia eles falam

diferente. Então, geralmente, eu assisto aquele jornal que passa

depois do Jô que tem o Eliakim por que eu gosto de dormir é

tarde. Não gosto de dormir cedo de jeito nenhum. Eu gosto [do

jornal do Eliakim] porque é um resumo ainda mais detalhado de

tudo que passou durante o dia. De TV eu sou fanático. Gosto de

futebol quando é meu time que está jogando.

[...] Eu, lá no meu serviço, a primeira coisa que eu faço é ler o

jornal. Tem coisa que não me interessa, mas tem coisa da minha

comunidade também"10.

"Sempre que eu tenho um horário vago, quando não estou

estudando ou lendo , assisto TV conforme o programa. Assisto

principalmente os programas culturais da TV Minas que são

interessantes, porque, caso contrário, prefiro ouvir rádio [...] A

vizinhança está quase totalmente dominada por novela. Onde a

gente vai, só se escuta falar sobre novela. Mas eu continuo

preferindo outros atrativos da TV"11.

"Por exemplo, no domingo na parte da manhã quase não assisto.

Às vezes, assisto Temperatura Máxima [Globo] porque meu

menino gosta. Mas quando chega o horário do ... como é que

chama? ... Planeta Terra [Cultura] vai para o 9 porque tem os

programinhas que os meninos gostam de assistir. Eles gostam de

assistir o Planeta Terra porque explica sobre os animais, sobre a

vida, então, geralmente eu assisto isso por causa dos meninos.

10 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

9

11 Depoimento de Nélio, morador do Paulo VI que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 44: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

44

Tem horas que a TV, em algumas coisas, está muito avançada

para os meninos, então, o canal 9 tem mais...tem o Rá Tim Bum,

tem uns programinhas que são mais educativos e para os meninos

é mais interessante. O Planeta Terra, eu mesma gosto de assistir

porque tem muita coisa que a gente acha que sabe e aí chega lá e

não sabe nada [...] A gente fica mais para o terreiro brincando com

os meninos. A TV quase não funciona lá em casa"12.

"Se não tiver um bate-papo de amigos, o Sílvio Santos serve. Mas

se tiver visita, não quero Sílvio Santos. Eu gosto muito de visita

[...] Não sou muito vidrada em novela não, mas gosto. Assisto um

pouquinho [...] Eu gosto mais de rádio que televisão. Gosto muito

de televisão, mas gosto mais de rádio [...] Eu ligo o rádio 5, 6

horas da manhã e assisto o jornal todo, o jornal da manhã. Depois,

se eu estiver sozinha, eu deixo ele ligado. Se tiver uma coisa assim

gostosinha na Itatiaia, né ? Tem mais isso: Itatiaia só. Eu vou lá,

escuto um pouquinho, corro pra trás outra vez, vou fazer as coisas.

Quando é meio-dia, se eu estiver desocupada, eu deito um

tiquitinho pra escutar a reportagem da Glória Lopes das infâmias.

Pra ver como estão andando por aí as coisas. Depois vem o

Eduardo Lima. Esse aí é meu amigão. Deitada na cama e

escutando ele falando...a mulherada perguntando e depois umas

coisas muito boas do programa dele"13.

Notamos que as pessoas falam de um consumo seletivo e disperso da TV e

dos meios de comunicação de massa em geral. Comparam a programação dos

canais televisivos e fazem escolhas, de acordo com interesses diversos que

permeiam o cotidiano.

12 Depoimento de Ivone, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

1013 Depoimento de Basília, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 45: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

45

Além do processo seletivo, podemos perceber ainda uma assimilação na

nova acepção proposta por Certeau: "torná-lo semelhante ao que se é, fazê-lo

próprio, apropriar-se ou reapropriar-se dele" (CERTEAU, 1994).

O receptor não está orientado apenas para as mensagens, mas através delas,

mergulhado num diálogo social. Participa do diálogo em sua condição de ser social

cheio de interesses, desejos, distinções e consciência da alteridade (FRANÇA,

1996).

A linguagem é um material sensível produzido e apreendido num contexto

relacional, a partir de regras, intenções, desejos e expectativas nascidas e expressas

neste contexto. Trata-se de uma tecitura (tecido, trama), e de uma tessitura (ato de

tecer) simbólica (CASTRO apud FRANÇA, 1996).

O contexto relacional é decisivo. O diálogo social em torno da programação

da TV de massa envolve os comentários sobre ela que acontecem nas famílias e

entre os vizinhos. Afinal, em "qualquer rodinha de mulheres conversando, o assunto

principal é novelas"14. Os noticiários são tema de conversas em bares, pontos de

ônibus, porta de casa, onde "a gente conversa muito sobre as 'cagadas' dos políticos,

essas coisas. A gente conversa mais o assunto do momento"15.

Críticas da comunidade à macrotelevisão

Percebemos ainda um consumo que não é ingênuo. Os consumidores

apontam que interesses políticos e econômicos interferem no discurso das TVs e

identificam, na programação, os reflexos da concorrência entre as emissoras:

"Agora, fica nessa concorrência entre Globo e SBT por causa dos

horários. Às vezes, eles podiam passar alguma coisa diferente,

mas não, fica nessa briguinha egoísta entre eles"16.

14 Depoimento de Sandra, moradora do Conjunto Paulo VI que participou da TV Beira Linha. 15 Depoimento de Itamar, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

11

16 Depoimento de Ivone, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 46: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

46

"Tem muita concorrência, uns querendo ganhar dinheiro às custas

do outro e em cima disso quem sai prejudicado somos nós. Porque

eles nunca vão olhar uma programação para informar os

telespectadores. Eles vão olhar primeiramente os interesses

deles"17.

Os telespectadores percebem que para aparecer na TV é necessário

conformar-se a seus padrões: "Aquele namoro na TV: Quer namorar comigo? Aquilo é uma

graça! Vai criança de 14, 15 anos, pra quê? Só vai ali gente muito

coitadinha, muito humilde ou então muito jovem que se sente

bonito demais. Ele vai pra aparecer a 'boniteza'. Na realidade

ninguém quer amor, ninguém quer nada. Se ele tiver aleijado, ele

não vai, vai? Se tiver faltando a orelha, se estiver de muleta...

Numa cadeira de rodas você nunca viu ninguém. Você não vê

uma moça bem feia. Ela pode até arranjar um namorado, mas de

outra maneira. Pra subir e descer termômetro ela não vai não! "18.

A qualidade dos programas veiculados é preocupação e alvo de crítica do

consumidor. Um morador do Ribeiro de Abreu, por exemplo, avalia que a TV "tem

muita asneira, muita coisa sem proveito. Eu não tô falando de sexo ou de palavrão.

Já que estamos lutando por uma pátria que não tenha censura, cada um tem a sua

liberdade e a sua consciência. Mas tem coisas mal aproveitadas. O programa do Jô

mesmo, por que ele não pode ser mais cedo?"19. Outro morador da região aponta

que "as conjugações em Português, as concordâncias, as regências, em novela não

existe isso"20.

17 Depoimento de Ronaldo, morador do Nazaré que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 18 Depoimento de Basília, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 19 Depoimento de Itamar, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha.

12

20 Depoimento de Afonso, morador do Nazaré que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 47: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

47

Outra crítica à TV de massa presente nos depoimentos diz respeito a ela não

não dar visibilidade à comunidade da região:

"Eu tenho visto que a nossa realidade, nossa, daqui, está muito

longe do que passa na TV [...] Eu acho que as TVs estão

preocupadas em tecnologia, não estão preocupadas em informar

muita coisa. A briga de IBOPE, um joga uma novela, outro joga

outra, investe. Mas no que precisa mesmo, um noticiário sério,

mostrar a realidade das comunidades, ninguém está investindo.

Não a realidade da cidade, mas a realidade das comunidades, que

é importante"21.

"As informações que chegam à nossa casa são que desabou um

prédio na Coréia, enchente, morreu não sei quem na Índia, etc e

tal [...] A televisão está castigando muito sobre corrupção, crime,

violência e isto está massificando demais as pessoas. Ao passo

que se você entrar nas nossas casas e colocar a informação da

nossa região do dia a dia, com certeza, pode ter o melhor

programa na Globo, mas o Canal Beira Linha vai entrar hoje no

ar, eu vou querer saber o que está acontecendo no Ribeiro de

Abreu [...] a minha comunidade precisa ficar bem informada sobre

o que está acontecendo com ela"22.

O pesquisador Mário Gutierrez aponta essa exclusão da comunidade e do

sujeito social, pertencente e articulado a uma coletividade, nos telejornais da TV

massiva brasileira. Segundo este autor, tal exclusão deriva das diretrizes adotadas

nos dois modelos que norteiam o telejornalismo massivo no Brasil: o primeiro

21 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA,

995). 1

13

22 Depoimento de Amaro, morador do Conjunto Paulo VI que participou da TV Beira Linha.

Page 48: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

48

modelo é o global (inspirado no Jornal Nacional, da Rede Globo), que nasce para

"integrar o Brasil pela notícia" (GUTIERREZ, 1993). Gutierrez aponta que este

modelo "se preocupa com a atualidade e com dar uma boa imagem das contradições

nacionais", unificando "habilmente a representação do povo, ocultando tudo o que

se tem de diferente, regional ou anti-sonante socialmente, procurando globalizar a

todo custo uma representação da realidade" (GUTIERREZ, 1993).

O outro modelo deriva do Aqui, Agora, produzido pelo Sistema Brasileiro de

Televisão. É o espaço da "tragédia da periferia, mistura o policial com o

melodramático, o que converte um crime numa história de amor. O Aqui, Agora

não é só crime e violência, mas também interessa-se pelas histórias da vida, os

dramas cotidianos", numa busca do indivíduo e sua singularidade "não como

humanidade, mas sim como espetáculo, apelando àquele que viu alguma coisa, que

foi ferido. O mais importante é a versão direta e pessoal, a existência coletiva não

existe" (GUTIERREZ, 1993).

O modelo global opera uma diluição do indivíduo numa representação

homogeneizante do povo brasileiro; o Aqui, Agora opera uma afirmação do

indivíduo restrita ao espaço do escândalo e do bizarro, negando-lhe a existência

coletiva.

É fundamental considerarmos ainda a crítica à impossibilidade de

intervenção do telespectador na esfera de produção da TV de massa. Um estagiário

da TV Beira Linha aponta que no "estilo jornalístico tradicional as pessoas

aparecem como objeto a ser observado e não como sujeito que demanda e participa

da realização da matéria"23. Sérgio Dayrell Porto (PORTO, 1987) avalia que é

necessária a criação de alternativas ao atual padrão de produção da TV de massa,

alternativas que atendam ao caráter público das emissoras de televisão. Segundo a

Constituição Brasileira (artigo 223), os canais de rádio e televisão não se

incorporam ao patrimônio de quem os explora: são propriedade da União e devem

servir à coletividade a que pertencem (PATERNOSTRO, 1987).

14

23 Depoimento de estagiário integrante da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 49: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

49

2. TV comunitária em baixa potência: ensaio de uma TV "à moda da praça

pública"

Tendo em vista que a televisão serve a uma coletividade, Porto considera que

"talvez tenha chegado a hora de que uma TV pública venha conviver com as TVs

privadas e estatais que estão por aí" (PORTO, 1987). O autor propõe que

experimentemos uma nova televisão, feita à moda da praça pública, uma TV

"eminentemente pública, na sua produção, distribuição e consumo", que inaugure

"novos conteúdos, novos valores, novas idéias, que atendam aos interesses das

coisas que se passam na esfera pública, e não simplesmente na esfera privada e

mesmo estatal". Uma TV onde "aquilo que é visto em casa seja discutido em praça

pública". O autor aponta que "o domínio privado passa a ter maior sentido na

medida em que não entre em conflito com a coisa pública" (PORTO, 1987).

Histórico da TV comunitária As TVs comunitárias surgem nessa nova perspectiva. Santoro (1989) destaca

que as primeiras experiências de TV comunitária surgidas no mundo, realizadas na

França e Canadá no início dos anos 70, articulam a videoanimação24 e a tecnologia

de transmissão via cabo. Nessas experiências, "a idéia principal era a de recriar a

noção de comunidade, agora via tela de televisão. A praça pública passa a ser

eletrônica e o encontro com os vizinhos não se dá mais nas ruas, mas via

depoimentos e participação em programas de TV locais" (SANTORO, 1989).

Desde a década de 70, as TVs de acesso público do sistema de cabodifusão

do Canadá e Estados Unidos têm servido de parâmetro para o desenvolvimento de

TVs comunitárias em diversos países. As TVs de acesso público são canais para uso

15

24 O conceito de videoanimação deriva do conceito de animação cultural. Compreende, segundo Dubois-

Dumeé, "toda a animação social e cultural que utiliza os meios eletrônicos da TV em circuito fechado para

pôr em movimento uma vila, um bairro ou mesmo um grupo. Isto implica, de uma parte, na vontade de

colocar as pessoas em relação umas com as outras, de ajudá-las a descobrir, a exprimir, a discutir e resolver

problemas que elas encontram; e de outra parte na utilização de um equipamento leve, constituído por uma

câmera eletrônica, um videocassete e um monitor de TV" (DUBOIS-DUMEÉ apud SANTORO, 1989).

Page 50: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

50

da comunidade de determinada região, que oferecem espaço e infra-estrutura para

que a população da região produza e veicule seus próprios programas (ALMAS,

1993).

No caso brasileiro, a TV comunitária nasce literalmente na praça pública. As

primeiras experiências do país - TV Viva (Olinda, 1983) e TV Maxambomba

(Baixada Fluminense, 1986) - realizam atividades de videoanimação em praças e

ruas, utilizando para tal programas em vídeo realizados por comunidades de bairros.

Este tipo de experiência ficou conhecido como "TV de Rua".

Inspiradas na proposta de atuação das TVs de Rua, inúmeras experiências

semelhantes têm sido realizadas em todo o Brasil, ao longo dos anos 80 e 90,

envolvendo exibição de programas de vídeo realizados por comunidades em

diversos espaços públicos: escolas, creches, centros comunitários, associações de

bairro, ginásios esportivos, igrejas, hospitais, centros de saúde, etc. Em Belo

Horizonte, temos como exemplo a experiência da TV Sala de Espera, desenvolvida

desde 1993 na região nordeste da cidade25.

As primeiras experiências de TV comunitária em baixa potência brasileiras

surgem em 1986. A TV de baixa potência é uma modalidade de televisão com as

seguintes características: transmissão em sinal aberto por ondas hertzianas, com uso

de transmissor (VHF ou UHF) de potência máxima de 250 watts. Devido à baixa

potência do transmissor, trata-se de uma de TV de pequeno alcance, que emite

sinais captados em limitada abrangência geográfica. As TVs comunitárias que

transmitem seus programas em baixa potência são, portanto, chamadas de TVs

comunitárias em baixa potência.

Esta modalidade de TV não encontra-se regulamentada na legislação

brasileira. As experiências realizadas, portanto, são ilegais ("piratas"), e o

Departamento Nacional de Telecomunicações (DENTEL) tem poder para confiscar

os equipamentos de transmissão por elas utilizados.

16

25 Sobre estas experiências, ver AMARAL, 1995.

Page 51: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

51

A regulamentação das TVs comunitárias em baixa potência é um dos

principais pontos da pauta das negociações do Fórum Nacional pela

Democratização da Comunicação junto ao poder público. Encontra-se tramitando

no Congresso Nacional um Projeto de Lei que dispõe sobre a televisão comunitária

em baixa potência (PL 2071 / 1997).

A TV Beira Linha foi uma experiência de TV comunitária em baixa

potência muito expressiva no contexto brasileiro. Reuniu, em sua equipe técnica,

um grupo de 35 produtores de vídeo provenientes dos Estados do Acre, Pará,

Tocantins, Rio Grande do Norte, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo,

Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e do Distrito Federal.

A TV foi um projeto experimental de TV comunitária realizado em Belo

Horizonte no período de 30 de maio a 04 de junho de 1995. Envolveu a realização e

transmissão (no canal 8 VHF), no extremo nordeste da periferia da cidade, através

de um transmissor de baixa potência (100 watts), de programas televisivos diários,

com aproximadamente 14 quadros e duração média de 45 minutos cada. Na

realização dos programas, a equipe técnica atuou em parceria com a comunidade

local.

O projeto foi uma atividade integrante da Oficina Latino-Americana de

Capacitação Avançada em TV/Vídeo Comunitários - projeto CODAL

(Comunicação para o Desenvolvimento da América Latina), promovida no Brasil

pela Associação Brasileira de Vídeo Popular. Os bairros Conjunto Paulo VI, Paulo

VI, Ribeiro de Abreu e redondezas26, na região nordeste de Belo Horizonte, foram

escolhidos para a realização da experiência porque na região já se desenvolve,

desde 93, o projeto de TV comunitária TV Sala de Espera, promovido pela

Universidade Federal de Minas Gerais e Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

A TV Beira Linha tem sido apontada como referência nas discussões acerca

da TV comunitária em baixa potência em curso no Brasil. Em 1996, foi a única

experiência de TV comunitária discutida no Seminário sobre Radiodifusão

17

26 A divisa dos bairros Paulo VI e Ribeiro de Abreu é popularmente conhecida como "Beira Linha", por tratar-se de uma região onde já existiu uma linha de trem. É este o fator que dá origem ao nome da TV.

Page 52: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

52

Comunitária realizado no Congresso Nacional. Foi ainda adotada como referencial

nas discussões que o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

promove acerca da regulamentação das TVs comunitárias em baixa potência.

Mesotelevisão

René Berger situa a low power TV (TV de baixa potência) e todas as

televisões de pequeno alcance e comunitárias num campo de experiência televisiva

bastante distinto da macrotelevisão: o da mesotelevisão27. Neste campo, os veículos

estão voltados "para um diálogo com um público diferenciado. A mesotelevisão cria

um novo tipo de relacionamento entre produtores e espectadores: os seus papéis são

intercambiáveis, de modo que cada cidadão pode estar alternadamente diante da tela

ou no ar. A relação, portanto, não é mais do emissor com o receptor, do produtor

com o consumidor, mas de interlocutores" (BERGER apud MACHADO, 1990).

A mesotelevisão de caráter comunitário diferencia-se da TV de massa,

portanto, pela abrangência limitada e, sobretudo, pela proposta de promoção do

acesso da comunidade envolvida aos processos de planejamento, produção e

veiculação dos programas.

Temos, portanto, um conceito de TV comunitária que envolve sua

abrangência e proposta. Entretanto, perguntamo-nos: como essa proposta é

viabilizada? Que lógica de produção a TV comunitária inaugura?

Destacamos, na TV Beira Linha, três dimensões da experiência que parecem-

nos indicar alguns eixos que fundam a lógica de produção da TV comunitária: a

construção de um repertório de escolhas; o processo de realização de escolhas; a

recepção onde produtor e telespectador se confundem, e que extrapola o limite do

consumo doméstico e gera o debate público das questões. Trataremos, a seguir, de

cada uma destas três dimensões.

18

27 O autor dessa classificação propõe este campo como meso, intermediário entre a macrotelevisão, já citada, e a microtelevisão, que constitui-se na tevê dos pequenos grupos qualitativos, reunidos por interesses comuns e que utilizam equipamentos portáteis de vídeo para produzir e difundir em circuito fechado.

Page 53: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

53

Repertório de escolhas

A própria formulação de demandas de produção de mensagens televisivas (e,

conseqüentemente, da demanda pelo exercício do acesso público à TV) só é

possível quando a comunidade envolvida conhece os elementos constitutivos da

organização da produção e do código televisivo (LIMA, 1996).

Notamos que na experiência da TV Beira Linha a comunidade constrói,

através de capacitação fornecida pela equipe técnica, um repertório capaz de

instrumentalizar as escolhas necessárias em todo o processo de realização dos

programas.

Entre os objetivos da equipe técnica da TV, estava o de "qualificar agentes

locais [de comunicação]" (WAINER, 1995). Assim, o trabalho envolveu uma

parceria entre equipe técnica e comunidade. Uma moradora da região assim definiu

os termos dessa parceria:

"O pessoal da comunicação entra com o material e com o

trabalho, mas quem faz o programa em si são eles [as pessoas da

comunidade], então, são pessoas do bairro que estão fazendo [a

TV]"28.

Outro morador, em conversa com a equipe técnica, avaliou:

"O programa é uma troca, vocês têm muita coisa para passar pra

gente e a gente para vocês"29.

Os membros da comunidade que atuaram na experiência apontam elementos

deste processo de troca e capacitação:

28 Depoimento de Ivone, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

19

29 Depoimento de Itamar, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 54: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

54

"No primeiro dia eu fiquei tenso, nervoso [...] mas no dia-a-dia eu

fui vendo as dificuldades que as equipes estavam tendo para

colocar o programa no ar. Eu fui sentindo, eu fui fazendo parte

dessa equipe, eu fui entrando mais, conversando mais com o Júlio,

com o Breno, com os câmeras [...] senti aquele trabalho mais perto

[...] ganhei uma experiência da equipe [...] Eu tirei experiência de

trabalho, experiência de convivência"30.

Um adolescente da região descobriu, participando da TV Beira Linha, que "o

lado oculto da TV é mais interessante que o lado visível". A experiência despertou

nele o gosto por "trabalhar com iluminação, filmagem e locução". Ele destaca ainda

que:

"Foi legal porque eu participava. Dei várias sugestões, participei

com eles colaborando com algumas perguntas no baile funk da rua

no Parque Belmonte. E teve o movimento negro que intermediei

para que nós participássemos. Vi as ilhas de edição, conheci um

pessoal muito legal e foi maravilhoso estar com eles [...] Em duas

oportunidades, fui até a central. Assisti a vários trechos de

programas quando editados. Sempre que eu ia à sede, adorava ver

aquele corre-corre louco dos bastidores da Beira Linha"31.

Uma participante da TV comunitária TV Sala de Espera também fala desta

aquisição de repertório, que permite o acesso ao veículo: "Eu fiquei conhecendo o que era vídeo, como fazer vídeo [...] a gente

discutiu pauta, o que a gente ia fazer [...] Aí eu fiz roteiro, com plano

de câmera, super empolgada, conheci o negócio naquele mês então eu

fiz o plano de câmera, fiz storyboard, tudo assim bonitinho, partimos

30 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA,

1995).

20

31 Depoimento de Nélio, morador do Acaiaca que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 55: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

55

pro vídeo. E essa foi a parte da experiência mais legal de fazer vídeo -

foi aí que eu conheci tudo [...] A experiência foi fantástica, fazer um

vídeo, eu nunca me imaginaria fazendo um vídeo [...] Deu para eu

fazer uma coisa que não era de acesso para mim, eu não tinha acesso

às informações, eu não tinha acesso ao vídeo, aí eu fiz uma coisa que

era de acesso para mim"32

Um estagiário da TV Beira Linha relata que viveu, na experiência, um

processo de "desmistificação do veículo":

"O super poder que damos à televisão foi algo que desmitifiquei um

pouco com este processo. 'Fazer televisão' é como fazer qualquer

outra atividade: essa foi uma constatação fundamental para mim,

neste momento da minha formação"33.

A comunidade faz escolhas

Em toda a produção, o processo comunitário de realização de escolhas

temáticas, de angulação e de articulação dos elementos da sintaxe televisiva para a

produção das mensagens desejadas tem tanta ou mais importância que os produtos

realizados.

Podemos afirmar, nesta perspectiva, que a TV comunitária é uma TV-

processo34: ao longo da realização dos programas, a comunidade descobre as

potencialidades do veículo e realiza escolhas tendo em vista tais potencialidades

descobertas e o debate das questões comunitárias, inevitável quando é necessário

decidir-se o que mostrar e como mostrar determinado tema na TV.

32 Depoimento de Sheila Castro, moradora do bairro Ribeiro de Abreu. In: LIMA, 1996. 33 Depoimento de estagiário integrante da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 34 Forjamos aqui este conceito a partir da caracterização de vídeo-processo proposta por Daniel Brazil:

"determinada comunidade ou grupo utiliza de forma sistemática o vídeo como elemento de integração [...]

em uma produção em geral coletiva, que busca atender seus interesses (BRAZIL, 1992).

21

Page 56: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

56

Nos depoimentos, os moradores da região apontam que o processo de uma

equipe televisiva comunitária abordar as questões da região tem um impacto

positivo na mobilização da população local:

"Tem um problema na rua Advance, então, nós vamos invadir lá

de repente, sem ninguém saber, vamos conversar com o pessoal,

vamos jogar isso para o ar [...] Tem um grupo de pagode lá em

cima, vamos chegar de surpresa, pegar eles lá e saber o que está

acontecendo [...] Tem um festival no campo, então, vamos filmar.

Vamos dar apoio a essas pessoas que estão jogando bola". A TV

seria, portanto, "um apoio central, uma ligação entre esses

trabalhos.

[...] Sinceramente, eu que trabalho há 15 anos nessa região, tinha

coisa que eu não conhecia, que eu não sabia. Eu já contratei grupo

de fora pra tocar aqui, lá da região da Cidade Nova, sendo que no

Paulo VI tinha um grupo de pagode. Eu não sabia que no Paulo

VI tinha esse grupo. Eu já fiz show de calouro aqui no bairro meio

desorganizado e não sabia do Elias. Pra mim [entrar em contato

com estes grupos através do trabalho na TV Beira Linha] foi

muito bom. Agora eu sei: quando eu quiser fazer um show de

calouros, eu vou lá entrar em contato com o Elias, eu sei que no

Paulo VI tem grupo de pagode, então eu vou lá... Isso me deixou

muito satisfeito mesmo. Eu acho que a gente, na comunidade,

quanto mais a gente se conhecer, melhor". A TV comunitária

deve, portanto, "organizar um debate entre as comunidades (...)

ser aquele elo de ligação"35.

22

35 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

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Nos depoimentos, os moradores da região apontam que o processo de uma

equipe televisiva comunitária abordar as questões da região tem um impacto

positivo na mobilização da população local:

"Tem um problema na rua Advance, então, nós vamos invadir lá

de repente, sem ninguém saber, vamos conversar com o pessoal,

vamos jogar isso para o ar [...] Tem um grupo de pagode lá em

cima, vamos chegar de surpresa, pegar eles lá e saber o que está

acontecendo [...] Tem um festival no campo, então, vamos filmar.

Vamos dar apoio a essas pessoas que estão jogando bola". A TV

seria, portanto, "um apoio central, uma ligação entre esses

trabalhos.

[...] Sinceramente, eu que trabalho há 15 anos nessa região, tinha

coisa que eu não conhecia, que eu não sabia. Eu já contratei grupo

de fora pra tocar aqui, lá da região da Cidade Nova, sendo que no

Paulo VI tinha um grupo de pagode. Eu não sabia que no Paulo

VI tinha esse grupo. Eu já fiz show de calouro aqui no bairro meio

desorganizado e não sabia do Elias. Pra mim [entrar em contato

com estes grupos através do trabalho na TV Beira Linha] foi

muito bom. Agora eu sei: quando eu quiser fazer um show de

calouros, eu vou lá entrar em contato com o Elias, eu sei que no

Paulo VI tem grupo de pagode, então eu vou lá... Isso me deixou

muito satisfeito mesmo. Eu acho que a gente, na comunidade,

quanto mais a gente se conhecer, melhor". A TV comunitária

deve, portanto, "organizar um debate entre as comunidades (...)

ser aquele elo de ligação"35.

22

35 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Assim, fazer TV acaba se constituindo numa "tentativa de vivenciar uma

nova realidade"36.

Membros da equipe técnica também apontam a natureza processual da TV

Beira Linha: "as reclamações, queixas, toques da comunidade provocavam a

forçosa reflexão e revisão do que fazíamos" (WAINER, 1995).

Ao longo deste processo de interação com a comunidade, a equipe constatou

que "realizar televisão - comunitária, principalmente - é um trabalho que vai além

da técnica de vídeo. É preciso uma reflexão constante sobre nossas motivações. Não

é, como eu acreditava, um trabalho missionário. A comunidade é um corpo social

vivo, tem interesses, divergências. Aprender a conviver e até mesmo aproveitar

estas características não se aprende da noite para o dia"37.

Em tal aprendizado, os técnicos da TV Beira Linha foram descobrindo uma

série de preceitos éticos necessários à construção da TV comunitária:

"Ninguém, no começo, levou a sério a importância deste contato

com a comunidade [mas fomos descobrindo que] fazer TV não é

simplesmente 'brincar de diretor'. As consequências de um

trabalho de comunicação sem responsabilidade com as pessoas

envolvidas podem ser desastrosas do ponto de vista ético"38.

"Percebi que a prática ensina coisas que a teoria é incapaz de

revelar. No decorrer do processo, percebi que muito do que fora

antes combinado não estava se concretizando. Ocorreram

atropelos, atrasos, faltas que demonstraram, muitas vezes, uma

falta de comprometimento com a comunidade do bairro"39.

36 Depoimento de Afonso, morador do Nazaré que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 37 Depoimento de estagiário integrante da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 38 Depoimento de estagiário integrante da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 39 Depoimento de estagiário integrante da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

23

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Ao longo das produções, pudemos "discutir o papel do repórter

numa produção de TV, a consciência do comunicador sobre as

manipulações que ocorrem em cima do seu trabalho, a questão da

privacidade/intimidade das pessoas que aparecem na televisão e a

relação delas com o comunicador [...] Participar desse processo

como estudantes de comunicação contribuiu para que

entendêssemos mais claramente o que pode ser o trabalho de

comunicador"40.

"Descobri que é fundamental que se valorize a interação com a

comunidade como uma prática imprescindível, que deve envolver

uma reflexão constante acerca da interação social entre

comunicador / comunidade. E que, nessa interação, acima das

questões técnicas esteja sempre o compromisso com a

comunicação coletiva, e a valorização do papel social de cada um

dos sujeitos nela envolvidos"41.

Os membros da comunidade destacam que a experiência possibilitou uma

descoberta do potencial do veículo, o que suscitou idéias de novas possibilidades de

expressão na TV comunitária:

"Um respaldo que eu deveria fazer para uma continuação seria

fazer uma coisa mais leve, diferente [...] Eu achei que ficou uma

coisa muito séria. Eu, como apresentador, fiquei muito sério. O

pessoal está cansado de ver coisa séria na TV. O pessoal quer uma

coisa mais descontraída. Eu posso passar uma notícia numa boa,

rindo, brincando. Passar uma mensagem descontraído. Sem aquela

coisa de Cid Moreira, Boris Casoy [..] Moro aqui há 26 anos, eu

40 Depoimento de estagiário integrante da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

24

41 Depoimento de Rafaela Lima, membro da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

sei a realidade do Ribeiro praticamente quase toda. Então, o

pessoal fica mais a vontade comigo para falar as coisas porque

eles vão falar comigo, não como repórter sério, mas como Marco

Aurélio. 'Olha, Marco Aurélio, a gente precisa disso...Lá em cima

tem isso'. Quando tem uma pessoas de fora, não sei se vocês já

têm notado, quando chega um repórter aqui, muita gente assusta.

Se é uma pessoa diferente muita gente assusta"42.

"Nós não temos acesso a canal nenhum [...] Eu não tenho

condições de colocar uma propaganda na Globo, mas se você me

perguntar: 'Amaro, você tem condições de pagar 5 reais para a

gente girar uma propaganda da sua microempresa? Ou o sacolão

ali debaixo ou a padaria do Nazaré?' [...] eu não tenho escritura

para fazer uma propaganda em um jornal grande nem em uma

televisão grande e não tenho escritura para atender uma capital

que é Belo Horizonte. Porque eu sou muito pequenininho, eu

trabalho para sobreviver. Mas se eu conseguir fazer uma

propaganda, através da televisão, na Regional Nordeste, para

mim seria muito bom. Porque têm muitas microempresas que

dependem da minha microempresa para elaborar seus trabalhos.

Quer dizer, seria muito interessante que vocês olhassem essa parte

comercial [da TV Beira Linha, que não teve nenhum tipo de

comercial pago veiculado] com um pouco de carinho. Agora,

também, que não repetissem o mesmo problema dos outros canais,

que ficam naquela [fórmula] massificante de propaganda"43.

42 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA,

1995).

25

43 Depoimento de Amaro, morador do Conjunto Paulo VI que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

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sei a realidade do Ribeiro praticamente quase toda. Então, o

pessoal fica mais a vontade comigo para falar as coisas porque

eles vão falar comigo, não como repórter sério, mas como Marco

Aurélio. 'Olha, Marco Aurélio, a gente precisa disso...Lá em cima

tem isso'. Quando tem uma pessoas de fora, não sei se vocês já

têm notado, quando chega um repórter aqui, muita gente assusta.

Se é uma pessoa diferente muita gente assusta"42.

"Nós não temos acesso a canal nenhum [...] Eu não tenho

condições de colocar uma propaganda na Globo, mas se você me

perguntar: 'Amaro, você tem condições de pagar 5 reais para a

gente girar uma propaganda da sua microempresa? Ou o sacolão

ali debaixo ou a padaria do Nazaré?' [...] eu não tenho escritura

para fazer uma propaganda em um jornal grande nem em uma

televisão grande e não tenho escritura para atender uma capital

que é Belo Horizonte. Porque eu sou muito pequenininho, eu

trabalho para sobreviver. Mas se eu conseguir fazer uma

propaganda, através da televisão, na Regional Nordeste, para

mim seria muito bom. Porque têm muitas microempresas que

dependem da minha microempresa para elaborar seus trabalhos.

Quer dizer, seria muito interessante que vocês olhassem essa parte

comercial [da TV Beira Linha, que não teve nenhum tipo de

comercial pago veiculado] com um pouco de carinho. Agora,

também, que não repetissem o mesmo problema dos outros canais,

que ficam naquela [fórmula] massificante de propaganda"43.

42 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA,

1995).

25

43 Depoimento de Amaro, morador do Conjunto Paulo VI que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

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60

Recepção: a comunidade diante da tela e na tela

Nas transmissões da TV Beira Linha, produtor e telespectador se confundem:

"A reação da população foi extremamente favorável à experiência,

tanto no aspecto da audiência quanto na sua participação direta

nas atividades. A população demonstrou interesse não apenas em

ter um canal de TV à sua disposição, mas também em 'fazer

televisão' "44.

Além disso, a recepção dos programas extrapolou o limite do consumo

doméstico e gerou o debate público das questões. Um estagiário da TV Beira Linha

aponta que a equipe que realizou enquetes na região para aferir a audiência da TV

Beira Linha descobriu que "as pessoas que apareciam nos programas organizavam

reuniões nas casas para se assistirem"45.

Os moradores também falam dessa recepção compartilhada coletivamente:

"As pessoas saíram das suas casas para irem à porta de um buteco

assistir [...] primeiro porque é novidade, segundo porque as

pessoas querem se ver na televisão e ver os amigos"46.

"Na casa da Íris a televisão ficava numa área ali fora e todo

mundo ficava na fila [para assistir os programas]"47.

"Lá em casa foi muita gente assistir comigo"48.

44 Depoimento de estagiário integrante da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 45 Depoimento de estagiário integrante da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 46 Depoimento de Amaro, morador do Conjunto Paulo VI que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 47 Depoimento de Basília, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

26

48 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

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61

Mesmo quem assistiu sozinho ou só com a família participou, conforme

aponta uma moradora, do burburinho que a TV provocou no bairro, onde cada um

queria "analisar, rir, criticar"49.

"O comentário era, por exemplo, sobre uma senhora do Paulo VI

fazendo tapete. O pessoal gostava porque era uma senhora super

idosa e estava com aquela força de trabalho. O pessoal comentava

sobre as reportagens, que umas eram engraçadas e outras eram

sérias. Quer dizer, engraçada mas tinha uma mensagem. Teve uma

que o pessoal gostou muito: a feita com quatro meninas e um

rapaz sobre o machão. O pessoal adorou. Foi feita como uma

sátira, mas teve um significado. Acho que o pessoal comentou

muito. O pessoal ficou surpreso de saber que tem tanta gente boa

na região e ninguém sabia"50.

Praça pública eletrônica

Os três eixos apontados acima articulam-se na construção da TV

comunitária, uma TV que os participantes identificam como praça pública

eletrônica, espaço de isegoria: o igual direito de qualquer cidadão manifestar-se

publicamente na pólis (COMPARATO, 1991).

A coordenação da TV Beira Linha aponta que a experiência permitiu o

vislumbre de um paradigma de TV comunitária em baixa potência que poderia ser

"um instrumento de encontro e comunicação [nas] comunidades ou vilas. Grupos

específicos teriam o espaço de seus encontros tornado público, suas ações

circulando na pequena pólis" (KUPERMAN, 1995).

Nos depoimentos dos moradores da região que participaram da TV Beira

Linha (LIMA, 1995), as pessoas referem-se a ela como um espaço onde a

49 Depoimento de Ivone, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

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50 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

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comunidade se relacionou - "cada um fazendo uma mensagem para o outro receber

(...) recebendo e passando ao mesmo tempo"51 - dando visibilidade à vida local.

Neste espaço, os sujeitos instituem, no processo mesmo de construção desta

visibilidade, um espaço público, de novas relações:

"Essa questão dessa TV daqui, além de causar uma identificação

rápida do pessoal com o programa, é uma oportunidade da gente

ter um lugar em que a gente possa falar o que a gente vive, o que

atrapalha, etc"52.

Na TV Beira Linha, destaca um morador da região, "temos quadros,

transmissões da nossa realidade para, a partir daí, tentarmos sonhar com uma

realidade melhor, uma posição mais consciente, talvez, mais clara da vida, da

política e dos fatos em modo geral"53.

Afinal, conforme afirma Thompson, o conceito de democracia não pode

restringir-se à questão do consumo, à liberdade do consumidor de escolher. Deve

envolver taambém - e principalmente - “a disponibilidade de uma multiplicidade de

fóruns públicos em que diferentes pontos de vista possam ser expressos [...] O

indivíduo não é apenas um consumidor que tem direito a alguma escolha na seleção

dos objetos de consumo; ele é, também, um participante numa comunidade (ou

comunidades) política em que a formação da opinião e o ato de decisão dependem,

hoje, até certo ponto, da disponibilidade de informação e da expressão de diferentes

idéias através da mídia” (THOMPSON, 1995).

Os participantes da experiência apontam que a constituição deste espaço

público televisivo está intimamente ligada à permanente criação, na TV, de

"oportunidades para a população local se apropriar de espaços na programação,

51 Depoimento de Itamar, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 52 Depoimento de Itamar, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

28

53 Depoimento de Afonso, morador do Nazaré que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 63: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

63

trazendo idéias e discursos, e tendo a confiança de que estes seriam apresentados

[na TV]" (KUPERMAN, 1995).

A comunidade percebeu a TV Beira Linha como um "meio de ela [a

comunidade] se expressar"54, "uma oportunidade para essa região tão carente

mostrar o que sente, o que quer"55. "Eu gostei da TV Beira Linha porque ela

mostrou realmente a realidade daqui"56.

Ao promover o acesso público, a TV Beira Linha, segundo depoimentos de

moradores da região, deu "oportunidades para pessoas que querem ser alguma coisa

[...] e que querem mostrar para o povo que elas existem"57. Um espaço "pro pessoal

ficar sabendo o que estava se passando no bairro"58. A TV Beira Linha mostrou "o

pessoal falando, cantando, reclamando, oferecendo o trabalho que sabia fazer"59.

"Tantas coisas foram passadas na TV Beira Linha que ninguém

aqui da região sabia e ficou sabendo. Quer dizer, nós temos tanta

coisa boa aqui e não sabemos. Também temos muitas coisas ruins

aqui e não sabemos [...] Causou esta abertura pra região ficar

sabendo. Por exemplo, eu não sei o que está acontecendo no Paulo

VI. Paulo VI também não sabe o que está acontecendo aqui. Com

isso todo tá sabendo o que está acontecendo no seu bairro"60.

54 Depoimento de Itamar, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 55 Depoimento de Nélia, moradora do Paulo VI que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 56 Depoimento de Marco Aurélio, morador do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 57 Depoimento de Ronaldo, morador do Nazaré que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 58 Depoimento de Ramona, moradora do Conjunto Paulo VI que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 59 Depoimento de Basília, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

29

60 Depoimento de Basília, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 64: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

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Na praça pública eletrônica, aflora a diversidade local. A equipe técnica

ressalta que os moradores da região entrevistados nas pesquisas de receptividade da

TV "mostraram-se impressionados com a riqueza cultural e com a força dos

projetos de sua região, desconhecida até mesmo por eles próprios"61.

"Eu acho que a TV Beira Linha alcançou um objetivo muito

importante de descobrir pessoas que têm competência e

capacidade para desenvolver trabalhos e que estão escondidos e

que não têm acesso a nada. Eu acho que é preciso mostrar o

trabalho destas pessoas no bairro. Por exemplo, aqui nós temos

excelentes costureiras"62.

Surpresa com a possibilidade de expressar-se na pólis eletrônica - uma

moradora lembra que o comentário geral era: "'Eu vou lá falar também, vou fazer.

Será que a gente vai ter o direito de falar?'"63 - a população que participou da TV

Beira Linha sentiu-se valorizada com a experiência:

"Você escutava as pessoas comentarem: 'Nossa, estamos ficando

importantes', 'Que chique que a gente está ficando! Mais chiques

do que a TV Globo porque agora a gente tem uma TV só para a

gente aqui. Moramos longe, mas agora estamos ficando mais

chiques que o centro'. O comentário aqui é que o último bairro de

BH é o nosso. E nós ficamos mais importantes porque somos o

último mas temos a nossa televisãozinha particular, e eles não"64.

61 Depoimento de Rafaela Lima, membro da equipe técnica da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 62 Depoimento de Amaro, morador do Conjunto Paulo VI que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995). 63 Depoimento de Ivone, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

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64 Depoimento de Ivone, moradora do Ribeiro de Abreu que participou da TV Beira Linha (LIMA, 1995).

Page 65: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

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Conclusão

Mejía destaca que "o monopólio atual da comunicação de massa já detém um

saber construído ao longo de décadas, criando uma referência (de tratamento da

linguagem e acabamento dos produtos) no seu formato de programação. Os novos

espaços da mídia alternativa têm como perspectiva construir um saber próprio,

fundamentado em outra lógica (MEJÍA, 1993).

Percebemos que a TV Beira Linha ensaia uma lógica própria, uma prática de

TV "à moda da praça pública": realiza uma experiência televisiva local aberta ao

acesso comunitário; busca calcar seus procedimentos no contexto relacional (a

interação equipe técnica / comunidade); promove a capacitação dos moradores da

região interessados no uso expressivo do veículo; e cria um circuito de recepção

onde produtor e telespectador se confundem, e que extrapola os limites do consumo

doméstico - os programas da TV Beira Linha são tema de debate público.

Os elementos apontados na presente análise desta experiência parecem-nos

pistas iniciais para uma definição de TV comunitária e para a construção de um

saber próprio dessa TV "à moda da praça pública".

31

Page 66: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

66

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35

Page 70: Cultura Popular, Educação e Cidadania / Ensaios

70

ANEXO A

LISTA DE DEPOIMENTOS ANALISADOS NESTE TRABALHO

1. Marco Aurélio (morador do Ribeiro de Abreu; atuou como apresentador, ator e repórter da TV Beira Linha). 2. Ivone (moradora do Ribeiro de Abreu; atuou na equipe de produção da TV Beira Linha). 3. Afonso (morador do bairro Nazaré, atuou como ator na TV Beira Linha). 4. Mª Antônia (moradora do bairro Nazaré, atuou como atriz na TV Beira Linha). 5. Ronaldo (morador do bairro Nazaré, atuou como ator na TV Beira Linha). 6. Nélio (morador do bairro Acaiaca, atuou como produtor e repórter na TV Beira Linha). 7. Ramona (moradora do bairro Conjunto Paulo VI, atuou como apresentadora na TV Beira Linha). 8. Margarida (moradora do bairro Paulo VI, atuou na produção e deu depoimento em reportagem da TV Beira Linha). 9. Nélia (moradora do bairro Paulo VI, atuou na produção e deu depoimento em reportagem da TV Beira Linha). 10. Itamar (morador do bairro Ribeiro de Abreu, não atuou mas acompanhou o trabalho e os programas da TV Beira Linha). 11. Sandra (moradora no Ribeiro de Abreu e funcionária do Bar do Juninho, um dos pontos onde vizinhos reuniram-se para assistirem juntos os programas da TV Beira Linha). 12. Amaro (morador do bairro Conjunto Paulo VI, não atuou mas acompanhou o trabalho e os programas da TV Beira Linha). 13. Basília (moradora do Ribeiro de Abreu; atuou na equipe de produção e como atriz na TV Beira Linha). 14. Íris Nazaré (moradora no Conjunto Paulo VI e funcionária do Yesterday Bar, um dos pontos onde vizinhos reuniram-se para assistirem juntos os programas da TV Beira Linha). 15. Juninho (morador do Paulo VI e dono do Bar do Juninho, um dos pontos onde vizinhos reuniram-se para assistirem juntos os programas da TV Beira Linha). 16. Depoimento estagiário 1 (anônimo). 17. Depoimento estagiário 2 (anônimo). 18. Depoimento estagiário 3 (anônimo). 19. Depoimento estagiário 4 (anônimo). 20. Depoimento estagiário 5 (anônimo).

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21. Depoimento de Rafaela Lima, que atuou na coordenação da TV Beira Linha.

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ANEXO B EQUIPE TÉCNICA DA TV BEIRA LINHA

Coordenação Geral Breno Kuperman Rio de Janeiro - RJ Júlio Wainer São Paulo - SP Rafaela Lima Belo Horizonte - MG Noni Carvalho Rio de Janeiro - RJ Consultora Técnica (transmissão) Beth Formaggine Rio de Janeiro - RJ Produção Geral Fábia Lima Belo Horizonte - MG Apoio Técnico Cristina Santos Belo Horizonte - MG Equipe de reportagem e produção Técnicos Cynthia F. Camargo Santarém - PA Ilma Cristina Bittencourt Rodrigues Belém - PA Francisca Edileusa Nunes Dantas Natal - RN Hermano Figueiredo Mendes Natal - RN Rogério C. do Espírito Santo Salvador - BA

37

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Mauro de Souza Porto Alegre - RS Edmilson Molina de Oliveira Londrina - PR Gentil Rezende da Silva Júnior Florianópolis - SC Verena Glass Francisco Beltrão - PR Mariá do Espírito Santo Soares Palmas - TO Mauro Antônio de Almeida Goiânia - GO Tobias da Silva Barreto Brasília - DF André Alves Neto Vilha Velha - ES Daniel Caetano Rio de Janeiro - RJ Iracema Santos Nascimento São Paulo - SP Marcelo Pinto Vieira Rio de Janeiro - RJ Patrícia de Castro Furtado Ubá - MG João Luiz Paulino Dornelas Belo Horizonte - MG Estagiários Adriana Paula da Silva TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG Ana Tereza Brandão TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG

38

Branca Machado TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG

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73

Clarisse Alvarenga TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG Denise Barra Vieira TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG Fabíola Caixeta Sanches TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG Henrique Castanheira TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG Isabel Moura TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG Miriam Souza Alves TV Sala de Espera - Belo Horizonte - MG

39

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