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OpçãO Cultural Jornal Opção Rua 26, nº 85, Quadra G-13 Lote 17, Setor Marista Goiânia, Goiás. CEP: 74150-080. www.jornalopcao.com.br Email: [email protected] FONE/FAX: (0XX62) 3241-4245 Edi tor: Carlos Willian Leite [email protected] GOIÂNIA, DE 7 A 13 DE DEZEMBRO DE 2014 LIVRO O cinema se enxerga CARLOS WILLIAN LEITE F oucault partiu de Borges para contrariar “as fami- liaridades do pensamen- to” no livro “As Pa l avras e as Coisas”. Seu texto so bre o quadro “Las Meninas”, de Velás- quez, e as joias de Roland Barthes em “Me tamorfoses”, impulsionam os ensaios de “Todo Filme é Sobre Cinema” (Editora Unisinos, Coleção Aldus, 136 pgs, 2014), de Nei Duclós, que reúne a ponta de um iceberg: o trabalho quase diário de abordagens sobre o cinema ao longo de mais de dez anos. O livro é um síntese dos vários textos que pontuam as redes sociais desde 2003, dos quais muitos já foram publicados aqui no Jornal Opção. Trata-se de uma ousadia autoral. Cansado da mesmice das resenhas cinematográficas, que costumam oscilar entre as curiosidades e os interesses do marketing, de um lado, e a pompa seletiva dos exage- ros retóricos cevados em academia, de outro, o escritor e jornalis- ta decidiu encontrar sua própria forma de enxergar o cine- ma. Apoiado em sua formação escolar (cursou História pela USP), que o ensinou a ler um documento pelo que mostra e não pelo que imaginamos, e a vivência (vê filmes desde os cinco anos de idade — atualmente tem 66), Duclós encon- trou um tipo ideal para decifrar as obras da sétima arte: a de que ela é voltada para si mesma e se basta. Como diz Jean-Luc Godard na epígrafe do livro: “Como a estrela do mar que se abre e fecha , os fil- mes mais belos sabem como ofe- recer e esconder o segredo de um mundo em que eles são os únicos e fascinantes depositários de refle- xão. A verdade é a sua verdade . Eles se carregam profundamente dentro deles mesmo, e ainda assim a tela rasga cada plano para semear ao vento. Dizer que são os mais belos filmes , diz tudo. Por quê? Porque é assim. E esse raciocí- nio infantil, só o cine- ma sozinho “Todo Filme É Sobre Cinema”, é a seleta do trabalho autoral de Nei Duclós sobre obras e protagonistas de uma arte voltada para si mesma Nei Duclós: abordagem pessoal sobre filmes, cineastas, gêneros e atores Divulgação

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Resenha do livro "Todo filme é sobre cinema de Nei Duclós

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  • OpOCulturalJor nal Op oRua 26, n 85, Qua dra G-13

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    FO NE/FAX: (0XX62) 3241-4245Edi tor: Car los Wil li an Lei te

    car loswil li [email protected] I NIA, DE 7 A 13 DE DEZEMBRO DE 2014

    LIVRO

    O cinema se enxerga

    CARLOS WILLIAN LEITE

    Foucault partiu de Borgespara contrariar as fami-liaridades do pensamen-to no livro As Pa lavrase as Coisas. Seu texto so bre oquadro Las Meninas, de Vels -quez, e as joias de Roland Barthesem Me tamorfoses, impulsionamos ensaios de Todo Filme SobreCinema (Editora Unisinos,Coleo Aldus, 136 pgs, 2014), deNei Ducls, que rene a ponta deum iceberg: o trabalho quase diriode abordagens sobre o cinema aolongo de mais de dez anos. O livro um sntese dos vrios textos quepontuam as redes sociais desde2003, dos quais muitos j forampublicados aqui no Jornal Opo.

    Trata-se de uma ousadia autoral.Cansado da mesmice das resenhascinematogrficas, que costumamoscilar entre as curiosidades e osinteresses do marketing, de umlado, e a pompa seletiva dos exage-ros retricos cevados em academia,de outro, o escritor e jornalis-ta decidiu encontrar sua

    prpria forma de enxergar o cine-ma. Apoiado em sua formaoescolar (cursou Histria pela USP),que o ensinou a ler um documentopelo que mostra e no pelo queimaginamos, e a vivncia (v filmesdesde os cinco anos de idade atualmente tem 66), Ducls encon-trou um tipo ideal para decifrar asobras da stima arte: a de que ela voltada para si mesma e se basta.

    Como diz Jean-Luc Godard naepgrafe do livro: Como a estrelado mar que se abre e fecha , os fil-mes mais belos sabem como ofe-recer e esconder o segredo de ummundo em que eles so os nicos efascinantes depositrios de refle-xo. A verdade a sua verdade .Eles se carregam profundamentedentro deles mesmo, e ainda assima tela rasga cada plano para semearao vento. Dizer que so os maisbelos filmes , diz tudo. Por qu?Porque assim. E esse racioc-nio infantil, s o cine-ma sozinho

    Todo Filme Sobre Cinema, aseleta do trabalho autoral de NeiDucls sobre obras e protagonistas deuma arte voltada para si mesma

    Nei Ducls:abordagempessoal sobrefilmes, cineastas,gneros e atores

    Divulgao

  • Todo filme sobre cinema.Um Longo Caminho (2005), diri-gido por Zhang Yimou e com KenTakakura e um elenco de atoresamadores, no foge regra. Amorte, nessa obra, representadapela ausncia da indstria audiovi-sual na vida dos personagens. Ovelho, que depois de perder amulher se recolhe a uma aldeia depescadores, no tem sequer televi-so. Sua tela, a natureza, que atraisua ateno durante horas, aextrema solido de um mundo semcinema. Ele s existe porque estsendo filmado por Yimou, cineastadeslumbrante de vrios sucessos.

    O personagem Takata, que aose recolher exclui o filho do seuconvvio, quer resgatar essa rela-o familiar tarde demais. O filho,que sofre de doena terminal,nem aparece, portanto est prati-camente morto. Subsiste suamemria, um vdeo sobre sua pai-xo pelas peras chinesas. E estas,recolhidas numa aldeia distante eno presdio, s existiro nomomento em que forem filmadas.

    A histria sobre o longo per-curso do protagonista para conse-guir filmar uma pera prometidapelo cantor. Como ele conseguirseu objetivo? Por meio do cinema.S quando ele grava um depoi-mento para o diretor da priso,sobre sua necessidade de focar apera com determinado intrprete,que est preso, que as portas seabrem. Mas a operao se compli-ca. O cantor, por sua vez, precisaver o filho, de cinco anos, que nemchegou a conhecer.

    Takata ento vai at a aldeia efotografa o menino, para mostrarao pai. O velho precisava da perapara resgatar uma relao perdida.Como acontece o desenlace (adoena terminal enfim vence abatalha) no meio da viagem, seuintento perde o sentido. O queresta apenas mostrar as fotos dogaroto para o pai presidirio.

    A responsabilidade de filmarescapa assim do indivduo e empalmada pela coletividade, poisagora todos os que se envolveramcom a histria do velho queremque ele consuma sua inteno. Elecede diante das presses e o quevemos ento a pera filmada.Mas filmada por quem? Pelo prota-gonista, sim, mas principalmente

    por Yimou. O cineasta assume opapel da coletividade e faz do seucinema uma arte coletiva.

    Yimou busca as origens do cine-ma, seu sentido. Para que fazer fil-mes? Para que a coletividade seenxergue e assim no morra. Paraque serve um cineasta? Para instru-mentar a sociedade com essa artecompleta, o cinema, e assim garantir

    a identidade, a herana. J que a rela-o entre pai e filho se esgarou, jque a famlia se perdeu, j que nosomos mais naes, mas amontoa-dos de gente em luta pela sobrevi-vncia a qualquer custo, resta aocinema recuperar esse convvio eisso s se consegue por meio daimagem e do som, por meio da sti-ma arte. (Nei Ducls)

    A - 2 JornalOpo w Go i nia, de 7 a 13 de dezembro de 2014OP O CUL TU RAL

    pode dar ao luxo de us-lo semsentir vergonha. Por qu? Porque o cinema . E o cinema est contidoem si prprio.

    Ou o prprio Nei Ducls emensaio publicado no Jor nal Opoem 2012: Toda vez que a cmaraaponta para o alvo obedecendo aum roteiro, uma edio, a uma nar-rativa, est enfocando a arte em simesma, no caso, o cinema. Pode serfilme de qualquer gnero, dimensoou poca, sempre haver esse focodirecionado. No para um supostocontedo, como drama, memria,guerra ou poesia, mas sempre ocinema cumprindo sua funo. Poisno se trata de imprios, cidades,heris ou viles, mas a maneiracomo foi criada a soluo audiovi-sual para chegar ao espectador.

    um vis terico passvel decrtica, mas como todo tipo ideal,ajuda a decifrar o objeto, que sem-pre inacessvel em sua totalidade.Podemos nos aproximar dele namedida em que encontramos pistasde sua coerncia. Longe do lugarcomum, o cinema que se v achave para entendermos o trabalhode cineastas, roteiristas e intrpretes.

    Como dito no incio do livro,todo fil me tem autoconscinciasobre a arte a qual pertence e volta-se para ela de maneira recorrente eobsessiva. E a linguagem que usa sempre identificvel como perten-

    cente a essa arte, jamais se confun-dindo com as representaes suge-ridas em cada fragmento. H, por-tanto, uma coerncia confirmadaque cruza o tempo, apesar da enor-me diversidade de autores e obras.Esse enfoque afasta este lanamen-to dos guias cinematogrficos oudas resenhas tradicionais, que ficama reboque dos argumentos e rotei-ros. Aqui o texto manda e o filme,com ou sem juzo, obedece. Porqueno se trata de cinema, mas de pala-vra. Isto no um festival, apenasa eleio autoral de filmes que con-quistaram o direito de serem abor-dados fora dos parmetros conheci-dos, apesar de o autor ter se forma-do na leitura decana dos especialis-tas mais importantes. um exerc-cio de liberdade, que usa os recur-sos da literatura e do ensaio.

    O jornalista Wagner Carelli, emcrtica publicada no blog do autor,mostrou alguns destaques do livro,como a abundncia de temas docinema e de modos de v-lo; o tra-tamento narrativo, mais que crtico,desses temas, que obedece a todasas Seis Propostas Para o PrximoMilnio (este milnio, j), de ItaloCalvino: leveza, rapidez, exatido,visibilidade, multiplicidade e asexta, que ele no chegou a desen-volver, consistncia (alis, essesteus ensaios crticos esto para oensasmo como, por exemplo,

    Cidades Invisveis est para a fic-o); as caixinhas de texto-jade, cla-ras e brilhantes, todas do mesmo epreciso tamanho, todas igualmentelapidadas com paixo cuidadosa,em que vm embalados os ensaioscrticos, e a fidelidade rigorosa,sempre observada, com que vocse atm ao teu corao ao construiressas caixinhas, que no quer vertransformadas em bibels, mas nasrespostas nicas que s podem daro corao de cada um ao verter deum filme sobre ele.

    Este o primeiro livro deensaios de Nei Ducls, que come-ou sua carreira literria com a poe-sia e depois partiu para o romance,o conto e a crnica. Com textospublicados nos mais importantesveculos do pas, como Veja,Isto, Folha de S. Paulo,Estado de S. Paulo, alm devrias incurses na imprensa espe-cializada e alternativa desde os anos1970, o jornalista e escritor se inse-re entre os inconformados com osrumos do jornalismo brasileiro epor isso usa as mdias digitais paraexpressar sua diversidade de abor-dagens. Trata-se de um autor on-voro, que trafega em muitos gne-ros e tem, entre seus 17 livrospublicados, impressos e e-books,uma amplido autoral que exigeateno e anlise. A seguir, algunstextos do livro.

    Intrprete Nei Ducls

    Pre o R$ 24,00 Unisinos

    TODO FILME SOBRE CINEMA

    EM BUSCA DAS ORIGENS

    Cena de Um LongoCaminho, dirigidopor Zhang Yimou

    Sony Pictures

  • A - 3JornalOpo w Go i nia, de 7 a 13 de dezembro de 2014 OP O CUL TU RAL

    Implico com a crtica de cine-ma que tenta devorar a obra dearte como se fosse um chocolateno armrio, um bibel de acarna estante, um objeto de consumopessoal. No . Costuma ser trata-da como tal. Chega-se at a enfei-t-la para adquirir mais valor,especialmente o intelectual, a posede sabedoria em relao ao quefoi feito com maestria. O queconta no a posse sobre qual-quer objeto que contenha a obra,a exibio de conhecimentos eru-ditos ou rasteiros, mas o resgatefeito pela memria e a criao.

    Um filme nos acompanhacomo um anjo da guarda, e setransforma em algo completamen-te diverso do que vemos escritosobre ele. Sorte que vivemos napoca do Google, em que tudopode ser pesquisado. fcil sabero que disseram Franois Truffautou Rogrio Sganzerla sobreHatari!, de Howard Hawks. Eu

    prefiro v-lo do meu jeito. Suaestrutura narrativa pode ser com-parada a um cristal dividido emgomos luminosos, que confluempara o mesmo ponto. Cada gomo um captulo da aventura narradae o ponto comum (e final) oamor que se concretiza entre seresdesenraizados.

    As palavras no trazem o filmede volta, nem fazem justia ao queele (a obra como foi concebida erealizada). Podemos apenas lem-br-lo com nosso verbo escasso,depois de v-lo, sem cansar, maisde um milho de vezes. A capturade animais selvagens na frica uma frase que nada diz sobreHatari!. algo diverso. acomposio musical de uma saga,em que o alvo (o animal que pre-cisa ser agarrado para o zoolgi-co) impe o ritmo e o perfil danarrativa. Assim, o filme torna-seveloz quando os caadores tentampegar o felino, perigoso quando o

    jipe provoca o rinoceronte, cmi-co quando se trata de enredardezenas de macacos com a ajudade um especialista em fogos deartifcio (Red Buttons, comoPockets, antolgico). Cada captura(o gomo do cristal) um primorde estratgia. E as relaes huma-nas (um grupo de homens que v-se surpreendido pela fotgrafavinda de longe) rolam num ac-mulo permanente de algo que notem lugar naquele safri, os senti-mentos (h apenas camaradagem,inevitvel quando qualquer grupoenfrenta o perigo).

    O amor se manifesta sem serconvocado e usa a chantagempara se consumar. A sequnciafinal, em que todos os animaisse soltam, pode ser vista como arepresentao dessa manada deemoes guardadas dentro dospersonagens, que diante daperda desandam como avalan-che. (Nei Ducls)

    A cena mais importante do filme deSteven Spielberg, War Horse (2011), quando o soldado, de olhos vendadospor ter se ferido com o gs da I GrandeGuerra, identifica seu cavalo por algunssinais particulares, que ele tem dememria. Esses sinais quatro patasbrancas e uma mancha da mesma corna testa estavam ocultos pela lama eo sangue, j que o animal fora resgatadode uma armadilha de arame farpado noterritrio de onde ningum saa vivo, oque fica entre duas trincheiras inimigas.

    A memria do soldado provisoria-mente cego (sem o sentido fundamen-tal do cinema, portanto) salva o cavalodo extermnio, pois seria sacrificadopor estar com a perna ferida comameaa de ttano. Ter encontradoquem o criou no interior da Amricasensibiliza os matadores, a equipemdica no front. A memria substituios olhos: esse o filme que passa den-tro de ns. o que conta.

    Por sua vez, o filme uma antologiamemorvel do cinema. Nele estorepresentados obras inesquecveis degrandes cineastas, desde David Lean o paradigma de Spielberg desde suaadolescncia, quando viu Lawrence daArbia e decidiu ser cineasta pas-sando por Tony Richardson que filmouem 1968 A Carga da Brigada Ligeira(episdio que uma das ncoras deWar Horse) at chegar ao Chaplin deOmbro, Armas. E h o desfechofundado no paradigma das imagensborradas do crepsculo de E o VentoLevou, de Victor Fleming e na cena davolta casa, totalmente fundada emThe Searchers, de John Ford.

    Steven no apenas cita, incorpo-ra. Encarna a linhagem maior dacultura cinematogrfica e nos traz tona a importncia da memriacomo fundamento de ideias e prin-cpios, como paz, honra, nao,famlia e glria. (Nei Ducls)

    Glauber Rocha o tempo presenteamaldioado pela histria. Sua prega-o feita no deserto (rural em Deuse o Diabo na Terra do Sol, de 1964,urbano em Terra em Transe, de1967) porque o deserto, pela ausncia,destaca o humano entregue ao horrordas contradies. Nele, a palavraincorpora o futuro quando murmu-rada pela fria, e elimina a esperanapara repor a verdade. No h, no cine-ma mundial, nada que se compare aomaremoto dessa criao sem limites,que nos abate em ondas toda vez quevemos a imagens que produziu, comose o delrio fosse nossa nica realidadee a guerra nosso destino. Glauberassume o que h de pior na cordialida-de brasileira, esse comportamentociclotmico ditado pelo corao. Elecolocou a vontade no crebro cozi-nhado pelo fogo e nos encara com o

    gnio do seu carisma.Glauber nos tortura com o longo

    assassinato de uma criana nas mosdo beato negro e nos coloca sob acapa horripilante de Antonio dasMortes. Qual a profecia desse cinema?A de que estamos condenados peloque somos e morreremos na guerraque nosso dio e nossa vergonha pro-duziu. Glauber nos desperta pelosusto e corta nossas cabeas. Seu infer-no o Brasil, pas que tenta decifrarfilmando seu avesso. Estvamos aindaembalados pelas alegres comdias daAtlntida quando o sol tomou contada tela e havia sangue nela. Os tirosfajutos do faroeste americano sumi-ram quando Glauber engatilhou o riflede sua saga. Jamais haveria SamPeckinpah com seus massacres emcmara lenta se antes Glauber notivesse destrudo as solues bem

    comportadas da violncia. Glauber bebeu em fontes diversas

    para compor sua trama. Repro duziu osplanos das procisses de A Fonte daDonzela, de Ingmar Ber gman, e doLa Strada, de Fellini. Bebeu em Arvore dos Enfor ca dos, de DelmerDaves. Nesse filme, Glauber retirou ovisual do seu Antonio das Mortes (acapa at o cho, o chapu, a arma), ins-pirado no mendigo encarnado porGeorge C. Scott (visual que foi chupa-do at o osso, no de Daves, mas deGlau ber, por Sergio Leone). Glauberti nha bebido em Terra Trema, deVis conti para filmar seu Barravento.

    Foi morto pela indiferena doscontemporneos, pois tudo Glauberpoderia aguentar, menos a esperaansiosa dos outros pela sua morte pre-matura. Ento foi-se, carregado pelasua mensagem. (Nei Ducls)

    HATARI, A NARRATIVA DE CRISTAL

    WAR HORSE: A MEMRIA ENXERGA

    GLAUBER, A PROFECIA NO DESERTO

    Glauber Rocha: o delrio como nica realidade e a guerra como destino

    Cena de WarHorse, dirigido porSteven Spielberg

    Cena de Hatari!, dirigido Howard Hawks

    New-Line

    Walt Disney Pictures

    IMDb

  • A - 4 JornalOpo w Go i nia, de 7 a 13 de dezembro de 2014OP O CUL TU RAL

    Romancestravestidosde contos

    LIVRO

    SRGIO TAVARESEspecial para o Jornal Opo

    inquietante nos darmosconta de que a escritoraAlice Munro s comeoua tomar presena no ima-ginrio literrio brasileiro aos 82anos. Foi com essa idade que a cana-dense recebeu o prmio Nobel deLiteratura, fato visto com surpresapois, em sua bibliografia, constamapenas volumes de contos, um gne-ro que no desperta preferncia noscatlogos das grandes editoras, que odiga as dessa banda do continente.

    Mas o Nobel, a distino su pre -ma para um autor, e os livros deMunro comearam a circular comintensidade para recrutar a atenodos crticos. Entre os olhares atencio-sos, somavam-se aqueles que distin-guiam a complexidade de sua tessitu-ra literria, capaz de acomodar, naforma breve, a densidade do roman-ce. Contos maisculos que extrapo-lam os limites paginados. E, a essaamplitude narrativa, era comum olamento de que os ttulos de Munrofossem aqui uma luz projetada, e noraios que se espraiavam no temporeal de suas translaes.

    Ocorre que os leitores brasilei-ros tm, agora, a chance de pre-senciar o surgir de uma aurora nalinha que tensiona o nosso hori-zonte. Essa a impresso quecausa a leitura dos contos de TerSaudade Era Bom, de MoemaVilela. Antes de seguirmos com otexto, porm, necessrio ressal-tar que no h qualquer propsitoinsensato de equivaler as autoras.O que h, de fato, um contenta-mento por descobrir uma jovemescritora que, em sua estreia, nobusque sadas fceis para temasbatidos ou tenha a parvuleza de seconvencer que esteja renovandoum gnero. O poder das narrati-vas de Moema est em suas cons-trues. Na habilidade com quebem elabora o universo dos per-sonagens principais, deixando-oacessvel incidncia de outrashistrias, de modo a atingir umefeito plurinucleado semelhanteao dos textos de Munro. Tramasque compartimentam tramas.

    Permanece a sensao de secaminhar por uma estrada flan-queada por lminas de uma cerca,cujas frestas possibilitam a visorestrita de outros cenrios quecarecem da imaginao para se

    expandir. Na verdade, o leitorparece embarcar numa trama jem curso, que vai desvelandomomentos pretritos e futurossem esgot-los ou iluminar suasreas por completo. Tudo aber-to, multifrio e insinuante; o que fantstico! A comear por seruma antologia que dispensa a coe-so temtica, o dever de comuni-cao entre os contos que a com-pem. No h dever algum, afinal.Seja com o gnero, com a lineari-

    dade da prosa, com o efeito lin-gustico. A literatura basta, paraMoema, exercit-la; o incio, omeio e o fim, livre de ordem.

    O mesmo carter indistintovale para as influncias, que evo-cam tantos nomes, fazendo bemo resenhista ficar no campomovedio das impresses. H umqu de Raymond Carver, deClarice Lispector, de JohnCheveer, de Thomas Pynchon, deAlice Munro, de tantos outros.Esto no alicerce, no acabamento,nos cacos de outras histrias, nasmenes. Aqui, o autor e o livroso a soma dessas singularidadesestticas, que conformam ummosaico mutvel onde coexistemrelaes familiares, conflitoshumanos, tragicomdia, nonsense,relatos factuais.

    Fotografias, por exemplo,emula uma aliana entre histria efico, ao rememorar o dramavivido pelos chilenos soterradosno acidente da mina de San Jos,em 2010. A mesma inteno deesbarrar na realidade embalaQuando voc volta? e Os de sa -parecidos de Zhelaniea, que con-voca fantasmas da ditadura militar.J Com carinho e sinceridade,

    muitos beijos e beijinhos, em suaestrutura simples constituda portrocas de e-mails, evidencia a capaci-dade da autora de construir e de dis-tinguir personagens apenas pela fle-xo da linguagem.

    No meio do livro, ento, est oconto que mais se diferencia doconjunto, ainda que concentre oesprito criativo da antologia. Areconstruo uma ode s narrati-vas de fico cientfica, interligandoelementos sensoriais, distopia e flu-xos onricos num estudo da perda eda melancolia. A busca pelo intan-gvel, um tempo que os dedos ten-tam arrastar o tecido, porm no semove, pois espesso demais, com-plexo. Como afirmou, certa vez,Munro: A complexidade das coisas coisas dentro de coisas sim-plesmente parece sem fim. Nada fcil, nada simples. E isso no mau, quando se refere manufaturadas palavras com percia artstica, odomnio tcnico em prol de umaliteratura original. Ter Saudade EraBom prova disso, seus contoscom densidade romanesca so.

    Srgio Tavares jornalista e escritor, autorde Queda da Prpria Altura eCavala, vencedor do Prmio Sesc.

    Na coletnea Ter Saudade EraBom, Moema Vilela acomoda nasformas breves a densidade criativadas narrativas longas

    Moema Vilela busca umaoriginalidade narrativa pormeio de contos que primampela complexidade estrutural

    Wordpress

    Autora Moema Vilela

    Pre o R$ 25,00 Dublinense

    TER SAUDADE ERA BOM

  • A - 5JornalOpo w Go i nia, de 7 a 13 de dezembro de 2014 OP O CUL TU RAL

    On the road ou uma pequena prece para Kerouac

    CONTO

    CRISTIANO DEVERAS

    Era novamente eu e aestrada. A vastido donada frente e a mesmi-ce do que ficou para trs,os horizontes que atravessavam asjanelas do veculo, celerados, assusta-dos e velozes. No, acho que era euquem corria demais. O p direitoafundado no acelerador me davauma vaga suspeita disso.

    Tentei lembrar-me o que haviame levado ali: a) um ano dedicadoaos estudos e um concurso que nofim das contas, no deu em nada; oque leva invariavelmente a um b),estar to deslocado no seu prprioeixo, devido ao isolamento paraestudo e s profundas meditaestranscendentais e sem sentido, que amelhor forma de se recolocar sairpor um tempo e depois voltar, acer-tadamente ao seu lugar, ou fingindometodicamente estar.

    Ento, meu irmo fechou anima-damente um negcio com umprimo meio trambiqueiro, que morano extremo norte do Estado. Erapara trazer um carro para minhame, um Honda Civic 2007, comtodos os apetrechos que um carrodeste porte deve ter. O transporta-dor seria eu, que iria de nibus e vol-taria guiando. No me perderei nes-tes detalhes. At porque no lembromuito bem de nada depois disso. Fuicolocado ou direcionado ao meuassento no banco do nibus poralgum funcionrio da viao; comohouve um senhor atraso no embar-que, passei meu tempo ocioso nalanchonete mais prxima do embar-cadouro, cervejas e whiskys falsifica-dos me fazendo companhia. Podemno ser as melhores companhias domundo, mas te ajudam a passar otempo. Da que a ida foi um sonocontnuo, uniforme e vomitado.Acredito que ganhei alguma antipa-tia dos outros passageiros. Talveztenha tido isso do motorista tam-bm, a contar pelo jeito que meempurrou porta afora, quando che-gamos na cidade do meu destino. E que destino! exclamei.

    Sob um calor de no mnimocento e cinquenta graus, a rua princi-pal esturricava abandonada. Olheiquase no fim dela e vi a garagem demeu primo, ao lado de um agradvelbotequim, um osis de calma e bele-za rodeado de palmeiras Melhorpegar o tal carro e me arrancardaqui, ou corria o risco de ganharrazes profundas.

    Cheguei com cara da ressacaencarnada, ainda no havia comidonada, depois de uma noite de sola-vancos e sonhos entrecortados.

    Carlos, o parente vendedor de ve-culos, me deu um abrao maisfalso que uma moeda de doisreais:

    Grande Juliano! Como que t o cara mais famoso dafamlia Werneck?

    At que vou bem, mas nosou o mais famoso: o primo Alceu quem t bombando nas manche-tes agora, depois daquele caso dedesvio de dinheiro pblico.

    Ah, mas isso ficha. Empouco tempo o povo esquecedisso, vai por mim. Mas no teucaso, voc um artista, um escri-tor, da que no d para esquecer.

    Isso se voc escrever.Como no ando escrevendo,dane-se. este o carro?

    Ele fez um sim desconfiado,como uma raposa na porta dogalinheiro. Deixei que o desdmdo meu olhar demonstrasse queno me animei nada com o esco-lhido. Olhei em volta e todos osoutros automveis tinham omesmo rano esttico; vriosoutros sedans alinhados, junta-mente com alguns hatchs econ-micos e algumas pick-ups mons-truosas. Nenhum conversvel,nenhuma motocicleta endiabrada,nenhum escape de duas ou quatrorodas. Foi ento que o vi. Paradono canto, me chamando, quaseordenando que o ligasse. Era umcarro de sonho. Na verdade, umalenda. Deixei o escolhido de lado.

    Roda? O qu, aquele ali? Voc

    deve estar brincando, no parasua me?

    , mas a gente divide ocarro. Da que acho que aquele ali perfeito. Pega a chave.

    Girei o segredo no tambor esenti o motor explodir: aquilo sim, que era o som verdadeiro deuma engrenagem em movimento,o bom e velho carburador, noaquela coisa insossa da injeo ele-trnica. O barulho do motor meimpedia de ouvir o que meuprimo teimava em gritar ao ladodo carro. Ele apontava algumacoisa para dentro do veculo e eusomente acenava a cabea, sorrin-do maquiavelicamente como seentendesse tudo. Por fim, ele seaproximou e disse:

    ... Fora isso, t tudo beleza.Fiz o motor, o cmbio e a suspen-

    so, o bicho t tinindo! Mas aindaacho melhor voc coloc-lo emuma cegonha ou lev-lo sobre umcaminho.

    E perder o melhor dafesta? Nem na bala.

    Acertei a papelada com Carlos,comi alguma coisa que pedimosdiretamente do botequim e come-cei o meu retorno para casa. Novia a hora de cortar o espao comaquela mquina. Atravessei a cida-de com controlada ansiedade,louco para chegar na rodovia ecomear verdadeiramente a rodar.Quando as rodas de liga levecomearam a desfilar na estrada,vi o brilho do olhar dos fs demotores chegando a corroer asfortes latarias. Meu ser comeou ase integrar com o veculo logoaps os oitenta por hora. Senti ovolante se tornar uma extenso de

    minhas mos e os pedais gruda-rem-se aos meus ps, o coraocorrendo em unssono com omotor e minha fora sendo trans-mitida pela transmisso daquelecarro dos sonhos.

    Era novamente eu e a estrada.Foi quando percebi o que meuprimo tentara desesperadamenteme mostrar. O painel de instru-mentos, vez por outra perdia ocontato, ficando esttico, sem for-necer informao nenhuma. Istome fez gostar ainda mais daquelecarro, pois suas falhas em muitose assemelhavam s minhas: semmarcador de RPM, nem ele nemeu sabemos a prpria fora oupotncia; isto geralmente atrapa-lha muito coisa, seja em um aclive

    acentuado ou em um relaciona-mento conturbado; sem o contro-le do combustvel, nunca sabemosat onde teremos gs para poder-mos ir, seja na estrada ou na vida,mas dane-se, quem perde tempocom isso? Um dia tudo acabamesmo. A falta do velocmetrome impede de saber a que veloci-dade estou indo, mas algo dentrode mim me assegura que estouindo no tempo certo, no momen-to exato, e que em mais ou menostempo chegarei em algum lugar; ja falta do marcador de temperatu-ra grave, pois assim como omotor pode fundir devido aoexcesso de calor, sua falta na vidanos deixa sem saber se nossasrelaes esto prximas da ebuli-o ou em total e completo con-gelamento.

    Todas estas conjecturas aju-

    dam a despertar mais uma compa-nheira de viagem que me acompa-nha desde muito. Minha velha econhecida sinusite. A dor que seespalha pela cabea se assemelha amilhares de pequenas e pontiagudasfacas distribudas pelo crnio, comuma raiz profunda que desce pordetrs do olho direito e se esgueirapela orelha, chegando a sussurrarcoisas obscenas em meu ouvido;no tomo analgsicos pois eles cau-sam dependncia e a pior coisa domundo estar dependente (de algoou de algum). Por esta razo meapeguei a esta dor como um nufra-go a uma tbua.

    Mas acho que me enganei. Apior coisa do mundo no a depen-dncia, mas sim viver frustrado. pior que morrer duas vezes; umaporque se sabe que ainda vai mor-rer, outra, porque realmente todo osentido da vida se esvai com aquelaimagem de quem voc deveria tersido. Neste exato momento vejo umeu bem sucedido sentado no bancodetrs, rindo amigavelmente paramim, tentando me passar algumaconfiana. Foda-se.

    Enquanto devoro quilmetrosrodas abaixo, com o pensamentosolto e livre, tentando decifrar ocdigo secreto da vida, ao lado sem-pre aparece um ou outro apressadi-nho tentando apostar corrida comi-go; ao adentrar um carro poderoso(ou se destacar de qualquer outramaneira) voc sempre ver as pes-soas (pelo menos as pessoas maisidiotas) te chamarem para um racha,uma aposta ou uma desafio qual-quer. Ao no aceitar, estaro todoste avaliando por questes de valentiaou medo, mas ningum (salvo rarasexcees) perceber que no proce-deu daquela forma justamente parano fazer aquilo que as pessoasesperem que voc faa.

    Acredito que exatamente porisso que trouxe este maravilhosoMaverick V8, e no o tal Honda...Apesar de meu irmo quase terenfartado, fico sempre tocado aosaber que minha me , aos quasesessenta anos de idade, a feliz pro-prietria de um autntico muscle car.E sinto-me como um garotinho,toda vez que Mame, dirigindo seuV-oito pelas ruas, vai me buscar emmais um sarau de poesia, enquantovou bebericando meu Jack Danielsmadrugada afora... A lei seca podeter me privado de um dos meus pas-satempos prediletos (direo briaps encontro literrio), mas aomenos serviu para melhorar meurelacionamento familiar.

    Cristiano Deveras escritor.

    Wordpress

    M. File

  • A - 6 JornalOpo w Go i nia, de 7 a 13 de dezembro de 2014OP O CUL TU RAL

    A histria na poca das tcnicas de reproduo digital

    ENSAIO

    LEONARDO CARMOEspecial para o Jornal Opo

    Adivulgao do trailer deJurassic World: OMundo dos Dinossau -ros dando seguimento milionria franquia do empreendi-mento de John Hammond, colocaentre outras questes: o crtico emsua tarefa pode sentir uma emooesttica da descoberta? CharlesBaudelaire definia a poesia comoaquilo que h de mais real, isto ,como aquilo que s cabalmenteverdadeiro em outra dimenso.Com isso quero dizer que a anlisede produes de dimenses maciascomo o caso desse filme requeroutro instrumental para alm doartstico e do esttico. Esse instru-mental est na obra do filsofoWalter Benjamin em sua teoriasobre a obra de arte na poca desuas tcnicas de reproduo ou demaneira mais direta na obra de artetecnicamente reproduzida. Pode -mos deslocar para a anlise flmica apolmica de Benjamin contra ahidra da esttica escolar com suassete cabeas: criatividade, empatia,intemporalidade, recriao, vivnciacompartilhada, iluso e gozo artsti-co. A isso Benjamin denuncia comoo falso universalismo do mtodo dahistria cultural. Essas categoriasdevem ser substitudas por outrasmais adequadas reproduo daobra de arte. Propaganda, publicida-de, difuso macia, politizao daarte que no o mesmo que par-tidarizao da arte, oposta portanto esttica fascista e essa politiza-o ganha maior ou menor eficciaexatamente nas atuais condies desuas tcnicas de produo. No caso,nos encontramos na poca dareproduo da obra de arte digitali-zada. O mundo jurssico umencontro fantasmagrico entre oreal e o virtual, uma aventura cine-matogrfica mais audaciosa que ainsossa srie Matrix, falsa promes-sa de emancipao que no entantofez a cabea de muitos intelectuaiscomo um ensaio da visita alegri-ca caverna de Plato. A arte digitali-zada ainda vista como suspeita deser autentica e originalmente obrade arte. Mesmo no meio ambienteacadmico que aplaude as mobi-lizaes polticas via Facebook, porexemplo, h poucos interessados eminvestigar as relaes entre arte etecnologia.

    Uma delas Margot Lovejoy,professora do programa deIntermdia da State University ofNew York. Ela rebate as crticas deexausto da arte hoje e demonstracomo em alguns dos mais radicais

    A introduo da mquina causou mudanas nomodo como as pessoas viviam. Toda uma

    infraestrutura tecnolgica comeou a crescer aoredor delas. Isso fez com que alguns historiadores ecrticos de arte vissem que no eram s os tempos

    que estava mudando em decorrncia datecnologia, mas a nossa prpria conscincia

    artistas norte-americanos estousando tecnologias como vdeos ecomputadores para criar uma artebela, expressiva e crtica de nossotempo, numa convergncia cadavez maior entre a arte e a cincia.Em suas pesquisas Margot Lovejoypergunta sobre qual o papel daarte hoje e quanto ela mudou, efelizmente continua a mudar, comas transformaes tecnolgicas, quemodificaram a ideia das pessoassobre arte. Hoje mal tempos tempopara assimilar as mudanas, queesto ocorrendo cada vez mais rpi-das. A fase atual totalmente dife-rente da Renascena. A introduoda mquina causou mudanas nomodo como as pessoas viviam, eelas esto cada vez mais habitandoas cidades. Por isso, toda uma infra-estrutura tecnolgica comeou acrescer ao redor delas. Isso fez comque alguns historiadores e crticosde arte vissem que no eram s ostempos que estava mudando emdecorrncia da tecnologia, mas anossa prpria conscincia.

    Margot Lovejoy, afirma queBenjamin virou uma espcie depalavra-chave para toda essa discus-so porque ele ainda um dos pou-cos escritores que realmente sabemcomo tratar de questes culturais.Os historiadores de arte normal-mente abordam a arte de modo aamputarem de seu tempo e delugar. A famosa intemporalidade.Para ela, alm disso, Benjamin per-cebia nas discusses sobre arteuma supresso da cultura popular,um foco limitado, um desprezomesmo daquilo que era chamadode arte comercial. Arte cinemato-grfica o termo que Benjamin uti-liza superando a diviso entreautenticidade e originalidade versuscomercialismo. A discusso no ocinema como arte mas, a tcnicacinematogrfica. Nos termos deDetlev Schttker, professor daUniversidade Tcnica de Dresden,Benjamin empreendeu uma revisocrtica da esttica filosfica porqueo seu interesse no era primordial-mente a influncia do cinema naarte e na cultura, ou suas caracters-ticas estticas, mas a mudana queas imagens fabricadas tecnicamenteprovocavam na percepo da arte.Nesse sentido, parafraseando oprprio Benjamin nas questes lite-rrias, pode-se dizer que o crtico o estrategista da luta cinematogrfi-ca. Uma dessas estratgias serianos dizeres do filsofo orientar arealidade em funo das massas e asmassas em funo da realidade um processo de imenso alcance,tanto para o pensamento comopara a intuio. Isso nos devolve Walter Benjamin: denncia contra o falso universalismo do mtodo da histria cultural

    Wikipdia Commons

  • A - 7JornalOpo w Go i nia, de 7 a 13 de dezembro de 2014 OP O CUL TU RAL

    questo se a tarefa do crtico podeenvolver o sentimento esttico dadescoberta. Se a esse crtico interes-sa, antes de tudo, as novas formasde experincia da modernidade, per-ceptveis no cinema e se aceitarmosque com o ensaio de Benjamin sur-giu a tese de que, graas reprodu-o, a obra de arte teria recebidoum novo status, abalando assim osfundamentos da esttica tradicional,perceberemos a mudana da ques-to artstica para os aspectos sociais,filosficos, cientficos e histricospara a anlise esttica da obra dearte na poca de suas tcnicas dereproduo digital. Ou, para odesespero dos grupelhos polticosatrelados aos aparelhos de Estado, amilitncia calada com recursospblicos, o que Benjamin efetiva-mente prope uma anlise mate-rialista da obra de arte e dessa pers-pectiva um cineasta ou produtorcomo Steven Spielberg, no ummistificador, mas um destruidor dasfantasias materialistas.

    O Mundo Jurssico colocaSteven Spielberg como um doscineastas mais radicais e polticos doponto de vista do cinema experi-mental. Essa afirmao deve causarcalafrios e enxaqueca nos pesquisa-dores que transformam o cinemaexperimental em uma vivncia eexperincia aurtica. O fato queSpielberg vira a pgina da dicoto-mia cinema arte, o cinema autnticocontra o cinema comercial, reifica-do, manipulador das emoes econscincia do espectador.Spielberg a materializao daexpresso arte cinematogrfica de Walter Benjamin. Claro, hfilmes e entre eles os filmes grotes-cos dos Estados Unidos e os filmesda Disney. E h aqueles que colo-cam o homem prximo da fantasiamaterialista, o sonho obsessivo dohomem em dominar a natureza, em

    fazer dela um lugar higinico, umhabitat de onde o medo foiexpulso. Os filmes de terror csmicos ou geolgicos cum-prem uma funo teraputica dasensao do homem superar osseus temores bsicos e sentir con-fortvel em um mundo, como sefosse possvel responder de ondeviemos, quem somos, para ondevamos. A clonagem dos dinos-sauros pode ser pensada comoum ponto culminante da doenahumana em no aceitar suas limi-taes bsicas de medo e insegu-rana diante do desconhecido euma crena ingnua que a cinciapode nos dar todas as respostas elivrar o homem de sua insignifi-cncia. Penso Steven Spielbergcomo um desmistificador das alu-cinaes criadas por uma mentali-dade experimentalista a dominarem grande parte a cincia como praticada hoje. Se essa afirmaopuder ser considerada, muitos fil-mes de fico cientfica atuam

    como um antdoto contra a fan-tasmagoria que transforma a rea-lidade em Coca-Cola. O MundoJurssico os poucos minutosdo trailer exibem um mundocompletamente subordinado tcnica: o mundo opera segundoo sonho humano da eficincia eda ordem dados, supostamente,pela matemtica. A visita aomundo jurssico apesar de suaeficincia uma viagem ao cen-tro do obsessivo terror em domi-nar a natureza, sonho mtico doastuto Ulisses, o primeiro heriburgus a realizar tal faanha napassagem das sereias. A razomtica quer agora fazer crer que acincia pode reaproximar ohomem da natureza e nesse sen-tido se h em algum canto daterra a argila primeva petrificada,os portes do mundo jurssicoesto abrindo para o reencontroturstico do homem com Ado eEva. A cincia uma mquinaprodutora de fantasmagorias tec-

    nolgicas e o cinema umamdia privilegiada na qual a razoe o sonho se encontram em ummesmo territrio.

    O mundo jurssico se confi-gura como uma narrativa audiovi-sual da modernidade, melhor,uma experincia do horror damodernidade na qual a pr-hist-ria transformada em mercado-ria. A fantasia com ares de cienti-ficidade na clonagem dos dinos-sauros remete lgica da produ-o de mercadorias: tudo o quepode ser duplicado gera lucros. Olucro como choque, o choquecomo lucro, parece ser a metforadesse filme, convite orgistico smais remotas formas de vida nasorigens do nosso misterioso pla-neta. John Hammond um disc-pulo do Fausto. Para ele serianatural conduzir dinossauros pelacoleira como se faziam com astartarugas na Paris de Baudelaire.A biotecnologia em busca damercadoria perdida. O reencon-

    tro do tempo perdido no em ter-mos individuais, mas, no delriocoletivo, a pr-histria como esto-que gentico, material a ser coloca-do em produo, circulao e con-sumo em uma fantasia inimaginvelou s possvel de ser pensada como brao utilitrio da cincia e suamaterializao pela tcnica cinema-togrfica. Um dos paradoxos dofilme que sua estrutura narrativa,absolutamente comercial, de enor-me valor expositivo, nega no real, acincia como uma narrativa coroa-da de xitos. Em termos dogmti-cos isto , para o senso comum a cincia seria uma narrativa irre-preensvel. Cincia e sucesso seriamsinnimos do triunfo da razohumana. Nesse ponto, curiosamen-te, na busca de novos paradigmaspara a anlise da arte cinematogrfi-ca, importante contribuio vem deum dos mais importantes historia-dores do sculo: Eric Hobsbawm.Em sua obra Era dos Extremos O Breve Sculo XX 1914-1991 h um captulo, Feiticeiros eaprendizes: as cincias naturais, oconceituado historiador britnicoafirma que nenhum perodo da his-tria foi penetrado pelas cinciasnaturais nem mais dependentedelas que o sculo 20. Contudo,nenhum perodo, desde a retrataode Galileu, se sentiu menos a vonta-de com elas. Este o paradoxo afirma Hobsbawm que tem deenfrentar o historiador. Os herdei-ros de Ulisses nada mais so queaprendizes de feiticeiros. Por curio-so que seja, este captulo do livrooferece elementos para uma anliseflmica do Mundo dos Dinossau -ros. O exame de Hobsbawm coli-de com as observaes da historia-dora de arte Camille Paglia em suaobra Imagens Cintilantes UmaViagem Atravs da Arte Desde oEgito a Star Wars. Pensando aobra de arte na obra de suas tcni-cas de reproduo digital, a contro-versa professora de Humanidades eEstudos Miditicos na University ofthe Arts da Filadlfia, elege GeorgeLucas como o maior artista denosso tempo. Para ela, ningumreduziu a distncia que separava aarte da tecnologia com maior xitodo que George Lucas. CamillePaglia parece dizer que os crticosde arte contemporneos precisampensar com a cabea de Leonardoda Vinci. Ao abrir mo da hidra daesttica escolar, o crtico sentir aemoo da descoberta revelada namaterialidade do objeto no caso o filme novas formas depensar e sentir o mundo. A arte his-tria na poca da arte digitalizadamostra que as fronteiras entre amodernidade e o arcaico sotnues. As novas maravilhas mos-tradas no cinema no omitem o seuaspecto mais aterrorizador. Osdinossauros nessa perspectiva somais destruidores que as bombassobre Hiroshima e Nagasaki. A his-tria, na poca da obra de arte esuas tcnicas de reproduo digitalparece evocar a sentena de FranzKafka: H esperana para todos,menos para ns.

    Leonardo Carmo autor do livro OCinema do Feitio Contra o Feiticeiro Cinema de Massa e Crtica da Sociedade.

    PARA ODESESPERO DOSGRUPELHOS POLTICOSATRELADOS AOSAPARELHOS DEESTADO, A MILITNCIACALADA COMRECURSOS PBLICOS, OQUE WALTERBENJAMINEFETIVAMENTEPROPE UMAANLISEMATERIALISTA DAOBRA DE ARTE E DESSAPERSPECTIVA UMCINEASTA OUPRODUTOR, NO UMMISTIFICADOR, MASUM DESTRUIDOR DASFANTASIASMATERIALISTAS

    Steven Spielberg: materializao da expresso arte cinematogrfica criada por Walter Benjamin

    Artchive

  • A - 8 JornalOpo w Go i nia, de 7 a 13 de dezembro de 2014OP O CUL TU RAL

    LAN A MEN TOS

    LIVROS FILMES Aclamado no Brasil e no exterior, ofilme foi premiado nos festivais deHavana, Buenos Aires, Lisboa, SoPaulo e no Festival Internacional deAnimao de Annecy, na Frana.Dirigido e escrito por Al Abreu, olonga um marco da animaonacional. Sofrendo com a falta dopai, um menino deixa sua aldeia edescobre um mundo fantsticodominado por mquinas-bichos eestranhos seres. Uma inusitada ani-mao que retrata as questes domundo moderno por meio do olharde uma criana.

    MSICA

    Intrprete Il Giardino Armonico

    Pre o R$ 40,30 Warner Classics

    Enfatizar a riqueza do barroco da primei-ra metade do sculo 18 justamente oque se prope o maestro italianoGiovanni Antonini neste lbum. frentedos virtuoses instrumentistas do IlGiardino Armonico grupo que revolu-cionou o modo de interpretao a partirde instrumentos de poca , Antoninirealiza um verdadeiro caleidoscpio comobras de compositores to diferentesquanto importantes. No repertrio,obras de de Johann Sebastian Bach,Tomaso Albinoni, Antonio Vivaldi,Benedetto Marcello, Henry Purcell eGeorg Friedrich Hndel.

    MUSICA BARROCA

    Direo Al Abreu

    Pre o R$ 34,90 Bretz Filmes

    O MENINO E O MUNDO

    Autor Jorge de Lima

    Pre o R$ 39,90 Cosac Naify

    POEMAS NEGROS

    Poemas Negros foi lanado em 1947com ilustraes do artista Lasar Segall eprefcio de Gilberto Freyre. Esta ediorecupera a primeira, apresentando aoleitor 39 poemas. Entre o engenho e onavio negreiro, Jorge de Lima apresen-ta a paisagem nordestina, as lavadeirasna lida, o ar duro, gordo, oleoso damadorna, sem deixar de lado a bisavque danou uma valsa com D. PedroII. Carregado de contrastes, este livrositua o poeta no debate sobre a produ-o literria de temtica negra, noBrasil e no mundo, conforme argumen-ta no posfcio o crtico Vagner Camilo.

    Lista dos sonhos que nunca envelhecemCRNICA

    EBERTH VNCIO Especial para o Jornal Opo

    Nem sei por onde come-ar. Fazer um recall daBig Bang. Disputar ocu com os pssarosusando apenas as minhas asas decobra. Morrer pela boca num beijobem velhinho dormindo num diade domingo e despertar no parasocom a cabea repousada no colo davov com Deus uma mulher (quesurpresa incrvel!) a coar o caf.Enterrar pessoas s de brincadeiri-nha nica e exclusivamente naareia. Construir castelos na praiasem ter medo da mar.

    Voar na maionese: cantarBlackbird em dueto com Paul

    McCartney. Ser o quinto beatle.Caminhar pela zona do baixomeretrcio com a autoestima emalta. Apaixonar-me pela prostitu-ta tmida meiga bonita e tir-ladaquele lugar. Casar uma apostacom vu e grinalda. Roubar flo-res no jardim da minha vizinharabugenta onde hoje levantamduas torres monumentais comoito apartamentos por andar trsvagas na garagem e nenhumarosa para ser cobiada. Ser reco-nhecido como um poeta.

    Ficar famoso o suficientepara que todos prestem atenoquando eu disser em rede nacio-nal Eu preciso de um poucomais de respeito. Ento pedirque me esqueam. Me mandar

    do planeta num foguete para alua. Flutuar com a conscinciatranquila na gravidade zero.Engravidar um grande amor nobanco de couro de um Maverickquatro cilindros ao som deBorn to be wild. Rir de tudoque no tiver a menor graa.Plantar bananeira no meio da ruae semforos no pomar.

    Almoar em casa todo santodia. Ir a p pro trabalho.Acordar no meio de um enor-me problema e constatar quetudo no passava de um pesa-delo. Ouvir na cama os segre-dos picantes que os seus gran-des lbios tm pra me contar.Morar em casa prpria tipo ran-cho beira de um lago e ter um

    monte de filhos com uma pmecnica. Lavar a minha guano Poema Sujo. Cuspir comclasse e estilo do alto da TorreEiffel. Gritar na Wall Street quedinheiro no traz felicidade.Cavar um tnel at fugir da pri-so chegar ao Japo ou fazercalos nas mos o que acontecerprimeiro. Matar a curiosidade:fazer sexo com uma japonesa.

    Desvendar os segredos damaonaria. Descobrir a cura parao cncer da corrupo. Decorara ltima parte do Hino Nacional.Beber leite misturado commanga e no enlouquecer. Passarno vestibular da vida. Ter umarvore. Plantar um livro.Escrever um filho. Investir num

    consrcio, operar o perneo, fazeruma lipo, levantar os peitinhos ede quebra entender as mulheres.Juntar meu primeiro milho deamigos. Ganhar na loteria dospnaltis. Deitar e rolar com vocpara que os corpos no criem limo.

    Acabar com a violncia amisria e as fronteiras entre ospases para que o mundo sejafinalmente um nico quintal.Curar-me do sarcasmo e do cinis-mo. Sonhar sonhos mais factveis.Amadurecer o suficiente mas semcair de maduro. Crescer tornar-me um adulto resolvido e nuncamais querer ser algum nessa vidaalm de eu mesmo.

    Eberth Vncio escritor e mdico.

    M. File