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TRADIÇÃO E TRADUÇÃO: Afetações no/do Cariri

keila almeida Gonçalves1

ReSUMO

Esse artigo pretende introduzir o leitor no universo cultural da Região do Cariri Cearense, com ênfase em Crato e Juazeiro do Norte. Ambas as cidades são comumente relacionadas ao cangaço de Lampião e Maria Bonita e/ou ao catolicismo de Padre Cícero. Porém, a partir de derivas pelas ruas é possível visualizar a diversidade cultural e o contraste entre o passado e a modernidade. Assim, revisamos os conceitos de identidade cultural e memória. Em seguida destacamos algumas obras visualizadas durante derivas, finalizando com a problematização da tradição, hibridismo e tradução cultural.

Palavras-chave: Cariri. tradição. tradução cultural.

ABSTRAcT:

This article intends to introduce the reader into the cultural universe of Cariri Region Cearense emphasizing in the cities of Crato and Juazeiro do Norte. Both of the cities are related with Lampião and Maria Bonita’s “cangaço� and/or to the Priest Cicero’s Catholicism. However, while we drift through the streets we can see the cultural diversity and the contrast between the past and the modernity. This way the concepts of cultural identity and memory can be seen. Then, we bold some works displayed in the drifting’s to finish with the questioning between the tradition, hybridism and the cultural tradition.

Keywords: Cariri. Tradition. Cultural tradiction.

1 Mestranda em Artes Plásticas, Vínculo Institucional com a Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Telefone: 31 99339-3298. E-mail: [email protected]. Orientação de Elisa Campos.

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1. INTRODUÇÃO

O presente texto traz reflexões acerca da tradição e da tradução cultural, juntamente com o hibridismo. Destarte, toma como ponto de partida a Região do Cariri Cearense, centrando-se principalmente nas cidades do Crato e Juazeiro do Norte. Sendo assim, o objetivo principal desse trabalho consiste na apresentação � embora incipiente � de algumas obras artísticas evidenciadas nessa região durante derivas realizadas pelo espaço urbano nos meses de outubro e dezembro de 2015, bem como janeiro de 2016. Por vezes, a narrativa poderá se revelar enquanto diário de bordo, uma vez que as reflexões partem da experiência em campo.

Para que seja possível tecer esse panorama, considerando o complexo contexto da Região do Cariri, identificamos a necessidade de nos ater aos conceitos de identidade cultural, memória, hibridismo, tradição e tradução cultural. Portanto, no primeiro momento nos dedicaremos a essa tarefa, recorrendo ao referencial teórico específico para cada conceito. Na sequência, sinalizaremos obras artísticas evidenciadas nas derivas e demais obras que compõem as manifestações artísticas que nos afetaram, conforme fomos adentrando no �lugar Cariri�. Posteriormente tentaremos problematizar o que fora evidenciado, em contraste com os conceitos trabalhados.

tendo em vista que não pretendemos nos distanciar integralmente da pesquisa de mestrado, adotamos como parte da metodologia a concepção de lugar, bem como sua relação com a produção do que denominamos como minha poética própria (Machado, 2015, p. 53-67), e que está intrinsecamente associada às afetações do “lugar Cariri”. Com isso, enquanto metodologia, utilizamos a análise dos conceitos supracitados e as reflexões advindas das afetações, dos diálogos e das trocas adquiridas junto à comunidade do Crato e Juazeiro do Norte, que vem ocorrendo desde outubro de 2015.

Essa troca se dá por meio das derivas nas ruas e nos espaços culturais, em conversas com integrantes de coletivos, na participação em seminários, comunicações e festas populares no cenário da Região de Cariri, bem como por meio do olhar, do diálogo com os moradores, e leituras de blogs e livros sobre a temática. Espera-se, portanto, ultrapassar a porta de entrada dessa Região, tão rica em pluralidade e complexidade cultural, que de forma nenhuma se esgotará nesse artigo.

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2. TRADUÇÃO E/OU TRADUÇÃO

2.1. Identidade cultural, memória, hibridismo, tradição e tradução cultural

Ao analisar o sujeito pós-moderno no contexto contemporâneo, o antropólogo Stuart Hall (2006) defende que este não possui uma identidade fixa ou permanente. Em seu entendimento:

“A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. E definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”. (HALL, 2006, p.12-13).

Dentro disso, é possível afirmar que a identidade cultural se encontra ligada aos elementos da vida contemporânea, como aqueles provenientes da tecnologia, da industrialização, do sistema capitalista e seus reflexos, bem como do perfil identitário de uma população onde a diversidade e a pluralidade cultural podem ser visualizadas por meio de suas expressões artísticas e produções mercantis.

Constatamos então, que a identidade cultural se caracteriza pelo diálogo entre o passado e o futuro, revelando o contexto globalizado, onde o diverso pode ser experimentado por meio de trocas culturais facilitadas pela tecnologia, tecendo constantes diálogos que se unem na teia da vida contemporânea.

Nesse sentido, a identidade cultural é dinâmica, traz em si a memória do ontem, mas o devir do amanhã. Portanto, a memória enquanto tradição está correlacionada ao passado e ao presente, tida como elemento constituinte da identidade. Essa perspectiva é importante quando analisamos o conceito de tradição, uma vez que este não se refere especificamente ao que é velho, pois está vinculado a identidade, aos costumes e representações.

Por sua vez, com o advento da globalização somos compelidos a necessidade da preservação da memória. Nisso, a arte torna-se um elemento constituinte para esse processo. Desse modo, a arte enquanto lugar-de-memória2 preserva o sentimento de pertença a um dado espaço social, sobretudo no contexto do efêmero, do transitório.

Ora, embora o �lugar Cariri� contenha traços específicos da Região ele também se insere no plano contemporâneo, e esses coexistem simultaneamente, numa dialética contínua. Assim,

2 Na concepção de Pierre Nora, os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivo, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais (nora, 1993, p. 13).

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a arte criada a partir dessas referências invoca uma nova relação entre o ver e o interpretar, o interstício entre significante e significado, que pode ser compreendido como tradução cultural e/ou hibridismo (Rodrigues, 1992, p. 141-156). E, uma vez que a tradução cultural traduz o que não está acabado, sendo um fragmento de uma imagem da totalidade, abarca memória, tradição e contemporaneidade.

3. LUGAR CARIRI

Ao discorrer acerca das afetações experimentadas a partir das derivas no território de Crato e Juazeiro do Norte, torna-se importante que primeiramente analisemos o conceito de lugar, ora aqui proposto. Nesse sentido, entende-se que ao nos apropriarmos desse conceito, pretende-se compreender o próprio ser humano, em suas múltiplas dimensões. Para Ana Carlos, a geografia contribui nesse vislumbre, possibilitando �pensar o homem por inteiro em sua dimensão humana e social que se abre também para o imprevisto, criando cada vez mais novas possibilidades de resistir/intervir no mundo de hoje. ” (CarloS, 2007, p.13). Compreende-se, portanto, que a ambição da geografia cultural por meio do conceito de lugar:

“[...] é compreender o mundo tal qual os homens o vivem: ela fala da sensibilidade de uns e de outros, das paisagens que eles modelaram, dos patrimônios aos quais estão vinculados, dos enraizamentos ressentidos; ela descreve ao mesmo tempo a mobilidade crescente dos indivíduos, a confrontação das culturas, as reações de retorno que ela provoca, regionalismos, nacionalismos ou fundamentalismos, mas ela destaca também a exploração dos multiculturalismos e a fecundidade dos contatos renovados. ” (ClaVal, 2001, p. 379).

Nestas condições, compreende-se que o lugar “guarda em si e não fora dele o seu significado e as dimensões do movimento da vida, possível de ser apreendido pela memória, através dos sentidos e do corpo” (CARLOS, 2007, p. 14). Em outras palavras, ele se refere a um conjunto de signos, símbolos, trocas, identidades, histórias de vida, narrativas, lembranças/memórias afetivas e imaginárias.

Sendo assim, dialeticamente construímos esse lugar, visto que somos afetados pelos lugares, bem como os afetamos. Portanto, o lugar diz da afeição, do pertencimento, das afetações, dos encontros, da experiência. Nosso estar no mundo, existência e coexistência. O lugar se refere às nossas relações, mas por se tratar de um espaço complexo também diz das negações, da

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resistência, das mudanças.

Por sua vez, o nordeste é construído a partir de imagens tradicionais (coronelismo, messianismo, cangaço, seca) e dentro desse universo o “lugar Cariri” expressa essas características. No entanto, historicamente, o Cariri é composto por contrastes de diversidade cultural, além da disparidade de interesses e formas de representações culturais. Na coexistência de projetos apoiados na ideia da modernidade sem, no entanto, negar a tradição é que se tornou possível aproximar o antigo do moderno. (MARQUES, 2004).

Nesse contexto, como lugar de experiências e expressões de sensibilidades, o �lugar Cariri� projeta identidade, tradição, memória, transformações, hibridismo, traduções. Num breve relance (ao estar disponível para a experimentação), observamos que o tempo caminha de uma forma peculiar. Vestígios de uma identidade étnica, sertaneja, religiosa, artesanal (dos couros, cordéis, esculturas, xilogravuras), relacional (do oficio que é repassado para os familiares e das trocas entre os diversos personagens que integram a região, por meio da presença da universidade e romeiros). A memória encontra-se viva, reverberando nas casas, nas ruas, no artesanato, na arte, no cotidiano vivenciado, nos circuitos e caminhos. O “lugar Cariri” traduz a identidade dinâmica, orgânica e plural que se faz presente nesse cenário, nas interseções entre o passado e o presente.

Por sua vez, no artesanato é possível enxergar a complexidade dessa identidade, que é provocada pelo novo, adequando-se sem perder-se. E, nas ruas, esse mesmo contraste pode ser apreendido nos muros, nos postes, nos coletivos e manifestações artísticas. Referências à memória coletiva do homem/mulher sertanejo, dos recortes do couro, que convergem com o contemporâneo. Essa presença nas peças artesanais e artísticas revela o hibridismo, o caminho de uma tradução.

Dentro desse universo, o contexto da Região demonstra-se complexo e diverso, sobretudo em relação às produções culturais. No entanto, observa-se que as artes contemporâneas da Região do Cariri são pouco conhecidas. Fala-se dos calçados, das bolsas, dos cordéis, do forró, do reisado. Na constância, fala-se de Lampião e/ou “Padim Ciço” e por vezes, encontramos quem fale das xilogravuras. Contudo, durante as derivas é possível encontrar a presença do graffiti, dos lambe-lambes, da fotografia, do rap, da performance, entre outras linguagens artísticas.

Assim, por meio do contato mais próximo com a Região verificamos que há uma presença marcante de coletivos envolvidos em comunidades vulneráveis e que dialogam com as artes contemporâneas, sobretudo contrastando entre o passado e o presente, revelando um hibridismo único.

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3.1. Afetações no/do Cariri

A Região do Cariri compreende os municípios do Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, entre outras. Essa região é marcada por intenso comércio, que varia do industrial ao artesanal. isso ocorre, pois Cariri concentra todo tipo de arte, sendo reconhecida como um polo produtor da cultura cearense.

Juazeiro do Norte, cidade que reúne maior centro de romarias, é rica em artesanato e tem como principal atividade a produção dessas peças. Tendo a forte característica religiosa, muitos artistas buscam inspiração em personagens como “Padim Ciço” ou nas influências nordestinas oriundas das romarias ao longo dos anos. Percebe-se, portanto, que a referência em personagens da cultural local e regional é um traço marcante na produção artesanal. Dentro disso, observa-se peças em madeira, palha, couro, barro, ferro, gesso e literatura de cordel, que dá força à xilogravura.

Nesse contexto, existem evidências para a confecção, por exemplo, de imagens do Padre Cícero desde miniaturas até o tamanho natural. O Centro de Cultura Mestre Noza abriga vasto acervo de peças artesanais. Quanto a literatura de cordel e a xilogravura, destaca-se principalmente na Gráfica da Lira Nordestina. Encontramos ainda o repente, que conta com grandes artistas fazendo versos e desafios de rimas. A cidade também possui uma orquestra de rabecas. Atualmente o teatro vem ganhando força, contando com três teatros, enquanto os grupos teatrais proliferam.

Reduto cultural, o munícipio do Crato exala cheiros, cores, texturas e sonoridades que capturam o observador. O cotidiano do Crato - e não de Crato, como seus moradores fazem questão de dizer - é caracterizado pelas manifestações artísticas. Historicamente, a cidade é conhecida como a “Cidade da Cultura. (MARQUES, 2004). Uma semana de estadia na cidade é suficiente para germinar amores que transcendem o tempo, demonstrando que somos cidadãos do mundo, mas, sobretudo, do Crato. Todos somos Crato. Unificados, em amor.

Ao andar pelo centro esbarramos em lojas de peças artesanais e industrializadas, muros grafitados, postes contendo lambe-lambes afixados, música regional ao fundo, pessoas com o típico chapéu do sujeito sertanejo, comidas típicas que deixam saudades. Em cada esquina somos arrebatados pelos sorrisos que acolhem a alma, e o sentimento de pertencimento – verdadeiramente sentimo-nos parte desse lugar. Deixamos de ser estranhos ao primeiro olhar, no primeiro bom dia. No entanto, paulatinamente também somos ocupados pela tecnologia e globalização.

Todavia, no decorrer das derivas percebe-se que esse lugar acolhedor é mais complexo do que as primeiras percepções. Encontramos um universo que não é divulgado nacional ou

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internacionalmente.

Durante as derivas programadas e/ou livres fui adentrando nesse complexo tecido cultural, desbravando o novo e o velho, sentindo cheiros e sabores que não integram meu cotidiano. O som do tambor, da rabeca, do repente e do canto gregoriano se fizeram presentes. Contudo, foi no campo da experimentação estética que fui mais afetada, a surpresa ao observar a presença da tradição nos muros e postes das ruas ganharam destaque e me remeteram para algumas reflexões, dentre elas interrogações: “será que as produções visualizadas representam a arte contemporânea? Há diálogo entre a tradição e a modernidade nas expressões artísticas ali evidenciadas? Será a Região do Cariri um reduto de tradução ou hibridismo? ”.

Essas perguntas ainda se fazem presentes e não pretendo esgotá-las por meio de respostas concretas, mas subjetivas, que partem da relação estabelecida com o “lugar Cariri, seus signos, símbolos, memórias, trocas, identidades. Assim, se por um lado observo a manutenção do passado por meio da tradição dos cordéis, das festas de reisado, do repente, da representação de “Padim Ciço” e Lampião, também contemplo a presença de novos temas que perpassam a contemporaneidade. Eles são desenvolvidos pela tradição dessas artes e pela modernidade presente nas novas linguagens artísticas, tais como o graffiti, o lambe-lambe, a fotografia e performance. Destarte, as ruas de Crato e Juazeiro do Norte revelam a dialética que ocorre das trocas entre os sujeitos que por ali circulam, suas narrativas e produções

Para exemplificar, numa tarde de feriado em Crato, em plena sexta-feira, 1° de janeiro de 2016, durante uma deriva não pré-agendada foi possível ouvir canto gregoriano na Igreja da Praça da Sé e me emocionar com o contraste entre a beleza sonora da música e a beleza visual da dança das árvores. Também foi possível me divertir com o vai e vem do bumerangue e as crianças que se encontravam na praça. Na sequência, fiz cafuné nos gatos que por ali rodeiam. Nesse contexto, assisti ao desfile de moda de quem vai para missa, encontrei com a turma intelectual da região e observei os artistas populares que por ali transitam. Por fim, comi a melhor tapioca do universo.

Nos demais dias, circulei entre igrejas, centros culturais, museus, bares, mercados, lojas, mas, sobretudo, conversei com seus habitantes. Nas paredes dos muros, contemplei técnicas plásticas diversas, que revelam a Região e outros lugares3. No coração, fui arrebatada pelas histórias de vida, pela fé, pela imaginação e criatividade de cada morador, pelo acolhimento, pelo calor humano e do sol, que aquece o sertão.

3 É comum encontrar parcerias entre os coletivos de Cariri e coletivos de outros municípios, estados e países.

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3.2. URCA

A Universidade Regional do Cariri (URCA), localizada nos municípios do Crato, Juazeiro do Norte e Santana do Cariri é um reduto das manifestações artísticas da Região. Por vezes, revela o papel político da arte, que se contrapõe ao contexto educacional, local ou não.

foto 1: Mural na UrCaStencil produzido por forças políticas do movimento estudantilfonte: imagem coletada in loco

foto 2: Mural na UrCaTrabalhos do Coletivo Oaxaca do México em parceria com o Coletivo Xicra (xilogravos do Crato)fonte: imagem coletada in loco

foto 3: Muros na UrCaStencil produzido por forças políticas do movimento estudantilfonte: imagem coletada in loco

foto 4: Muros na UrCaTrabalho desenvolvido por estudantes do curso de história mediado pelo professor Dr. Titus e o artista Carlos Henrique Soares fonte: imagem coletada in loco

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foto 5: Mural na UrCaTrabalho desenvolvido no PIBID com alunos do Ensino Médio que reflete criticamente a imagem/palavra. fonte: imagem coletada in loco

foto 6: Mural na UrCaTrabalho desenvolvido no PIBID com alunos do Ensino Médio que reflete criticamente a imagem/palavra. fonte: imagem coletada in loco

3.3 Coletivo Camaradas

Nas palavras de Alexandre Lucas, artista, educador e coordenador do Coletivo Camaradas, o coletivo é uma organização política que atua no campo das artes, da pesquisa, da produção e difusão cultural e das lutas por políticas públicas para cultura. Sendo assim, o coletivo é formado por estudantes, artistas, brincantes e professores.

Compreendemos que o Coletivo Camaradas pode ser apreendido nas ruas do município do Crato, nos muros, nos postes, nas imagens e palavras. Encontramos o coletivo na Comunidade do Gesso, nas manifestações culturais, nas parcerias com outros coletivos, na rede social. As linguagens artísticas são diversas, bem como seus integrantes, que tem em comum, o empoderamento social.

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foto 7: Comunidade do GessoRoda Poesia na Comunidade do Gesso /CratoFonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

foto 8: Comunidade do GessoTrabalho de intervenção desenvolvidos com crianças da Comunidade do Gesso/Crato Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

foto 9: Escola da rede Estadual performance desenvolvida pelo performer Alexandre Lucas do Coletivo Camaradas com cerca de 50 alunos numa aula sobre arte urbana, performance, tecnologia e empoderamento social Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

foto 10: ruas do GessoTrabalho de lambe-lambe desenvolvido mensalmente na Comunidade. Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

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3.4. Outras afetações

foto 11: rffSao muro do Centro Cultural do araripe - rffSa é uma espécie de galeria a céu aberto que serve para experimentação de técnicas de arte urbana. fonte: imagem coletada in loco

Foto 12: Ato 2 � A transfiguração do santoSérie violência simbólica.Trabalho desenvolvido em Cariri e exposto na cidade de Icó Fonte: Imagem cedida pelo fotógrafo e estudante de artes visuais, rafael Vilarouca

Foto 13: Juazeiro do NorteStencil desenvolvido durante Mostra Sesc. fonte: imagem coletada in loco

foto 14: ação poluição Intervenção Urbana desenvolvida em período eleitoral que consistiu em colocar cavaletes nas proximidades das propagandas dos candidatos e registrar. Os registros em fotos foram encaminhados para a Justiça Eleitoral junto com documento e para a imprensa com release. Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

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Foto 15: Parangolé ColetivoTrabalho desenvolvido com alunos de Escola Pública que abordou questões do homem nordestino e a sua relação com a contemporaneidade a partir de uma releitura da obra de Helio Oiticica. Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

Foto 16: Pelo direito de brincar Lambe-lambe que aborda a questão de gênero a partir do lúdico. Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

foto 17: Mostra a sua cara Lambe-lambe desenvolvido com crianças Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

foto 18: a manifestação Trabalho desenvolvido com cerca de 500 alunos de uma escola pública aonde foram abordadas questões de muralismo, arte urbana, unidade visual - o trabalho tinha cerca de 50 metros de extensão. Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema desse artigo surgiu a partir do contato com a Região do Cariri durante o ano de 2015. Desde então tenho realizado visitas constantes na Região, sendo que a última ocorreu em janeiro de 2016. No primeiro contato já foi revelada a diversidade cultural do Crato e Juazeiro do Norte e o diálogo entre tradição e modernidade, sinalizando a complexidade do Cariri.

Entre o lá e o cá, na ponte aérea Belo Horizonte – Juazeiro do Norte e Crato eu vou paulatinamente me misturando de forma heterogênea nesse contexto. Em cada viagem adquiro uma nova peça para a construção do meu mosaico. Minha obra final será repleta de contrastes: o velho, o novo, o passado, o presente, o futuro. Tradição e modernidade são confundidas, uma vez que confluem, culminando num hibridismo e, sobretudo, numa tradução da cultura local e sua relação com a contemporaneidade.

o “lugar Cariri” pode representar “padim Ciço”, lampião e Maria Bonita, o sujeito sertanejo, os cordéis, os repentes, o reisado e a xilogravura. Porém, também representa o hip-hop, a performance, o graffiti, o lambe-lambe, a fotografia e tantas outras expressões artísticas que dialogam com temáticas que perpassam questões contemporâneas. Por meio da intensa romaria, que culmina no turismo regional, a Região troca experiências com o Brasil e o mundo. No entanto, poucos adentram mais intimamente no universo cultural permeado de hibridismo, que é o lugar Cariri”.

Os espaços observados expressam sensibilidade estética, construções sociais concretas e subjetivas, imaginários, apropriações, negações e exclusões. O “lugar Cariri diz do acesso, do posicionamento político e das narrativas históricas. Nesse território, passado e futuro dialogam a fim de alimentar o presente. Entretanto, essa realidade é evidenciada principalmente nas ruas. Nas palavras do artista e educador Cratense, Alexandre Lucas:

“o Cariri não pode ser visto como um fragmento isolado dentro de uma totalidade, mas compreendido como parte entranhada desta totalidade, recheada por antagonismos e confluências nos mais diversos aspectos. Em tempos de globalização, o processo e as formas de produção e reprodução da existência humana, ocorre numa velocidade quase que instantânea e não estamos inertes a esses acontecimentos. É deste Cariri do campo e da cidade, da indústria e da oficina de fundo de quintal, do operário e do empresário, da Igreja Católica e dos terreiros das religiões de Matriz Africana, das brincadeiras populares, do imaginário que se mistura com o real, da diversidade e da pluralidade que nos alimentamos.” (SilVa, 2009).

Considerando a fala do autor, juntamente do que é historicamente marcado na região, em conjunto com nossa experiência durante as derivas, percebe-se a complexidade que permeia o

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“lugar Cariri. Portanto, para que a introdução no assunto fosse possível, revisitamos – embora incipientemente - conceitos outrora trabalhados, dentre eles identidade cultural, memória e tradição, agregando novos conceitos que estão intrinsicamente correlacionados a estes, entre eles tradução e hibridismo cultural. Por fim, temos consciência que as obras apresentadas, bem como a reflexão desenvolvida não é suficiente para abarcar a potência cultural da Região do Cariri, sobretudo, considerando suas especificidades, que tornam a Região tão peculiar.

No entanto, espera-se que a partir desse breve relato, aqui ilustrado por meio das fotos ou das reflexões acerca da problematização entre tradição, tradução e hibridismo, seja possível instigar outros sujeitos a conhecerem o “Oásis do Sertão, suas referências históricas e culturais. Do passado, do presente e do futuro. Porque todos somos Crato, Juazeiro do Norte, Cariri.

REFERÊNCIAS

CarloS, ana fani alessandri. O Lugar no/do mundo. São paulo: fflCH, 2007, 87p.

CLAVAL, Paul. De Haussmann au Musée social. In: V. Berdoulay; P. Claval (dir.), Les débuts de lurbanisme français, op. cit, 2001, p. 11-23.

Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro, 11. ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

MACHADO, Marina Marcondes. Só Rodapés: Um glossário de trinta termos definitivos definidos na espiral de minha poética própria. Rascunhos: Uberlândia v. 2 , n. 1, p. 53-67, jan./Jun. 2015.

MARQUES, Roberto. contracultura, tradição e oralidade: (re) inventando o sertão nordestino da década de 70. São Paulo: Annablume, 2004. 168 p.

nora, pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.

RODRIGUES, Adriano D. O dispositivo da enunciação. In: RODRIGUES, Adriano Duarte. comunicação e cultura: a experiência cultural na era da informação. Lisboa: Presença, 1994. p. 141-156.

SILVA, Alexandre Lucas. Cariri: Um todo de uma parte ou uma parte de um todo. Cariri, 05 dez. 2009. Disponível em: http://blogkariri.blogspot.com.br/2009/12/cariri-um-todo-de-uma-parte-ou-uma.html. Acesso em: 05 jan. 2016.