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Cena em Movimento - Edição nº 1 SILVA, Carolina Vieira 1 CURINGA, UMA CARTA FORA DO BARALHO: A RELAÇÃO DIRETOR/ESPECTADOR NOS PROCESSOS E PRODUTOS DE ESPETÁCULOS FÓRUM Carolina Vieira Silva 1 Resumo: Este trabalho busca reunir atributos que nos levam a conceber a figura do curinga como um modo de ser diretor na cena contemporânea. Constatamos que o curinga colabora ativamente no aprimoramento do diálogo do teatro com os diversos setores da sociedade, afirmando-se, ainda, enquanto agente eficaz e multiplicador da poética do oprimido e singularizando-se como mediador de debates de espetáculos fórum e coordenador de seus processos de encenação. A partir de então, buscamos efetuar uma análise dos papéis do encenador, do espectador e do curinga para alicerçar o questionamento que reside nos aspectos da encenação dos espetáculos fórum e na interrogação da natureza da função do curinga. Desta forma, ao explorar a natureza das relações entre os agentes do teatro envolvidos nos processos e produtos de Espetáculos Fórum, promovemos uma reflexão sobre a aplicabilidade do ensino das técnicas do Teatro do Oprimido na formação de alunos que almejam ser diretores ou professores de teatro. Palavras-chave: Teatro Fórum. Metodologia de Encenação. Curinga. Abstract: The joker gathers the essential attributes which allow us to conceive it as a way of being a director in the contemporary scene. We note that the joker actively contribute to the improvement of the dialogue between the theater and different sectors of society, being, therefore, an efficient agent and a multiplier of the oppressed poetic and being unique as a mediator for debates in Forum Spectacles and a coordinator in its staging processes. From that point, we try to set an analysis of the responsibilities of the director, the audience and the joker. The main interest from this choice lays down in questioning the staging aspects of the Forum spectacles and in inquiring the dispositions of the functions performed by the joker. To explore the essence of the relations among the theater agents involved in the processes and products of Forum Spectacles, it promotes a reflection about the applicability of teaching the Forum Theater technique through the formation of pupils who yearn being theater directors or teachers. Key-words: Forum Theater. Staging Methodology. Joker. ________________________________________ A Poética do Oprimido é construída sob égides filosóficas que procuram refletir sobre as ações humanas e suas relações com a sociedade. Entender o teatro de Boal, para além de suas técnicas e modalidades, não é uma tarefa fácil. Pensar este teatro é pensar a ética, a política e a estética. Estas ciências acabam por tomar conotações próprias e autorais que nos fazem refletir sobre a nossa própria atuação no teatro e na sociedade. Por isso, estudar o Teatro 1 Mestre em Artes Cênicas - PPGAC-UFBA

CURINGA, UMA CARTA FORA DO BARALHO: A RELAÇÃO DIRETOR/ESPECTADOR NOS PROCESSOS E PRODUTOS DE ESPETÁCULOS FÓRUM

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Este trabalho busca reunir atributos que nos levam a conceber a figura do curinga como um modo de ser diretor na cena contemporânea. Constatamos que o curinga colabora ativamente no aprimoramento do diálogo do teatro com os diversos setores da sociedade, afirmando-se, ainda, enquanto agente eficaz e multiplicador da poética do oprimido e singularizando-se como mediador de debates de espetáculos fórum e coordenador de seus processos de encenação.

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  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 1

    CURINGA, UMA CARTA FORA DO BARALHO: A RELAO

    DIRETOR/ESPECTADOR NOS PROCESSOS E PRODUTOS DE

    ESPETCULOS FRUM

    Carolina Vieira Silva1

    Resumo: Este trabalho busca reunir atributos que nos levam a conceber a figura do curinga como um modo de ser diretor na cena contempornea. Constatamos que o curinga colabora ativamente no aprimoramento do dilogo do teatro com os diversos setores da sociedade, afirmando-se, ainda, enquanto agente eficaz e multiplicador da potica do oprimido e singularizando-se como mediador de debates de espetculos frum e coordenador de seus processos de encenao. A partir de ento, buscamos efetuar uma anlise dos papis do encenador, do espectador e do curinga para alicerar o questionamento que reside nos aspectos da encenao dos espetculos frum e na interrogao da natureza da funo do curinga. Desta forma, ao explorar a natureza das relaes entre os agentes do teatro envolvidos nos processos e produtos de Espetculos Frum, promovemos uma reflexo sobre a aplicabilidade do ensino das tcnicas do Teatro do Oprimido na formao de alunos que almejam ser diretores ou professores de teatro.

    Palavras-chave: Teatro Frum. Metodologia de Encenao. Curinga.

    Abstract: The joker gathers the essential attributes which allow us to conceive it as a way of being a director in the contemporary scene. We note that the joker actively contribute to the improvement of the dialogue between the theater and different sectors of society, being, therefore, an efficient agent and a multiplier of the oppressed poetic and being unique as a mediator for debates in Forum Spectacles and a coordinator in its staging processes. From that point, we try to set an analysis of the responsibilities of the director, the audience and the joker. The main interest from this choice lays down in questioning the staging aspects of the Forum spectacles and in inquiring the dispositions of the functions performed by the joker. To explore the essence of the relations among the theater agents involved in the processes and products of Forum Spectacles, it promotes a reflection about the applicability of teaching the Forum Theater technique through the formation of pupils who yearn being theater directors or teachers.

    Key-words: Forum Theater. Staging Methodology. Joker.

    ________________________________________

    A Potica do Oprimido construda sob gides filosficas que procuram

    refletir sobre as aes humanas e suas relaes com a sociedade. Entender o

    teatro de Boal, para alm de suas tcnicas e modalidades, no uma tarefa

    fcil. Pensar este teatro pensar a tica, a poltica e a esttica. Estas cincias

    acabam por tomar conotaes prprias e autorais que nos fazem refletir sobre

    a nossa prpria atuao no teatro e na sociedade. Por isso, estudar o Teatro

    1 Mestre em Artes Cnicas - PPGAC-UFBA

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    do Oprimido pensar sobre suas aplicaes na sociedade e suas relaes

    intrnsecas com a alma humana.

    Assim, o Teatro do Oprimido no s reafirma a vocao tica, poltica e

    esttica do teatro, mas se lana em direo a uma reconstruo dos elos que

    se estabelece entre essas dimenses scio-culturais. Para isso, constri novas

    maneiras de o teatro se relacionar com a sociedade atravs da modificao

    dos papis de produtor e fruidor do ato teatral embasadas, muitas vezes, na

    ampliao dos conceitos que giram em torno do teatro, da tica, da esttica e

    da poltica palavras de conceituaes amplas e, s vezes, subjetivas. Evoc-

    las, portanto, torna-se indispensvel.

    O Teatro do Oprimido um teatro tico, e nele nada pode ser feito sem

    que saiba porqu ou para qu." Boal (2007, p. 28) Ao que poderamos, de

    imediato, nos questionar: Mas, o que tica? Ou ainda, o que teatro, poltica

    ou esttica?

    Partiremos ento da seguinte afirmativa: a esttica nunca estar

    dissociada do teatro assim como a tica da poltica. Augusto Boal (2005)

    lembra que a discusso sobre as relaes entre o teatro e a poltica to velha

    quanto o teatro, ou quanto a poltica. a plateia [...] que eleva as relaes

    cnicas das personagens entre si, do plano do particular ao plano do geral, do

    anedtico ao exemplar. E aqui nasce a dimenso poltica do teatro. (Dort, 1977,

    p. 367-368)

    Eu tambm j tinha uma clara idia de at que ponto a arte era apenas

    um meio para um fim. Um meio poltico. Um meio propagandstico. Um meio

    educativo. (Piscator, 1968a, p. 39). O Teatro Poltico de Piscator inaugurou a

    teoria teatral sobre a concepo acerca de um teatro engajado nas lutas de

    classes sociais. Contudo, Bernard Dort (1977, p. 373) afirma: O caminho de

    Piscator: fazer do palco o local de uma histria poltica total, completa. Com

    isso, o autor sugere que, mesmo com Piscator, o teatro continuava

    aprisionando a verdade e deixando ao espectador apenas a alternativa de sair

    do teatro e reencontrar-se com o mundo inacabado. O teatro continua

    revelando ao pblico uma histria cristalizada e consumada.

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    Em seguida, Bertolt Brecht cria novas proposies estticas que

    busquem colocar o espectador como crtico da cena, tornando-o capaz de

    sentir-se agente transformador da sociedade. O Teatro de Brecht no para

    uma futura sociedade socialista, mas para a sociedade burguesa de hoje,

    sendo seu escopo educativo: expor as contradies ocultas dentro desta

    mesma sociedade. (Carlson, 1997, p. 371)

    A modalidade teatral que o Teatro Frum inaugura nos faz pensar sobre

    uma nova vocao poltica de um velho teatro. Boal, at agora, encerra a trade

    dos pensadores mais expoente do teatro poltico. Neste trabalho procuramos

    insistir nas antigas proposies sobre Teatro Poltico, o qual, por mais que

    venha perdendo espao no mundo acadmico, mantm-se como um campo de

    investigao propcio ao desenvolvimento de novas teses e dissertaes. Aqui

    a discusso perpassa as transformaes que a vocao poltica do teatro

    especificamente o Teatro Frum trouxe para a cena e para o espectador.

    Qual definio poderamos aplicar a Teatro Poltico? Tomando-se a poltica no

    sentido etimolgico do termo, concordar-se- que todo teatro

    necessariamente poltico, visto que ele insere os protagonistas na cidade ou no

    grupo. (Pavis, 2005, p. 393)

    Da mesma forma, para Boal, falar em Teatro Poltico seria um

    pleonasmo porque, para ele, fazer teatro fazer poltica. Boal foi um homem de

    teatro disposto a constantes revises de suas obras. Podemos ratificar a

    afirmativa anterior, quando percebemos a evoluo da Potica do Oprimido

    diretamente relacionada a questes que mereceram, cada uma em seu tempo,

    respostas urgentes. O teatrlogo aprimorou sua potica poltica acreditando ser

    necessrio devolver o teatro ao povo. O que poderia explicar com mais clareza

    sua incisiva necessidade de convocar o pblico a uma participao ativa na

    cena parte do princpio que isso norteia as bases esttica e poltica do

    oprimido: somos mais do que parecemos ser.

    O teatrlogo entende o ser humano como detentor nato de uma

    capacidade criativa, no incentivada e, s vezes, at negada pela sociedade.

    Por isso, para ele todo mundo pode fazer teatro, at mesmo os artistas, e desta

    forma o teatro torna-se um eficiente modo de dominao, mas tambm de

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    libertao. Quem pretender separar o teatro da poltica, pretende conduzir-nos

    ao erro e esta uma atitude poltica. (Boal, 2005b, p. 11)

    O Teatro do Oprimido tem por objetivo resgatar, desenvolver e

    redimensionar a vocao teatral humana e visa passar os meios de produo

    de teatro para os indivduos que so, em potencial, produtores de cultura e

    devem ser livres no direito de escolher serem agentes criadores e/ou fruidores

    destes produtos artsticos. Por isso, Boal considera que o TO possui uma

    esttica democrtica: [...] porque somos o nosso centro e nele estamos: no

    devemos temer invadir e pisar o meio do palco, mesmo vivendo na periferia

    das cidades, nos guetos dos excludos e longe da arte oficial qual no

    devemos obedincia. (Boal, 2007b, p. 19)

    O teatro pode, assim, levar seus espectadores a fruir a moral especfica

    da sua poca, a moral que emana da produtividade. (Brecht, 2005, p. 137) A

    moral passa pela subjetividade, mas concreta, objetiva, modificvel e

    radicada, de diferentes formas, em diversas sociedades.

    A moral se estabelece a partir da relao dos indivduos inscritos num

    determinado tempo e espao. Desta forma, o teatro, em diferentes momentos

    da histria, conduziu o homem ao encontro de sua moral. Portanto a relao da

    tica/moral e teatro tambm to antiga quanto o teatro. Mas como podemos

    inserir a tica nestes estudos de moral? Tradicionalmente a tica entendida

    como um estudo ou uma reflexo, cientfica ou filosfica, e eventualmente at

    teolgica, sobre os costumes ou sobre as aes humanas. (Valls, 2006, p. 1)

    Partindo destas definies notamos que a tica pode servir de sinnimo para a

    moral mesmo no tendo somente esta conotao.

    O teatro poltico pretende ratificar esta natureza intrnseca ao ato teatral

    e alcanar a reflexo livre do espectador em torno de questes de ordem tica

    e at mesmo a sua mobilizao para uma ao concreta na sociedade. Diante

    deste objetivo, assim como o teatro pico de Brecht inaugurou os efeitos de

    distanciamento no teatro moderno ocidental, o Teatro do Frum tambm

    contribui com mudanas estticas na arte de representar e confere ao

    espectador no s uma atitude crtica e analtica, mas convoca-o para uma

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    participao ativa na cena, condio fundamental para que o jogo teatral se

    realize neste tipo de apresentao.

    Assim, o Teatro do Oprimido lana-se em direo a uma reconstruo

    dos elos que se estabelece entre essas dimenses scio-culturais. Para isso,

    constri novas maneiras do teatro se relacionar com a sociedade atravs da

    modificao dos papis de produtor e fruidor do ato teatral, embasadas, muitas

    vezes, na ampliao dos conceitos que giram em torno do teatro, da tica, da

    esttica e da poltica. Contudo, o Teatro Frum, por ser tratado marginalmente

    pela comunidade teatral profissional, sob a alegao da no profissionalizao

    de seus realizadores e da questionvel qualidade esttica de seus produtos,

    no legitimou, ainda, o curinga como mais uma maneira de ser diretor na cena

    contempornea. Uma das causas desta no legitimao residiria no fato de o

    Teatro Frum ainda no ocupar o centro das encenaes denominadas como

    bom teatro sob a alegao de que as preocupaes estticas de seus produtos

    so muitas vezes relegadas em detrimento da militncia poltica, de questes

    teraputicas ou de ordem social. "A esttica ento subordinada ao embate

    poltico at o ponto de dissolver a forma teatral no debate de ideias". (Pavis,

    2005, p. 393)

    No obstante essas acusaes, necessrio ressaltar que, quando se

    monta um espetculo-frum, por mais simples que ele possa parecer, h a

    necessidade de se organizar os elementos da cena de forma a constituir uma

    linguagem autenticamente teatral, consistente e comunicativa. No Teatro

    Frum, o curinga funciona como um agregador e organizador das ideias de um

    grupo. Visto desse ngulo, quando o Teatro Frum dialoga com o circuito de

    teatro profissional e at comercial, por que no? sua capacidade e

    eficincia em conduzir processos de encenao ficam ainda mais evidentes.

    Nesta perspectiva o curinga agrega qualidades e funes de um

    diretor/encenador de teatro, mesmo no sendo legitimado como tal. Ao que

    poderamos nos perguntar: mas o que entendemos das funes de um diretor

    de teatro? Ou, at mesmo, de quais aspectos do encenador estamos traando

    aproximaes?

    Respostas a estas questes poderiam convocar novamente uma

    celeuma que se faz ante s distines das funes de diretor e de encenador.

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    Em se tratando de sculo XX, no podemos negligenciar a figura do encenador

    e as novas funes que ele exerce. Assim, compreendemos que o curinga

    pode vir a exercer tarefas inerentes tanto ao diretor quanto ao encenador. Isso

    porque parece que, mesmo com o advento da era dos encenadores, o

    vocbulo diretor ainda ocupa o imaginrio coletivo das pessoas de teatro

    mantendo-se como a forma lingustica mais significativa e popular para

    designar a pessoa que cumpre a tarefa de organizar a cena.

    Seria pretensioso fazer aqui uma anlise aprofundada da histria do

    diretor de teatro. O objetivo traar alguns aspectos e transformaes que

    acompanharam a pessoa e a funo do diretor ao longo dos sculos, todos

    eles bastante comuns e conhecidos dos mais nefitos do teatro. O intuito

    compreender o curinga como um novo modo de ser diretor na

    contemporaneidade, que agrega funes muitas vezes relegadas aos tempos

    pretritos, dialogando com uma das mais recentes e inovadoras formas de

    teatro, de metodologia de encenao e de atuao do diretor/encenador teatral.

    No diferente de outras pocas, a funo do diretor mesmo ainda no

    tendo esse nome ou funo especfica com maior ou menor expressividade,

    esteve sempre presente em toda histria da arte do espetculo teatral. O

    espetculo teatral, ao longo de sua histria, sempre esteve sob os olhos

    atentos de um mestre de cerimnia ou de um diretor que organizava a

    representao e fornecia os meios materiais bsicos para o acontecimento

    cnico [...] (Guinsburg; Faria; Lima, 2006, p. 123)

    Para falar apenas de Ocidente, comeamos esboando aspectos do

    diretor no Teatro Grego. Embora a concepo de trgico seja uma resposta da

    maneira de pensar e sentir de cada poca, o padro fundamental da tragdia

    continuou e continua sendo transmitido pelos gregos. (Arajo, 1991 p. 72) A

    tragdia clssica grega, que deveria ter por funo representar aes

    humanas, era vista com um carter educativo, ensinando as pessoas a

    buscarem uma medida ideal, no extrapolando traos da prpria

    personalidade.

    Na Grcia Antiga, o prprio autor dramtico encenava seus textos. As

    didasclias rubricas ou indicaes cnicas eram dispensveis, e a

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    interveno direta do dramaturgo dava-se no momento da construo da cena,

    por isso o organizador do espetculo teatral grego recebeu o nome de

    didascalo . Em princpio, o homem de teatro grego no era somente

    dramaturgo e diretor, mas, muitas vezes, tambm assumia as funes de ator e

    de corega.

    Ainda na Idade Mdia, a funo do diretor no tinha sido definida ou

    nomeada como tal. Para a encenao dos mistrios medievais, o artista que

    atendia s exigncias da cena era nomeado meneur de jeu. No Renascimento,

    com o advento da pintura em perspectiva, os cenrios pictricos retornaram

    adaptados das primeiras utilizaes no Teatro Grego com muita fora aos

    palcos, dando aos arquitetos e cengrafos a funo de organizar a cena. Dort

    (1977, p.65) explica que, cumprindo funes anlogas do diretor, os mestres

    de cerimnia do Teatro Elisabetano tinham, entre outras funes, a tarefa de

    obrigar os grupos a ensaiar diante deles. O objetivo do trabalho destes artistas

    era organizar a cena de acordo com formas invariveis que regiam cada estilo.

    Com o Realismo, a cena sofreu uma grande transformao, a nova

    dramaturgia convocou uma dinmica diferente na organizao dos elementos

    da cena. Para tanto, fez-se necessrio atribuir funes especficas ao diretor de

    teatro, cunhando-lhe este nome e capacitando-o como um especialista em

    organizar a cena. Mesmo assim, era muitas vezes um ator que, segundo suas

    afinidades, gostos literrios pessoais ou segundo a autoridade que tinha sobre

    seus companheiros, se encarregava do material do espetculo, daquilo enfim

    que chamaremos sua direo'. (Dort, 1977, p. 62)

    Quase simultaneamente ao Teatro Moderno, inaugurado com o advento

    do Teatro Realista/Naturalista, surgem novas formas de configurao da cena

    j influenciadas pelas vanguardas europeias. Segundo Joo Roberto Faria

    (1993), o estudo do teatro realista no Brasil compreende as produes teatrais

    centralizadas no Rio de Janeiro no sculo XIX. Para ele, o Realismo, em

    oposio ao Romantismo, foi uma nova maneira no s de escrever peas

    como tambm de interpret-las e encen-las. (Faria, 1993, p. XVII)

    Foi ento, neste momento da histria do teatro, que se passou a

    distinguir as funes, [...] o diretor encarrega-se da organizao tcnica da

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 8

    maquinaria e da cena, enquanto o encenador gerencia o resultado da operao

    dos diversos materiais e cuida de sua apresentao esttica. (Pavis, 2005, p.

    100) Esta diferenciao e o surgimento deste novo vocbulo encenador

    parte de uma viso histrica.

    a encenao que d sentido ao que se passa no palco. O encenador

    supre a fraqueza da plateia. A encenao a mediao entre o mundo fechado

    particular do palco, e o universo fragmentado e incompleto da plateia. (Dort,

    1977, p. 371) O encenador firmou-se como elemento fundamental para a

    construo da cena. No Dicionrio do Teatro Brasileiro, o verbete encenador

    reitera o pensamento de Dort transcrito acima: A irrupo deste novo prtico da

    cena provocou um choque com o pensamento vigente, que durou at meados

    do sculo. XX." (Guinsburg; Faria; Lima, 2006, P. 124)

    A histria do Teatro Contemporneo parece ser a histria dos

    encenadores. A realizao cnica vai se adiantando criao dramatrgica, o

    texto no est mais em primeiro plano. Hoje, quando falamos de teatro falamos

    de encenador e da relao entre a escrita dramatrgica texto dramtico e

    ao que se passou a chamar de escrita cnica encenao.

    Dort (1977, p. 66) explica que alguns homens de teatro, como Jacques

    Copeau, por exemplo, viram o aparecimento do encenador como [...] apenas a

    consequncia lgica da crescente complexidade dos espetculos. Ou seja, o

    avano e surgimento de novas tecnologias, tais como, a luz eltrica e a

    projeo cinematogrfica, teria provocado a necessidade desta mo de obra

    mais especializada. Esta explicao um pouco reducionista e o

    desenvolvimento do teatro provou, por exemplo, com o emblemtico Teatro

    Pobre de Jerzy Grotowsky, que ao contrrio de apoiar suas encenaes nas

    possibilidades cnicas trazidas pelo uso de novas tecnologias, buscava

    eliminar tudo que se podia mostrar como suprfluo da arte do espetculo

    cenrio, figurino, maquiagem privilegiando o relacionamento insubstituvel do

    ator com o espectador, como uma comunho perceptiva, direta e ativa.

    Assim como o Teatro Pobre de Grotowsky, exemplos como o Teatro

    pico de Brecht, o Teatro Antropolgico de Eugnio Barba e tantos outros

    encenadores modernos e contemporneos aparecem como diferentes

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    maneiras de fazer e pensar o teatro de uma poca que passou a eximir seus

    agentes da necessidade de obedecer a uma corrente esttica dominante. O

    encenador tornou-se responsvel pela organizao dos elementos que

    compem a cena teatral texto, cenrio, figurino, msica, maquiagem,

    iluminao com livre poder para criao de sua obra. Neste momento, as

    didasclias servem como sugestes e no como regras normativas da

    representao. Ento, o encenador pode no consider-las, por exemplo, ou

    entend-las como mais um elemento constituinte da linguagem da cena.

    Segundo Patrice Pavis (2005, p. 128) o encenador passou a ser a [...] pessoa

    encarregada de montar uma pea, assumindo a responsabilidade esttica e

    organizacional do espetculo, escolhendo atores, interpretando texto, utilizando

    as possibilidades cnicas sua disposio.

    Desta discusso, emerge uma polmica autoral. O encenador esfora-se

    por constituir uma linguagem autnoma e assinar o efeito esttico de sua obra.

    A autoria desloca-se do texto para a cena. Cientes da primazia do encenador

    nos dias de hoje, inclusive no Brasil, por que no vemos nas fichas tcnicas,

    nos programas e nos cartazes dos espetculos a denominao encenador?

    Com isso, parece que o pensamento de Dort, mesmo que datado nos idos da

    dcada de 70, ainda ressoa. Uma vez constatada esta primazia do encenador,

    resta ainda colocar uma questo: o que significa a encenao nos dias de

    hoje? Deve-se falar da encenao como simples atividade de coordenao ou

    como um meio especfico de expresso artstica? (Dort, 1977, p. 64)

    Esse coordenador do espetculo teatral reflete, em primeiro lugar, aquilo

    que, de maneira geral, denominamos de o esprito de seu tempo. Nestes

    termos, o professor Walter Lima Torres tenta elucidar estas diferentes formas

    de atuao do diretor de teatro, denominando-o de ensaiador dramtico com o

    intuito tambm de salientar o quanto do perodo de toda a histria do teatro sua

    funo esteve relacionada a colocar um texto em cena. De 1903 at os anos

    1950 e 1960 perdurou muito fortemente uma tendncia na direo teatral que

    foi basicamente textocntrica [...] o trabalho teatral do diretor primava ento por

    se associar, intimamente, palavra do autor. (Torres Neto, 2008)

    Aps estas interpretaes e definies sobre as funes do diretor e

    encenador de teatro, procuraremos outras fontes para auxiliar no entendimento

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 10

    destes papis. Por exemplo, a Lei brasileira n 4.641, de 27 de maio de 1965,

    dispe sobre os cursos de teatro e regulamenta as categorias profissionais

    correspondentes da seguinte maneira: Diretor de Teatro; Cengrafo; Professor

    de Arte Dramtica; Ator; Contrarregra; Cenotcnico; Sonoplasta.

    O Artigo 2 subscreve que o Diretor de Teatro, o Cengrafo e o

    Professor de Arte Dramtica sero formados em cursos de nvel superior, com

    durao e currculo mnimo fixados pelo Conselho Federal de Educao.

    Segundo a lei regulamentada, as atribuies do Diretor de Teatro so: "ser o

    responsvel pela transposio cnica, em termos de espetculo, de um texto

    dramtico, determinando a interpretao de papis, planejamentos e execuo

    de ensaios, at a unificao final de todos os elementos artsticos e tcnicos,

    que constituem esse espetculo".

    Partindo ainda do conhecimento da nossa legislao, j possvel

    observar pelas palavras transposio cnica de um texto dramtico que nos

    anos de 1965 parece que o Brasil ainda no via florescer, como na Europa, os

    homens de teatro com estilos fortes e assinaturas pessoais impositivas que

    faziam do texto dramtico mais um elemento para a construo das suas

    encenaes e no o tinham como primazia. certo que nosso legislativo quase

    nunca se mostra capaz de caminhar aos largos passos das transformaes

    sociais e culturais, mas estas conexes parecem concordar com a citao

    acima do Prof. Walter Lima Torres Neto.

    Hoje o texto dramtico no mais fundamentalmente o ponto de partida

    para um encenador, mas tambm pode o ser. So muito comuns espetculos

    que surgem adaptados de contos, romances, poemas, histrias reais... s

    vezes, antes de encenadas, essas histrias passam por uma adequao de

    linguagem e, depois de adaptadas para o formato de um texto dramtico, so

    encenadas. Contudo, o encenador pode ainda trabalhar o texto de sua pea

    simultaneamente construo das cenas, normalmente contando com a

    participao de um dramaturgo que, acompanhando a construo das cenas,

    aprimora o texto que surge atravs de improvisaes em sala de ensaio. A

    essas obras, cuja concepo e formatao do texto dramtico se do em

    paralelo produo do texto cnico, chamamos de work in progress.

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 11

    Aproximadamente nas dcadas de 1970 e 80, com a multiplicao de

    grupos de teatro que adotaram o processo da criao coletiva e o work in

    progress, a figura do encenador passou a ser questionada enquanto autoridade

    da cena. justamente neste perodo que a figura do curinga se firma como o

    ponto central do Teatro Frum.

    Utilizando-se de uma metodologia de trabalho bastante semelhante de

    vrios grupos que adotam o processo de criao coletiva, muitos grupos de

    Teatro Frum, que seguem a metodologia especfica do Teatro do Oprimido,

    originam seus textos dramticos atravs de improvisaes de criao coletiva.

    Nestes casos, o curinga muitas vezes se torna tambm o responsvel pelo

    registro e aperfeioamento destes textos gerados nos ensaios dos grupos,

    somando para si a funo do dramaturgo. Contudo, no necessariamente esta

    atribuio ser do curinga. Por vezes, o grupo possui em seu elenco outra

    pessoa com mais habilidade para exercer tal tarefa. Poderamos nos

    questionar ento: seria o curinga um tipo de mediador de um jogo de criao

    coletiva? Ento, o que h de particular na sua atuao?

    No teatro contemporneo, costume considerar o encenador como o

    principal autor da pea enquanto obra teatral, pois ele quem concebe a obra

    e toma as decises necessrias para a sua concretizao. Existem

    encenadores mais ou menos interventivos, democrticos ou autoritrios,

    dependendo da filosofia prpria da companhia teatral em questo. Hoje, ao

    passo do resto do mundo, o Brasil constri a sua histria atravs de homens de

    teatro que deixam seu legado ressoar alm de nossas fronteiras: Z Celso

    Martinez Correa, Antunes Filho e Augusto Boal, por exemplo. Mas Augusto

    Boal, o pai dos curingas, poderia ser considerado como um encenador? Por

    que no?

    O teatro contemporneo conclama as mais diversas e variadas

    possibilidades de participao do espectador, procurando compreend-lo a

    partir de uma abordagem psquica, social e antropolgica. Isso porque,

    segundo Pavis (2005), a metodologia da recepo hoje se interessa por um

    espectador que vive e experimenta o mundo ao invs de objetiv-lo ou critic-

    lo. "Imagina-se tal espectador no epicentro de um tremor de cena e dotado de

    uma tripla viso: psicolgica, sociolgica e antropolgica." (Pavis, 2005, p. 213)

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 12

    Hoje, o encenador se depara com um novo pblico e reconhece a sua

    participao efetiva na obra cnica, o que legitima uma nova alocao dos

    papis do espectador e do encenador no teatro. Todo encenador deve estar

    pronto para reconhecer um pblico mais atuante e participativo.

    Segundo Roubine ainda na dcada de 1990 nenhuma teoria,

    nenhuma prtica se eximia de se posicionar em relao ao espectador. A

    reflexo sobre a autonomia adquirida por este novo pblico deste novo teatro

    ainda hoje amplamente discutida. A atuao do espectador passou a ser

    necessria e desejvel. No estamos tentando determinar o poder do receptor,

    mas nos interrogar sobre suas contribuies para esta atual situao da cena

    teatral. Neste contexto, o encenador Augusto Boal rompe com um acordo

    estabelecido entre palco e plateia e modifica as noes de encenador e

    encenao tornando a atuao do espectador ainda mais necessria e

    desejvel.

    A afirmativa de que a cena contempornea colaborou intensivamente

    para a participao cada vez mais ativa do espectador evidente. E no

    estamos falando aqui de espetculos que contam com a colaborao to

    pungente do indivduo, como no caso dos Espetculos de Improviso ou dos

    Fruns. Estamos falando de espetculos organizados simbolicamente nos

    quais os sujeitos agem com a inteno de interpretar (recepo) a narrativa

    que se passa diante deles.

    Etimologicamente, o espectador designado como aquele que observa.

    O espectador quem sustenta o jogo teatral. No ato da recepo, ele quem

    d significado e faz conexes entre os elementos apresentados, seu repertrio

    e o mundo exterior. Ento, a partir deste momento em que se restitui ao pblico

    sua funo ativa, validando sua capacidade de consumir, criticar, admirar ou

    rejeitar, transforma-se o pensamento da comunicao e a preocupao do

    encenador passa a ser no somente o que recebido, mas o modo como

    recebido. Assim, apoiando-se nas teorias semiolgicas, Roubine (1998, p. 39)

    explica: "Hoje, qualquer espectador mais experiente est acostumado a

    apreender o espetculo como uma totalidade, a procurar nele um princpio de

    coerncia, de unidade...".

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 13

    Contudo, mesmo com a cena moderna e contempornea, o espectador

    ainda no constitui uma participao efetiva. O que existe uma pseudo-

    interao dentro de perfis pr-programados, em que lhe oferecida uma forma

    de relacionar-se criticamente, mas no lhe permitido intervir na cena. O jogo

    teatral se apresenta com regras muito rgidas, e o papel do espectador parece

    ainda no legitimar o efeito esttico da obra.

    Lembremo-nos, ento, que toda encenao e o Teatro Frum no

    diferente est organizada segundo sinais que totalizam um conjunto de

    reconhecimento possvel pelo espectador, mas isso no suficiente. Todo

    percurso metodolgico percorrido para atingir o espectador e faz-lo participar

    do evento no concludo se, simplesmente, o espectador no se permite

    enfrentar a mquina.

    Comumente conhecemos o espectador como uma entidade submetida a

    mecanismos cognitivos e emocionais, quem recebe o espetculo, conhece as

    regras da linguagem teatral e est disposto a submeter-se a estas convenes,

    independente da sua familiaridade com certos tipos ou estilos de encenao.

    Patrice Pavis, em A Anlise dos Espetculos, relembra que para apreciao de

    uma encenao necessrio que o espectador conhea as regras da

    conveno da linguagem teatral e esteja disposto a submeter-se a estas

    convenes, independente da sua familiaridade com certos tipos ou estilos de

    encenao.

    No caso do espetculo Frum, como j foi explicado, o pblico

    submetido a uma explicao do curinga acerca das regras da encenao do

    jogo e antes do incio da apresentao do anti-modelo lhe sugerida a

    participao em jogos teatrais de simples realizao que visam a

    desmecanizao do seu corpo e de sua mente com a inteno de melhorar as

    suas capacidades expressivas e criativas.

    Porm, aqui encontramos uma contradio, constatada com base em

    minhas experincias como curinga e espect-atriz: Numa apresentao de

    frum, nem sempre o espectador tem conscincia das regras s quais ele

    estar submetido, donde decorre que nem sempre ele est disposto a jogar,

    cem por cento, o jogo. As regras e as dinmicas, s quais ele est exposto

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 14

    antes do incio do espetculo, no so suficientemente eficientes para atingir

    um efeito catalisador necessrio sua interveno. Na grande maioria das

    apresentaes, em uma platia de 100 ou mais espectadores, encontram-se

    cinco ou seis corajosos dispostos a intervir na cena.

    necessrio ter coragem, e o curinga deve incentiv-los dizendo: Aqui

    (na cena) um ensaio para o mundo real. Se vocs no tm alternativas (aqui)

    no tero na vida... Contudo, o espect-ator estar exposto anlise e

    julgamento dos outros espectadores? Ser a sua prpria voz, gestos, roupas e

    principalmente, seu ponto de vista, que estaro em cena. Na maioria das

    vezes, ele no tem conscincia do personagem que representa e que precisa,

    ele prprio, enfrentar a mquina. O uso do figurino e dos acessrios do

    personagem ajuda a desinibi-lo como a colocao de uma mscara e

    contribui com o valor esttico a sua interveno que, pelo fato natural de estar

    em cena e fazer uso destes elementos simblicos, se investe de inteno

    teatral.

    Esta inteno teatral varia muito de acordo com o grau de desinibio e

    familiaridade que o espect-ator tem com a linguagem teatral e at mesmo com

    a relao que ele estabelece com o tema apresentado. Por exemplo, na

    maioria dos casos por mim presenciados, as intervenes apresentadas por

    artistas, atores e pessoas de teatro so revestidas de uma performatividade

    inerente a este pblico, mas muitas vezes destituda da sinceridade do seu

    envolvimento com o tema que tornaria sua atuao mais verdadeira. Mas nem

    sempre isso acontece.

    Contudo, notvel a mobilizao do pblico durante as intervenes dos

    espectadores ou das falas dos curingas, analisando e julgando as alternativas

    apresentadas. Esta mobilizao se apresenta no s nas intervenes, mas

    tambm de maneira interna, individual ou at mesmo com os comentrios

    frequentes, oriundos da plateia.

    Alguns espectadores consideram opressoras as prprias regras do jogo

    e no se motivam a expor seus pontos de vista quando so forados a no

    debaterem com discursos e, sim, com a ao. Esta maneira de conduzir o jogo

    que normalmente interrompe os debates que no acrescentam cena muitas

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 15

    vezes desmotivadora de novas intervenes e at mesmo bloqueia a

    possibilidade de atores e pblico detectarem em cena relaes de opresso

    que permanecem veladas e no foram pensadas para o espetculo, mas que

    possam ser pertinentes para o debate.

    Augusto Boal acredita que todo espectador um ator em potencial, por

    isso o conceito de espect-ator possui um aspecto hbrido e constitui nele as

    funes de ator e espectador, pressupe um desdobramento do sujeito.

    Segundo o autor, o ser humano capaz de se ver no ato de observar e no de

    agir.

    Porm, mesmo em um Frum, nos deparamos com uma imensa maioria

    de espectadores que no participam interagindo. Neste caso, eles

    permanecem na condio nica de receptores do evento teatral. Poderamos

    dizer que em uma plateia de frum nos deparamos com trs tipos de

    espectadores: aqueles que no intervm, os que intervm com suas falas, e os

    que intervm com ao (espect-atores).

    Esta ltima qualidade de espectador, que normalmente uma minoria

    no meio do pblico, se torna protagonista da ao, se desloca da condio de

    testemunha e passa a ser agente do discurso verbal legitimando o novo

    vocbulo espect-ator. E ele tambm espectador de si mesmo. A auto-

    observao, que tambm um ato de distanciamento, no permite ao espect-

    ator uma empatia total com o oprimido. Ele se coloca na condio de

    observador da situao do ponto de vista do personagem e depois empresta

    no s o seu ponto de vista, mas o prprio corpo para criar condies propcias

    soluo dos problemas apresentados. Esta condio implica num reflexo

    imediato na relao do espectador com o mundo e com a arte de representar,

    desenvolve no pblico uma condio de espectador atuante e comprometido

    com o jogo e com a vida.

    Paradoxalmente, o Frum prope ao espectador uma atitude ativo-

    distanciada, uma vez que, para exercer uma crtica social de transformao na

    cena e na vida, o espectador se confronta com a tarefa de identificar-se com a

    situao do oprimido e, numa atitude crtica, tomar o seu lugar na cena e agir

    propondo alternativas libertrias e libertadoras.

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 16

    O Teatro Frum prope novos modos de especulao da funo do

    espectador. Este teatro um jogo artstico e intelectual entre artistas e pblico,

    em que se vislumbra uma nova atitude do espectador porque a obra se

    completa e estabelecida no ato da recepo-ao. O espectador interfere

    totalmente na plasmao e na construo do espetculo, sendo dele

    solicitadas aes crticas e fsicas.

    Especificamente, o Frum, antes de propor ao espectador a

    possibilidade de intervir na cena, prope impe uma sistemtica de

    encenao em que o encenador, j prevendo a interveno do pblico, deve se

    ocupar da tarefa de construir sua obra na inteno de torn-la instigante e

    significante ao futuro interventor. Assim, o receptor da obra teatral tambm

    um cocriador da estrutura da encenao, o que faz o encenador curinga

    tornar-se, ao mesmo tempo, emissor e receptor do discurso. Ou seja, o

    encenador tambm se desdobra em seu papel: de emissor, ele se transforma

    em receptor nos momentos de criao e interveno do espectador na obra.

    O trabalho de montagem de um espetculo cnico a possibilidade de

    se dizer alguma coisa que no poderia ser dita de outra maneira ou em outro

    formato. A pertinncia da ideia ou da questo reivindica a cena teatral como

    lugar artstico propcio para expresso dessa ideia, desse problema que, no

    palco, se apresenta de forma potica. Cabe ao encenador emitir um juzo. Um

    juzo esttico e poltico. Parafraseando Boal, toda a escolha uma escolha

    poltica, inclusive escolhas estticas. Ter respostas poticas para a questo

    que lhe interessa dirigir, opinar. Encenar dar opinio sobre um

    determinado tema, uma certa situao, uma personagem especfica, um

    problema social objetivo, um fato poltico micro ou macro, no contexto universal

    ou na clula de uma pequena comunidade. Tambm faz parte da funo do

    encenador coordenar, fazer escolhas artsticas e tcnicas, conciliando o

    espiritual e o material de um espetculo. Se, por um lado, encenar um

    espetculo dar sentido a um juzo, problematizando-o de forma potica, por

    outro, conceber um espetculo trabalhar com problemas ticos e estticos.

    Sob estes princpios, possvel notar que a funo do curinga segue

    mtodos e normas que no tinham sido, at ento, convocadas como fatores

    determinantes para a conduo de processos de criao. O curinga inaugura

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 17

    uma nova participao na organizao da cena, mostra-se capaz de, numa

    atitude participativa e no autoritria, ser eficiente na conduo de diferentes

    processos criativos. A inaugurao de uma modalidade teatral indita Teatro

    Frum exigiu uma diferente atuao quanto conduo de processos de

    encenao e de mediao de jogo.

    No Teatro Frum, o curinga como antes os didascalos, meneur de jeu,

    mestres de cerimnia, diretores e encenadores assume, em diferentes graus

    de aperfeioamento de suas funes, o papel de ator, dramaturgo, encenador,

    multiplicador, mediador, produtor... Contudo, o elemento que agora inaugura e

    instaura uma nova e indita perspectiva nestas velhas e conhecidas funes

    que se exerce no teatro a interveno direta do espectador na cena. Nunca

    dantes o diretor precisou atuar conjugando as dimenses poltica e esttica do

    espetculo com as imprevisveis interferncias das intervenes que cada

    espectador pode e deve causar com suas performances e acepes sobre a

    cena. O curinga joga diretamente com a interveno do pblico. Este elemento

    essencial para a realizao de um espetculo frum e, ao mesmo tempo,

    (des)estrutura seu desempenho na mediao, na construo da cena e do

    drama. A interferncia direta do espectador na cena fator determinante de

    decises polticas e estticas na conduo do curinga com seu grupo desde os

    primeiros encontros at a apresentao da pea. O curinga deve estar atento

    para possibilitar uma interferncia sadia ao pblico, deix-lo vontade com o

    que se apresenta em cena nos mbitos da temtica abordada e das solues

    estticas. Desde o incio, ele deve pensar que a entrada do pblico ir

    modificar seu processo de criao e transformar a cena a cada apresentao.

    Esta significativa mudana na arte do espetculo trouxe transformaes

    substanciais para pensarmos em novas metodologias de encenao

    direcionadas para Fruns.

    Analisando a figura do curinga, suas funes e modos de atuao, bem

    como diante da dificuldade de categorizar o Teatro do Oprimido, mesmo na

    contracorrente da maioria dos pensadores de teatro que j o relegaram para as

    margens do teatro profissional, ainda podemos nos questionar sobre a relao

    do curinga com as funes inerentes de um diretor de teatro ou de um

    encenador. Estas dimenses presentes na figura do diretor, desde a Grcia

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 18

    Antiga at os tempos atuais, no esto distantes das funes que o curinga

    exerce no Teatro do Oprimido. Assim, poderamos afirmar que o curinga

    passeia por todas estas categorias sem estacionar-se em nenhuma delas,

    jogando com as funes que estiveram presentes na pessoa de um diretor de

    teatro desde os tempos pretritos at os atuais. Podemos considerar que o

    espetculo frum aproxima-se das encenaes contemporneas nos seguintes

    aspectos: 1- resgate do sentido do jogo e da festa no teatro, 2- no

    subservincia aos textos dramticos, 3- requisio de um espectador mais

    ativo e participativo. Desta forma, a pessoa do curinga possui aspectos de

    aproximao com o encenador de teatro, quem est melhor categorizado por

    aquele que conduz os processos de encenao que se enquadram nos trs

    aspectos acima apresentados.

    Seja qual for seu grau de aproximao com a figura de um

    diretor/encenador, o curinga nunca deixar de exercer trs funes prioritrias:

    mediar, coordenar e multiplicar. Ou seja, ele sempre ir mediar o jogo entre

    palco e plateia; coordenar administrativa e artisticamente o grupo com o qual

    est trabalhando e, como consequncia natural da sua ao atravs do Teatro

    do Oprimido, ele acaba por ser um multiplicador em potencial desta potica

    poltica. Da mesma forma, posso afirmar que encontramos sua pessoa atuando

    na sociedade enquanto: educador, terapeuta, ativista social e

    diretor/encenador. Ou seja, a exemplo do educador que, forma-se (ou torna-se)

    curinga e, utilizando-se das ferramentas do Teatro Frum, passa a exercer as

    funes de mediar, coordenar e multiplicar, criando um ambiente profcuo para

    o dilogo do Teatro do Oprimido com a educao. Da mesma forma, aqueles

    que atuam enquanto terapeutas, ativista-sociais e diretores/encenadores

    teatrais colaboram para o aprofundamento das relaes do TO com a terapia,

    com os movimentos scio-polticos e culturais e com a arte teatral propriamente

    dita.

    O curinga uma figura capaz de atuar em diversos setores da

    sociedade levando, democratizando a linguagem, colocando-a a servio de

    espectadores que jamais ouviriam falar de teatro se tivessem que, para isso,

    esperar por uma produo autenticada profissionalmente pelos rgos

    reguladores da profisso ou pelas academias de arte. E, da mesma forma, em

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 19

    ocasies bastante pontuais bem verdade, o curinga demonstra uma

    capacidade inata de organizao e agenciamento da cena.

    Dentro desta perspectiva, deposito meu olhar para o curinga como um homem

    de teatro que inaugura um novo modo de ser tambm diretor/encenador de

    teatro. Da mesma forma, a experincia de alguns diretores/encenadores-

    curingas comprova que o Teatro do Oprimido pode ser enriquecedor, no

    somente no que diz respeito s dimenses sociais e individuais, mas

    principalmente no tocante aos valores estticos do teatro. E isso se d,

    basicamente, pelas novas relaes que este gnero de teatro estabelece com

    o pblico.

    Ao fazer uma retrospectiva da funo do diretor ao longo da histria,

    percebemos que possvel conciliar a figura do diretor/encenador com esta

    potica to libertria e democrtica. Nesse contexto, o curinga surge e afirma-

    se como esta figura capaz de conjugar os elementos da cena e da

    improvisao do espectador, sem se deixar de submeter tais elementos a uma

    viso de conjunto da cena teatral. Ele seria um tipo especifico de

    diretor/encenador e tambm se inscreveria como um novo elemento da

    Linguagem Teatral, pois como j havia dito, sua figura presente em cena o

    que no caracteriza, em outras poticas e estilos, a funo do

    diretor/encenador implica em efeitos estticos para a mesma. Diante destas

    afirmativas, no podemos negligenciar a sua importncia para os estudos do

    teatro.

    fato que, quando nos referimos ao curinga, na minoria dos casos,

    estamos falando de pessoas que possuem conhecimentos apurados da

    linguagem teatral. Mas este no o pressuposto do frum do Teatro do

    Oprimido. Segundo Boal, para que exista frum, duas premissas so

    essenciais: que exista interveno (debate) e oprimido. Atualmente, o que

    vimos com a prtica recorrente de apresentaes de Teatro Frum o

    refinamento esttico em detrimentos das questes polticas. Por outro lado,

    muitas vezes, observamos no circuito profissional espetculos destitudos de

    qualquer razo ou porqu. Longe de pensar que todo espetculo deva ter um

    discurso poltico panfletrio ou didtico, a razo de um espetculo existir pode

    ser simplesmente fazer rir ou divertir o pblico, o que no devemos pensar

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 20

    um espetculo destitudo de razo para existir ou apenas calcado em questes

    comerciais.

    Seria pertinente refletir aqui um pouco a respeito do papel das

    universidades na formao de diretores de teatro e pensar de que maneira elas

    contribuem para o desenvolvimento tico e artstico dos aspirantes a diretores

    profissionais. Como as universidades brasileiras preparam seus currculos para

    formar diretores teatrais? O que elas entendem do exerccio da profisso?

    O profissional que conclui seu curso de bacharelado em direo teatral,

    segundo a legislao brasileira, tem outorgado pela Universidade seu diploma

    a fim de que possa gozar dos direitos e prerrogativas legais. Ele passa a estar

    habilitado a exercer a sua profisso. Porm, mesmo possuindo a mesma raiz

    etimolgica, as palavras hbil e habilitado podem ser entendidas com

    significados distintos: Habilitado aquele que pode provar com documentos

    legais sua habilitao jurdica e Hbil aquele que tem a capacidade para algo.

    De antemo poderamos nos questionar: seria possvel ensinar

    habilidade ao diretor de teatro? As universidades estariam apenas tornando o

    jovem habilitado ou lapidando as habilidades latentes nos aspirantes carreira

    de diretor? Diante destas perspectivas ainda no possvel negligenciar o fato

    de que a habilitao legal , muitas vezes, desnecessria ao exerccio desta

    profisso e, como j foi dito, a Universidade no o nico meio de alcanar

    esta habilitao.

    O papel da universidade na formao do diretor teatral fundamental

    para aqueles que escolhem o curso superior como um dos caminhos de

    formao do seu saber e um dos mais slidos e respeitados. Contudo,

    poderamos nos questionar tambm sobre os inmeros diretores de teatro,

    registrados com DRT que no possuem formao acadmica, nem em teatro,

    nem em outra rea qualquer. No estou fazendo deste fato nenhum demrito,

    estes questionamentos pretendem afinar a busca por uma definio mais

    precisa do que seria este profissional e, como consequncia lgica, o que

    chamamos de teatro profissional. Fato que o conceito de profissional ou no

    profissional no caminha pela ordem exclusivamente da academia ou da

    documentao emitida pela Delegacia Regional do Trabalho. importante

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 21

    ressaltar que no pretendemos estabelecer critrios sobre a questo, mas

    apontar sua subjetividade mesmo fazendo uso destas pseudodefinies na

    busca de algumas respostas: em qual categoria poderamos situar o Teatro do

    Oprimido, profissional ou amador? Poderamos definir o curinga como um

    diretor de teatro? Por que as universidades de Teatro no constituem um

    dilogo profcuo com a Potica do Oprimido? Como o Teatro Frum poderia

    contribuir na formao do diretor de teatro?

    Quando um futuro diretor se encontra em processo de aprendizagem de

    seu ofcio, seja na Universidade, em cursos tcnicos ou oficinas livres, uma das

    disciplinas mais negligenciadas pelos agentes facilitadores do aprendizado a

    tica. Dentro desta disciplina, o aprendiz, e tambm o professor, se deparam

    com questes que propiciam uma reflexo a respeito das razes de sua

    escolha profissional. Isso naturalmente ir interferir no seu relacionamento com

    o teatro, com seus colegas diretores, com atores, produtores e com os temas

    escolhidos para desenvolver seus futuros trabalhos.

    A Profa. Silvia Nunes (2001), no artigo Trs ou quatro perguntas para

    um bom Frum, enumera quatro questes que pertencem ao universo do como

    fazer um espetculo frum orientando seus agentes pela busca de respostas

    aos seguintes questionamentos: Qual a opresso de vocs em relao a este

    tema? O que vocs querem em relao a tudo o que foi colocado? O que

    impede vocs de conseguirem o que querem? Quais as sadas para o que

    vocs esto colocando? Estas perguntas, que esto claramente relacionadas a

    uma metodologia de trabalho de elaborao de Frum com grupos que querem

    falar sobre as suas opresses, podem ser substitudas, em uma verso menos

    objetiva e por isso mais abrangente, pelas trs questes que devem

    acompanhar todo diretor de teatro: o que, por que e como fazer.

    importante que o grupo tenha conhecimento da opresso que est

    sendo trabalhada. Atores e, principalmente, um curinga alheio s condies

    reais que cercam o tema adotado em cena so extremante prejudiciais ao

    frum. Como em qualquer montagem, no frum, o grupo precisa se inteirar do

    assunto em pauta, cada integrante deve pensar sobre a sua relao pessoal e

    seu ponto de vista diante da situao apresentada. Esses questionamentos

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 22

    devem ser conduzidos pelo curinga durante o processo de ensaio, da mesma

    forma podem ser levados plateia durante as apresentaes.

    O frum mostra-se um potente agente de treinamento para o aprendiz

    de teatro porque, para a realizao de sua montagem, imprescindvel pensar

    em um fator que nunca devia ter sido destitudo de nenhum espetculo teatral:

    o porqu de estar fazendo. A tica em momento algum pode ser negligenciada.

    Nem no processo de construo da cena, menos ainda na mediao do jogo.

    Esse aprendiz poder se utilizar desta ferramenta como meio de transformao

    e dilogo com outros setores da sociedade, mas pode tambm fazer uso do

    frum como Teatro em seu prprio fim um equilbrio entre a arte e a poltica

    sem relegar o espetculo para um ou outro polo.

    Para isso o diretor recorre a diversos recursos e possibilidades

    metodolgicas. Hoje, podemos nos permitir perguntar: quais as teorias ou

    metodologias para quais encenaes? O nosso recorte reduz a pergunta aos

    limites que tangem os espetculos que se utilizam das tcnicas do Teatro

    Frum.

    Os mecanismos de metodologia ou estudo do mtodo para

    encenao permitem ao diretor se lanar sobre a obra cnica de maneira

    sistematizada. Contudo, nem sempre feita uma escolha metodolgica no

    processo da montagem, e, mesmo que equivocado ou intuitivamente, o diretor

    escolhe um caminho. Porm, a escolha consciente do mtodo contribui sempre

    de maneira positiva para a montagem porque clareia os critrios da encenao

    e melhora, inclusive, o relacionamento entre elenco e direo.

    Partindo da escolha de um mtodo para encenar o seu espetculo, o

    diretor caminha observando e refletindo sobre seu processo de montagem. A

    metodologia da encenao se esfora em objetivar e organizar os sistemas de

    significao do espetculo; parte de questes fundamentais que legitimam o

    valor ideolgico de sua encenao e percorre a escolha criteriosa de elementos

    pertencentes ao universo da linguagem teatral.

    O que torna peculiar a metodologia direcionada a espetculos que

    utilizam as tcnicas do Frum o ato de pensar e estruturar uma obra que seja

    intencionalmente preparada para receber quantas intervenes forem

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 23

    necessrias a cada apresentao. Ou seja, a obra do Teatro Frum

    propositalmente pensada para ser incompleta.

    Em face do exposto, esse estudo enseja alimentar outra importante

    ambio: a de que a mensagem aqui veiculada tenha ecos tambm nos

    agentes formadores de curingas, para que eles no negligenciem a deficincia

    do apuro esttico da grande maioria dos grupos que atuam utilizando-se das

    tcnicas do TO.

    No mbito da pesquisa e do ensino do teatro, devemos tambm apontar

    para a necessidade de se formar e especializar curingas na linguagem do

    teatro e, ao mesmo tempo, apresentar aos diretores/encenadores as tcnicas

    do Teatro Frum, com o fim de torn-los capazes de apurar seus

    conhecimentos especficos e ampliar suas possibilidades de encenao nas

    montagens de espetculos-frum ou de outras modalidades teatrais.

    Desta forma, os rgos que se propem ao ensino do teatro deveriam

    afinar seus olhares para esta potica, capaz de despertar em jovens

    aprendizes, valores pertinentes sua prtica teatral, tanto em relao

    dimenso esttica, quanto no que diz respeito aos valores ticos e polticos em

    jogo, na Potica do Oprimido. Deveramos nos preocupar em incentivar a

    proliferao destas tcnicas porque atravs delas estaramos tornando o teatro

    mais popular e acessvel. Proporcionar a disseminao dos meios de produo

    de um conhecimento , ao contrrio do que muitos de ns pensamos, uma

    possibilidade de formar e aumentar as plateias do teatro.

    cada vez mais comum na cena contempornea encontrarmos

    exemplos de espetculos que, pela conjugao de elementos da msica, das

    artes plsticas e da dana, resultam numa combinao precisa, numa

    expresso cnica teatral nica. Hoje, cada espetculo mpar nas suas

    relaes e desta multiplicidade que a cena contempornea se alimenta, se

    sustenta. O teatro se apresenta como um campo aberto para experimentos

    diversos, torna-se um teatro vivo, vigoroso e transformador, em que no se

    aposta mais na homogeneidade das ideias e, sim, no reforo do seu carter

    dialtico, dialgico e ideolgico.

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 24

    Atualmente impressionante a proliferao de espetculos abertos, que

    autorizam e fazem do espectador um autor em potencial da cena/imagem que

    se lhes apresenta. O teatro contemporneo resulta mais e somente da

    profunda modificao das tcnicas cnicas (de direo e interpretao). O que,

    de fato, mais se transformou foi a relao entre palco e a plateia, a busca de

    um novo pblico de teatro, integrao e a aceitao da participao ativa do

    mesmo. "A atividade cnica pretende ser pura criao, nascida de um nico

    homem e completa em si mesma, oferecida no a um pblico, mas a cada

    indivduo que o integra, separadamente." (Dort 1970 p. 372). para este

    indivduo e com ele que o encenador mostra o mundo atravs de novas

    significaes. As inditas relaes de troca entre palco e plateia respondem s

    novas necessidades da figura do encenador que determina a maneira como a

    pea ser recebida.

    Ns fazemos do teatro uma arte presente porque ns vivemos o tempo

    presente e, por isso, fazemos o teatro presente. Ento, no podemos deixar de

    acreditar que, com novas ou antigas relaes, o teatro sobrevive numa eterna

    busca da melhor relao com seu pblico. E continuamos produzindo.

    No podemos nos abandonar na dimenso simplista da ideia de que,

    para existir teatro, basta uma pessoa na posio de ator e outra na posio de

    espectador. A experincia no acontece se ambos no se encontrarem

    mergulhados em seus papis, em suas diferentes configuraes, esforando-

    se para produzir um sentido. Da mesma forma, no podemos nos deixar

    convencer de que o teatro territrio de ningum, onde cada um fala e entende

    o que quer. O espetculo teatral uma vivncia intencional que pretende

    comunicar algo e quem recebe pretende fazer parte daquela experincia,

    estabelecendo um significado, seja intelectual e/ou sensorial.

    No Brasil e no mundo, em condies mais ou menos favorveis, existem

    grandes pessoas de teatro que trabalham pesquisando estratgias de relaes

    com o pblico. Artistas plenamente capazes de transformar o espao cnico e

    escrever mais um perodo de grande transformao na histria do teatro. E,

    como j pudemos notar, nesta esfera, inscreve-se o encenador Augusto Boal e

    a Potica do Oprimido. Da mesma forma, j sabemos que este conjunto de

    tcnicas teatrais estabelece um dilogo profcuo com outras esferas da

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 25

    sociedade como a poltica, a teraputica e a didtica, por exemplo, tornando-

    se, atravs de seus meios e tcnicas cada vez mais presente, eficaz na

    resoluo de problemas no mbito destes grandes domnios.

    Acreditamos que j no podemos mais negligenciar o fato de o curinga

    ainda ser uma carta fora do baralho oficial do jogo do teatro, pelo menos, no

    Brasil, e de Boal ainda ser um brasileiro que o Brasil no conhece. preciso

    resgatar a importncia desta atividade potica-poltica, ao passo que

    poderamos nos questionar sobre suas implicaes num mundo teoricamente

    mais democrtico, de inmeras mas quase sempre ineficientes polticas de

    incluso. Ao que concerne explorao cnica, legitimidade e democratizao

    da atividade artstica, ainda precisamos nos demover dessa disfarada

    opresso cultural e criativa que inviabiliza a libertao no s de povos e de

    mentes, mas tambm de autnticos processos criativos que deveriam participar

    de uma poltica pblica e cultural democrtica e verdadeiramente inclusiva.

    Para concluir, um pequeno pensamento de Augusto Boal, retirado de

    uma de suas mais recentes falas, de seu discurso no Frum Social Mundial

    que aconteceu em Belm do Par no dia 31 de janeiro de 2009. "No basta

    consumir Cultura: necessrio produzi-la. No basta gozar arte: necessrio

    ser artista! No basta produzir ideias: necessrio transform-las em atos

    sociais, concretos e continuados. Temos que agir!"

    Chegamos ao final deste artigo com a esperana de poder iluminar,

    ainda que minimamente, o pensamento dos profissionais que produzem a

    cultura oficial deste pas, para que os mesmos permaneam atentos ao que

    est sendo produzido, a fim de que possamos refletir sempre no o que, com

    quem, para quem e o porqu de fazer teatro. De uma maneira ou de outra,

    somos tambm possuidores dos modos de produo e, por isso, responsveis

    pelas relaes que o teatro continua estabelecendo com a tica, a poltica e a

    esttica. O teatro no caminha sozinho, somos ns que, em nome dele, em

    prol dele e, s vezes, at contra ele, percorremos o caminho!

  • Cena em Movimento - Edio n 1 SILVA, Carolina Vieira 26

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