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ISSN 1809-2616 ANAIS V FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006-2007 CURITIBA E O GRALHA: reflexões sobre a identidade de uma cidade pela ótica de uma história em quadrinhos Liber Eugenio Paz * [email protected] Marilda Lopes Pinheiro Queluz * 1 [email protected] Resumo: As histórias em quadrinhos são um meio de comunicação que se caracteriza por combinar seqüências de imagens estáticas que se relacionam ou não com elementos textuais, procurando construir uma narrativa ou transmitir uma informação. Em Curitiba, um grupo de desenhistas criou um personagem de histórias em quadrinhos chamado O Gralha. A proposta do grupo era criar um personagem que tivesse relações com a identidade cultural local e que pudesse ser comercializado enquanto produto cultural. O personagem foi publicado por um dos jornais de maior circulação da cidade por cerca de dois anos. O propósito deste trabalho é estudar as histórias em quadrinhos produzidas com o personagem e verificar a construção desses novos olhares e como elas nos permitem refletir sobre a identidade cultural da cidade. Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Identidade; Arte. APRESENTAÇÃO O presenteartigo tece consideraçõessobrea questãoda identidadelocal de umacomunidade refletida na criação de uma obra concebida com o propósito de interagir com elementos icônicos e * Mestrando do PPGTE, linha de pesquisa Tecnologia e Interação, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UTFPR. * * Doutoraem Comunicaçãoe Semiótica(PUC-SP), Professorados cursosde graduaçãoe pós-graduaçãoda Universidade TecnológicaFederaldo Paraná, UTFPR. 1 2

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ISSN 1809-2616

ANAISV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006-2007

CURITIBA E O GRALHA: reflexões sobre a identidade de uma cidade pela

ótica de uma história em quadrinhosLiber Eugenio Paz∗

[email protected] Lopes Pinheiro Queluz∗1

[email protected]

Resumo: As histórias em quadrinhos são um meio de comunicação que se caracteriza porcombinar seqüências de imagens estáticas que se relacionam ou não com elementostextuais, procurando construir uma narrativa ou transmitir uma informação. Em Curitiba, umgrupo de desenhistas criou um personagem de histórias em quadrinhos chamado O Gralha.A proposta do grupo era criar um personagem que tivesse relações com a identidadecultural local e que pudesse ser comercializado enquanto produto cultural. O personagemfoi publicado por um dos jornais de maior circulação da cidade por cerca de dois anos. Opropósito deste trabalho é estudar as histórias em quadrinhos produzidas com opersonagem e verificar a construção desses novos olhares e como elas nos permitemrefletir sobre a identidade cultural da cidade.Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Identidade; Arte.

APRESENTAÇÃO

O presente artigo tece considerações sobre a questão da identidade local de uma comunidade

refletida na criação de uma obra concebida com o propósito de interagir com elementos icônicos e

∗ Mestrando do PPGTE, linha de pesquisa Tecnologia e Interação, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná,UTFPR.∗∗ Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), Professora dos cursos de graduação e pós-graduação da UniversidadeTecnológica Federal do Paraná, UTFPR.1

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conceituais que supostamente caracterizam essa identidade. O objeto de estudo desse artigo é o

conjunto de histórias em quadrinhos do personagem O Gralha, escrito e desenhado por autores

naturais da cidade de Curitiba. Assim, o artigo constitui uma proposta de abordagem inicial de

compreensão dos elementos simbólicos e culturais constitutivos de uma possível identidade da cidade

de Curitiba, presentes na obra sob a forma de histórias em quadrinhos. O Gralha foi escolhido por ter

sido produzido por uma série de artistas com visões completamente diversas sobre o que constituiria

uma possível identidade da cidade. É o conjunto dessas visões, em suas interações e diálogos, que

pode permitir elaborar um quadro possível do discurso que dá sentido ao conceito de Curitiba

enquanto comunidade simbólica.

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

As histórias em quadrinhos são um meio de comunicação que se caracterizam por combinar

seqüências de imagens estáticas que se relacionam (ou não) com elementos textuais, procurando

construir uma narrativa ou transmitir uma informação e que podem servir de suporte para diversas

idéias e mensagens, com propósitos artísticos, educativos, políticos e outros.2 Com base no termo

“arte seqüencial” cunhado por Will Eisner,3 Scott McLoud4 elabora a seguinte definição para histórias

em quadrinhos: “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a

transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”. A partir dessa definição, ao

procurar traçar uma trajetória histórica dos quadrinhos, McCloud5 sugere que várias obras (murais

egípcios, séries de gravuras medievais) poderiam ser consideradas histórias em quadrinhos.

Dentro da modernidade, um momento importante para as histórias em quadrinhos ocorre no

final do século XIX, quando jornais passam a publicar páginas e suplementos contendo cartuns,

caricaturas e histórias em quadrinhos, como um atrativo a mais para seu público. Esse momento é

importante ao vincular a narrativa seqüencial com uma mídia impressa caracterizada pela circulação

diária em grande tiragem, o que confere aos quadrinhos um aspecto essencialmente moderno,

2 McCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. 1. ed. São Paulo: Makron Books, 1995.3 EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 19904 McCLOUD, 1995. Op. cit.5 McCLOUD, 1995. Op. cit.

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relacionado à sua reprodutibilidade, divulgação e velocidade de consumo6. É dessa época o

surgimento do personagem Yellow Kid, considerado um marco histórico para os quadrinhos

modernos.7 A recepção positiva das tiras em quadrinhos por parte do público incentivou, no início do

século XX, em meados da década de 1930, nos Estados Unidos, a publicação das primeiras revistas

contendo exclusivamente histórias em quadrinhos, originando o popular comic book, originalmente

uma coletânea das tiras dos jornais.8

O sucesso comercial destas revistas incentivou a produção de outras, contendo material

próprio, independente do formato das tiras de jornais. Sob influência das novelas e revistas de pulp

fiction, as novas histórias em quadrinhos trazem histórias sobre detetives, criminosos, aventureiros.

Nesse contexto surge o super-herói, caracterizado pelo homem com poderes extraordinários e

vestimenta espalhafatosa. O gênero do super-herói ganharia destaque e popularidade a ponto de se

tornar praticamente um sinônimo do veículo que o suportava (as revistas de histórias em quadrinhos).

Essa relação estreita entre o gênero “super-herói” e histórias em quadrinhos perduraria por anos,

sendo muito forte ainda nos dias atuais. Nas décadas de 1930 e 1940, no mercado norte-americano, a

alta demanda por histórias em quadrinhos, o público constituído basicamente de crianças e jovens do

sexo masculino e a inépcia da mão-de-obra que produzia o material, entre outros fatores, ajudaram a

construir a imagem das HQ´s como material descartável e de valor estético discutível.

Entretanto, no decorrer do século XX, com o surgimento de movimentos de contra-cultura,

diversos autores (Robert Crumb, Rick Griffin, Victor Moscoso, entre outros) propõem as histórias em

quadrinhos como meio de abordar novos temas e questionar os valores hegemônicos do quadro sócio-

cultural vigente.9 A partir daí, as HQ´s também ganham um caráter subversivo, quase marginal. São

explorados os limites da linguagem, partindo do conteúdo, passando pelo layout da página, relação

entre texto e imagem e possibilidades estéticas das próprias técnicas de reprodução.

No final do século XX, encontramos duas linhas de desenvolvimento e abordagem das

histórias em quadrinhos que não necessariamente se excluem, mas antes dialogam e interagem.

Em uma abordagem, na cultura ocidental contemporânea, os quadrinhos possuem uma

estreita relação com a indústria do entretenimento, servindo de base para a criação de uma série de

6 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.7 MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.8 CAMPOS, Rogério de. Outra História. In: CLOWES, Daniel et al. Comic Book: o novo quadrinho norte-americano. São Paulo: Conrad do Brasil, 1999. p. 7-21.9 CAMPOS. In: CLOWES, 1999. Op. cit., p. 7-21.

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produtos culturais destinados ao consumo em si, próprios ou mediados pela transposição para outros

meios de comunicação (cinema, desenho animado, tv, internet, games) e produtos (brinquedos,

camisetas, acessórios). Como exemplo prático dessa abordagem, podemos citar o personagem

Homem-Aranha, que originou uma numerosa gama de produtos relacionados à sua imagem/mito

(filmes, desenhos animados, brinquedos, jogos e diversos produtos).

Em outra abordagem, a obra em quadrinhos procura abordar temáticas mais críticas em

relação ao contexto sócio-cultural contemporâneo, sem se preocupar necessariamente em conceber

um produto de consumo de massa. Um exemplo é a célebre série Maus, de Art Spiegelman,

vencedora de um Prêmio Pulitzer e que narra as entrevistas do artista com seu pai, um sobrevivente

do campo de concentração de Auschwitz.

No Brasil, a história dos quadrinhos remonta ao século XIX, quando encontramos os trabalhos

de Ângelo Agostini10 (cerca de 1869). No princípio, as histórias em quadrinhos partilhavam espaço nas

páginas de algumas publicações brasileiras, mas ganharam popularidade e destaque para merecerem

publicações exclusivas, como a clássica O Tico-Tico (1905), que equilibrava traduções de títulos

norte-americanos com produções de artistas nacionais. O Suplemento Juvenil (1934) apresentaria

a primeira geração de heróis norte-americanos ao público brasileiro, seguido pela publicação que se

tornou sinônimo de quadrinhos no Brasil, a revista Gibi (1939).11

O mercado editorial brasileiro de histórias em quadrinhos foi muito diversificado durante o

século XX, com uma marcante presença de material estrangeiro, principalmente norte-americano.12 A

produção de histórias em quadrinhos nacionais sempre teve dificuldades em se manter constante

dentro do mercado nacional, salvo raras exceções. Muitos dos artistas envolvidos na criação de

quadrinhos bancavam (e ainda bancam) a publicação do próprio trabalho na forma dos chamados

fanzines, impressões fotocopiadas, praticamente artesanais, que originaram toda uma cultura de

produção alternativa.13 Dentro dessa cultura surgiram muitos dos artistas em quadrinhos brasileiros

mais significativos da atualidade, como Laerte, Lourenço Mutarelli e Angeli.

10 MOYA, 1996. Op. cit.11 WERNECK, Humberto (Ed). A Revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000.12 JUNIOR, Gonçalo. A Guerra dos Gibis. A formação do mercado editorial brasileiro e a censura aosquadrinhos, 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.13 ALBERNAZ, Bia e PELTIER, Maurício. Almanaque de fanzines: o que são, por que são, como são. Rio deJaneiro: Arte de Ler, 1995.

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APRESENTANDO O GRALHA

Curitiba possui certa tradição na produção de histórias em quadrinhos. No final da década de

1970 e início da década de 1980, a editora Grafipar, sediada na cidade, lançou uma série de revistas

em quadrinhos com material produzido por artistas brasileiros. Também foi em Curitiba que foi criada a

primeira Gibiteca do país, em junho de 1982.14 Além de ter um grande acervo de milhares de títulos de

histórias em quadrinhos, a Gibiteca oferece, há muitos anos, oficinas de produção de quadrinhos para

a comunidade. Por meio destas oficinas, a produção é incentivada e desenhistas locais se conhecem,

aprimoram técnicas e trocam experiências.

Um desses grupos de desenhistas formados pela Gibiteca viria a criar um personagem, de

acordo com o modelo norte-americano de super-herói, isto é, um personagem com super-poderes que

utiliza uma fantasia para ocultar sua verdadeira identidade. Este personagem foi chamado de O Gralha

e a idéia era que suas histórias e coadjuvantes brincassem com todos os elementos que o grupo de

desenhistas acreditava fazerem parte ou definirem a identidade cultural da cidade. O próprio

personagem era construído em torno da imagem da gralha azul, pássaro considerado um dos

símbolos do estado do Paraná. A primeira história protagonizada pelo personagem Gralha apareceu

em uma publicação bancada pela Fundação Cultural de Curitiba para celebrar os quinza anos da

Gibiteca, em outubro de 1997.15 O título desta revista era Metal Pesado.16 Possuía 54 páginas

apresentando trabalhos de diversos quadrinistas curitibanos, das quais 15 foram ocupadas pelo

Gralha. Participaram da produção da história Alessandro Dutra (design visual do personagem), Gian

Danton (roteiro) e os desenhistas Antonio Eder, Luciano Lagares, Tako X, Edson Kohatsu e José Aguiar

(que também participou da elaboração do roteiro). A capa da edição contou com a arte do veterano Nilso

Mueller.

A trama da história se resumia ao resgate da namorada do herói Gralha, que havia sido

seqüestrada por uma quadrilha de chupa-cabras.17 Cada desenhista foi responsável pelo layout e

pela arte de duas páginas, o que resultou em um conjunto confuso e desconexo. Esses desenhistas

14 AGUIAR, José. Gibiteca: a maioridade dos quadrinhos. Disponível em: <http://www.omelete.com.br/quadrinhos/artigos/base_para_artigos.asp?artigo=75>. Acesso em 2 maio 2006.15 AGUIAR, José. O Gralha. Disponível em: <http://www.omelete.com.br/quadrinhos/artigos/base_para_artigos.asp?artigo=3>. Acesso em 24 jul. 2006.16 MOYA, Álvaro de; PACHECO, Eloyr (Ed.). O Gralha. Metal Pesado: Edição Comemorativa 15 anos da Gibiteca deCuritiba, São Paulo, p. 5-19, out. 1997.17 O Chupa-Cabras era uma figura folclórica que recebeu grande destaque popular por sua suposta relação com osepisódios de supostas aparições de óvnis nos estados do Paraná e Bahia, nos anos de 1997 e 1998.

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apresentam, nessa primeira história, pontos de vista característicos e singulares a respeito da

construção de roteiro e da interpretação do personagem que se fariam presentes nas produções

posteriores de HQ´s do Gralha para o jornal Gazeta do Povo. Por exemplo, a irreverência de Antonio

Eder, o enfoque do cotidiano urbano de Luciano Lagares, o experimentalismo do layout de José

Aguiar, as referências às HQ´s americanas de Tako e Edson Kohatsu.

Cerca de um ano após a publicação da primeira história do Gralha, o jornal curitibano Gazeta

do Povo manifestou interesse em publicar as histórias do personagem em seu suplemento semanal

Caderno Fun, voltado para o público jovem. A partir de 18 de setembro de 1998, o Gralha passou a

ser publicado ocupando um espaço de meia página do formato tablóide do jornal. A equipe de

desenhistas se alternava na produção de histórias que variavam de duas a oito páginas, impressas

uma de cada vez, seguindo o modelo serializado das tiras em quadrinhos de aventura do começo do

século XX.18 As histórias em quadrinhos do Gralha foram publicadas pela Gazeta do Povo até o dia 22

de dezembro de 2000. Posteriormente, a editora paulista Via Lettera publicou, em abril de 2001, um

álbum19 contendo todas as histórias publicadas pelo jornal paranaense.

IDENTIDADES: FICÇÕES E CIDADES

Na construção do universo fictício do personagem Gralha, a intenção dos autores era brincar

com “os ícones da cidade de Curitiba”,20 abordando-os de maneira satírica na elaboração dos

personagens da série. A idéia principal era desenvolver “um herói-template: uma personagem que não

sirva como figura principal das histórias, mas mais como um fundo, uma cobertura, para [...]

explorarem o universo de clichês e da linguagem dos quadrinhos norte-americanos”.21 Spinuzzi22 cita

que, de acordo com Bakhtin e Medvedev, “gênero” são formas cultural e historicamente construídas de

observar e conceituar a realidade. Analisando para o “gênero” super-herói, encontramos algumas

características que se apresentam com freqüência:

18 MOYA, 1996. Op. cit.19 MARTINS, Jotapê (Ed.). O Gralha: Primeiras Histórias. São Paulo: Via Lettera, 2001.20 ASSIS, Érico. Sete perguntas para três gralhas. Disponível em: <http://www.omelete.com.br/quadrinhos/artigos/base_para_artigos.asp?artigo=335>. Acesso em 24 jul. 2006.21 ASSIS, 2006. Op. cit.22 SPINUZZI, Clay. Tracing genres through organizations: a sociocultural approach to information design.Cambridge, Massachussets: The MIT Press, 2003.

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• a presença de um disfarce e o conceito de dupla identidade;

• o confronto constante com algum “vilão” que perturba a ordem vigente;

• o elemento fantástico, que permeia quase todas as situações.

Dentro dessas regras é concebida a maior parte das histórias do Gralha. Na série que se

desenvolve, o Gralha é, em sua identidade secreta, um adolescente estudante de cursinho chamado

Gustavo Gomes, que mora sozinho na cidade de Curitiba. Aqui podemos começar a discutir a questão

da identidade da cidade, do modo como ela se apresenta nas histórias em quadrinhos do Gralha. A

princípio, a meta é idealizar uma Curitiba futurista, uma cidade ideal localizada em algum ponto não

definido do futuro, onde se desenrolariam as aventuras do personagem. Uma cidade que comportasse

todos os lugares comuns das aventuras de super-heróis,23 como por exemplo uma usina nuclear

abandonada ou um cais no porto (nesse futuro fictício a cidade cresceu desmesuradamente e se

tornou uma megalópole, com seus limites chegando ao litoral). A curiosidade a respeito dessa

resolução sobre a cidade futurista é que nem todos os artistas envolvidos a representavam da mesma

maneira. Em muitas histórias vemos uma Curitiba contemporânea, muito próxima da cidade real. Em

outros episódios, vemos veículos espaciais dando voltas ao redor da catedral... Essa falta de

coerência com relação à representação da cidade levanta uma série de reflexões interessantes sobre

a questão de identidade.

Stuart Hall24 argumenta que as identidades locais (“nacionais”) “não são coisas com as quais

nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”. Assim, seguindo

o raciocínio de Hall, podemos dizer que Curitiba, enquanto local geográfico que abriga uma

comunidade de pessoas, “não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos – um

sistema de representação cultural”.25 Assim, Curitiba poderia ser definida como uma

“comunidade simbólica”, o que explica a possibilidade de criar um sentimento de identidade com

relação a ela. Para Hall, a partir de símbolos e representações é construída uma narrativa, um

discurso do qual se originam sentidos sobre “a cidade”, sentidos com os quais criamos uma

identidade.26 Dentre as estratégias utilizadas para construir uma narrativa que possibilite a

elaboração de uma identidade local, Hall aponta para

23 AGUIAR, 2006. Op. cit.24 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro, 2005.25 HALL, 2005. Op. cit.26 HALL, 2005. Op. cit.

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a narrativa da nação: tal como é contada e recontada nas histórias e nasliteraturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas fornecem umasérie de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos,símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiênciaspartilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação.27

No caso de Curitiba, alguns dos símbolos adotados para representá-la são comuns ao estado

do Paraná (a araucária, a gralha azul), outros são bem específicos e estão relacionados à geografia e,

principalmente, à arquitetura local. Na mitologia do Gralha encontramos uma série de personagens

que literalmente aludem a símbolos e referências culturais da cidade como o Homem-Lambrequim, o

Café Expresso, O Craniano (com cabeça de pêssanka28), a Polaquinha, entre outros.29

Na primeira história do Gralha, ainda na edição comemorativa do aniversário da Gibiteca,30 a

relação icônica com a identidade cultural paranaense se faz pela presença de algumas araucárias

desenhadas no fundo de alguns quadrinhos e da relação simbólica do protagonista com a gralha azul.

Nessa primeira história, a própria identidade do personagem ainda não estava bem definida. Ele

aparece sem dar pista alguma de sua “identidade secreta” e parece muito mais maduro do que um

adolescente que freqüenta aulas de pré-vestibular. A namorada, que nem chega a receber um nome,

nunca mais é citada.

Nas histórias produzidas para a Gazeta do Povo, apesar das incoerências supracitadas,

vemos uma intenção de incorporar ao enredo referências a outros aspectos característicos da cidade.

Na história Bakun31 (Figura 1), de autoria de Luciano Lagares, um quadro do pintor paranaense serve

como ponto de partida para a trama.

Figura 1 – O Gralha. Bakun. Parte 1 de 4.

27 HALL, 2005. Op. cit.28 Ovos pintados à mão pela comunidade ucraniana na ocasião da Páscoa.29 AGUIAR, José. O Gralha. 2006. Op. cit.30 MOYA; PACHECO, 1997. Op. cit.31 MARTINS, 2001. Op. cit.

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Miguel Bakun (1909-1963) “é considerado um dos pioneiros da arte moderna do Paraná”,32

comparado, devido a seu estilo e temperamento, ao pintor holandês Vincent van Gogh. A vilã

Araucária (que tem o poder de tornar-se gigantesca como uma araucária) disfarça-se como cicerone

de uma exposição de quadros de Bakun e, enquanto discursa sobre a biografia do artista, rouba um de

seus quadros. Há uma interação com um artista símbolo da cidade e um diálogo lúdico com um dos

temas principais de sua obra, a paisagem.33 Ao crescer, a personagem Araucária torna cada quadro

uma paisagem surreal, onde os prédios da cidade surrealisticamente dividem espaço com a vilã. No

desenrolar da trama, o herói Gralha subitamente se vê dopado e vítima de uma série de alucinações

envolvendo alienígenas e agulhas. Ao retornar a si, ele descobre que toda a operação de furto do

quadro tinha sido um embuste para roubar uma amostra de seu sangue.

32 Miguel Bakun. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index. cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=2798&cd_item=1&cd_idioma=28555>.33 Miguel Bakun. Op. cit.

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Em outra história, O Gralha: a imprensa o saúda34 (Figura 2), de José Aguiar, vemos um

painel que brinca com os meios de comunicação da cidade, a tv e o jornal. Temos retratado o hábito

da leitura na parede da banquinha. Também está presente uma referência a um folclórico

apresentador de um popular programa jornalístico policial, imediatamente reconhecível para o cidadão

curitibano.

Figura 2 – O Gralha. E a imprensa o saúda. Parte 2 de 7.

Estes são alguns exemplos de abordagens, nas histórias do personagem, que apreendem

aspectos que poderiam auxiliar em uma tentativa de construção de uma possível identidade da cidade

de Curitiba.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

34 MARTINS, 2001. Op. cit.

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Na tentativa de construção da identidade curitibana, misturam-se elementos urbanos, traços

dos imigrantes, elementos folclóricos, referências geográficas e histórico-culturais, propondo uma

diversidade de olhares sobre o cotidiano da cidade. Na dinâmica da linguagem dos quadrinhos,

deixam entrever as faces de uma cidade que constitui um mosaico, onde a experiência urbana é o

principal personagem e ao mesmo tempo o pano de fundo para as aventuras do Gralha.

REFERÊNCIAS

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AGUIAR, José. Gibiteca: a maioridade dos quadrinhos. Disponível em: <http://www.omelete.com.br/quadrinhos/artigos/base_para_artigos.asp?artigo=75>. Acesso em 2 maio 2006.

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