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NAIDE APARECIDA GUSMÃO DA SILVA
IRONIA NA PARÓDIA OSWALDIANA: “HISTÓRIA DO BRASIL” .
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA PUC-SP
SÃO PAULO
2009
2
NAIDE APARECIDA GUSMÃO DA SILVA
IRONIA NA PARÓDIA OSWALDIANA: “HISTÓRIA DO BRASIL”.
Monografia de conclusão do curso de Especialização em Literatura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Erson Martins de Oliveira.
SÃO PAULO
2009
3
Ao meu filho Leonardo, que me faz
acreditar que a vida vale a pena...
4
Agradecimentos
Ao meu marido e ao meu filho, pela paciência e cumplicidade.
Aos meus pais, pela torcida distante e carinhosa.
À Profa. Dra. Edilene Matos, pelos primeiros passos.
Ao Prof. Dr. Erson Martins de Oliveira, pela orientação e observações
enriquecedoras.
5
Erro de Português
"Quando o português chegou Debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que Pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português"
Oswald de Andrade
6
Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar os procedimentos parodísticos nos poemas
que fazem parte da obra Pau Brasil, de Oswald de Andrade, especialmente o
capítulo denominado “História do Brasil”, que apresenta o subtítulo geral “Pero Vaz
Caminha”. Do conjunto de poemas, foram selecionados quatro apresentados na
seguinte ordem: “A descoberta”, “Os selvagens”, “Primeiro chá” e “As meninas da
gare”; partindo de textos dos primeiros cronistas portugueses. Os poemas do
capítulo referido parecem devorar a tradição lingüístico-literária quando aproximam
discursos transpondo a barreira do tempo histórico e transportando a uma descrição
do ano de 1500 para uma realidade moderna. Com base em teóricos do assunto, é
possível o estudo dos procedimentos da paródia cujo forte elemento constitutivo é a
ironia. Vale ressaltar também a liberdade revolucionária modernista, no início do
século XX, considerando o processo de liberação do discurso e a tomada de
consciência crítica permitida pela paródia que serve de base para a criatividade
lingüística dessa fase.
Palavras-chave: Paródia. Ironia. Oswald de Andrade. Modernismo.
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Sumário
Introdução Oswald de Andrade: um poeta singular I – Paródia e Ironia 1.1 – Conceitos. 1.2 – O discurso parodístico em textos. II – Modernismo brasileiro 2.1 – O abre-alas para o século XX: contexto histórico-social e cultural. 2.2 – Uma poética de ruptura
III – Marcas oswaldianas: irreverência e paródia 3.1 – Manifesto da Poesia Pau Brasil. 3.2 – Poesia Pau Brasil: História do Brasil. 3.3 – A paródia pelos caminhos da Carta de Pero Vaz de Caminha. Conclusão
Referências bibliográficas
Anexos
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“Oswald de Andrade é um problema literário. Imagino pelas que passa nos
contemporâneos, as rasteiras que passará nos críticos do futuro”.
Antonio Candido
Introdução
Oswald de Andrade: um poeta singular
Nascido numa rica família paulista em 1890, ainda jovem Oswald de Andrade
(1890-1954) vai à Europa e entra em contato com o Futurismo e a boemia estudantil.
De volta ao Brasil, faz jornalismo literário e organiza com amigos e intelectuais a
Semana de Arte Moderna, em 1922, que tinha o objetivo de, acima de tudo, destruir
as velhas formas artísticas na literatura, música e artes plásticas.
Em 1924 publicou, pela primeira vez, no jornal Correio da Manhã, na edição
de 18 de março de 1924, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. No ano seguinte, após
algumas alterações, o Manifesto abria o seu livro de poesias Pau Brasil.
Em 1926 casou-se com Tarsila do Amaral; dois anos depois, fundou o
Movimento Antropófago e a Revista de Antropofagia, originários do Manifesto
Antropófago. A principal proposta desse Movimento era que o Brasil devorasse a
cultura estrangeira e criasse uma cultura própria. Para isso, propõe a valorização à
cultura regional e marcadamente brasileira.
O ano de 1929 é fundamental na vida do escritor. A crise econômica abala as
suas finanças. Concomitantemente, ele rompeu com Mário de Andrade, separou-se
de Tarsila do Amaral e apaixonou-se pela escritora comunista Patrícia Galvão
(Pagu). Esse relacionamento intensificou sua atividade política e Oswald passou a
militar no Partido Comunista Brasileiro (PCB), a partir de 1930. Além disso, o casal
fundou o jornal O Homem do Povo, que teve uma efêmera existência, circulando
apenas alguns números no ano de 1931. Depois de separar-se de Pagu, casou-se,
em 1936, com a poetisa Julieta Bárbara. Em 1944, mais um casamento, agora com
Maria Antonieta D’Alkmin, com quem permaneceu até a morte, em 1954.
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Dentre as suas obras mais significativas, podemos encontrar uma ampla
conexão com visões pessoais de mundo, reflexões sobre a questão do “ser
brasileiro” e os possíveis projetos para a jovem nação republicana.
Nenhum outro escritor do Modernismo ficou mais conhecido pelo espírito irreverente
e combativo do que Oswald de Andrade. Sua atuação intelectual é considerada
fundamental na cultura brasileira do início do século. E, embora se afirme que a obra
de Oswald foi conseqüência apenas da genialidade de improvisação, na realidade,
ele levava muito tempo para considerar seus textos maduros para divulgação, numa
busca de um ideário autêntico e moderno.
A obra de Oswald de Andrade é o legado mais radical que nos vem do
Modernismo de 22. Propósitos que implicaram no rompimento violento com cânones
do passado, mas que envolviam também um sentido nitidamente construtivo, de
fundação em novas bases de uma literatura verdadeiramente afinada com a
sensibilidade do tempo.
O movimento modernista brasileiro, considerado um momento de radicalidade
em experimentação poética na literatura brasileira, caracterizou-se pela tentativa de
renovação de valores artísticos e vincula-se estreitamente a certas transformações
da sociedade, determinadas em geral por fenômenos exteriores, que vêm repercutir
aqui. E é justamente a ousadia e irreverência que formam o espírito inovador de
Oswald de Andrade que servirão para nortear este estudo. A escolha desse poeta é
justamente pela real atitude de transgressão e radicalidade, além é claro da sua
capacidade de valorizar a sátira e a paródia como instrumentos de crítica, elemento
constitutivo indispensável da literatura.
Uma verdadeira revolução começa a ocorrer refletida nesse momento
cristalizada com a Semana da Arte Moderna de São Paulo, em 1922, ano simbólico
do Brasil moderno, coincidindo com o Centenário de Independência. Além de
irromper a transformação literária, ocorre na mesma época o primeiro dos levantes
políticos militares que acabariam por triunfar com a Revolução de 1930.
Paralelamente, a industrialização torna São Paulo a cidade mais cosmopolita do
país, centro da economia brasileira.
Segundo Antonio Candido, o que se buscava na época era uma maior
aceitação dos valores nacionais recalcados que precisavam adquirir estado de
literatura e, sendo assim, o primitivismo se tornara “agora fonte de beleza e não
mais empecilho à elaboração da cultura” (CANDIDO, 1980, p.120). Os modernistas
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radicalizaram a polêmica sobre a dependência cultural do país, resultado disso foi a
revisão, por parte de muitos escritores, de forma ainda mais critica, sobre o presente
e o passado. São posições mais extremas, que marcam uma ruptura, pois foi por
meio do Modernismo e de suas conquistas que essa literatura alcançou uma alma
nacional e se transformou em instrumento de expressão da cultura sincrética do
país.
É nesse contexto histórico-temporal que encontraremos as propostas
oswaldianas para a questão nacional – nesse sentido, é interessante perceber a
importância de obras como Poesia Pau-Brasil, Manifesto Antropofágico e a Revista
de Antropofagia –, mesmo que alvo de várias críticas, tanto positivas quanto
negativas.
Sobre as críticas recebidas, pode-se perceber que elas surgiram dos mais
variados campos do conhecimento e em momentos distintos no desenvolver de sua
produção. Tanto poetas quanto críticos literários – passando por apontamentos
sócio-históricos – tiveram lugar nessa espécie de economia valorativa da produção
oswaldiana. Análises que ora o criticaram por um viés estético, ora por suas
posições políticas em relação à antropofagia acabaram também por reservar um
lugar de distinção para esse intelectual, seja por suas relações tumultuadas com
nomes de destaque da cultura nacional, seja pela amizade estabelecida com outros.
Em suas obras, Oswald de Andrade reescreve, em prosa e versos,
fragmentos da história do Brasil, revelando alguns aspectos da cultura nacional, com
uma técnica reinventada. Em 1915, refletindo sobre a situação da pintura nacional,
o autor observou que, ao lado da aprendizagem técnica, era urgente proceder a
incorporação da "cor local" à dinâmica cultural do país, como estratégia para se
consolidar a identidade nacional. Como afirma Benedito Nunes:
a teoria oswaldiana apontava para uma proposta de brasilidade baseada nos seguintes pressupostos: nas dimensões populares, etnográficas e folclóricas da primitividade brasileira, que, acreditava-se, existiria em estado de cultura ativa no meio brasileiro; no sincretismo; nas contradições entre o arcaico/rural (local) e o moderno/industrializado (global); na absorção plena da diferença; na carnavalização e na gestação de uma nova lógica desequilibrada, fragmentada que fundaria por si mesma um projeto de construção. (1979, p.18)
Oswald advoga no manifesto de 1924 o uso de uma “língua sem arcaísmo.
11
Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros”1. A
centralidade da língua, tanto em Oswald como em Mário, não diz respeito apenas a
questões lingüísticas e literárias, como se convencionou, mas sobretudo à ruptura
com a norma culta dominante e seus padrões de exclusão. A expressão oral de
personagens pouco literários aparece fotografada por uma câmera eye, criando
sínteses poéticas desprovidas de mistério e ilusões como em O capoeira (CAMPOS,
2003, p. 21):
-Qué apanhá sordado?
-O quê?
-Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada
Ou ainda a exposição satírica na qual personagens (culto) e língua (popular)
se chocam, afirmando assim a presença da cultura escapando na fala. O poema
Relicário (ANDRADE, 2003, p.127) acentua o aspecto rítmico próprio do dialeto que
incorpora as toponímias tupis e a língua comum:
No baile da Corte
Foi o Conde d’Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí
Outro exemplo da nova métrica sintética é o poema Escapulário (ANDRADE, 2003,
p.99), uma oração modernista na qual o ícone nacional é o que permanece, e o
alimento a lírica que preenche o lugar do pão:
1 Manifesto Pau Brasil
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No Pão de Açúcar
De cada dia
Dai-nos senhor
A Poesia
De cada dia
Segundo Lucia Helena, em Oswald presencia-se o incisivo recorte
fragmentário, em que o poeta opta pela descontinuidade em lugar da sintaxe de
construção. O poeta imputa ao leitor a tarefa de restabelecer os elos que faltam à
sintaxe do poema. Observando o aspecto (importante) da receptividade da obra,
veremos que a poesia de Oswald exige um novo tipo de leitor, marcado pelo
paradoxo. Por um lado, ele deverá expandir sua capacidade lúdica para que possa
interagir com a obra, compreendendo-a. Isto é necessário porque a estrutura
fragmentada exige que se a reconstrua no ato da leitura. Por outro lado, e ao mesmo
tempo, deverá fazer funcionar sua capacidade crítica formada a partir de certa
erudição poética, sob pena de não conseguir avaliar seu valor inovador.
Em seus textos, é comum fazer a leitura de uma civilização em que a
simultaneidade e a interpenetração (política, social, artística, econômica) assumem o
lugar antes ocupado pela marcação linear de princípio-meio-fim. Sendo Oswald um
poeta singular, essa é uma trajetória não recusada, afinal sua obra resultou numa
“poética da radicalidade”:
- Mas o que é isso? – perguntou-me o homem severo, indignado.
- É a poesia de transição, poesia de guerra, poesia de assalto (...)
(...)
Mas não há nada que se salve no meio disso? Há o mundo novo que penetra pelas
frestas abertas da guerra.
(ANDRADE, 1972, p.26-7)
Em suma, a obra de Oswald, em especial sua poesia, é um desafio
consistente contra a ilusão realista: como numa pintura cubista, tem-se a
“montagem” de uma peça feita a partir de fragmentos, a rigor, desconexos. A sintaxe
despedaçada vem daí. É assim que realiza dupla operação: “desconstrói” o texto
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original recuperando frases soltas para “reconstruí-lo” em novo contexto. Assim
procede com o relato de Caminha – assunto deste estudo – e com os escritos dos
demais cronistas: ele refaz, de maneira estilizada e sem ufanismo, a história do país
a partir de textos há muito conhecidos. Com isso, o conceito de criação e
originalidade artística sai da esfera da experiência subjetiva do poeta (comum em
Mário de Andrade) e passa para o plano da poesia ela mesma, dos procedimentos
de linguagem empenhados em sua construção.
Segundo Maria de Lourdes Eleutério, “sua Vida/Obra é sistemática
recorrência a novas informações, novas experiências, mas, sobretudo para
comparações com o já visto e vivido, numa reflexão sempre projetada a uma visão
integradora e esclarecedora de seu eu e de sua terra”. Ainda para a autora, “Oswald
se define para nós como um ser de enorme potência criadora e crítica, que tenta
viabilizar estas características numa época de profundas controvérsias”
(ELEUTÉRIO, 1989, p. 18).
A poesia de Oswald é considerada precursora de um movimento que vai
marcar a cultura brasileira a partir da década de 50: o Concretismo. Suas idéias, na
década seguinte, reaparecem também no movimento tropicalista.
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A paródia existe enquanto negação e decorre de um ódio que é amor às avessas.
Flávio Kothe
Capítulo I – A paródia e a ironia
1.1 – Conceitos Correspondendo mesmo à liberdade revolucionária modernista, no início do
século XX, o procedimento parodístico é mais acentuado do que nunca, servindo de
base para a criatividade lingüística dessa fase. Foi recurso para os escritores
incorporarem criticamente o passado e darem início ao processo artístico
modernista. Isso não significa que a paródia só tenha existido na referida época; sua
existência remonta à Antiguidade Clássica. É relevante observar que já em
Aristóteles aparece um comentário a respeito desta palavra: “em sua Poética atribuiu
a origem da paródia, como arte, a Hegemon de Thaso, porque ele usou o estilo
épico para representar os homens não como superiores ao que são na vida diária,
mas como inferiores. Houve então uma inversão.” (SANT’ANNA, 2008, p. 11)
Segundo a crítica literária Linda Hutcheon, a palavra paródia, em si, é
contraditória, pois a maioria dos críticos utiliza o termo com o sentido de “contra-
canto”. Para ela, o prefixo “para” pode ser interpretado por dois significados: pela
idéia de oposição, significando “contra”, mas também pode dizer “ao longo de”,
existindo, desta forma, uma sugestão de intimidade, em vez de contraste, o que
“alarga o escopo pragmático da paródia de modo útil para as discussões das formas
de arte modernas” (HUTCHEON, 1985, p. 48).
Desenvolvendo as teorias de Tynianov e de Bakhtin, Affonso Sant’Anna
propõe três modelos para explicar a estrutura da paródia, os quais se fundamentam
principalmente nos conceitos de dialogismo e de desvio. Nesses modelos,
Sant’Anna (2008, p. 41) busca demonstrar que um texto fundador pode produzir
diferentes tipos de variantes que se distinguem na proporção em que se afastam do
texto original: “A paródia deforma, a paráfrase conforma e a estilização reforma”. Ao
teorizar a respeito da paródia em sua obra Questões de Literatura e de Estética,
Bakhtin (2002, p. 389) destacou o papel do dialogismo na construção da paródia, a
cujo resultado ele chamou “híbrido premeditado”. Com isto, referia-se à
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inseparabilidade da essência da paródia que, ao mesmo tempo que dialoga
propositalmente com o texto parodiado, não se confunde com ele.
Para Flávio Kothe, segundo o étimo, paródia significa canto paralelo, sendo
um texto que contém outro em si e pretende dizer aquilo que o outro deixou de dizer.
É considerada um texto duplo contendo o texto parodiado e a negação dele.
Aproxima-se, portanto, de uma tentativa libertadora de algo já sacralizado, pois
liberta e aproxima o mundo do homem quando se opõe ao sério, ao monológico. Por
meio dela, cria-se um distanciamento em relação à verdade comum e opera-se a
liberdade de uma outra verdade. A paródia por muitas vezes pode ser um ataque de
uma época a uma época anterior, aponta um certo “desprezo” de seu autor e da
tendência artística e ideológica do texto parodiado; por outro lado indica um
parentesco com esse mesmo texto. Trata-se de uma transformação do texto original,
desviando-o de seu sentido, com intenção lúdica, ou seja, a paródia contém o texto
parodiado e, ao mesmo tempo, a sua negação.
Na verdade, esse é apenas um pretexto para evidenciar uma crítica
ideológica. A paródia é, sem dúvida, revolucionária, subversiva, resultante da
repetição com diferença, mas com fechamento para um certo tipo de produção do
passado e de abertura para algum novo tipo de produção futura.
De acordo com Linda Hutcheon, uma das formas modernas de incorporar
literalmente o passado textualizado no texto do presente é a paródia. A paródia
apresenta uma sensação da presença do passado, mas de um passado que só
pode ser conhecido a partir de seus textos, de seus vestígios – sejam literários ou
históricos. A paródia não é a destruição do passado, na verdade, parodiar é
sacralizar o passado e questioná-lo ao mesmo tempo. Isto quer dizer que os
parodistas, quando suas obras nos remetem a um passado, valorizam o mesmo, ao
invés de criticá-los, diferentemente dos românticos, que apreciavam a originalidade
e a individualidade.
Modernamente a paródia se define como um jogo intertextual, com uma
definição curta e funcional, segundo definições literárias: paródia significa uma ode
que perverte o sentido de outra ode (canto paralelo). O próprio étimo da palavra
assinala seu caráter duplo de escritura/leitura que afirma-negando a existência de
um texto referência, ao refazê-lo, deformá-lo e/ou recriá-lo. Dessa forma, a paródia
está sempre funcionando na literatura como um canto que desafina o tom elogioso,
conservador das práticas discursivas hegemônicas. Apresenta-se na verdade como
16
síntese da contradição, e em detrimento da tese proposta pelo texto parodiado,
prioriza a antítese. A essa consideração, acrescenta Linda Hutcheon,
Por outras palavras, a paródia é, neste século, um dos modos maiores da construção formal e temática de textos. E, para além disto, tem uma função hermenêutica com implicações simultaneamente culturais e ideológicas. (...) É uma das formas mais importantes da moderna autorreflexividade; é uma forma de discurso interartístico. (1985, p. 13)
A paródia estilística como um traço de modernidade está presente na obra
dos principais autores da primeira fase do Modernismo brasileiro, além de seus
evidentes elementos críticos, aliados a essa função renovadora, logra expressar
também, no aspecto de suas gradações, as tensões de ordem histórico-social e
cultural da época. Segundo Affonso Romano de Sant’anna:
O que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma tomada de consciência crítica. (...) É um ruído, a tentação, a quebra da norma. (2008, p. 31)
Bella Jozef (1980, p. 53), ao se referir à arte contemporânea, diz que esta
costuma assumir uma condição de contestadora da cultura, e “tem elaborado novos
modelos de criatividade, alterando os esquemas tradicionais e implicando uma
necessidade intrínseca de experimentação”. Ao se referir aos modelos, Jozef quis
dizer o modelo que origina uma paródia, o texto que serve como parâmetro para a
composição. Compreende-se, assim, o caráter dinâmico da paródia como processo
produtor de sentido, para modificar a significação e a função de um texto a outro,
invertendo o significado de seus elementos. E continua:
A paródia nos dá visão mais ampla e mais inventiva do real, ligada ao lúdico, instrumento de rebeldia e afirmação criadora. Objetos novos e autônomos são contrapostos pelo escritor como uma parábola à realidade linear e factual. A natureza lúdica, aberta e inventiva da linguagem critica o texto ideológico. Tradição consciente, a paródia é recusa da ideologia vigente e seus valores. Emerge na própria cultura que já não mantém o sabor da origens. É a expressão de uma consciência nostálgica e inconformista. Uma relação ambígua com a tradição, faz com que a representação seja um jogo e sua escritura ambígua com a tradição.
17
Considerando o contexto novo permitido pela paródia, em que a obra
paródica questiona o modelo literário sobre o qual se estabelece, não se pode,
nesse caso, falar apenas dos dois textos que se inter-relacionam de certa maneira,
mas também de inferências possibilitadas pelo próprio receptor. Tais interferências
acontecem porque o questionamento do parodiador provoca o crescimento ilimitado
ao colocar como modelo em aberto. Esta abertura faz com que o leitor seja um
decodificador da intenção codificada, ou seja, num ato enunciativo deve-se incluir
um emissor do texto, um receptor deste, um tempo e um lugar, discursos que o
precedem e o seguem. Segundo Linda Hutcheon,
Quando falamos em paródia não nos referimos apenas a dois textos que se inter-relacionam de certa maneira. Implicamos também uma intenção de parodiar outra obra (ou conjunto de convenções) e tanto um reconhecimento dessa intenção como capacidade de encontrar e interpretar o texto de fundo na sua relação com a paródia. (1985, p.34)
Para o parodiador, a literatura paródica coloca o leitor em posição de abrir
caminho por si mesmo, pois as regras encontram-se geralmente no próprio texto. Os
códigos paródicos têm de ser compartilhados para que a paródia seja compreendida
como paródia. O leitor, ao realizar sua função, recria a obra. Caso contrário, se não
houver competência do leitor, a leitura será feita como a qualquer outro texto.
Outro recurso próprio da paródia é o do humor, fato que provoca um certo
estranhamento no leitor, pela inversão dos valores tradicionais. Entretanto não se
deve confundir com o humor ou o riso da piada. É mais irônico do que satírico, mais
sério do que cômico. Reiterando Maria Lúcia de Aragão (1980, p. 21), “é um humor
desconfiado porque não se mostra desvinculado do sério. É o fator de equilíbrio do
sistema. É o riso da ‘eiréne’, cujo saber mostra o não saber”. Tendo em vista que a
ironia é um dos fortes elementos da paródia, vale ressaltar que o discurso irônico
joga essencialmente com a ambigüidade, convidando o receptor a, no mínimo, uma
dupla decodificação que permite ao mesmo interpretar e avaliar. Requer, portanto, a
competência lingüística, em que o leitor tem de entender o que está implícito, pois a
representação da ironia não apresenta atos de comunicação considerados
completos.
18
A ironia reflete-se como procedimento que configura diversas estratégias de
compreensão e representação do mundo, ou seja, “o interdiscurso irônico possibilita
o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou mesmo estéticos,
encobertos pelos discursos mais sérios”. (BRAIT,1996, p. 16).
A palavra ironia vem do grego eironeia e quer dizer interrogação dissimulada.
Tem origem na arte de interrogar e provocar o surgimento das idéias. Na comédia
clássica grega, o termo ironia tem suas raízes na personagem Eiros, que se passava
por ignorante para desmascarar o Álozon, um personagem fanfarrão, que atribuía
juízos jocosos aos seus interlocutores. Já na tragédia grega, a ironia estava
vinculada à frustração do protagonista, sujeito aos deuses. Esta seria, segundo
Massaud Moisés (2001, p. 295), a ironia do destino.
A importância dessas considerações está na retórica proporcionada pelo uso
da ironia e, consequentemente, que a mesma é fundamental para o funcionamento
da paródia. Neste caso, é o contexto da apropriação textual que revelará o caráter
paródico, e requer uma interação entre leitor e autor, uma espécie de superposição
estrutural de textos; a inserção do velho e do novo. Tal articulação
produção/recepção envolvida por um texto pode configurar um discurso que, sendo
construído sob o enfoque da ironia, pode auxiliar no desvendamento de momentos
ou aspectos de uma dada cultura, a partir da confluência de discursos, como
cruzamento de vozes. Em outras palavras,
a ironia é considerada como estratégia de linguagem que participando da constituição do discurso como fato histórico e social, mobiliza diferentes vozes, instaura a polifonia, ainda que essa polifonia não signifique, necessariamente, a democratização dos valores veiculados ou criados. (BRAIT, 1996, p.15)
A paródia e a ironia estão ligadas na literatura, pois ambas buscam o leitor
para a sua concretização. Conforme afirma Lúcia Hutcheon (1985, p. 48), “O prazer
da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de
empenhamento do leitor no ‘vaivém’ intertextual”. A ironia é a principal estratégia
retórica utilizada pelo gênero parodístico, participando do mesmo como uma
estratégia, permitindo ao codificador interpretar e avaliar. Por vezes, são as
convenções tanto como as obras individuais que são parodiadas. Segundo Bella
Jozef, a paródia
19
[...] denuncia e faz falar aquilo que a linguagem normal oculta, pela contradição e relativização que se manifesta no dialogismo essencial do carnaval, através de um discurso descentralizado. O autor introduz uma significação contraditória à palavra da sociedade. Ela só existe dentro de um sistema que tende à maturidade, pois é uma crítica ao próprio sistema. Através dela cria-se um distanciamento em relação à verdade comum e opera-se a liberdade de uma outra verdade. Na tentativa de descongelar o lugar-comum, a paródia põe em confronto uma multiplicidade de visões, apresentando o processo de produção do texto. (1980, p. 54)
Maria Lúcia Aragão (1980, p. 21) reconhece que, nas “obras paródicas, as
personagens são geralmente ambíguas e plurivalentes, daí o sentido neste tipo de
narrativa nunca ser aquele que nos parece definitivo” . Ela ganha autonomia, passa
a ter vida própria, mas é dependente do primeiro texto para ganhar sentido. É como
diz Bella Jozef (1980, p. 65), o texto “se elabora a partir dos que o precederam,
fazendo das relações um processo essencial, presente em toda produção escrita,
parcela da intertextualidade, um dos múltiplos entrecruzamentos de textos”.
Tanto a ironia como a paródia atuam em dois níveis – um primeiro, superficial;
e um secundário que é implícito. O sentido final da ironia ou da paródia permanece
no reconhecimento da sobreposição desses níveis. Como na ironia, toda discussão
e reflexão sobre a paródia também é um jogo que vai depender da intencionalidade
do autor e da habilidade do leitor. Deste modo, a ironia e a paródia tornam-se os
meios mais importantes de criar níveis de sentido. A ironia participa do discurso
paródico como uma estratégia, permitindo ao decodificador interpretar e avaliar.
Como afirma Linda Hutcheon:
Conquanto toda a comunicação artística só possa ter lugar em virtude de acordos contratuais tácitos entre codificador e decodificador, faz parte da estratégia particular tanto da paródia como da ironia que seus atos de comunicação não possam ser considerados completos, a não ser que a intenção codificadora precisa seja realizada no reconhecimento do receptor. Por outras palavras, além dos códigos artísticos vulgares, os leitores devem também reconhecer que o que estão a ler é uma paródia, até que ponto é e de que tipo. (1985, p.35)
Ainda, segundo Linda Hutcheon, ser irônico é remover o significado das
palavras, é oferecer um discurso ambíguo para um receptor inserido num contexto
em que se leva em consideração a questão ideológica. A ambiguidade existe, pois a
20
ironia não é constituída somente de uma substituição de opostos, mas de uma
relação entre o dito e o não dito, gerando, assim, uma nova e possível interpretação.
Assim, a ironia é um dos recursos retóricos utilizados para persuadir o
interlocutor; considerada como uma espécie de desvio do significado real da palavra
e é uma maneira de dizer algo por meio de palavras que exprimem uma noção
diversa e oposta àquela projetada pela expressão lexical.
Segundo o percurso exposto, a ironia pode servir de oposição aos rumos que
a literatura toma em sua época, assumindo, deste modo, uma atitude autorreflexiva.
A ironia é, por assim dizer, uma forma sofisticada de expressão. A paródia é um
igualmente um gênero sofisticado nas exigências que faz aos seus praticantes e
interpretantes. O emissor – codificador – e depois receptor – decodificador – tem de
efetuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo novo.
Diante das considerações acima desenvolvidas, tomaremos o conceito de
paródia, recurso estilístico, principalmente como uma inversão irônica; tornando a
ironia e a paródia como os meios mais importantes para se criar novos modos de
sentido.
1.2 – O discurso parodístico em textos. Do ponto de vista estritamente lingüístico, a intertextualidade parodística
caracteriza-se por ser um discurso de descentramento, pois opera uma inversão e
um deslocamento ao representar uma relação assimétrica entre o signo e a coisa
significada. O discurso deixa de ser centrado no código, retoma a tradição escrita,
mas dela se afasta procurando uma nova sintaxe. Assim, ao contrário da “mimesis”,
que é a linguagem do “mesmo”, porque reproduz a realidade de maneira simétrica, a
paródia é a linguagem do “outro”, pois transforma o real e assume um caráter de
inversão. A linguagem parodística é uma tomada de consciência crítica que busca
criar uma nova e diferente maneira de ler o convencional. Essa apropriação está na
própria origem etimológica de paródia; do grego “para - ode”, que significa uma ode
que perverte o sentido da outra; era um contracanto de poemas cantados.
A linguagem parodística é, em última análise, um discurso da libertação; é
uma tomada de consciência crítica que busca criar uma nova e diferente maneira de
ler o convencional. A paródia torna-se, portanto, a arquitetura discursiva do
21
modernismo, pois se caracteriza pela subversão, ruptura, insubordinação,
ambigüidade, ironia, desconstrução, transgressão, descentramento e revelação. A
paródia estabelece, assim, uma relação dialógica entre a identificação e a distância,
pois é capaz de desvelar a ideologia e subvertê-la.
Outro fator importante na conceituação de paródia é a questão da
apropriação. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna (2008), o que caracteriza a
apropriação é a dessacralização da obra anterior, que será agora transformada em
simples material para ser reproduzida de forma satírica. Na leitura e análise dos
textos parodísticos, há a retomada das idéias de um texto anterior, com o objetivo de
subvertê-las. Rompe-se com a ideologia presente no texto original, por meio de
recursos como o humor, a ironia e a crítica. O discurso da paródia visa à
possibilidade de se construir uma leitura crítica de uma ideia ou fato tradicionalmente
aceitos, daí ser esta linguagem um discurso da libertação; é uma leitura ‘às avessas’
do texto anterior que lhe serviu de inspiração, buscando, assim, criar uma nova e
diferente maneira de ler o convencional.
Os modernistas, sobretudo, utilizaram muito essa forma de intertextualidade
para criticar textos consagrados da literatura brasileira, sob a perspectiva do humor.
Um exemplo muito comum de texto parodiado é a “Canção do Exílio”, de Gonçalves
Dias. Entre os autores que já fizeram paródias desse poema encontram-se nomes
como Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Vinícius
de Moraes, José Paulo Paes.
Canção do exílio facilitada Lá? AH! Sabiá... Papá... Sofá... Sinhá... Cá? Bah! (José Paulo Paes) “Nossas flores são mais bonitas nossas frutas mais gostosas mas custam cem mil réis a dúzia.” (Murilo Mendes)
22
“Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá.” (Oswald de Andrade) Encontra-se nos textos a condição necessária para a percepção da
paródia: pontos de convergência, isto é, elementos importantes dos diferentes
textos para que exista uma analogia.
A paródia tem a declarada intenção de impedir que qualquer leitor ignore o
contexto moderno e o contexto social. O contexto histórico faz-se necessário para
questionar o presente e o passado através da ironia. A autorreflexividade paródica
conduz à possibilidade de uma literatura que, enquanto afirma a sua autonomia
modernista como arte, também consegue investigar suas relações complexas e
íntimas com o mundo social no qual é lida e escrita.
23
“A força do modernismo reside na largueza com que se propôs a encarar a nova situação, facilitando o desenvolvimento até então embrionário da sociologia, da história social, da etnografia, do folclore, da teoria educacional, da teoria política. Não é preciso lembrar a sincronia dos acontecimentos literários, políticos, educacionais, artísticos, para sugerir o poderoso impacto que os anos de 1920-1935 representam na sociedade e na ideologia do passado” Antonio Candido Capítulo II – Modernismo brasileiro 2.1 – O abre-alas para o século XX: contexto histór ico-social e cultural
Na passagem do século XIX para o século XX, a Europa vive a euforia e o
deslumbramento causados pelas descobertas científicas que marcaram o último
século. O homem passa a viver, de forma plena, os resultados do progresso
gradativo que altera significativamente seu ritmo de vida. Tal fato permite considerar
a passagem do estágio primitivo para o estágio moderno da civilização.
Tanto desenvolvimento é, entretanto, desfrutado somente por uma pequena
elite evidenciando nesse ponto a diferença de classes sociais. De um lado, a falta de
mercado consumidor; de outro lado, o excesso de produção de manufaturados; a
conseqüência é um desequilíbrio que se evidencia e mantém-se assim com a
Primeira Guerra Mundial.
No Brasil da década de 1910, as estéticas parnasianas e simbolistas ainda
norteavam as criações poéticas, mas já sinalizavam sinais de esgotamento, e vários
escritores buscavam renovar as formas de expressões artísticas. O país também
vivia grandes mudanças políticas, sociais e culturais, inclusive com a urbanização e
a chegada de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário de
cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.
O progresso e o cosmopolitismo eram contrapostos ao subdesenvolvimento e
à miséria estrutural de vastas regiões nacionais, nem sempre distantes dos centros
populosos. A sociedade vive momentos conturbados. As conseqüências desse
descompasso se refletem em pontos diferentes: a grande urbanização do sudeste e
a chegada dos imigrantes atraídos pela magnitude cafeeira contrastam com a
pobreza do Nordeste que cada vez mais se acentua. Além desses contrastes
sociais, os centros urbanos desenvolvidos também enfrentam crises.
No movimento político-social, ocorreu a fundação do Partido Comunista do
Brasil, que ascendeu sobre as organizações anarquistas; nos setores militares,
24
principiavam as insurreições tenentistas; no meio artístico, realizou-se a Semana de
Arte Moderna. Evidentemente que todos esses acontecimentos repercutiram sob a
forma de conflito, na linguagem dessa sociedade em transformação.
Foi nesse cenário tumultuado que os modernistas refletiram sobre a realidade
brasileira e procuraram renovar a cultura do país. Os artistas que vivem essas
manifestações têm por preocupação denunciar a realidade, contrariando o modelo
anterior que desenhava um Brasil oficial, idealizado, sem nenhuma relação com o
momento histórico. A partir de meados da década de 1910, começaram a organizar-
se em grupos, principalmente no Rio de janeiro, Recife e em São Paulo. Escritores e
poetas, cujas obras e eventos eram patrocinados pela aristocracia enriquecida com
o café e a industrialização, começaram a introduzir novas faces na literatura
brasileira. Eram artistas – músicos, arquitetos, literatos, escultores – que buscavam
algo novo. Era um pequeno grupo de jovens artistas ligado à elite paulistana, que se
voltou para questões literárias e culturais, irradiando e enriquecendo as produções
de arte divulgadas no meio intelectual.
Graças à sintonia com o processo histórico da nação, essa nova visão faz
com que a arte, na primeira fase do século, trabalhe o moderno e o original de modo
polêmico, pela fusão que opera entre o atual e o primitivismo histórico. O
modernismo ganhava expressão, e São Paulo tornou-se palco de manifestações de
independência cultural contra a estagnação do resto do país. Nesse contexto
cultural, os escritores buscaram romper com a corrente tradicional, e em 1920
começaram a preparar a Semana de Arte Moderna. Para Francisco Iglésias:
De fato, os modernistas sentiam o Brasil e queriam renová-lo, repondo-o no verdadeiro caminho, livre das importações de gosto duvidoso e que não se ajustavam à sua realidade. Não importa a lembrança de que os expoentes modernistas eram europeizados, sofriam influências estrangeiras, trazendo novidades por outros fabricadas – o que até eles sabiam. O que conta é que desejavam dar novo alento a uma cultura que lhes parecia esclerosada – e era –, pondo o país a par do que se passava de novo no mundo. (2007, p. 15)
Por estar essa arte comprometida com os valores sociais, políticos, éticos e
morais, ela tenta resgatar, por meio de diversas linguagens, a unidade do homem
consigo mesmo. Juntamente com esse novo pensamento artístico vem a notória
vontade e afirmação dos modernistas em passar a idéia aos representantes da arte
no momento, com certo caráter pedagógico, correlativo com a intenção de difundir
25
para o público espectador. Assim os modernistas adotam meios de disseminação
dos seus conceitos, publicando manifestos e textos, como modo de entendimento
direto a quem os assistia. Gilberto de Mendonça Teles (1976) resume
especificamente a contribuição literária em dois aspectos: a dinamização dos
elementos culturas com grande incentivo para a recriação da linguagem e a
ampliação dos temas que abarcam a macro realidade nacional, sobretudo com
respeito à forma e mais precisamente à linguagem, quando se eleva o nível
coloquial à categoria literária.
Dessa forma, é apenas com a Semana de Arte Moderna de 22 e com o
envolvimento de diversos artistas, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade,
Anita Malfatti e outros, que a nova forma de reconstrução artística começa a ser
disseminada, com o objetivo de destruir os antigos métodos da literatura, da música
e das artes plásticas, para dar lugar ao novo, ao moderno, mesmo que confuso,
conforme expressão de Oswald de Andrade: “Não sabemos o que queremos. Mas
sabemos o que não queremos”2. A nova arte ganha, assim, seu espaço, sua
importância, ao contrário dos dadaístas, que tinham a arte apenas como destruição,
quebra de princípios e conceitos. O Modernismo brasileiro, ao contrário, se
caracterizou tanto pela revolução e renovação artística, como também pela
reconstrução da arte.
A Semana propiciou assim um encontro de escritores e artistas que
incorporaram um novo modo de pensar, escrever e falar na arte, fato que levou ao
rompimento com a academia e o cânone parnasianismo, símbolos, aos olhos dos
modernistas, do conservadorismo artístico e cultural que imperava no Brasil. Essas
manifestações de arte nova mudaram o cenário da arte e da cultura paulista,
acarretando mudanças que se refletiam tanto na interação familiar, na consciência
familiar, quanto na vida em sociedade, nos seus sentidos e significados, bem como
na apresentação de um novo olhar sobre a cultura, a arte e o nacional como um
todo.
2 Maria Augusta Fonseca
26
2.2 – Uma poética de ruptura
De acordo com Bosi (2003), o Modernismo instaurado a partir de 1922, foi
declaradamente um movimento de ruptura, representando uma abertura de
possibilidades à cultura do Brasil. Viabilizou a investigação do passado, (re)leituras
de nossa sociedade sócio-histórica e a (re)interpretação criativa e crítica das
tradições brasileiras. Pela primeira vez, os intelectuais assumiram que nossa
diversidade étnica, mesmo sendo muitas vezes contraditória, poderia ser positiva e
indicar vestígios de uma riqueza cultural ímpar. Para Afrânio Coutinho:
Muitos eram os roteiros propostos à ânsia renovadora dos intelectuais e artistas de São Paulo. Mas as hesitações dos primeiros tempos, reduzidas ao espiritualismo, ao nacionalismo e à integração na hora presente, seriam oportunamente, transformadas em programa literário dos grupos que depois iriam surgir dentro do próprio Modernismo. Seriam afirmações, postulados e princípios a obedecer. Naquele momento eram apenas sintomas de uma grande inquietação. Os modernistas contentavam-se em ser os perturbadores da ordem estética. Aceitavam a pecha de futuristas e diziam-se bolchevistas da inteligência, e, em qualquer dos casos, os rótulos eram desafios. Adotados para marcar a diferença entre os novos e os conservadores. (2004, p. 12)
Dessa forma, movimento modernista de 1922 significou a (re)atualização do
Brasil em relação aos movimentos artísticos e culturais que ocorriam no exterior,
levando à busca de raízes nacionais e valorizando o que haveria de autêntico no
país. O modernismo trouxe à Literatura brasileira o conceito de modernidade
artística: a idéia de que a liberdade formal que defendiam deveria levar a uma
concepção crítica da realidade do país. A linguagem seria parte integrante e ativa
dessa realidade e não um mero ornamento como entendia a literatura acadêmica.
Preocupados com a pesquisa e a reflexão sobre a linguagem os modernistas
trouxeram uma ruptura bastante acentuada em relação à literatura tradicional
brasileira, propiciando assim uma nova visão do país.
Embora os modernistas também tenham sido influenciados por correntes
artísticas européias – as vanguardas –, o trabalho artístico proposto desenvolveu-se
de maneira crítica e criativa contrastando com a literatura oficial, preocupada em
imitar modelos europeus, sem criticidade. Por estar comprometida com valores
27
sócias, políticos, éticos e morais, essa arte tenta resgatar, por meio do nosso próprio
código literário, a unidade do homem consigo mesmo.
Contudo, não se cria a partir do nada: há a necessidade de uma base anterior
a ser transformada. O discurso poético, por sua vez, funde o visual, o primitivo e o
moderno e imprime imagens novas, ricas e sugestivas. Estabelece-se uma sincronia
entre o passado e o presente, na tentativa de sintetizar, no espaço da obra de arte, a
história sócio-cultural da nação. O discurso poético, por sua vez, funde o visual, o
primitivo e o moderno e imprime imagens novas, ricas e sugestivas. Sendo vistas de
maneira crítica e ultrapassadas pelas produções inovadoras do Modernismo, as
formas tradicionais acabaram incorporadas naquilo que poderia ter de experiência
literária válida, como foi o caso de certas recorrências ao Barroco e ao Romantismo,
num jogo entre tradição e ruptura, que, nessa perspectiva, coexiste dialeticamente
com tal tradição. Afirma Affonso Ávila:
A imagem crítica do Modernismo só se desenhará corretamente se buscarmos, ao apreendê-la, abarcar também a totalidade do projeto chamado “literatura brasileira” . Nesse quadro, o movimento desencadeado em 1922, passa a inserir-se não apenas pelo caráter de originalidade de que se revestiu sua proposta estética, mas igualmente pela maneira através da qual repropôs certos elementos de núcleo de nosso processo literário e assimilou elementos tomados às correntes do pensamento criador da época, ou seja, às vanguardas européias. (2007, p.30)
Para Alfredo Bosi (2003), o Modernismo representa uma abertura de
possibilidades para a cultura brasileira, fazendo surgir, da investigação do passado,
leituras de nossa realidade sócio-histórica que apontavam para um futuro em
compasso internacional. Dentro do contexto modernista, evidencia-se a filiação de
poetas a movimentos artísticos altamente radicais que alteraram os rumos da
literatura e das demais artes. A idéia de vanguardismo com a qual muitos de nossos
artistas oportunamente interagiram na França continha em si muitas tentativas de
superar as convenções estabelecidas no espaço da arte, criando desta forma, um
tipo diferente de arte, um rompimento com o passado. Conforme Lucia Helena:
Os movimentos de vanguarda conheceram uma rápida irradiação para além de suas fronteiras de origem. Assim é que, no Brasil dos anos 20, há um clima de efervescência e discussão (...) aliado ao debate de problemas artísticos e culturais internos. Esta fase, que dá ensejo ao
28
surgimento de nosso Modernismo, é chamada de heróica, pelo seu cunho guerreiro e desbravador. (1983, p. 6)
O conceito do “avant-garde” englobava uma ousadia experimentalista, um
modo de ruptura com o academicismo que no Brasil dominava a literatura nacional.
O Futurismo (1909), o Expressionismo (1910), o Cubismo (1913), o Dadaísmo
(1916) e o Surrealismo (1924), influenciaram o espaço cultural da época gerando um
clima de intensa ebulição. Beneficiando-se das correntes de vanguarda que
apareceram na Europa nas primeiras décadas do século XX, resultantes de uma
dialética entre valores, nossos artistas, de forma direta ou indireta, mesclam a
influências desses vários movimentos. É certo que eles souberam transformar a
maior parte dessas influências em elementos dinamizadores da cultura brasileira.
Para Benedito Nunes,
(...) os tão famosos ismos do primeiro quarto do século XX – Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo e Surrealismo – influenciaram, pelos seus pronunciamentos teóricos e pelas obras de seus representantes, os nossos modernistas, interessando-nos apenas estabelecer as confluências dessas correntes que se ligam entre si, do ponto de vista de uma só problemática, no processo comum de transformação da arte. Cada qual deixa perceber, por determinado ângulo, a ruptura da tradição artística e literária a que nos referimos. (1975, p. 42)
O Futurismo foi uma tendência de vanguarda de grande importância para o
Modernismo brasileiro, responsável pela idéia de simultaneidade e pela busca de
uma nova ordem de caráter intuitivo e pragmático. Com o Expressionismo, foram
enfatizados efeitos de choque, de contraste, entre o homem e as coisas. Mário de
Andrade, considerado a consciência crítica da primeira fase do movimento, valeu-se
das teorizações da revista francesa L’espirit nouveau, de orientação cubista. O
Cubismo rompeu com a perspectiva de imitação da realidade, reduzindo esta a
traços sintéticos e esquemáticos, observando-a simultaneamente de vários ângulos.
O Dadaísmo procurou ser a antiliteratura: uma atitude de recusa, de insulto contra a
cultura e a vida social. A irreverência e a força destruidora do Dadaísmo motivaram
os escritores que participaram da Semana da Arte Moderna, em especial Oswald de
Andrade.
Guardando as proporções entre Paris e São Paulo, de modo similar, Oswald
e Mário de Andrade— cada um partindo de uma concepção estética muito própria —
29
introduziram esse conjunto de temas e problemas (referentes às relações profundas
entre desenvolvimento urbano e poesia) na tradição literária brasileira. Em Mário de
Andrade, observamos uma aproximação problematizadora a respeito da
subjetividade no contexto da modernidade (mudanças ocasionadas pela
modernidade e que irão refletir na estrutura da poesia); em Oswald, vemos a
configuração objetiva da realidade, como se o feixe de problemas levantados por
Mário (função da subjetividade criadora) estivesse superado pela própria evolução
da forma poética. Entretanto, para Lúcia Helena,
O elo comum a Mário e Oswald seria, sem dúvida alguma, a consciência de que a oposição aos cânones da poesia anterior ao Modernismo é um compromisso com a evolução da forma artística, que está em continuo diálogo com o real, não para oferecer-nos sua reduplicação, mas para propor-nos novas e indispensáveis aberturas. (1983, p. 87) Ao longo das décadas de 1920 e 30, muitas obras literárias, tanto na prosa
quanto na poesia, foram produzidas nessa nova perspectiva de valorização da
cultura brasileira sob a influência das vanguardas européias. Oswald de Andrade foi
um dos principais autores, em cuja obra levou adiante, de modo consistente, duas
principais preocupações do momento modernista: a criação de um novo estilo
poético baseado na realidade brasileira e a redefinição do caráter e dos objetivos
nacionais. Tratava-se, na verdade, de uma abertura às inovações, de uma pesquisa
de linguagem que se queria ventilada, ousada, ágil, multiforme. Uma linguagem que
buscava renovar-se em termos de invenção e de qualidade, de modo a refletir, ou
mesmo a criar, novos paradigmas poéticos da modernidade. Segundo Antonio
Candido, o nosso modernismo importa, essencialmente, em sua fase heróica, na
libertação de uma série de recalques históricos, sociais, étnicos, que são trazidos
triunfalmente à tona da consciência literária. Esse sentimento de triunfo, que
assinala o fim da posição de inferioridade no diálogo secular com Portugal e já nem
o leva mais em conta, define a originalidade própria do modernismo na dialética do
geral e do particular.
O movimento modernista no Brasil questionava tanto a suposta inferioridade
do povo brasileiro, assentada no seu caráter mestiço, quanto a suposta
superioridade do europeu, assentada numa civilidade que se opunha ao
primitivismo. “O modernismo rompe com este estado de coisas. As nossas
30
deficiências, supostas ou reais, são reinterpretadas como superioridades”
(CANDIDO, 1980, p. 110).
A primeira fase do modernismo, no Brasil, deu-se entre 1922 e 1930 e a
segunda entre 1930 e 1945. Não se deve esquecer que o nacionalismo estético
defendido por integrantes do modernismo caminhou juntamente com a expansão de
um nacionalismo político que acabou identificando-se com o integralismo e com o
fascismo. Dois movimentos culturais que se desdobram de dentro do modernismo,
tais como o Verdeamarelismo e a Anta, podem ser citados como exemplos desse
nacionalismo político que tinha como representantes Menotti Del Picchia, Cassiano
Ricardo e Plínio Salgado. Não existiam somente estes dois movimentos que se
derivavam de dentro do modernismo. Havia também outros dois: o Pau-Brasil que
objetivava a criação de linguagem revisora de nosso passado através do
enaltecimento das singularidades culturais e a Antropofagia que argumentava que o
reforço da identidade cultural brasileira se dava no processo de refutação e de
apoderamento da cultura do colonizador europeu. A singularidade cultural do país
brotaria, exatamente, dessa dinâmica.
Por outro lado, para Antonio Cândido, os modernistas abriram caminhos por
onde fluíram pistas para interpretar o país e suas mazelas sociais, mas não
considera que aqueles tenham tido grandes influências intelectuais sobre as
gerações subseqüentes de estudiosos do país:
“Para a gente de 20, criticar significava derrubar a fim de preparar a base para uma nova forma de arte. De qualquer modo, porém, abriram caminho para o estudo de muitos problemas brasileiros e colocaram a necessidade do trabalho que hoje fazemos. Sob este aspecto, somos os seus continuadores. Mas, veja bem, ‘pouca influência exerceram intelectualmente sobre nós’, pelo fato, mesmo, de serem sobretudo artistas. Você quase não encontrará influência de Oswald, ou de Mário, ou de Menotti ou de Guilherme de Almeida. Encontrará, conforme o caso, muito amor pela obra deles: muito entusiasmo pela sua ação. E mais nada. A sua influência foi toda indireta e mínima. Somos seus continuadores por uma questão de inevitável continuidade histórica e cultural” (CANDIDO, 2002, p. 243).
Entretanto, é importante salientar o fato de que este movimento abriu
inúmeras veredas por onde fluíram, de diversas maneiras, tendências que se
ocupavam tanto da educação política quanto da reforma social. Objetivos somente
31
atingidos, no entender dos principais teóricos do modernismo (Mário de Andrade,
por exemplo), caso houvesse um amplo conhecimento do país.
Enfim, pode-se dizer que o modernismo de 22 lançou as bases para formas
de pensar e de agir que se abriram em diversas correntes, linhas e perspectivas. Ele
ajudou a colocar em pauta os debates que se desdobraram nas décadas
subseqüentes sobre a participação democrática e o papel do intelectual e das idéias
no processo de geração de mudanças sociais. Este debate foi sendo ampliado nas
décadas de 1940 e de 1950, à medida que o processo de urbanização e de
industrialização foi impondo novos desafios tanto às práticas quanto às idéias. No
âmbito das ciências sociais ganhavam relevo os debates sobre desenvolvimento
institucional, expansão dos grupos de pressão, combate à oligarquização do Estado
e da vida política em geral, criação de bases para um desenvolvimento econômico
assentado em um projeto de nação a ser elaborado e sustentado nos anos
vindouros, expansão dos mecanismos de ação política entre os diversos setores
sociais, entre outros.
32
“O primitivismo que na França aparecia como exotismo era para nós, no Brasil, primitivismo mesmo. Pensei, então, em fazer uma poesia de exportação e não de importação, baseada em nossa ambiência geográfica, histórica e social. Como o pau-brasil foi a primeira riqueza brasileira exportada, denominei o movimento Pau-Brasil.”
“Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasi.”
Oswald de Andrade
Capítulo III – Marcas oswaldianas: irreverência e p aródia
3.1 – Manifesto da poesia Pau Brasil
O manifesto da poesia Pau Brasil constitui um texto de (re)invenção cultural
em que deve ser considerado seu contexto de produção e, por isso mesmo, possui
características que lhe são peculiares, como por exemplo o fator do gênero textual
que confere ao manifesto a migração de um gênero pertencente ao discurso político-
revolucionário para o campo do discurso artístico literário. Criado por Oswald de
Andrade, em 1924, num momento em que ele se encontrava em Paris, o manifesto
cultural apresenta reivindicações da identidade brasileira, cuja publicação fora
viabilizada pelo amigo, Cendrars, que também se encontrava na França, passagem
obrigatória para todos os artistas brasileiros no início do século XX.
Nessa época, o primitivismo está em voga na Europa. Por meio dele os
artistas brasileiros descobrem-se como tais; daí se redescobrem e o modernismo.
Pau Brasil influenciou aqueles que se dispuseram a pensar a cultura desse país.
Isso se dá devido à filiação a um gênero que não é exatamente literário ou político,
mas a mistura dos dois. Desse modo, atinge seu objetivo de choque e inovação,
apresentando uma contribuição significativa à nova etapa da vida nacional. A
negação do passado constitui um fator primordial para uma reconstrução de
identidade. Negar significa assumir a existência de características que não servem.
Diante disso, existem duas possibilidades: ater-se à contestação ou propor o
novo. No caso do Manifesto, as duas coisas foram feitas, contudo, a predominância
foi sempre da segunda atitude. Assim a negação argumentativa do passado se
mostrou uma estratégia bastante eficaz para propor uma redefinição da identidade
que prima pelo movimento dialético entre passado e presente, com vistas no futuro.
33
O discurso do manifesto traça um caminho argumentativo que leva o leitor à
constatação de que, pelo trabalho dos modernistas, uma nova perspectiva acerca da
identidade cultural brasileira foi instituída na dialogia entre aquilo que afirma e aquilo
que nega. De acordo com Benedito Nunes (2003, p. 48) ,“as identidades nacionais
atribuídas aos brasileiros nos manifestos se fundam a partir de determinados
espaços da memória discursiva onde o Brasil é caracterizado”.
Os modernistas foram responsáveis por inovações e rupturas e a poesia Pau
Brasil é uma materialização dessa nova etapa de vida nacional: a redefinição
artística e de identidade, que agora merece fazer o caminho inverso, o da
exportação.
Ao longo do manifesto, o autor, Oswald de Andrade, não se limita a defender
a língua brasileira com todos os seus neologismos e diferenciações, ele mesmo faz
uso do “brasileiro” para fazer valer as suas colocações. A re-escrita levada a cabo
por Oswald de Andrade tem início com o Manifesto Pau Brasil (1924) e continua na
coletânea de versos do mesmo nome (1925). Daí resultaria o primitivismo nativo, o
"único achado de 22", segundo Oswald. Já "descoberto" pelas vanguardas
européias, traduzia um afastamento em relação à tradição ocidental calcada nos
valores da lógica e do racional, e, ao mesmo tempo, uma tentativa de buscar os
elementos da arte nos sentimentos e emoções. Por outro lado, significava para as
correntes artísticas europeias uma virada em direção à arte primitiva que traduzia
um "pensamento selvagem", ligado à lógica do imaginário em oposição ao utilitário e
cultivado.
Segundo a análise de Benedito Nunes, o Manifesto Pau Brasil situa-se na
convergência entre os dois: o pensamento selvagem ("ver com olhos livres"), que
participa da lógica do imaginário; em oposição ao pensamento cultivado, ("a prática
culta da vida") utilitário e domesticado. Desta forma, propõe um "programa de
reeducação da sensibilidade e uma teoria da cultura brasileira" (NUNES, 2001, p.10)
O ideal do Manifesto da Poesia Pau-Brasil é conciliar a cultura nativa e a cultura intelectual renovada, a floresta com a escola num composto híbrido que ratificaria a miscigenação étnica do povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história, o "melhor da nossa tradição lírica" com o "melhor da nossa demonstração moderna". (NUNES, 2001, p. 13)
34
Para criticar a erudição e evocar a vanguarda da poesia pau-brasil, Oswald
incorpora elementos até então não tratados na poesia brasileira, em seu manifesto,
para lutar contra as teorias anteriores, que apoiavam a cultura acadêmica vigente.
Desta forma, ele evoca os elementos culturais brasileiros para exterminar a
eloqüência e a arrogância. Nesta época apressada de rápidas realizações, a
tendência é a completa expressão nua e crua da sensação e do sentimento, numa
sinceridade total e sintética. Nesse sentido, percebe-se que o Manifesto da Poesia
Pau-Brasil semeia os principais aspectos de uma arte que se desenvolverá a partir
da aceitação crítica de padrões estéticos exteriores, orientados a partir de uma
pesquisa local que daria às realizações da vanguarda, no Brasil, tonalidades típicas
da realidade nacional, de modo que “a floresta e a escola” estariam como alicerce da
relação primitivismo / modernidade. Aliada a essa tentativa de definição dos traços
que compuseram a identidade nacional, a proposição de um novo modelo para a
realização poética desenvolve-se dentro do manifesto como forma de valorização do
acontecimento banal e cotidiano, da manifestação livre do folclore popular e,
principalmente, da linguagem falada pelo brasileiro, espécie de resgate da
nacionalidade sufocada pelo academicismo.
Não se pode negar a importância de sua contribuição para a reciclagem das
artes no Brasil, realização que, no caso do grupo Pau-Brasil, deu-se por meio da
interseção consciente de tempos e espaços, no limiar entre o novo e o velho, o
despontar e a re-descoberta.
35
36
3.2 – Poesia Pau Brasil: História do Brasil
A publicação, em 1925, do livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade,
representa a continuidade ou, mais do que isso, a realização palpável do conteúdo
programático que fundou o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Se, no texto de 1924, o
substantivo composto “pau-brasil” fora adjetivado e emprestava toda a sua amplitude
de significados à poesia – e, de maneira mais ampla, à estética – que se desenhava
no manifesto, aqui, recebe de volta a classificação morfológica original e coloca-se
como um rótulo sobre o livro, como se dissesse ao leitor: “isto é pau-brasil”. E sendo
metáfora da imagem primitiva do Brasil, o primeiro produto de exportação das terras
encontradas além mar, a poesia contida no livro transfigura-se, como se propunha
no manifesto, no produto interno mais primitivo e representativo do conteúdo
fundador da nacionalidade, seja em termos estéticos, seja na releitura do passado
nacional. A obra Pau Brasil, registra as representações da cultura nacional por meio
da reflexão sobre as marcas históricas presentes no retorno às fontes: a história
brasileira é revista e as perspectivas, invertidas. Escrita na conhecida fase heróica
do Modernismo, momento em que o grupo de artistas enfrenta a crucial reflexão
sobre as tendências e os percursos possíveis para a literatura e a cultura do país. A
essa consideração, acrescenta Vera Lúcia de Oliveira (2002, p.25), “tanto os
românticos quanto os modernistas instauraram um diálogo intertextual com os
primeiros cronistas do período colonial, aceitando ou contestando as visões de
mundo e a linguagem desses primeiros observadores”.
Ao longo dos poemas de "História do Brasil”, o eu poético reconstrói a história
do país numa ordem diversa, já que a colonização não era a nobre aventura de que
falavam alguns cronistas oficiais. Trata-se, de fato, de um percurso histórico-
geográfico que contempla, sob o prisma da paródia, desde os cronistas que
escreveram sobre o Brasil nos séculos XVI e XVII, até os movimentos agitados da
cidade de São Paulo no princípio do século XX. Sob esse aspecto, a incursão pelo
passado nacional acaba por se mostrar multifacetada na medida em que se articula
não apenas com a visão do presente em relação ao que se fora, mas também com a
construção desse passado a partir de uma estética fundamentada em novos traços.
Nesse ponto, tradição e ruptura aproximam-se (pela primeira vez) na síntese dos
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elementos aparentemente díspares que compõem o livro de 1925: entre a realização
de recursos poéticos estritamente ligados ao movimento vanguardista de renovação
das artes e uma temática que contempla o antigo sem deixar de explicitar o anseio
pelo novo, a poesia de Oswald coloca-se como o vértice de um emaranhado
temporal em que sincronia e diacronia se entretecem na composição de um novo
momento:
O poeta de fato continua seu excursus espaço-temporal pela realidade do seu país em nível diacrônico, isto é, trabalhando com textos que nos remetem a diferentes segmentos histórico-culturais, e em nível sincrônico, privilegiando situações, fatos, personagens que se referem ao seu próprio contexto. (OLIVEIRA, 2002, p.136-7)
Grande parte da originalidade nos poemas oswaldianos se dá pela
aproximação textual entre a realidade nacional primitiva e sua atualização cultural,
particularmente nessa subparte de Pau Brasil, a composição dos poemas se dá
através de uma alusão às crônicas dos viajantes, com descrição da fauna, dos
costumes, dos habitantes, bem como a conduta do colonizador. Tais textos, pelo
modo como representam a variedade de temas, amplia o antigo conceito de sátira. É
válido, aqui, transcrever o texto de Marly de Souza Almeida (2003, p.27), que afirma:
Por tudo isso, a sátira que se faz presente na obra Pau Brasil pode
ser reconhecida como natural e neológica, para ser fiel à denominação do próprio O. de Andrade. Isto porque tal criação, em que se misturam novos pontos de vista aos velhos conceitos de arte e de língua contribui para a transformação do ideal de ambas: língua e arte literária, pelo domínio do poeta e pela renovação peculiar à matéria lingüística. Operando com efeitos de sátira, o estilo moderno é o melhor uso que então se faz da língua literária desse período.
Funcionalmente, os textos de Oswald de Andrade são irônicos e críticos,
conforme comumente se caracterizam os manifestos de vanguarda. Segundo
Haroldo de Campos, os poemas de abertura do Pau Brasil, “verdadeiros
desvendamentos da espontaneidade inventiva da linguagem dos primeiros cronistas
e relatores das terras e gentes do Brasil [...] se convertem em cápsulas de poesia
viva, dotadas de alta voltagem lírica ou saboroso tempero irônico” (CAMPOS, 2003,
p.32).
Oswald de Andrade retoma textos esquecidos no passado literário,
rearticulando esses materiais com intenção lúdica e, ao mesmo tempo, satírica,
38
estratégica, com as quais procede à revisão crítica da história. Os poemas do
capítulo referido parecem devorar a tradição lingüístico-literária quando aproximam
discursos transpondo a barreira do tempo histórico e transportando a uma descrição
do ano de 1500 para uma realidade do início do século XX. Partindo de textos dos
primeiros cronistas portugueses e, por meio da paródia, a reconstruir a verdadeira
história do Brasil. “Para realizar esse ambicioso projeto, Oswald de Andrade serviu-
se, sobretudo, da paródia e da força que ela tem para atomizar o discurso oficial,
para evidenciar ideologias implícitas”. (OLIVEIRA, 2002, p. 77).
No impulso de revisão crítica do passado, a poesia pau-brasil encontra a
paródia como forma de desconstrução irônica da história tradicional. Malgrado esse
caráter destrutivo, identificado, portanto, à idéia de ruptura, a paródia não anula a
tradição, como apontaria Silviano Santiago (2002), pelo contrário, atua como
instrumento de reativação desse mesmo passado, de modo a atribuir-lhe uma nova
roupagem, agora proposta pela visão primitivista do princípio do século, que
promove uma nova contextualização de seu substrato. Conforme afirma Haroldo de
Campos,
a paródia, nas obras de Oswald de Andrade é um recurso estilístico e estrutural tão relevante para a compreensão de algumas das maiores criações da literatura moderna quanto útil para o entendimento de certas obras do passado literário notadamente insubmissas a uma classificação convencional. (CAMPOS, 2001, p.18-9)
O que em Pau Brasil para muitos sugeria um “esquema a ser desenvolvido”
(Afonso Arinos), poesia “tecnicamente mal construída” (Carlos Drummond de
Andrade), “puro balbuciamento infantil” (Tristão de Athayde), correspondia a virtudes
centrais de Pau Brasil, estratégias de ordenamento de vasto material coletado,
transformado ou construído, tendo o país como motivo.
A primeira seção das nove que estruturam o Pau-Brasil de Oswald intitula-se,
não por acaso, “História do Brasil”. Em diálogo com a dedicatória da obra, a
proposta de narrar o percurso histórico do país mostra-se como uma forma de re-
descoberta irônica e paródica, na medida em que instaura um novo ponto de vista,
capaz de promover uma importante inversão de perspectivas: por meio da
subversão inerente à paródia, a poesia pau-brasil coloca o colonizado na posição de
colonizador, de modo que aquele que fora descoberto, agora, desvende e traga à
tona o que o processo de colonização, ao contrário, fez questão de esconder. Nesse
jogo de revelação e ocultamento, os oito cronistas parodiados por Oswald aparecem
39
retratados em seus textos mais característicos, entretecendo-se uma teia em que o
fio principal conduz a uma sucessão cronológica que se inicia na descoberta do
Brasil, em 1500, e se estende até o processo de independência, três séculos mais
tarde.
3.3 – A paródia pelos caminhos da Carta de Pero Vaz de Caminha.
A “Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil” tem valor
histórico e literário. A descrição do documento trata da viagem da esquadra de
Cabral, do mapeamento da terra recém-descoberta e das condições e possibilidades
da mesma, em 1500. Foi publicada pela primeira vez em 1817, mais de trezentos
anos após ter sido redigida.
Nessa narrativa há uma exaltação e valorização da terra, um olhar
convergente aos interesses do colonizador: a corte portuguesa, resultado da
empreitada das grandes navegações; assim como a Igreja, com sua função
ideológica de divulgar a necessidade política de evangelização dos índios. Portanto,
a Carta de Pero Vaz de Caminha evidencia a intenção da classe dominante sobre os
objetivos da expansão e a divulgação da cristandade.
É perceptível, na própria descrição, a posição subserviente e o espírito de
lealdade do relator:
“Posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que agora nesta navegação se achou, não deixarei de também eu dar minha conta disso a Vossa Alteza, fazendo como melhor for possível, ainda que – para o bem contar e falar – o saiba pior que todos fazer.” (CASTRO, 2007, p. 88)
O escrivão português foi o responsável pela descrição do espaço nativo do
Brasil, e a Carta inicia o processo histórico do outro que vivia nesse mesmo espaço,
fazendo sua própria língua transmitir “realidades” ainda não nomeadas. Falar do
desconhecido, do encontro com o novo mundo foi tarefa de Caminha que se
preocupou em garantir a veracidade dos fatos ao caracterizar os nativos:
“A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar
40
suas vergonhas, e nisto são tão inocentes como quando mostram o rosto.” (CASTRO, 2007, p. 91)
E ao caracterizar também o interesse do colonizador:
“Até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. As águas são muitas e infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la, tudo dará nela, por causa das águas que tem.” (CASTRO, 2007, pp. 115-116)
É evidente que a caracterização dos nativos fazia parte dos procedimentos
utilizados pelos conquistadores: estabelecer diferenças entre os povos encontrados
pelo mundo, seus costumes, idiomas, crenças e outros, elaborando informações
sobre esses povos para que a colonização fosse imposta e houvesse a exploração
de suas riquezas vegetais e minerais.
Na carta, ainda há, além dos ideais de mercantilismo e de conquista de
riquezas citados anteriormente, bastantes indicativos que sinalizam a defesa de um
projeto de cristianização: “Parece-me gente de tal inocência que se entendêssemos
a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem
crença alguma, segundo as aparências.”(CASTRO, 2007, p. 111)
Neste outro trecho, já no fechamento da carta, – apesar do cinismo velado,
aparentemente ingênuo –, também se percebe a intenção religiosa, ou seja, a
salvação dos autóctones: “Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece
que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza
nela deve lançar.” (CASTRO, 2007, p. 116)
Outro aspecto relevante, porém com alguns dados contraditórios é o fato de
realmente ter havido comunicação e integração entre colonizadores e nativos num
período de contato tão breve. Será que essa interação de fato existiu? Afinal, para
que esta ocorresse, seria necessário um processo de ensino-aprendizagem e
convívio. “A conversação deles conosco era já tanta que quase nos estorvavam no
nosso trabalho.” (CASTRO, 2007, p. 93)
A superioridade do homem europeu parece se destacar durante o momento
em que o relato conduz à existência dessa possível comunicação. Entretanto, a
própria narrativa de Caminha nos faz desconfiar:
41
“Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhes dessem, folgou muito com elas, e lançou-as no pescoço. Depois tirou-as e com elas envolveu os braços e acenava para a terra e logo para as contas e para o colar do Capitão, como querendo dizer que dariam ouro por aquilo. Nós assim o traduzimos porque esse era o nosso maior desejo...Mas se ele queria que dizer que levaria as contas e mais o colar, isso nós não desejávamos compreender, porque tal coisa não aceitaríamos fazer.” (CASTRO, 2007, p. 93)
Vistos assim, os trechos da carta servem para ilustrar um pouco este estudo,
já que a principal proposta deste é acompanhar a caminhada oswaldiana, que
enfoca, por meio da paródia, colagem e citações, uma revisitação ao texto dessa
famosa carta – à qual dá origem à literatura brasileira – investigando-o de perto.
Parafraseando Mário Chamie, há uma dualidade no modo de Oswald de
Andrade enxergar alguns textos de alguns cronistas do Brasil-colônia. Por um lado,
considera que há nesses textos uma possível ingenuidade e deslumbramento
provocados pela descoberta do novo mundo. Por outro lado, há um discurso
subjacente da presença do poder a que seu autor servia, ou seja, o argumento da
apropriação, não só da terra, mas também daquela gente que deveria ser “salva”.
É evidente que Pero Vaz percebe a pureza genuína dos nativos e os julga
como tal. Durante sua narrativa, descreve o comportamento dos nativos e ainda
inscreve a fala destes, é o seu ponto de vista, interpretado como “por assim o
desejarmos”. Por isso, a poesia oswaldiana em Pau-brasil busca recuperar esse
discurso que está por trás do texto consignado do cronista.
Segundo Maria Eugênia Boaventura, Oswald de Andrade, ao invadir o
discurso de apropriação da Carta, para “criar” o seu poema pau-brasil, o deglutirá
digerindo-o e metabolizando-o. Esse processo dar-se-á pelo fato do texto conter
elementos da paródia do original apropriado, citação de suas frases e passagem
suas de empréstimo para caracterizar a colagem textual. Trata-se de uma
transformação do texto original, desviando de seu sentido, com intenção lúdica, ou
seja, a paródia contém o texto parodiado, e ao mesmo tempo, a sua negação. De
acordo com a estudiosa:
“Antes e acima dessa análise formal, está a concepção de uma cultura primitiva que quer fazer ressurgir sua realidade genuína, encoberta e simulada no corpo do discurso de apropriação do colonizador. Não se trata, portanto, de uma simples paródia do texto
42
da Carta, entendida paródia como imitação deformada, via sátira ou comicidade, do objeto imitado.” (BOAVENTURA, 1985, p. 23)
Oswald de Andrade, um intelectual inquieto, valoriza a sátira e a ironia como
elementos de crítica, recuperando e registrando o desnudamento das estruturas
ideológicas que determinaram as visões frequentemente alienantes, que os
brasileiros tiveram ao longo do tempo. É um olhar crítico, é a arma na mão do
escritor io que pretende desoficializar a história. A técnica de construção empregada
é peculiar, é a característica primordial do poeta. Constrói um processo de
justaposição, recortes e montagens dos nossos cronistas de tal forma que o
contexto omitido compensa a dimensão escrita do texto. Extrai do contexto poético
do contexto informativo. A síntese pura, desconstruindo o texto original para
reconstruí-lo em novo contexto. Assim procede na transposição dos poemas
paralelos ao relato de Caminha que vemos a seguir:
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo , até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa , que foram vinte e um dias de abril, estando da dita ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas (...) E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos. Neste dia, as horas de véspera, houvemos vista de terra ! a descoberta Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava de Paschoa Topamos aves E houvemos vista de terra Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam por a mão; depois a tomaram como que espantados. os selvagens Mostraram-lhes uma gallinha Quase haviam medo della E não queriam pôr a mão E depois a tomaram como espantados
43
Passou-se, então, além do rio, Diogo Dias , que fora tesoureiro da Casa Real em Sacavém (...) Logo meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e o acompanhavam muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez -lhe ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e o salto mortal , de que eles se espantavam muito e riam. primeiro chá Depois de dansarem Diogo Dias Fez o salto real Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e s uas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. as meninas da gare Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espadoas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha Apresentados os trechos da carta e os respectivos poemas que retomam tais
fragmentos, é importante notar que, intencional ou não, o poeta intitula o capítulo
com o nome de Pero Vaz de Caminha, modificado para Pero Vaz Caminha,
atribuindo ao substantivo próprio Caminha outro significado, referindo-se assim ao
verbo caminhar. É a caminhada do cronista, é o ir e vir das descobertas, além da
trajetória de seu discurso com intenções colonizadoras. A ausência da preposição
“de” torna Pero Vaz o sujeito do verbo caminhar, demonstrando que o poeta
pretende, por meio da ironia, revelar outra leitura possível dos textos dos
colonizadores. A simples ausência de elementos do texto original torna os poemas
questionadores e reflexivos. Ademais, a presença de títulos, em todos os poemas,
forma uma unidade paródico-satírica, já que tais expressões iniciais somadas aos
textos justapostos, permitem um efeito de estranhamento que desautomatiza uma
percepção alienante da realidade.
Inegavelmente, manifesta-se nessa leitura dos títulos acrescidos aos textos
um processo de libertação do discurso, resultando numa tomada de consciência
44
crítica, cuja versão muda de acordo com os interesses e o ângulo de visão com o
qual é interpretada. É o título irônico que direciona o leitor à crítica do texto.
Considerando o primeiro poema, intitulado A descoberta, seus versos
parecem frases soltas, retiradas das entranhas do texto original que apresentava
uma lógica linear, com situações e lugares geograficamente definidos. A
sobreposição dos textos permite a perda da lógica para que o significado seja
invertido. É “a descoberta”, é o abrir os olhos do leitor para o discurso que dissimula
a verdade, cultuado por muito tempo e que merece a sátira oswaldiana, sugerindo
uma leitura atenta e crítica na originalidade do texto matriz. Dessa forma, ao mesmo
tempo que permite um julgamento do leitor, apresenta uma nova roupagem
ideológica, comum no discurso modernista. Apresenta-nos a linguagem parodística
que busca criar uma nova e diferente maneira de ler o convencional.
A mesma montagem, com sintaxe despedaçada, transparece no segundo
subtítulo Os selvagens. Há um flagrante do habitante natural da terra, seu assombro
diante de uma galinha nunca antes vista. São “selvagens” porque sua bondade tão
intensamente descrita por Pero Vaz é questionada por meio da sátira oswaldiana. O
poema apresenta um sentido reflexivo e questionador quando visto em conjunto com
o título que contém em si toda a subversão do texto original. Segundo Mário
Chamie, “o selvagem oswaldiano está mais próximo de Montaigne do que de
Rosseau” (2002, p. 115). Portanto, para Oswald de Andrade, o índio brasileiro é o
que devora e, consoante com sua proposta antropofágica, quer dar perfil ao homem
primitivo, anterior às deformações que sofreu ao longo da história. “Quer delinear o
perfil do índio brasileiro, que reencontrado em seu estado natural e antropófago,
poderá vir a ser sujeito de uma nova história.” (CHAMIE,2002, pp. 104-5).
No poema seguinte, intitulado Primeiro chá, temos na ironia do título a
questão da cordialidade, como num processo de avanço na interação entre
colonizador e colonizado. O texto, retomado por Oswald, traz a dança de Diogo
Dias, numa “confraternização” com os nativos. Além dessas considerações, é
importante apontar para o último verso “Fez o salto real”, que no texto original
apresentava-se como “salto mortal”. A reconstrução oswaldiana possibilita a leitura
de que a realeza (representação do conquistador) parece conseguir conquistar a
simpatia, ainda que esquiva, do colonizado por meio dos folguedos da dança, com o
intuito de seduzir os nativos, sendo Diogo Dias, a própria representação da Coroa
Real.
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Para Mário Chamie, “essa mudança substantiva a que Oswald submete o
trecho da Carta, induz à clara compreensão de que o ‘salto real’ é o verbete
codificado do originário ‘assalto da realeza’ à presa, o indígena. (CHAMIE, 2002, p.
211).
Assim, cada palavra trocada por Oswald de Andrade é, em si, um impacto.
Entretanto, ficam claras as relações de dependência que o “salto real” e os
“folguedos cordiais” aprofundaram em nossa história.
A última garimpagem do poeta à Carta é o poema As meninas da gare, outro
texto que evidencia a intenção paródica do autor, afinal ele transcreve frases do
texto original com o vocabulário peculiar de 1500 e atribui ao seu texto um título
moderno que remete ao contexto atual de 1924. Essa transposição promove ao
leitor a percepção de que o discurso do cronista traz uma malícia subjacente diante
da nudez das índias. Evidencia, por meio do olhar do colonizador, o desejo de posse
das próprias índias, a exploração sexual feminina. Outrossim, a troca vocábulo
“cerradinhas” – referência à virgindade das nativas –, também representa a
modernidade: ao usar o termo coloquial “saradinha”, o poeta satiriza a visão de
pureza e inocência das nativas descritas pelo olhar do colonizador que transpassa
séculos e se torna o olhar que o homem civilizado tem para “as meninas da gare”. A
aproximação-confronto entre os dois momentos históricos distintos é apropriada, já
que a visão da atualidade foi radicada no tempo de Caminha, com modelos e
valores dos europeus.
Concluindo a análise, é pertinente comentar a respeito dos títulos que, sem
dúvida, imprimem marcas paródicas aos textos que acompanham. Além disso,
acrescentam, numa relação de síntese, o movimento próprio da ação dos
colonizadores. Ao se apropriar de fragmentos da carta do cronista, Oswald retira a
estaticidade da descrição do texto original e propõe um movimento progressivo de
achado, chegada e conquista; isso considerando os três primeiros poemas. Em as
meninas da gare, o poeta parece abandonar a ação e demonstra, com a descrição
das índias, um processo de qualificação de algo cobiçoso.
Como já foi dito anteriormente, a poesia oswaldiana causa impacto, choca
não só pelo processo parodístico, mas também pela fragmentação aleatória e
justaposição de imagens. Servindo-se de tais características, o poeta promove uma
relação conflituosa entre os textos sobrepostos a fim de apresentar uma diversa
decodificação da história. Assim, o novo manifesta-se como reflexão crítica do velho.
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Conclusão
O Modernismo proporcionou ao país uma arte nova. É interessante perceber
como a forma social aparece inscrita na forma literária. Personagem deste momento,
Oswald de Andrade foi porta-voz de uma nova consciência histórica, livre e crítica.
Com sua verve transgressiva, estava sempre pronto a polemizar, discutir e fustigar
consciências, principalmente porque viveu numa sociedade que se assentava sobre
os valores e modelos superados.
A radicalidade de sua obra, reconhecida por Haroldo de Campos, marcou
definitivamente uma época na poesia nacional, fazendo com que o novo se
manifeste como reflexão crítica do velho. Segundo o crítico, a obra oswaldiana força
o leitor a participar do processo criativo. Há um trabalho com rarefações, em que o
conteúdo omitido compensa a dimensão escrita do texto, posto em tomadas
isoladas, não imitativas, mas criativas. Vimos o exemplo de tal característica no
desenvolvimento deste trabalho, entretanto, podemos perceber também que ele
dialoga com as novas correntes europeias, devorando as experiências dos outros
para produzir textos notadamente brasileiros. Produz poemas anticolonialistas e
propõe ruptura a partir de seus manifestos. Com o Manifesto Pau Brasil e o livro de
poesia Pau Brasil, faz surgir um novo conceito de nacionalismo e um tratamento de
vanguarda em relação à linguagem, em que predominou exatamente a ideia de
recuperação de todos os elementos diferenciados ali sugeridos: linguagem cotidiana,
nacionalização do vocabulário, desobediência à gramática numa linguagem
profundamente autofágica. Com o Manifesto Antropofágico, lançado posteriormente,
tem por base estabelecer uma relação crítica com a cultura brasileira, através de sua
história, arte, política e economia.
Grande parte da originalidade nos poemas do autor se dá pela aproximação
textual da realidade nacional primitiva e sua atualização cultural, feita segundo os
moldes dos manifestos europeus. Esses dois tempos e dois espaços, sintetizados
na obra, sugerem o caráter contraditório da própria modernização brasileira. Ela é
uma realidade, porém incrustada em muitas realidades não tão modernas.
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Considerando tais elementos, é pertinente afirmar que os textos oswaldianos
que compõem este estudo criticam e satirizam o processo de colonização brasileiro
ao remontar, por meio da paródia, trechos da Carta de Caminha. Tais textos
abarcam a redução do lirismo, a redução metonímica e fragmentária do discurso
poético e, por sua vez, são comprometidos com a releitura crítica da cultura e da
arte brasileiras.
Em suma, os princípios que aqui se apresentaram, demonstram a defesa da
existência de uma identidade linguística brasileira que organiza e institui a paródia e
a sátira poética das primeiras décadas do século XX, sinalizada, sobretudo, pelos
poemas Pau Brasil. Essa identidade é construída lentamente, desde o fenômeno do
“descobrimento”, no século XVI. Suas marcas fundam o modo de expressão
específico do documento em análise e se aproximam de um panorama linguístico da
nação brasileira, sendo que a representação se faz por meio da paródia. A paródia
que se manifesta graças à ousadia oswaldiana, que revela a intenção de remeter
para a História e dela fazer uma critica social. Era preciso, afinal, “tomar as coisas
pela raiz”, embora poucos estivessem preparados para entender essa atitude.
Não se tratava de um convite à regressão aos processos pré-civilizatórios, na
verdade, constitui-se um convite ao avanço rumo ao futuro baseado na aceitação da
pluralidade dos elementos constitutivos da cultura brasileira. Nada nesses textos é
fortuito ou casual, e sim, fruto da reflexão e da alta consciência crítica e artística de
Oswald de Andrade, algo que para ele funcionava como arma na mão do literário,
levando à destruição das instituições culturais e propondo a reflexão sobre o
sistema; recuperando e registrando com sua peculiar sensibilidade de intelectual
inquieto com os destinos de seu país.
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51
ANEXOS
52
MANIFESTO PAU BRASIL
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica.
Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na
Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de
dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de
homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars : – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará
partir na direção oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
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A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria
dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do
cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela.
E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 10) a deformação através do
impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 20) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a
inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
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Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil
O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e
pela surpresa.
Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de
reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da
indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com
negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma
aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e
a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a algebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce.
Um misto de "dorme nenê que o bicho vem pegá" e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-
Brasil.
Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A
saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
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Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
O estado de inocência substituindo o estada de graça que pode ser uma atitude do espírito.
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos.
Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-
Brasil.
OSWALD DE ANDRADE
(Correio da Manhã, 18 de
março de 1924.)
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A Carta, de Pero Vaz de Caminha Senhor,
posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer! Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza -- porque o não saberei fazer -- e os pilotos devem ter este cuidado.
E portanto, Senhor, do que hei de falar começo: E digo quê: A partida de Belém foi -- como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. E
sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto. Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser ! Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes. Mas...não apareceu mais! E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha -- segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas -- os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz! Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas da terra, lançamos ancoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda aquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante -- por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças – até meia légua da terra, onde todos lançamos ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte. Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar. À noite seguinte ventou tanto sueste com
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chuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente a Capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem. E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes de sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze braças. E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber. Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata! Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali. Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora. Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de
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dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram. Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram em cinco ou seis braças -- ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E passaram um rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças. E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar. Dali se partiram os outros, dois mancebos, que não os vimos mais. Dos que ali andavam, muitos -- quase a maior parte --traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos. E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam. Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris d'água que nós levávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo. Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam
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carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós. E com isto nos tornamos, e eles foram-se. À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o Capitão o não querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite. Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção. Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé. Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro de pedra. Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não os punham. Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água; e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento
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desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem. E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados. E concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar. E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos. E assim ficou determinado por parecer melhor a todos. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas. E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descoberta, que não havia nisso desvergonha nenhuma. Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum. Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra. Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza. Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles. Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos
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desembarcado. E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima. E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao passo que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia. Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem -- para os bem amansarmos ! Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram -- fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas. Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes, como as de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir. Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza. E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam. Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois dedos. E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com
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que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite. Foram-se lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitania. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta.E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus. Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer. E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram. Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha. Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja. Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os
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hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem. Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela. E não tornou a aparecer lá. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles. Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!
Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que já trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aqui chegamos – o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar. E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam
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abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção. Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos! Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou mais devoção. Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos -- um a um -- ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado -- era já bem uma hora depois do meio dia -- viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras. E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram. Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior -- com respeito ao pudor. Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação. Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.
Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.
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Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito extensa. Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!
E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d'Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. Pero Vaz de Caminha.
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História do Brasil
(Oswald de Andrade) Pero Vaz Caminha A DESCOBERTA Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava de Páscoa Topamos aves E houvemos vista de terra OS SELVAGENS Mostraram-lhes uma galinha Quase tiveram medo dela E não queriam pôr a mão E depois a tomaram como espantados PRIMEIRO CHÁ Depois de dansarem Diogo Dias Fez o salto real AS MENINAS DA GARE Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha (Extraído da obra Pau Brasil)