52
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global 1 Aula 5 Análise do Filme “Morte de um caixeiro-viajante” O filme “Morte de um caixeiro-viajante”, de Volker Schlondorff, produzido para a TV alemã, em 1985, e que teve Dustin Hoffmann numa de suas melhores atuações, fazendo o papel de Willy Loman, é um filme baseado na peça homônima do dramaturgo estadunidense Arthur Miller (1915-2005), escrita em 1949. Vista por muitos como uma crítica cáustica do "sonho americano" de sucesso, ela tornou Arthur Miller e o personagem principal (Willy Loman), nomes famosos. Foi recebida com críticas entusiasmadas, recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma sensação nacional como dramaturgo Através do drama de Arthur Miller, teremos a oportunidade de discutir problemas candentes da precariedade do trabalho no capitalismo global, como a

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

  • Upload
    lebao

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

Aula 5

Análise do Filme

“Morte de um caixeiro-viajante”

O filme “Morte de um caixeiro-viajante”, de Volker Schlondorff,

produzido para a TV alemã, em 1985, e que teve Dustin Hoffmann numa de suas

melhores atuações, fazendo o papel de Willy Loman, é um filme baseado na

peça homônima do dramaturgo estadunidense Arthur Miller (1915-2005),

escrita em 1949. Vista por muitos como uma crítica cáustica do "sonho

americano" de sucesso, ela tornou Arthur Miller e o personagem principal

(Willy Loman), nomes famosos. Foi recebida com críticas entusiasmadas,

recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma

sensação nacional como dramaturgo

Através do drama de Arthur Miller, teremos a oportunidade de discutir

problemas candentes da precariedade do trabalho no capitalismo global, como a

Page 2: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

dissiminação da implicação mercantil na relação laboral ou a constituição de

um novo paradigma de trabalhador assalariado: o proletário-mascate, elemento

compositivo do sócio-metabolismo da barbárie.

O envolvimento intenso de homens e mulheres que vivem do trabalho

com a lógica social do mundo das mercadorias, seja nas instâncias sócio-

reprodutivas, enquanto consumidores; seja na instância da produção social,

enquanto trabalhadores assalariados, implica, de forma crucial, sua

subjetividade com o fetichismo da mercadoria. Esta implicação fetichizada com

as coisas tende a desefetivar o ser genérico do homem e, portanto, o ser-

personalidade do homem que trabalha.

É importante salientar um detalhe curioso: Gregor Samsa , personagem

do clássico conto “A Metamorfose” (de Franz Kafka - 1915), que certa manhã

acordou e “achou-se em sua cama convertido num monstruoso inseto”, era um

caixeiro-viajante. Na verdade, o vendedor é um homem que trabalha envolvido

nas teias do fetichismo da mercadoria em sua dimensão candente, com aquilo

consumindo irremediavelmente seu núcleo humano-genérico.

Entretanto, além da discussão desta implicação estrutural do salariato no

capitalismo global, discutiremos através do filme (e peça teatral), um dos

elementos intrínsecos da condição de proletariedade que marca hoje o mundo

do trabalho: a deriva existencial. Ela é composta pela deriva pessoal e a deriva

profissional. Faremos a discussão da natureza da deriva existencial sob a ótica

de uma posição problemática na estrutura de “classe”: os “proletários de classe

média”, trabalhadores assalariados que cultivam a ilusão pequeno-burguesa de

autonomia laboral.

É claro que a análise critica do filme exige uma articulação cuidadosa de

elementos da particularidade de classe dos personagens – “proletários-

mascates de classe média”, com traços de sua singularidade pessoal (é a

singularidade pessoal das individualidades de classe que explicam porque, sob

determinadas condições de exploração do trabalho vivo e força de trabalho, uns

Page 3: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

surtam, e outros, não). É a dialética entre universalidade e particularidade de

classe e singularidade pessoal que é capaz de esclarecer a candente

complexidade ontológica constitutiva das individualidades pessoais de classe,

onde o traço biográfico0-singular explica escolhas individuais e suas

conseqüências no plano sócio-ontológico.

Portanto, nossa análise crítica do filme visa desvelar a totalidade

concreta no interior da qual se insere as individualidades pessoais de classe,

totalidade concreta constituída pelas dimensões da

universalidade/particularidade de classe (capitalismo global e a condição

sociológica dos “proletários mascates”) e a dimensão da singularidade pessoal,

onde elementos da biografia como ontogênese do processo de individuação

pessoal de homens e mulheres que trabalham, e não apenas a inserção sócio-

estrutural na divisão social do trabalho, compõem o quadro explicativo da forma

de ser particular destas individualidades de classes (no caso, os personagens do

filme, com destaque para Willy Loman e seus filhos Biff e Happy).

Ora, se Willy Loman é um “proletário-mascate de classe média”, nem

todo “proletário-mascate de classe média” é Willy Loman – eis o cerne da

singularidade pessoal das individualidades de classe.

É a instância da singularidade pessoal enquanto campo histórico-

singular de ontogênese da individuação de homens e mulheres que trabalham

que explica a constituição da instância pessoal propriamente dita, que não está

desligada da história, mas que, pelo contrário a constitui, embora a história não

seja (como a instância pessoal) produto de escolhas teleológicas conscientes dos

sujeitos (Lukács observa que embora a história seja feita de escolhas humanas

baseadas em posições teleológicas, ela própria – a história – não possui uma

teleologia).

Na medida em que as individualidades pessoais são produtos do

desenvolvimento do ser social, sendo portanto participes de uma sociedade, elas

têm, como substância única, a singularidade pessoal que, enquanto tal, é

Page 4: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

portadora da história humana como síntese de múltiplas decisões alternativas

das individualidades pessoais em condições concretas da vida social.

Uma digressão sobre a natureza do que denominamos de

individualidades pessoais de classe torna-se interessante. Primeiro, pelo caráter

contraditório da denominação (o adjetivo “de classe” tende a negar o

substantivo “individualidades pessoais”). Há uma tensão essencial que constitui

a própria natureza da individuação humana na sociedade de classe.

As individualidades pessoais se constituem no processo de

desenvolvimento da personalidade singular que é a síntese de múltiplas

escolhas ou decisões alternativas feitas no decorrer do espaço-tempo de vida

individual.

Na medida em que se amplia o campo de manobra das possibilidades de

desenvolvimento dos indivíduos humano-sociais, se colocam, cada vez mais, sob

pena de ruina, as decisões alternativas que, enquanto escolhas (ou respostas do

homem que trabalha), formam a dimensão pessoal das individualidades de

classe.

Nesse sentido, a individuação é o lócus da ação das decisões alternativas

singulares que atuam sobre a vida dos indivíduos.

A singularidade do homem singular se forma na síntese dessas múltiplas

decisões alternativas singulares, escolhas que se põem como respostas aos

momentos econômico-sociais, ou no caso das individualidades pessoais de

classe, à condição de proletariedade que emerge com a modernidade do capital.

Nesse caso, vinculamos, desde já, o desenvolvimento pessoal da individualidade

à própria condição de classe social como momento econômico-social da

temporalidade histórica da modernidade do capital.

A morfologia pessoal das decisões alternativas ou escolhas do homem

singular como um ser que dá respostas (como nos diz Lukács), implica a

Page 5: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

apreensão da natureza das perguntas previamente formuladas na interioridade

do homem singular.

Diz Lukács: “O homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na

medida em que - paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção

crescente - ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios

carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los; e quando, em sua resposta

ao carecimento que a provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais

mediações, freqüentemente bastante articuladas. De modo que não apenas a

resposta, mas também a pergunta é um produto imediato da consciência que

guia a atividade; todavia, isso não anula o fato de que o ato de responder é o

elemento ontologicamente primário nesse complexo dinâmico.” (o grifo é

nosso).

Embora as respostas sejam o ato ontologicamente primordial ou o

elemento ontologicamente primário no complexo dinâmico do trabalho que

funda o ser social (o que dura são as respostas dadas), as perguntas

previamente formuladas, oriundas de generalizações sobre seus próprios

carecimentos, constituem a substância da singularidade do homem singular.

As perguntas como generalizações de seus próprios carecimentos (o que

pressupõe um desenvolvimento da linguagem), constituem o campo de

significações e léxico de sentidos que as individualidades pessoais utilizarão

para se apropriar do produto das respostas ou decisões alternativas.

Enquanto animal simbólico, o homem singular se apropria das suas

experiencias pessoais com um conjunto complexo de significações herdadas do

passado ou re-significadas no presente, tanto na particularidade da cultura, no

interior da qual o homem ou a mulher que trabalha estão subsumidos; quanto

na singularidade de sua ontogênese única no grupo familiar primordial - todas

elas marcadas pela condição histórica de classe social.

Assim, pode-se dizer, num primeiro momento, que a singularidade do

homem singular se constitui através das respostas – ou escolhas – onde as

Page 6: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

decisões alternativas são tomadas sob pena da ruina. Enfim, a necessidade ou

carecimentos os impulsionam a escolher entre alternativas concretas. Mas, na

medida em que o homem é um ser que dá respostas, ele é um ser que formula

perguntas. Aliás, ele só dá respostas na medida em que formula previamente

perguntas que generalizem – no plano da linguagem – seus carecimentos.

Portanto, a singularidade do homem singular se constitui não apenas

pelas escolhas que objetivamente ele toma e sua vida cotidiana, mas pelas

perguntas – permeadas por um campo de significações/re-significações e um

léxico de sentidos – que subjetivamente, na interioridade do seu ser, formula no

momento prévio às respostas dadas.

Embora – objetivamente – no plano ontológico, o homem singular seja

em-si, a síntese das múltiplas decisões alternativas tomadas no decorrer de sua

vida pessoal, das mais insignificantes às mais cruciais; subjetivamente – e aqui

trata-se da singularidade do homem singular, ele é também – na mesma

medida – o conjunto herdado (ou apropriado/re-significado) de elementos

simbólico-ideais (ideologias ou utopias) que dão sentido ou significações ao

produto dessas múltiplas escolhas tomadas. Como disse William Shakespeare,

numa de suas peças clássicas – “A Tempestade” (1611), "We are such stuff as

dreams are made on." (isto é, "somos da mesma substância que os sonhos.")

Jean-Paul Sartre, filosofo marxista existencialista, observou, certa vez,

que “o importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos

fazemos do que os outros fizeram de nós”. Isto é, o importante não é apenas o

que somos efetivamente por conta das decisões alternativas tomadas, mas sim

também, o que vamos fazer com aquilo que fizeram de nós, ou seja, como nos

apropriamos – no plano subjetivo-valorativo – daquilo que efetivamente nos

tornamos.

Portanto, no plano da singularidade da individualidade pessoal de classe,

é importante não apenas apreender aquilo que elas são em-si efetivamente, mas

também o que elas pensam (ou imaginam) ser para–si. O que significa, nesse

Page 7: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

caso, levarmos em consideração sonhos, expectativas e utopias de classe, não

apenas no sentido sociológico propriamente dito, mas no sentido profundo que

eles possuem para a interioridade do ser singular em sua unicidade.

Eis a natureza do processo de transformação da singularidade em

personalidade. Na verdade, o homem singular forma a sua personalidade

humana através das respostas dadas por ele, em si e para si, às experiencias

vividas (sem desconsiderar, como salientamos acima, a cadeia de mediações

lingüísticas que constituem as perguntas previamente formuladas que

generalizam seus carecimentos).

Singularidade

Personalidade

É claro que a personalidade, com toda sua problemática, como produto

do desenvolvimento da singularidade do homem singular, é uma categoria

social. Ela expressa um complexo singular que embora não possa ser reduzida à

pura interioridade do sujeito – pois ela é permeada de objetivações sociais –,

possui como elemento mediativo fundamental, no plano da interioridade do

sujeito, a subjetividade em suas instâncias intra-psiquicas (consciencia,

inconsciência e pré-consciência).

Nesse caso, tem-se a interação concreta e complexa entre o que Marx

denominou de objetivação e exteriorização. A primeira (a objetivação), dizendo

respeito a valores sociais introjetados/socializados ou formativos/conformativos

da personalidade humana; a segunda (a exteriorização), dizendo respeito ao

Page 8: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

modo de apropriação pelo sujeito, em sua interioridade singular (mediado

pelas instâncias intrapsiquicas), destas objetivações sociais dadas.

Lukács observou que o desenvolvimento das capacidades humanas não

produz obrigatoriamente aquele da personalidade. Isto é, a objetivação pode

implicar uma interação problemática com a exteriorização. Aliás, o

desenvolvimento da singularidade do homem singular – mediado pelo

desenvolvimento social do capital – tende a produzir personalidades

problemáticas ou personalidades estranhadas cuja mediação intrapsiquica está

subsumida à instancia do inconsciente.

Enquanto categoria histórico-social – e não onto-biológica, como sugere

o freudismo – o inconsciente é uma formação intrapsiquica da exteriorização

que sob o estranhamento do capital tende a aparecer de forma mistificada

(pode-se considerar Sigmundo Freud é o “Adam Smith da Economia Politica da

subjetividade burguesa” – onde, segundo ele, o inconsciente tende a aparecer

como um dado natural do homem e não como uma formação intrapsiquica

histórico-concreta).

Um homem singular submerso, em sua interioridade/exterioridade, nas

formações do inconsciente/valores-fetiches ou sonhos e utopas de mercado,

tende a obstaculizar, em si e para si, o desenvolvimento da sua personalidade

humana. Eis o sentido do estranhamento para Lukács,

Assim, individualidades pessoais de classe tendem, na medida em que

estão subsumidas à “classe” do proletariado ou condição de proletariedade,

negar (no sentido processual), a dimensão pessoal da individualidade. Isto é, o

modo de produção capitalista tende a produzir individualidades

despersonalizadas ou personalidade-simulacros em processo de desefetivação,

cuja resistência – no plano da legalidade da individuação – tende a explicitar-

se, sob determinações, como adoecimento.

Page 9: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

Tipos da forma-resistência

Resistência politico-social

Resistência pessoal

A categoria de resistência não é apenas uma categoria politico-social,

mas também uma categoria ontológico-moral, colocando-se, deste modo, como

resistência pessoal à dissolução, no plano da singularidade do homem singular,

do núcleo humano-genérico (trabalho vivo),

Ocorre resistência pessoal porque há – no plano do ser social – um

campo de manobra objetivo de possibilidades de realização concreta do ser

humano-genérico ou desenvolvimento das capacidades humanas. Deste modo, a

resistência pessoal possui um lastro objetivo-concreto dado pela dimensão da

sociedade como promessa onde se coloca – no plano espectral - a riqueza do

possivel (em contraste com a miséria do presente).

Na medida em que a dimensão da sociedade como promessa – a

genericidade em-si do homem – permeia a singularidade do sujeito de forma

ineliminavel, sob as condições do trabalho estranhado e estranhmento social,

ele tende a resistir, consciente ou inconscientemente, à sua degradação

humano-genérica.

O capitalismo, incapaz de realizar a promessa da genericidade humana

em si e para si, tende a potencializar meramente as capacidades singulares, o

que leva ao aviltamento e desfiguração da personalidade do homem. Essa

potencialização das capacidades singulares significa a manifestação de formas

de “personalidades particularistas” (onde o adjetivo “particularista” tende a

Page 10: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

10 

 

negar o substantivo “personalidade humana”). Assim, emerge o homem

burguês - homem singular particularista, homem despersonalizado em si e para

si.

Lukács observa na “Ontologia do ser social” que o desenvolvimento

capitalista é o momento do desenvolvimento histórico do homem em que se

produzem ou se colocam em si, necesidades sempre mais social.

Uma das necessidades sempre mais social – que se coloca como

carecimento radical – é a necessidade de interação humana, expressa na

socialidade enquanto relação com o Outro como Próximo. O capitalismo tende a

reduzir as necessidades humanas às necessidades reprodutivo-naturais, não

impulsionando-as para uma elevação das individualidade a um plano

compativel com o desenvolvimento das capacidades alcançadas até o momento.

Ora, estão colocadas, objetivamente, como traço ineliminável do processo

civilizatório, necessidades cada vez mais social – necessidades como

carecimentos radicais que são “negadas” pelo capitalismo, no sentido de que ele

as reconhece, ao mesmo tempo que as inverte e as perverte.

Como o sistema do capital é incapaz de integrar, em si e para si, as

necessidades cada vez mais social, isto é, os carecimentos radicais (“radicais” no

sentido de que a raiz é o próprio homem como ser social), o capitalismo as

manipula. Na verdade, a dinâmica da manipulação é explicada pela

necessidade sistêmica do capital tratar com carecimentos radicais ou

necessidades cada vez mais social incapazes de serem intergradas pelo

sóciometabolismo do capital.

A manipulação implica inversão/perversão ou aviltamneto – isto é, o

desfiguramento do que é incapaz de ser integrado no sentido de compor o

sistema de valores da dinâmica social burguesa ou realização das promessas

contidas nos valores vislumbrados.

Page 11: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

11 

 

De fato, pode-se “integrar” as necessidades cada vez mais social ou

carecimentos radicais, cujo núcleo efetivo é a socialidade radical, apenas

reduzindo-as e desintegrando seu contéudo valorativo (o Outro deixa de ser

Próximo e aparece apenas como meio de realização de finalidades

particularistas).

Além disso, na medida em que se mercadorifica (ou aparece como

produto-mercadoria no mercado) opera-se uma suposta integração de

necessidades cada vez mais social. Ora, a forma-mercadoria é a forma

adequada para a manipulação de carecimentos radicais, o que explica porque o

capitalismo manipulatório tinha que assumir a forma do capitalismo

neoliberal onde todo poder é dado ao Mercado.

Portanto, estar alienado, no sentido marxiano, é estar fora do complexo

do ser-homem (do ser social ou do ser-personalidade) que se tornou possivel no

plano do gênrro humano ou genericidade humana em si.

O estranhamento é produto de um deslocamento ocasionado pela

relação-capital que “des-projeta” as individulaidades pessoais de classe para

aquém de suas possibilidades concretas no plano do gênero humano.

Esse deslocamento histórico – que ocorre, portanto no plano da

temporalidade histórica do capital – possui implicações categóricas no plano

das individualidades pessoais de classe (por exemplo, por meio das formas de

desefetivação humano-génerica que se manifestam nos adoecimentos do

homem singular ou ainda por meio do que denominamos de “explicitações

espectrais” de vários tipos que permeiam o imaginário social).

Ora, no filme “Morte de um caixeiro-viajante”, Willy Loman é um homem

singular em processo de deseftivação humano-generica. Loman é o homem

burguês, uma individualidade pessoal de classe imerso na deriva existencial.

Para que possamos compreender a deriva existencial de Willy Loman

torna-se necessário articular elementos da universalidade/particularidade de

Page 12: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

12 

 

classe (que iremos explorar ao tratarmos do paradigma salarail do proletário-

mascate) com elementos da singularidade pessoal (traços da sua ontogenese

pessoal marcado por situações únicas de uma singularidade obstaculizada por

formações inconscientes que impediam o desenvolvimento da sua

personalidade humana).

Apesar disso, Willy Loman resiste – pessoalmente. Temos no filme de

Volker Schlondorff , vários exemplos de resistências pessoais – com destaque

para Willy e Biff Loman. Menos talvez, para Happy Loman, que escolhe

“integrar-se” ao sistema, manipulando seus algozes. Na medida em que Willy

Loman submerge na deriva pessoal, explicita seus sonhos e utopias pequeno-

burguesas e seus impasses no plano da socialidade e frustração afetivo-familiar.

Ao deslocar-se do complexo do ser-homem ou ser-personalidade, Willy

Loman, como personalidade tipica do drama realista, explicita a miséria social

da sociedade burguesa. A miseria de Willy Loman é a miseria do homem

burguês, embora nem todo homem burguês seja Willy Loman.

O filme começa com Willy Loman dirigindo seu veículo numa noite de

densa escuridão. Ele é um vendedor cansado, que fixa seu olhar adiante,

buscando se orientar na estrada. As viagens tornaram-se um fardo pesado para

Willy Loman. Na cena de abertura, percebemos tão-somente, de imediato, os

faróis do carro. Willy Loman é um caixeiro-viajante, cansado de viagens, prestes

a perder o emprego, e com sérios problemas de relacionamento com o filho mais

velho, Biff, jovem desempregado e sem perspectivas de futuro. Willy Loman

está em franco processo de autodestruição pessoal, imersos em fantasmas do

passado.

A crise do trabalho de Willy Loman explicita a condição de

proletariedade no qual está imerso. A deriva existencial é um sintoma da

despersonalização. Ele não consegue dar uma resposta à desefetivação

humano-genérica posta pelo trabalho estranhado naquelas condições concretas

(talvez porque seja incapaz de formular as verdadeiras perguntas como

Page 13: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

13 

 

generalizações de seus carecimentos radicais – Willy Loman está implicado com

ilusões pequeno-burguesas e possui uma auto-estima danificada).

Mesmo tendo relativa autonomia em sua atividade de caixeiro-viajante, o

velho Willy Loman, no momento crucial em vai barganhar melhores condições

de trabalho, no trato individual com a chefia, verifica a dureza do mundo do

salariato. É apenas um mero empregado subalterno que deve se submeter as

diretrizes gerenciais.

Como salientamos na aula 2, o modo de produção capitalista surge

constituindo uma condição existencial histórico-particular: a condição de

proletariedade, que é a condição de homens e mulheres despossuidos dos meios

de produção da vida social, ineridos numa relação social de subalternidade

estrutural e obrigados a vender sua força de trabalho. A condição de

proletariedade implica uma série de atributos existenciais das individualidades

pessoais de classe que nela estão inseridas.

Traços existenciais da condição de proletariedade

Subalternidade

Acaso e contingencia

Insegurança e descontrole existencial

Incomunicabilidade

Deriva pessoal e sofrimento

Risco e periculosidade

Invisibilidade social

Experimentação e manipulação

Prosaísmo e desencantamento

Corrosão do caráter

Page 14: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

14 

 

Sob o capitalismo, o trabalho assalariado é um trabalho heterônomo que

pode assumir a forma de emprego – onde o operário, empregado ou servidor

público obedece a um patrão público ou privado – ou ainda a forma de trabalho

por conta própria, onde o trabalhador é “patrão de si mesmo” (embora esteja

subsumido às condições do mercado).

Tanto a forma-emprego quanto a forma-trabalho por conta própria são

modos de trabalho heteronomo ou trabalho assalariado, na medida em que o

homem que trabalha está subsumido ao capital, seja numa relação de

exploração ou relação de opressão/dominação/espoliação.

Mesmo o “trabalhador por conta própria” que aparece como trabalhador

“autônomo” está efetivamente subsumido às condições do mercado e à lógica do

capital. Ele não deixa de ter um patrão – a si mesmo, obrigado por si a

submeter-se às leis do mercado.

Portanto, a forma-salariato é a forma social da heteronomia do trabalho

sob o modo de produção capitalista. A categoria de trabalho assalariado diz

respeito a todas as formas de subalternidade estrutural do trabalho ao capital,

seja como trabalho assalariado propriamente dito, numa relação de emprego,

seja como trabalho assalariado “excentrico”, numa relação de trabalho por conta

própria

A relação salarial de emprego se caracteriza pela

dependência diante de um patrão, persona do capital (pode ser um

capitalista individual ou um capitalista anônimo). É a forma heterônoma

clássica que constitui o empreendimento capitalista. Caracteriza-se pela

submissão do operário, empregado ou servidor público a uma divisão

hierárquica do trabalho.

A relação salarial do trabalho por conta propria se

caracteriza pela dependência diante de condições de mercado. O homem

Page 15: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

15 

 

que trabalha por conta própria é “patrão de si mesmo”, submetido às leis

do mercado. Preserva a ilusão de autonomia pessoal e independência

laboral.

O capitalismo em sua origem histórica, enquanto as relações de mercado

não dominavam, em larga medida, o metabolismo social, mantinha espaços de

autonomia laboral para “empreendedores por conta própria”. Nas áreas de

expansão, a idéia de autonomia pessoal possuía efetividade social. Na medida

em que o capitalismo concorrencial dá lugar ao capitalismo monopolista,

estreitam-se os espaços de “trabalho autônomo” e impõe-se as relações salariais

propriamente ditas .

O caixeiro-viajante é um trabalhador-vendedor implicado numa relação

salarial de emprego que possui traços de trabalho por conta própria, tendo em

vista que, em sua origem – e em certos casos – o vendedor de mercadorias era

um trabalhador por conta própria (era o mascate tradicional que comprava e

revendia no mercado).

Mas sob o capitalismo monopolista, a profissão de caixeiro-vajante

altera sua morfologia laboral: ele se torna cada vez mais um empregado das

grande empresa de venda ligada a grupos industriais – torna-se um empregado

de vendas. Apesar disso, preserva os traços do empreendedor “autônomo”

desvinculado do controle intrínseco ao emprego propriamente dito e cujo

talento pessoal torna-se relevante para seu desempenho produtivo.

Na medida em que se desenvolve, o capitalismo mundial torna-se cada

vez mais a sociedade das mercadorias. As individualidades pessoais de classe

tendem a se tornarem implicados de forma intensa (e extensa) com o mundo

das mercadorias, seja nas relações de consumo ou nas relações de trabalho e

emprego. Observou Marx:

“A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista

aparece como uma imensa coleção de mercadorias e a mercadoria individual

como sua forma elementar.” (Karl Marx, O Capital)

Page 16: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

16 

 

Um dos traços inegáveis do precário mundo do trabalho no século XXI é

a disseminação das implicações laborais de cariz mercantil com o surgimento

de um contingente imenso de trabalhadores vendedores de mercadorias e,

portanto, imersos nas contingências do mercado. Surge o que poderíamos

denominar de proletariado-mascate, um imenso contingente de trabalhadores

assalariados vendedores de mercadorias e prestadores de serviços como

mercadorias dos mais diversos tipos.

Todos nós nos tornamos vendedores de produtos-mercadoria. Por

exemplo, a epigrafe da peça “O sucesso a qualquer preço”, de David Mammet -

“Always be closing” (algo como “sempre esteja fechando um negócio”) é a

máxima do caixeiro-viajante que expressa a condição do tempo de vida tornado

tempo de trabalho do “proletário-mascate”

Sob o capitalismo global, as implicações laborais de cariz mercantil

assumiram proporções inauditas no seio do mundo do trabalho. O vendedor de

mercadorias ou representante comercial aparece diante de nós,

presencialmente e virtualmente, por meio das novas tecnologias de informação

e comunicação. A atividade de venda confunde-se com o serviço de marketing e

propaganda. Na TV ou Internet nos deparamos com novas mercadorias sendo

exibidas por algum proletário-mascate.

Com a terciarização do mercado de trabalho, ampliaram-se, no setor

formal e informal da economia capitalista, atividades de serviços ligadas às

áreas de vendas. Na verdade, muitos serviços possuem vínculos orgânicos com a

atividade industrial propriamente dita. Os ditos “serviços” são o modo de

manifestação da industrialização universal. Enfim, vivemos hoje, a lógica do

capital industrial sob a forma de uma “sociedade de serviços”.

Diante do sistema do capital imerso numa crise de superprodução e de

subconsumo, a atividade de venda tornou-se uma atividade crucial. Ela tornou-

se uma atividade central no capitalismo mundial em sua fase de crise estrutural,

com a venda se antecipando à produção. Por exemplo, o sistema toyotista

Page 17: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

17 

 

incorpora o princípio do estoque mínimo e do just-in-time, onde a venda se

confunde com a produção de mercadorias. Deste modo, o mundo do trabalho

tende a assumir a feição de um mundo de vendedores de mercadorias.

A crise do emprego clássico devido a corrosão do estatuto salarial

tradicional do mundo do trabalho, expele um imenso contingente de

subempregados que buscam por meio das atividades de venda ou de prestação

de serviços dos mais diversos tipos, estratégias de sobrevivência pessoal

enquanto individualidades de classe.

A instauração da nova precariedade do mundo do trabalho através da

constituição do “proletário-mascate”, vincula-se às múltiplas determinações no

campo da lógica organizacional da produção capitalista (o toyotismo) ou da

lógica sistêmica do capital com sua crise de superprodução e subconsumo

endêmico.

A venda de mercadorias não é tarefa apenas dos tradicionais

comerciantes ou comerciários ligados diretamente às áreas de venda ou de

prestação de serviço. Ela mobiliza o corpo da empresa, alterando o perfil de seus

empregados. Por um lado, a base operária é “enxuta” por meio de constantes

downsizing industriais. Por outro lado, amplia-se a rede de empregados

administrativos envolvidos direto ou indiretamente com as atividades de venda

e planejamento.

Devido a terceirização, muitos operários e empregados tornaram-se

meros “prestadores de serviços”. Sob a alcunha de “trabalhadores autônomos”,

são verdadeiros proletários-mascates, reproduzindo – na tênue linha de

demarcação entre trabalho produtivo/improdutivo, o trabalho abstrato virtual.

É o caso, por exemplo, dos camelôs e dos trabalhadores que vendem novos

serviços que surgem das necessidades sociais supérfluas originárias do

capitalismo desenvolvido.

Por exemplo, vejamos ainda o caso das atividades dos trabalhadores

bancários, principalmente aqueles ligados ao atendimento do público. O

Page 18: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

18 

 

bancário tornou-se hoje um executivo de vendas de produtos financeiros do

banco. Inclusive, a remuneração flexível do bancário incorpora uma parte de

comissões de vendas. Ele tornou-se um “mascate financeiro”. É claro que não

possui autonomia pessoal, nem circula pelos espaços sociais (como o velho

mascate de outrora). Entretanto, o bancário está cada vez mais envolvido em

oferecer e vender produtos e serviços financeiros dos mais diversos tipos (de

títulos de capitalização à seguros de vida). Essa atividade cotidiana recorrente

tende a comprometer a subjetividade do trabalho vivo.

É importante salientar que a ampliação exacerbada da implicação

laboral de cariz mercantil se origina de uma sociedade capitalista que se

desenvolve ampliando à exaustão, a mercantilização das relações sociais. Deste

modo, de alguma forma, se a mercadoria e sua lógica fetichizada penetram,

cada vez mais, nos poros sociais, erigindo, em torno de si, uma aura de

necessidade de consumo, precisa-se de alguém para suprir tal necessidade (com

sua respectiva mercadoria). E de repente, de algum modo, em algum lugar, nos

tornamos vendedores de alguma coisa-mercadoria

Ora, o ato de venda é um ato de investimento libidinal. O homem que

trabalha com vendas mobiliza a integralidade da sua personalidade no ato de

venda. Corpo e mente se entregam à realização da forma-mercadoria. A

inversão fetichista (o que é humano se coisifica e as coisas se humanizam) se

transfigura noutra inversão homóloga: a realização da mercadoria é a

irrealização da individualidade pessoal subsumida à condição de classe.

A prática social mercantil, ao tornar-se estruturante da vida cotidiana,

penetra no mundo do trabalho, articulando novas formas de precarização do

trabalho vivo, comprometendo, deste modo, a subjetividade do homem que

trabalha, envolvendo (e manipulando) a subjetividade complexa, na medida em

que o capitalismo do século XXI é um capitalismo desenvolvido que ampliou as

possibilidades concretas de individuação social. Esta é uma das formas de

“captura” da subjetividade do trabalho e um dos nexos mais amplos do

estranhamento que é intrínseco ao sóciometabolismo da barbárie.

Page 19: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

19 

 

Ora, o homem que trabalha com vendas compromete mais ainda a

dimensão subjetiva do trabalho vivo e da sua força de trabalho. Eis o elemento

decisivo da mudança qualitativa da atividade proletária sob o capitalismo

global. Por isso, a ampliação das implicações mercantis não apenas no seio da

esfera de circulação, mas nos próprios interstícios da produção, com uma

produção de mercadorias cada vez mais implicada com a atividade de venda em

si, significa que o capital se apropria, de forma intensa - e qualitativamente nova

- da subjetividade complexa do trabalho vivo. O trabalhador assalariado - ou o

proletário que se diz “prestador de serviço” - está imerso na lógica do produto-

mercadoria.

Nesse caso, a reificação dissemina-se com mais intensidade e amplitude.

Ao vender mercadorias, o trabalhador assalariado ou “prestador de serviço” (o

que denominamos de “proletário-mascate”), vende não apenas um produto, mas

vende a si próprio, a imagem com suas disposições anímicas e afetivas.

Ao incorporar-se na “lógica do produto-mercadoria” por meio da

atividade de venda, o “proletário-mascate” tende a sedimentar um grão de

consentimento à ordem sóciometabólica do capital. O reverso subjetivo da

implicação estranhada é a proliferação das “doenças da alma”, com destaque

para o estresse em suas múltiplas manifestações derivadas. Sob o capitalismo

global, a maior incidência das doenças do trabalho dizem respeito à mente e não

só ao corpo.

Enfim, na época de sua crise estrutural, o capital fechou o cerco à

personalidade viva do trabalho, cuja implicação estranhada reverbera em

sintomas psicossomáticos. Por isso, dissemina-se em nossa época, as mais

diversas formas de literatura de auto-ajuda ou atividades de lazer com

conteúdos de (auto) agressividade. Uma das formas de precarização do trabalho

é a precarização da subjetividade do trabalho vivo com implicações profundas

na sociabilidade social. Ela é um dado objetivo da barbárie social.

Page 20: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

20 

 

A profissão do trabalhador de vendas assume diversas configurações

sociais no decorrer do desenvolvimento capitalista. Por exemplo, um caixeiro-

viajante – como Willy Loman – é o vendedor ou representante comercial ligada

a grandes empresas que ainda guardam o sonho de autonomia pessoal no

processo de trabalho de venda.

Mas, na medida em que se amplia o poder do capital monopolista,

aumenta o controle gerencial sobre a atividade do vendedor. Impõem-se metas e

técnicas de venda. Restringe-se - embora não se possa suprimir - o espaço do

talento pessoal e adota-se novas práticas de manipulação. Nesse momento, o

profissional torna-se um mero empregado (“proletário-mascate”) imerso numa

relação salarial.

A deriva profissional de Willy Loman é, num primeiro momento, a

desilusão do homem que trabalha desefetivado em seus sonhos de ser um

profissional autônomo de sucesso. Enquanto o irmão mais velho, Benjamin

Loman, tornou-se um desbravador das fronteiras de expansão capitalista,

enriquecendo-se com minas de ouro na África (o herói colonizador do

capitalismo em ascensão histórica), Willy Loman escolheu ser um vendedor de

mercadorias, preenchendo assim sua necessidade de interação social por meio

da afirmação pessoal com venda de mercadorias. Tornar-se um caixeiro-viajante

sognifica desbravar um espaço aberto do talento profissional no limite do

trabalho heterônomo, onde seus constantes deslocamentos de cidade em cidade,

distante do olhar disciplinar da chefia criava um halo de autonomia laboral,

além de simular o sonho do pioneiro que desbrava o Novo Mundo (Willy Loman

era empregado da grande empresa de vendas, mas, na origem, mantinha

relações pessoais com a chefia da corporação).

Na sociedade burguesa que emerge sob a crise do processo de

expropriação primordial (e sistêmica) do trabalho vivo, na medida em que

avança o poder social do capital monopolista, abre-se uma tensão crucial entre o

avanço paulatino da condição de proletariedade – com o processo de

proletarização (a transformação de pequenos proprietários da agricultura ou

Page 21: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

21 

 

comércio ou inclusive profissionais liberais em proletários assalariados) e a

preservação, no plano da consciência social e do processo de socialização dos

pequenos proprietários, do sonho de autonomia laboral, ligada a idéia do

trabalho por conta própria, onde não existe a presença do patrão. É o sonho

pequeno-burguês do pequeno negócio, utopia laboral vinculada a etapas

pretéritas do capitalismo concorrencial, mas sempre reiterada efetivamente, a

cada momento, pelo capital (principalmente hoje devido a crise do emprego

capitalista).

Sob o capitalismo monopolista, torna ilusão passadista o que antes era

mero sonho. A ilusão da autonomia laboral nos casos do trabalho por conta

própria – onde o homem que trabalha é “patrão de si mesmo” - esquece que a

presença do capital se dá através dos constrangimentos de mercado. Muitas

vezes, o “patrão interior”, que está dentro de nós como persona do capital, é

mais exigente – e perverso – que o “patrão exterior”.

Ora, o sonho de autonomia laboral é ideologia-sintoma da

opressão/dominação do capital sobre as individualidades pessoais de classe, que

reagem, no plano contingente (no sentido do modo de resistência pessoal,

tratado acima), elaborando para si, a utopia da autonomia laboral. Por trás

desta ideologia-sintoma, existe o “núcleo racional” da resistência humano-

pessoal à desefetivação do ser genérico do homem.

A “classe” do proletariado é constituída por múltiplas frações de classe

que cultivam determinados valores, ideologias e utopias de classe. As inserções

materiais diferenciadas na divisão social do trabalho, no tocante à ocupação e

qualificação, status e prestígio social, propiciam múltiplos níveis de

consciência social, chegando alguns grupos sociais a terem maiores

possibilidades concretas de consciência de classe em si e para si. Na verdade,

algumas frações do proletariado – com destaque para os “proletários de classe

média” - tendem a cultivar valores, ideologias e utopias pequeno-burguesas.

Page 22: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

22 

 

A origem de classe pequeno-burguesa, no tocante a experiencia de

socialização, contribui para a incrustação de valores, ideologias e utopias

“estranhas” à posição objetiva de classe do proletariado. Por exemplo, um

homem proletário, trabalhador assalariado, operário ou empregado de grande

empresa, filho de família pequeno-burguesa, cuja socialização se deu por meio

da apropriação de valores, ideologias e utopias pequeno-burguesas, tende a

incorporar, valores estranhos à sua posição objetiva presente de classe social

(ele incrustará em seu campo de mediação lingüístico, a visão de mundo

pequeno-burguesa, que irá determinar as perguntas formuladas como

generalizações de seus carecimentos, em face das escolhas como respostas às

decisões alternativas).

Nesse caso, ocorre uma tensão problemática entre a origem pequeno-

burguesa e a presente condição de proletariedade (o que não significa que, sob

certas circunstancias históricas, o conflito interior não possa ser resolvido pela

atualização da consciência social adequada à classe a qual efetivamente

pertence). Esta é a tensão problemática (e dilacerante) entre passado e

presente, que verificamos na deriva profissional de Willy Loman.

Os Estados Unidos da América se constituíram cultivando, para um largo

extrato do proletariado (e campesinato) europeu e asiático que migrou para este

país nos seculos XIX e século XX, o sonho da liberdade – isto é, o sonho do

pequeno negócio ou pedaço de terra onde homens e mulheres poderiam ser

“patrões de si mesmos”. A saga da colonização ligava-se à socialização pequeno-

burguesa com os valores heróicos do self-made man.

No século XX, o avanço do capital monopolista criou uma tensão

problemática com os valores, ideologias e utopias pequeno-burguesas cultivadas

pelo “sonho americano”. O capital monopolista semeia a proletariedade e nega a

autonomia laboral. No limite, utiliza-se dos símbolos e ideologias do “sonho

americano” para manipular a consciência social, mas a realidade social do big

business se impõe sobre o pequeno negócio e os anseios do little man.

Page 23: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

23 

 

O capitalismo monopolista, que se desenvolve no século XX, amplia a

condição de proletariedade moderna. É constituído pelas grandes empresas

oligopolistas, trustes e carteis que se incrustam no Estado, tornando-o fiel,

como forma politica de si, aos interesses materiais do big bussiness.

A consciência social é convulsionada, por um lado, pelo processo de

proletarização paulatino que tende a transformar a velha pequeno-burguesia

em proletários assalariados. Por outro lado, pela preservação de valores,

ideologias e utopias pequeno-burguesa em camadas sociais proletárias, mas de

origem pequeno-burguesa (velha pequeno-burguesa ) ou novas camadas

pequeno-burguesas vinculadas ao capital monopolista – e portanto imersas

numa proletariedade problemática.

Os sonhos pequenos-burgueses sobrevivem à realidade social do capital

monopolista que se impõe sobre os destinos pessoais. Muitas vezes, eles são

manipulados pelos interesses políticos do grande capital em sua luta social (e

politica) contra a classe do proletariado.

O avanço do processo de proletarização, que significa para largas

camadas sociais de inserção e origem pequeno-burguesas, a perda da pequena

propriedade de comércio ou terra, ou ainda a perda de carreiras ligadas às

“profissões liberais”, possui implicações ideológico-pessoais. Ela se traduz, em

algumas camadas sociais, num desencanto contingente com o mundo burguês,

que se explicita, muitas vezes, na cosmovisão trágico-conformista de fundo

irracionalista.

Ora, a proletarização cria seu caldo de “cultura metafisica”. Ao mesmo

tempo, as novas camadas pequeno-burguesas, que se distinguem da velha

pequena-burguesia por estarem inseridas no mundo social do capital

monopolista, e portanto, viverem uma proletariedade problemática, têm, em si,

a candente contradição entre valores, ideologias e utopias pequeno-burgueses e

a realidade perversa da proletariedade moderna. Oscilam entre um encanto

fetichista com o mundo burguês e suas ilusões de realização pessoal, e o

Page 24: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

24 

 

desencanto íntimo de cariz contingente e muitas vezes, não-consciente, com o

mundo social do capital e seus fetichismos sociais. O desencanto pequeno-

burguês se traduz em aguda inquietação íntima, recorrente experimentação (e

manipulação) pessoal e deriva existencial (é o caso de Happy, o outro filho de

Willy Loman).

Deriva Existencial

Deriva Profissional

Deriva Pessoal

Willy Loman vive uma deriva existencial que se manifesta pela deriva

profissional e deriva pessoal. Uma é parte da outra. Trabalho e vida são

atividades fragmentárias interconectadas na ordem burguesa.

A deriva profissional caracteriza-se pela explicitação, no plano da

consciência pessoal, da alienação do produto e do processo de trabalho. A

deriva profissional da nova pequeno-burguesia ocorre quando os interesses

profissionais, permeados da auto-ilusão da autonomia laboral, entram em

choque com as prerrogativas materiais do capital.

Na verdade, a idéia de profissão, sob a ótica pequeno-burguesa, é

permeada de sonhos de autonomia (e liberdade) pessoal, que se depara – sob

certas circunstâncias - com a divisão hierárquica do trabalho e a redução do

trabalho intelectual à trabalho material, no sentido de trabalho heterônomo,

vazio de conteúdo, explicitando a subalternidade estrutural do trabalho vivo (e

força de trabalho) ao capital.

Willy Loman vive em seu drama trágico, uma deriva profissional,

quando percebe que é obrigado a se submeter às determinações impessoais da

chefia da empresa que quer lhe aposentar compulsoriamente. A tragédia de

Willy Loman no plano profissional é se recusar a aceitar que possui um

Page 25: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

25 

 

emprego, sendo ele mero empregado subalterno do capital. Loman possui um

tipico orgulho pequeno-burguês em resistir à máquina impessoal da

modernidade salarial. A deriva profissional é a perda irremediável de vínculos

com seu passado de sonhos de sucesso e autonomia laboral.

Por outro lado, a deriva pessoal se caracteriza pela alienação de si e dos

Outros. A deriva pessoal do homem pequeno-burgues é a percepção (e auto-

percepção) da perda (ou deterioração) de seus laços íntimos com Outros como

Proximos e consigo mesmo. É a dimensão da auto-alienação do homem que

trabalha, alienação de si e dos outros, onde o Outro primordial são os filhos,

verdadeiros vínculos com a futuridade.

A deriva pessoal do caixeiro-viajante Willy Loman é marcada por

conflitos familiares com o filho Biff. Nesse caso, temos a perda de vínculos com

sua futuridade pessoal, com Willy tornando-se incapaz de ver reproduzidos no

filho primogênito (Biff Loman), os caros valores de sucesso profissional que ele

alimentou por toda a vida. Na verdade, o fracasso de Biff é também o fracasso

pessoal-profissional de Willy Loman.

Willy Loman é um homem proletário pequeno-burguês convulsionado

pelo passado e presente. Está em pleno processo de desefetivação humano-

genérica. Passado e presente habitam o mundo íntimo de Willy Loman. Todos

nós dialogamos com espectros do tempo passado ao enfrentarmos o tempo

presente. Diante da alienação crucial que o assola no tempo presente, Willy

mobiliza, em sua deriva existencial, espectros do tempo passado (como seu

irmão Ben, que é menos sintoma de degradação mental, e mais expressão dos

conflitos íntimos do homem pequeno-burgues diante da percepção e auto-

percepção da sua irremediável condição de proletariedade).

A abertura do filme “Morte de um caixeiro-viajante” mostra Willy Loman

chegando em casa, carregando duas malas pesadas, depois de mais uma viagem

de negócios. É um homem proletário em crise – na verdade, homem proletário

imbuído do espirito burguês. Mesmo assim, ele diz para a esposa Linda: “Está

Page 26: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

26 

 

tudo bem”. Mas depois, chega a dizer: “Estou cansado”. E logo adiante: “As

palmilhas estão me matando”. Willy não conseguiu dirigir seu carro. “De

repente saí da estrada. Esqueci que dirigia. Cinco minutos depois estou

sonhando de novo”, diz ele.

Willy Loman não está apenas com cansaço físico, mas torna-se evidente

um agudo stress mental. Começa a divagar, submergindo no passado. É um

homem proletário à deriva. O tempo presente tornou-se mera factualidade

estranhada.

Willy Loman não dialoga – sua fala é puro monólogo. É mais um sintoma

da despersonalização do homem que trabalho (a incomunicabilidade). Por isso,

Willy Loman sonha acordado. Diz ele: “Pensei em algumas coisas. Coisas

estranhas”.

A mulher Linda é a voz da razão familiar. Ela se preocupa com a saúde de

Willy. Diz ela: “Sua mente trabalha muito e é ela que importa”. Na verdade, o

trabalho de caixeiro-viajante sufoca Willy. É o elemento causal crucial na sua

desefetivação humano-genérica. É o trabalho de vendedor que o faz viajar toda

semana, afastando-o da família – as viagens são desgastantes. Linda diz: “Mas

você tem 60 anos. Não pode viajar toda semana.” E observa: “Não há motivo

para você não trabalhar em Nova York”.

A questão principal é que Willy precisa evitar as viagens e ficar em Nova

York. Naquela idade, ele não tem mais condições de executar suas tarefas de

caixeiro-viajante. Após tantos anos dedicados à empresa de vendas, não

encontra o reconhecimento necessário da chefia para lhe preservar a saúde de

trabalhador. Eis a explicitação do seu trabalho estranhado.

Ora, a natureza do trabalho estranhado de Willy Loman se manifesta com

intensidade no ocaso de suas forças fisico-espirituais. Aos 60 anos, Willy

Loman, submerso em sua deriva existencial, quase faz um balanço de vida. Diz

ele: “Levei uma vida para pagar uma casa. E não há ninguém para viver nela”.

Nesse momento, expressa o desencanto com a vida de trabalho e acumulação de

Page 27: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

27 

 

bens familiares. Eis o nexo causal entre trabalho estranhado , deriva existencial

e desencanto pessoal-familiar.

O velho caixeiro-viajante sente que não realizou nada na vida pessoal. Eis

o sintoma do desencanto existencial. Linda procura consola-lo: “Sempre

deixamos algo de lado na vida”. Mas o marido retruca: “Algumas pessoas

realizam algo”. Ora, Willy Loman sente um vazio pessoal. Consumido pelo

trabalho estranhado no decorrer de sua vida vivida, de repente, ele se encontra

diante do deserto da sua existencia pessoal-familiar.

Willy Loman está imerso num complexo de alienação que o afasta do ser-

homem ou ser-personalidade: primeiro, ele está alienado dos produtos do

trabalho (as mercadorias que vende são capitais-mercadoria da empresa em

que trabalha); depois, está alienado do processo de trabalho (ele é obrigado a

viajar para locais indicados pela empresa, cumprindo tarefas de venda,

provavelmente com metas a serem cumpridas). Nisso investe seu talento

pessoal, cultivando ilusões de autonomia laboral; além disso, ele está alienado

de si mesmo - embora se identifique com a profissão de vendedor, com o tempo,

ela se tornará um fardo de vida, devido o cansaço e stress mental. O trabalho

estranhado consome o trabalho vivo como dimensão de sua genericidade

humana. Para as profissões que implicam o talento pessoal, esta dimensão da

alienação – a alienação de si mesmo - manifesta-se, no decorrer do tempo,

como auto-percepção de irrealização na vida pessoal. Finalmente, Willie está

alienado dos Outros – os outros familiares como Próximos, mulher e filhos que

cresceram com o pai distante, viajando em trabalho de vendas. Uma dimensão

da deriva pessoal de Willy Loman decorre da fratura relacional com seu filho

Biff e a completa indiferença para com seu outro filho Happy.

Willy Loman é um homem proletário implicado com as coisas. A mulher

Linda apresenta-lhe as contas do lar: conserto de peças da geladeira, prestação

de máquina de lavar e aspirador de pó, conserto do teto e carburador do carro –

enfim, gastos elementares do proletário pequeno-burguês para manter um

padrão de “classe média”. Diz ele: “Se os negócios não melhorarem, estou

Page 28: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

28 

 

perdido”. Mais uma vez, sua vida pessoal-familiar remete ao trabalho

estranhado.

Na família Loman, só Willy e Happy possuem emprego. Entretanto, o pai

parasse ser o único provedor do lar – a mulher executa trabalho domésticos,

cuidando da casa (eis o modelo de lar fordista); Happy, embora tenha emprego,

está afastado de casa e Biff, que largara os estudos, está desempregado.

Mas Willy Loman, o homem que trabalha, possui uma singularidade

pessoal que limita o desenvolvimento da sua personalidade. Ele é um vendedor

inseguro de si. É a dimensão da singularidade do homem singular. Diz ele: “O

problema é que as pessoas não me levam a sério. Eles riem de mim. Eles passam

e nem sou notado”.

A mulher Linda que sempre procura consola-lo, diz que ele ganha muito

bem por semana. Mas o velho caixeiro-viajante deixa claro mais um traço de seu

trabalho estranhado: o tempo de trabalho consome quase todo seu tempo de

vida. Diz que trabalha 12 horas por dia. “Para outros é mais fácil. Não sei

porque”, diz Willy. Mas isto é como ele percebe os outros a partir do fardo

pessoal que carrega. Talvez não seja tão fácil assim para os outros também

Percebemos que Willy Loman possui baixa estima como profissional de

vendas – como salientamos é um traço da sua singularidade pessoal: “Eu falo

demais. Um homem deve falar pouco. Charley fala pouco e eles o respeitam.

Faço piadas demais. Sou baixo. Sou uma figura cômica. Preciso superar isto.

Talvez não me vista bem.”

Mas enquanto a mulher o consola dizendo que ele é o mais bonito, Willy

Loman, diante do espelho, divaga e pensa na amante casual (logo depois, como

um contrapeso à consciência de culpa, elogia sua mulher, Linda, dizendo que

ela é ótima e uma grande companheira)

Ora, a presença da amante serve para explicitar outro aspecto da

profissão de caixeiro-viajante – a solidão das viagens. Ele diz: “Sinto-me só,

Page 29: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

29 

 

sobretudo quando as vendas vão mal e não há com que falar. Sinto que nunca

mais venderei. Não sustentarei você, nem ajudarei os rapazes.” Finalmente,

observa: “Vou me redimir” (provavelmente, a consciência de culpa o consome

intimamente – o que mostra que o homem burguês Willy Loman possui traços

de um anti-herói kafkiano).

Aos poucos, Willy Loman vai indicando os elementos compositivos do

processo de trabalho do caixeiro-viajante, traços característicos que

contribuíram para sua deriva existencial. Como homem singular e

individualidade pessoal de classe, Willy Loman é um vendedor de baixa-estima,

apesar dos anseios e sonhos de sucesso que marcaram sua vida pessoal.

Inseguro de si, possui carecimentos íntimos de reconhecimento e atenção (gosta

de contar piadas e fala demais. Considera-se baixo e talvez, feio).

Estilo de Trabalho do caixeiro-viajante

Longas jornadas de trabalho (12 horas de trabalho)

Constante trato interpessoal

Talento pessoal para convencimento e respeitabiidade

Remuneracão vinculada a desempenho nas vendas

(salário por peça)

Freqüentes viagens de venda Vida solitária em

quartos de hotel

Pouco contato familiar

Page 30: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

30 

 

Linda, como mãe e trabalhadora do lar, sente nostalgia dos filhos

pequenos, quando estavam sob seus cuidados no lar. Biff e Happy, crescidos, se

afastaram mais de casa, deixando-a sozinha. O marido Willy, com suas

freqüentes viagens de negócios, contribui também com a solidão de Linda. Mas

ela é uma mulher trabalhadora do lar, bem-resolvida consigo mesma.

Um detalhe: enquanto Linda tem nostalgia com os filhos, Willy lembra-se

do Chevy vermelho, que comprou em 1928, ano de prosperidade comercial,

pouco antes da Grande Depressão em 1929. O Chevy vermelho, ícone da

civilização fordista, o faz lembrar daquela época (Linda diz: “Algo deve te-lo

feito lembrar”). Willy observa, lembrando-se do filho: “Como Biff o lustrava”. E

diz: “O vendedor não acreditou que ele tinha rodado 128 mil km” (o Chevy 1928,

carro da Chevrolet lançado com US$ 50 de descontos em 1928, desbancou a

liderança de vendas do Modelo A, da Ford, líder de vendas até então. Com o

Chevy 1928 a Chevrolet conseguiu, pela primeira vez, passar da Ford em

vendas).

Mas Willy Loman – sempre implicado com valores pequeno-burgueses,

quer saber se Biff está ganhando algum dinheiro. Linda se interroga: “Como ele

ganharia algum dinheiro?”. Esta é a preocupação de Willy com Biff: saber se ele

se tornou um homem produtivo. Loman é um homem proletário implicado com

valores-fetiches.

Pai e filho discutiram e estão com relações estremecidas. Willy diz: “Ele

esconde algo. Ele se tornou sombrio”. No decorrer da narrativa percebemos um

estranhamento entre pai e filho. De repente um tornou-se estranho ao outro.

Diz o pai: “Quando ele era jovem, eu pensei: ‘É bom viajar, ter diversos

empregos. Mas passaram 10 anos e ele nem ganha US$ 35 por semana.” Na

verdade, Biff , o filho, não conseguiu se tornar um homem de sucesso (como o

amigo Bernard). Frustrou o pai que via nele a projeção de seus anseios de

sucesso e autonomia laboral. A mãe observa que Biff está se encontrando. Willy

retruca: “Não se encontrar aos 34 anos é uma desgraça.” E vocifera: “Biff é

preguiçoso. Vagabundo”. A mãe compreende Biff: “Ele ainda está perdido”.

Page 31: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

31 

 

O velho caixeiro-viajante tem uma aguda frustração com o filho: “Biff

Loman perdido?. No maior país do mundo, um jovem bonito se perde.” Ele não

compreende como isso possa ocorrer. É algo tão trágico quanto a sua deriva

profissional de caixeiro-viajante. Mas Willy está num conflito íntimo. Na

verdade, Biff é parte de si, uma parte de si estranhada. Diz que Biff é vagabundo,

mas logo a seguir, observa que ele é trabalhador: “Biff não é preguiçoso. Vou

arranjar um trabalho de vendedor para ele.” Ora, Willy não consegue não se

projetar no filho Biff. Quer vê-lo realizar seus sonhos frustrados. Quer que Biff

se torne um homem de sucesso (como Thomas Edson ou B.F. Goodrich). Diz:

“Muitos começaram tarde. Eu aposto no Biff”.

A insatisfação visceral de Willy Loman não é apenas com as viagens de

trabalho como caixeiro-vaijante ou o desemprego do filho Biff. Por um

momento, ele expressa insatisfação com a degradação da vida urbana e o

crescimento dos prédios de apartamentos – ele explicita sua cosmovisão

pessimista quase exalando um anti-capitalismo romântico: “Ficamos presos,

tijolos e janelas; janelas e tijolos.” Lamenta não ter mais espaço de vida: “A rua

está cheia de carros. Não há mais ar puro. A grama não cresce mais. Não

consigo plantar cenouras, Prédios de apartamento deviam ser proibidos.”

O velho caixeiro-viajante lembra dos dois lindos Olmos onde Biff

brincava de balanço e que foi cortado: “Deviam prender quem cortou as árvores.

Destruíram o bairro”. Novamente, ele se refugia no tempo passado: “Penso cada

vez mais nesses dias”. É o sintoma de deriva existencial.

O tempo passado é tempo dourado: “Era época de lilás e glicínia As

peônias desabrochavam. E os narcisos. O perfume nos quartos.” Indignado,

Willy Loman apenas constata traços fenomênicos da miséria do capital. A partir

de sua consciência ingênua, atribui a degradação da vida urbana ao crescimento

da população: “É o que destrói o país. A população saiu de controle. A

concorrência é enlouquecedora.”

Page 32: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

32 

 

Mas a inquietação existencial é também do filho de Willy Loman. Biff

vive uma deriva existencial, mas por outros motivos. Elelamenta: “Sempre fiz

questão de não desperdiçar minha vida. E tudo o que fiz foi desperdiça-la.” É a

percepção da vida pessoal estranhada onde intenção e resultados se excluem.

Ele é um homem perdido e incapaz de se integrar no mundo de sucesso

idealizado pelo pai (o que explica o conflito candente entre ele e Willy).

Biff foge do padrão social do homem fordista – casado e provedor do lar

com um emprego regular (como o amigo Bernard iria se tornar). Na verdade,

Biff tornou-se um homem perdido no limbo dos sonhos da velha pequeno-

burguesia. Diz ele: “Talvez devesse me casar. Me fixar em algo. Talvez seja o

meu problema. Sou como um menino. Não sou casado, não trabalho. Sou como

um menino”.

Na medida em que não se insere no padrão salarial vigente, imerso em

empregos precários, incapaz de se fixar em algo, Biff quase que reproduz – no

auge do fordismo (a peça de Arthur Miller ocorre no pós-guerra quando os EUA

se tornaram economia capitalista industrial afluente), o drama dos jovens

adultos proletários do capitalismo flexível, incapazes de se inserirem em

empregos fixos e regulares, renunciam a serem provedores do lar. São homens

infantilizados pela logica do capital em sua fase estrutural. Tornam-se eternos

meninos.

O diálogo entre os irmãos Biff e Happy Loman, são elucidativos das

angústias e dilemas existenciais que lhes perseguem. Primeiro, percebemos que

Biff – como o pai Willy – vive um processo de deriva existencial. Antes, Biff era

um rapaz extrovertido, cheio de vida e bem-sucedido com as mulheres. Mas

algo mudou. Happy observa: “Você me ensinou tudo sobre mulheres.” Enquanto

Biff era desenvolto em suas conquistas amorosas, Happy era tímido. O que

percebemos é que, aos poucos, na medida em que cresce, Biff se amarra em seus

fantasmas interiores e inquietações sobre seu futuro profissional.

Page 33: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

33 

 

Há um desalento progressivo ligado a valores da vida burguesa que ele

não compartilha e que constituem exigências do mundo social em que vive. Biff

não se ajusta à idade madura, que exige dele os requisitos de um “homem

produtivo” e “homem de sucesso”. Pelo contrário, ele vai aos poucos se

perdendo e entrando em conflito com o pai. Happy pergunta: “O que aconteceu,

Biff? Onde está o humor, a confiança? O que há…?”.

Primeiro, Biff demonstra preocupar-se com a atitude do pai para com ele:

“Por que papai caçoa de mim? Tudo que faço, ele faz careta.” O irmão observa:

“É porque você não tomou rumo ainda. Não es estabeleceu. Há algumas coisas

que o deprimem”. Happy acredita no irmão: “Se você começar, há um futuro

para você”.

Mas Biff não acredita em si. Numa passagem magistral do filme, ele diz:

“Não sei qual é o futuro. Não sei o que devo querer”. E explicita sua insatisfação

intima com a lógica social que organiza o mundo do trabalho na sociedade

burguesa: “Passei sete anos após o colégio procurando trabalho. Expedidor,

vendedor. Todo tipo de serviço. É algo medíocre Pegar o metrô durante o

verão. Viver controlando estoque e telefonando. Vendendo e comprando?.

Sofrer 50 semanas num ano para aproveitar duas, quando o que se quer é

estar fora de casa, sem camisa…E sempre tentar superar o colega. E é assim

que você constrói um futuro?”.

Ora, Biff demonstra se insurgir contra o estilo de vida e trabalho da

sociedade do salariato, vida social medíocre, estúpida, rotinizada, meramente

mecânica no dia-a-dia. Ele não aceita a condição do trabalho assalariado como

sofrimento que consome a fruição da vida, vida de si e vida com os outros. Ele

critica a concorrência alucinada com os colegas de trabalho, o mundo da farsa e

trapaça pessoal. E se interroga com lucidez: é assim que você constrói o futuro?”

O diálogo entre Biff e Happy explicita uma crítica mordaz à sociedade

burguesa, principalmente no tocante ao trabalho estranhado que se manifesta

Page 34: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

34 

 

na incapacidade de dar a homens jovens e audazes, como Biff Loman, uma vida

plena de sentido.

Biff pergunta a Happy: “Você é feliz? Você é bem-sucedido. É feliz?”.

Happy – cujo nome em inglês, significa ironicamente “feliz”- diz: “Não”. Biff não

entende. Ganha bem, mas não é feliz. “Por que não?”, pergunta ele. O irmão diz:

“Só espero o gerente de merchandising morrer.” Enfim, ele “torce” pela morte

do colega de trabalho para ocupar seu lugar.

Happy parece adotar aquilo que Biff acabara de criticar no estilo de

relação pessoal do trabalho estranhado: a predação do Outro - “Sempre

tentando superar o colega”. Ora, o trabalho estranhado instiga um tipo de

relação interpessoal que é a negação do Outro como próximo. É o cerne da

manipulação sistêmica que caracteriza o metabolismo social do capitalismo

global. O fetichismo social interverte o Outro em mero objeto de predação. É a

sociedade da manipulação e da farsa.

Mas Biff, como o pai, é um sonhador. Talvez seja uma dimensão da sua

resistência pessoal (enquanto o pai está imerso no tempo passado, Biff sonha

com o tempo futuro). Sonha em ir com o irmão Happy para o Oeste:

“Acharemos uma fazenda. Criaremos gado. Usaremos os músculos. Precisamos

de espaço aberto.” Eis o ideal da autonomia laboral cultivada pelo pai Willy

Loman. O pequeno-burguês precisa de espaços abertos.

Os filhos socializados no ambiente pequeno-burguês sentem necessidade

intima de”espaços abertos”. O mundo do salariato os sufoca. Entretanto, Biff e

Happy dão respostas diferenciadas à necessidade de liberdade pessoal.

Happy, como o irmão, sonha com isso: “As vezes, quero rasgar a roupa no

escritório.” Mas, ao mesmo tempo que possui o sonho de espaços abertos, é

Happy também um homem implicado com os valores da ordem burguesa

concorrencial. Possui auto-estima e anseia ascender no interior desta ordem

competitiva. “Consigo superar qualquer um na loja e tenho de obedecer àqueles

cretinos”. E observa um traço da ordem burguesa competitiva: “Todos são

Page 35: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

35 

 

falsos. Eu diminuo meus ideais.” Happy quer demonstrar – mais do que o irmão

– que ele pode vencer naquela ordem burguesa e não apenas fora dela. Diz ele:

“Preciso mostrar àqueles arrogantes que posso chegar lá.”

Enquanto Biff sequer tenta enfrentar o trabalho estranhado, recusando-

se a aceitar os termos do jogo da manipulação e farsa burguesa, Happy faz o

contrário – intimamente, é como o irmão: sonha com a autonomia laboral e

com os “espaços abertos”. Mas Happy quer dar uma resposta dentro do sistema,

utilizando-se dos artifícios de manipulação do próprio sistema da ordem

competitiva. Biff diz: “Não fomos educados para ganhar dinheiro. Não consigo”.

Mas o que Happy quer é dar uma resposta à banalização da vida burguesa a seu

modo – dentro da ordem do trabalho e vida estranhadas.

Assim, a formação pequeno-burguesa deu a Biff e Happy um sentido vital

na autonomia pessoal e busca de “espaços abertos”. Mas existe uma

singularidade pessoal em Happy que se contrasta com a singularidade pessoal

de Biff. Embora os dois irmãos tenham nascido e se desenvolvido no interior da

mesma ordem familiar, dão respostas diferenciadas aos seus carecimentos

radicais. Eis o espaço da singularidade do homem singular.

Happy afirma-se dentro da ordem competitiva de mercado, nas relacões

concorrencias no trabalho, predando as mulheres dos concorrentes. “Faço isso

sempre que quero, quando me sinto enojado. Mas é como boliche. Eu derrubo

todas, mas isso não significa nada.” Ora, Happy é um exímio manipulador da

afetividade humana. É seu modo de sublimar – às avessas – o trabalho (e vida)

estranhados. É a vingança íntima contra seus concorrentes. Ele diz: “Vai me

chamar de canalha. Charlotte, a garota de hoje, vai casar em cinco semanas. Ele

quer ser vice-presidente. Talvez eu seja competitivo demais. Mas acabei com ela

e agora não me livro dela. É o terceiro executivo com quem faço isso.. Não é

safadeza? E ainda vou aos casamentos”. Apesar disso, Happy, tal como Biff diz

querer se casar e ter uma garota séria: “Alguém de caráter, substância, como a

mãe.”

Page 36: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

36 

 

É curioso que Happy contesta o sistema competitivo, explicitando, de

forma cínica, seus artifícios de manipulação, atingindo os concorrentes naquilo

que é um ponto nevrálgico da vida pessoal – a afetividade.

Pode-se conhecer muito da natureza de uma sociedade pelo modo como

seus homens tratam as mulheres. Happy tornou-se um homem cínico – canalha,

competitivo e safado, mas que possui intimamente bons ideais (como seu irmão

Biff). Curiosamente, é por sentir nojo do sistema que ele age - de forma padrão e

com exímio talento – como qualquer integrante do sistema. Esta é a inversão

estranhada que lhe consome a personalidade humana. Com as mulheres, adota

uma afetividade-boliche – “derruba todas, mas isso não significa nada.” É a

manipulação em sua forma cínica. Há uma auto-satisfação particularista

intimamente estranhada.

Willy Loman divaga sobre o tempo passado. É através das divagações

retrospectivas de Willie que organizamos, aos poucos, elementos da sua deriva

existencial. Em seu devaneio passadista, ele acabara de chegar de viagem no

Chevy vermelho. Os filhos treinam soccer. O filho Biff observa: “Sentimos

saudades”. Willy se interroga: “Saudades?”. Biff: “O tempo todo”. E o pai conta

um segredo – a sua utopia pessoal de autonomia laboral. Ele diz que um dia

terá seu próprio negócio e nunca mais sairá de casa. Ele sente o fardo do

trabalho estranhado que lhe afasta da convivência familiar. Para compensar,

promete aos filhos leva-los numa dessas viagens e mostra-los todas as cidades.

Biff diz: “Adoraria ir com você”. Mas as viagens de Willie são viagens de

trabalho e não viagem de férias. Naquela época, pai e filho são amigos.

Willy Loman cultiva valores pequeno-burgueses que entram em conflito

crucial com as determinações do trabalho estranhado. Aos poucos sua vida

íntima (e familiar) torna-se estranhada. O homem de sucesso, segundo Willy, é

aquele que é apreciado e popular. É o que projeta – intimamente – para o filho

Biff. Enquanto isso, o jovem Bernardo, filho de Charley, alerta continuamente

para Biff: “O professor vai reprovar você em Matemática se não estudar”.

Page 37: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

37 

 

Na fase de ascensão histórica do capital, a Educação era garantia de

mobilidade social. Willy Loman, “alienado” da vida familiar e imerso em sonhos

pequeno-burgueses, não se atentou para o desprezo que o filho mais velho dava

aos estudos universitários.

Ora, Willy é um homem que busca uma resposta. A incapacidade de

encontra-la é sintoma de sua despersonalização irremediável. Willy diz sobre

Ben: “Ele é o único homem que conheço que conhece as respostas.” E diz para

Ben: “Espero você há muito tempo. Qual é a resposta? Como conseguiu?”.

Mas o irmão Ben está sempre correndo. Não tem tempo para conversar

com Willy, talvez, do mesmo modo como Willy em toda sua vida de trabalho

estranhado, não teve tempo para conversar com esposa, filhos e inclusive

consigo mesmo. Ben diz continuamente: “Tenho pouco tempo.” Talvez o irmão

mais velho seja um espectro de si. Na verdade, Willy é o homem do monólogo.

Está imerso num particularismo estranhado. O drama da “Morte de um

caixeiro-viajante” é também um drama da incomunicabilidade (um dos

atributos da condição de proletariedade).

O irmão mais velho, Benjamin Loman, é o homem de sucesso no

imaginário de Willy. Ele apresenta Ben para os filhos: “Rapazes! Ouçam isso!

Seu tio Ben, um grande homem!”. Ora, Ben é o espelho que reflete os anseios

pequeno-burgueses de Willy. É aquilo que ele queria ser e não foi. Ben diz: “Eu

entrei na selva aos 17 anos e sai aos 21. Estava rico!”.

Mas o sucesso de Ben não é o sucesso do homem carreirista do trabalho

heteronomo do salariato capitalista, mas sim do homem desbravador, audaz e

empreendedor, com autonomia laboral e dono de seu próprio negócio nas

fronteiras de expansão civilizatória. Um homem de sorte – Ben ia encontrar o

pai no Alasca e em vez disso, chegou na África (“Eu era ruim em geografia”),

onde descobriu Minas de Diamantes. O Alasca é a terra da promissão. Ben diz:

“Preciso avaliar algumas terras no Alasca. Se tivesse ido ao Alasca tudo seria

diferente.” Ou ainda: “Há muitas chances no Alasca. Devia estar lá.”

Page 38: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

38 

 

É por meio do “espectro” de seu irmão mais velho que conhecemos as

origens de Willy Loman – seus anseios, desejos e sonhos de vida pessoal que,

com o tempo, se frustraram e se perderam no tempo. Por isso, nesse momento

de sua vida, quando a natureza do trabalho estranhado e o estranhamento de

sua vida íntima se explicitam, ele se perde de si e dos outros.

Willy pede ao irmão Ben que fale para seu filhos, do pai, um homem

empreendedor, artesão desbravador de novas oportunidades de negócios,

“patrão de si mesmo”, que utilizava os filhos para vender as flautas que

fabricava. Diz Willy: “Fale do pai! Eles [Biff e Happy] precisam saber de onde

vieram. Só lembro dele com barba grande. Eu estava com a mãe perto da

fogueira, ouvindo música. ” O irmão Ben diz: “Era flauta. Ele tocava flauta.” E

prossegue: “O pai era um homem extraordinário. Saímos de Boston. Ele colocou

a familia na carroça. Ele atravessou o país: Ohio, Michigan, Illinois. Todos os

estados do Oeste. Nas cidades, vendíamos as flautas que ele fabricava. Era um

inventor. Com um aparelho fazia mais flautas numa semana do que alguém

numa vida.” E Willy exclama: “É como eu os crio: ‘durões, populares, versáteis’”.

Encontramos na reminiscência do passado familiar de Willy Loman, os

valores de autonomia laboral que cultivava e a partir dos quais, educara os

filhos. Certa vez, dialogando com o irmão Happy, Biff disse que eles não foram

educados para ganhar dinheiro. Ora, a socialização que Willy Loman deu aos

filhos – uma socialização pequeno-burguesa de cariz tradicional - era uma

socialização inadequada à ordem competitiva emergente nos Estados Unidos da

América do pós-guerra.

Ao confrontar-se com a ordem capitalista urbano-industrial do trabalho

assalariado heterônomo, Biff e Happy “surtavam”, cada um a seu modo, tendo

dificuldades de adaptação à sociabilidade moderna. Submerso em “espectros”

do passado, estranhando o insucesso (e deriva existencial) do filho Biff e

desprezando as artimanhas boêmias – mera “sublimação às avessas” – do filho

Happy, o estranhamento de Willy Loman estende-se à prole familiar.

Page 39: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

39 

 

Num certo momento, Willy disse, espelhando-se no irmão Ben:’”É como

eu os crio: durões, populares e versateis.” Na verdade, tais atributos morais na

ordem competitiva que emergia com o capitalismo urbano-industrial adquiriam

outros significados, tendo em vista que a dureza, popularidade e versatilidade

do homem moderno dizia respeito a ordem do trabalho heterônomo, onde ser

duro poderia significar saber cumprir ordens e ter disciplina meramente

protocolar; e ser popular significava fingir e ser farsante; ou ainda, ser versátil

implicava em ser adaptável às multitarefas estranhadas.

O tio Ben dá uma lição a Biff, após derruba-lo num golpe de mão: “Nunca

brigue com um estranho. Jamais saíra da selva assim”. Em sua ingenuidade

visceral, Willy Loman não conseguira ensinar aos filhos – principalmente a Biff

– as artimanhas da selva (inclusive a selva do mercado), onde a cautela e a

desconfiança é um traço indispensável para a sobrevivência pessoal. De certo

modo, a falsidade das pessoas na ordem competitiva burguesa é um traço de

caráter adequado à selva de mercado.

O velho caixeiro-viajante possuía uma frustração íntima – não ter ido, tal

como o irmão Ben, para a selva da África, desbravar novas terras e conquistar

espaços abertos. Pelo contrário, escolhera trabalhar em vendas como

empregado subalterno. Disse Willy: “Ben, estamos no Brooklin, mas também

caçamos. Temos cobras, coelhos; por isso vim para cá. Biff derruba qualquer

árvore.” Imaginando-se em “espaços abertos”, Willy delirava e incentivava o

filho mais velho a pegar areia e madeira da construção do prédio vizinho –

materiais de construção que valiam muito dinheiro - como se a circunvizinhança

fosse campo aberto a ser desbravado como “terra de ninguém”.

Na verdade, Biff crescera com disposição íntima em furtar. Talvez seja

manifestação de sentimento inconsciente de expropriação contra a ordem da

propriedade privada, ordem competitiva que constrange espaços abertos para o

desenvolvimento humano-generico. Linda, inquieta com as atitudes do filho

Biff, dizia: “Não deixe Biff roubar mais”. Mas Willie tem uma profunda

Page 40: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

40 

 

despercepção do real – diz: “As cadeias estão cheias de destemidos” e observa

que Biff, um garoto vigoroso, não roubou nada: “Não há nada errado”.

Enfim, Willy Loman é um homem fora do tempo histórico da nova ordem

burguesa que emerge com o capitalismo monopolista. Essa nova ordem

capitalista não exige homens destemidos, mas meramente homens venais,

adaptáveis – muitas vezes, com um toque de esperteza – às disposições

burocráticas da ordem burguesa.

No decorrer do filme, verificamos que Willy Loman vive o drama da crise

profissional e dos impasses na socialização dos filhos – talvez ele se pergunte: o

que aconteceu?. A grande depressão afetou seus negócios de vendas. Charley,

seu vizinho diz: “Meu homem da Nova Inglaterra deu-se mal. Não viu nada por

lá.” Willy diz que não e que sua viagem foi apenas para contatos importantes.

Mas admite depois: “Os negócios vão mal. É terrível”

A crise de negócios expeliu suas angústias com a escolha profissional –

trabalhar em vendas. Mas, ao mesmo tempo, Wily é um homem preocupado

com a socialização dos filhos, Como educá-los? É ao teu irmão Ben que procura.

Disse: “Você é o que preciso. O pai partiu quando eu era pequeno. Nunca falei

com ele. Ainda me sinto inseguro.”.

Talvez esta seja a raiz da insegurança existencial de Willie, insegurança

íntima que se transmite para a educação dos filhos. Diz: “As vezes acho que não

os ensino direito. Como devo ensiná-los?”. Para ele, o irmão mais velho, Ben, é o

modelo de vida. E Ben sempre diz: “Eu entrei na sela aos 17 anos. Sai aos 21. E

estava rico”. Willy exclama: “É o espírito que quero neles. Entrar na selva. Eu

estava certo.”

O filme “Morte de um caixeiro-viajante” trata da crise estrutural do

homem proletário de “classe média”: Willy Loman . É um complexo de crises

objetivas e subjetivas, interconectadas entre si - crises íntimas da

individualidade pessoal de classe, crise dos negócios, crise profissional, crise

existencial e crise de socialização da prole.

Page 41: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

41 

 

No ser de Willy Loman, há uma profunda insegurança existencial que lhe

afeta a auto-estima pessoal (diz ele: “O pai partiu quando eu era pequeno”).

Esse o traço de singularidade do homem singular Willy Loman. Há forças

pessoais inconscientes que obstaculizam seu desenvolvimento humano-pessoal,

afetando sua percepção do real. Na verdade, como homem proletário em

processo de desefetivação humano-genérica perdeu o sentido de realidade. Ele

ensina aos filhos um modelo de vida que não é adequado ao capitalismo

moderno. Por exemplo, o espirito do irmão mais velho, Ben, homem

desbravador, não se coaduna com o mundo das grandes empresas, onde a

subalternidade de caráter é o traço pessoal mais adequado.

Na medida em que se aprofunda a angústia existencial de Willy em

virtude da sua deriva profissional, o caixeiro-viajante se interroga cada vez mais,

como o irmão mais velho Ben conseguiu o sucesso: “Como conseguiu? Qual a

resposta? Preciso falar com você.” Mas, como observamos acima, de forma

recorrente, Ben nunca tem tempo para falar com Willy: “Não tenho tempo” ou

ainda “Não tenho muito tempo”.

Talvez seja expressão da insegurança primordial de Willie, um homem

cujo pai o abandonara quando pequeno. Ao ser demitido por Howard, Willy

chega a sua situação-limite: “Nada dá certo. Não sei o que fazer.” Wi;;ly Loman

é um homem desencontrado com os Outros e consigo mesmo.

No decorrer da tragédia pessoal, Willy Loman é empurrado cada vez mais

para fantasias interiores: do sonho pequeno-burguês tradicional, insustentável

nas condições históricas do capitalismo da grande empresa (que exige outro tipo

de espirito pequeno-burguês - o espirito do homem pequeno-burguês de

espaços fechados de carreira, que cultiva sua falsidade . executando tarefas

medíocres) para a fantasia do empreendedor de caráter, que desbrava novas

terras distantes, como o Alasca. Diz o irmão Ben: “Tem um novo continente à

vista. Deixe a cidade. Só há conversa e processos judiciais aqui. Você pode obter

uma fortuna lá.” E diz ainda: “Há um continente a seus pés. Pode sair rico.”.

Page 42: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

42 

 

Na verdade, o irmão Ben representa para Willy a fuga do real. É a plena

manifestação espectral de sua desefetivação humano-genérica, sintoma íntimo

de sua deriva profissional e deriva pessoal. A crise existencial é a matriz da

crise estrutural de Willy Loman.

Ao mesmo tempo, é por meio das fantasias interiores com o irmão Ben,

que constatamos, na vida familiar de Willie Loman, a socialização inadequada

dos filhos Biff e Happy. Willy cultivou nos filhos valores pequeno-burgueses

defasados. Na medida em que Willy fracassou no sonho profissional – ele

sempre almejou intimamente ser como o irmão Ben – o caixeiro-viajante tendeu

a projetar seus ideais pessoais anacrônicos nos filhos Biff e Happy

(principalmente Biff, o filho mais velho, que seria o que o pai não foi – ora, é

importante ressaltar que Biff não é Willy Loman.).

Bernard, filho de Charlie, é um homem de sucesso – ele se tornou tudo o

que Biff não conseguira ser. Ao encontra-lo no escritório do pai, Willy interroga

Bernard: “Qual o segredo? Por que você? Por que ele [ Biff] nunca conseguiu?”

Esta claro que Willy Loman é um homem que se interroga, buscando

uma explicação para o segredo do sucesso do irmão Ben e de Bernard e as

causas do fracasso do filho Biff (é interessante que Willy Loman jamais se

interroga porque ele – o caixeiro-viajante - fracassou).

Diz Willy para Bernard: “Voce era amigo dele. Tem algo que não entendo.

A vida dele acabou após aquele jogo.” Primeiro, Bernard identifica a causa do

fracasso de Biff na educação – “Ele nunca estudou para nada”. Mas, existe uma

incognita contingente que intriga Bernard : por que Biff não foi fazer a prova de

recuperação? Biff foi a Boston comunicar ao pai a reprovação. Mas quando

voltou de Boston, era um outro homem. Diz Bernard: “Ele foi reprovado e

apagou como se um martelo o atingisse.” E fez a pergunta: “Por que ele se

entregou? Era estranho saber que ele tinha desistido da vida. O que aconteceu

em Boston?”. Willy exclama: “Quer me culpar? Se ele fracassa, a culpa é

minha?”.

Page 43: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

43 

 

Ora, o fracasso de Biff é constituido por um complexo de causalidades

necessárias e causalidad contingentes que constituem sua singularidade

pessoal e que determinam sua individualidade pessoal de classe:

Primeiro, Biff nunca se dedicara aos estudos. Bernard, ao contrário,

investira em seu “capital humano”, ascendendo, deste modo, na vida

profissional. É o homem de sucesso no mundo capitalista em ascensão.

Mas, existe uma causalidade contingente, vinculada à singularidade

pessoal de Biff – por que ele desistiu de lutar pela vida? Enfim, como ele

respondeu àquela situação contingente da vida pessoal.

O evento contingente crucial foi o que aconteceu em Boston, quando Biff

encontra o pai com a suposta amante e discute com ele. Chama o pai de

mentiroso e farsante. Naquele momento, desmancha-se a imagem do pai que

ele cultivava: o pai que lhe ensina o que um homem deve ser. Naquele

momento, Biff, em sua iterioridade, “mata” o Pai, autoridade moral suprema da

ordem familiar. Em seu íntimo, Biff fica indignado por Willy dar “as meias da

mamãe” à amante. Este fato singular detonou o complexo de obstruções intimas

que conduziria Biff à estagnação em sua vida profissional nos próximos quinze

anos.

O trabalho de caixeiro-viajante é um trabalho solitário. De cidade em

cidade, em quartos de hotéis vazios, sem ninguém para conversar. Willy diz para

a amante: “Sinto-me tão só”. Além disso, a singularidade do caixeiro-viajante

Willy Loman, homem inseguro, é marcada por uma angústia primordial – o pai

partiu quando ele era pequeno e nunca falou com ele. Portanto, em sua origem

primordial, é um homem ontologicamente solitário cujo egoísmo decorre da

necessidade intima de se auto-preservar diante do abandono primordial.

Eis o elemento da singularidade pessoal de Willy Loman que obstaculiza

– ao lado do trabalho estranhado e dos valores-fetiches da ordem pequeno-

burguesa que cultiva, o desenvolvimento de sua personalidade humana. Ao

tornar-se caixeiro-viajante, o trabalho intrinsecamente solitário contribuiria

Page 44: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

44 

 

sobremaneira para sua deriva pessoal. Portanto, não é apenas a dimensão do

trabalho estranhado (a solidão do trabalho) que explica a deriva pessoal de

Willy, mas há também elementos singulares vinculados a sua origem enquanto

individualidade pessoal (o trabalho da solidão).

Willy Loman está – mais uma vez – intrigado: não entende como

Bernard se tornou um homem de sucesso sem que o pai – o amigo Charlie -

nunca lhe dissesse o que fazer ou se interessasse demasiadamente por ele.

Charlie diz: “Minha salvação é que nunca me interessei por algo.” Apesar da

orientação constante sobre como deve ser um homem de sucesso e do interesse

candente por Biff, Willy não conseguira evitar o fracasso do filho.

De fato, as interrogações de Willy Loman decorrem da sua imersão num

complexo de relações fetichizadas – ou intransparentes - consigo mesmo e

com os outros. Enfim, o caixeiro-viajante vive na névoa existencial. Vive

constantemente se interrogando imerso em seu particularismo pessoal. Como

temos salientado, o drama “Morte de um caixeiro-viajante” é quase um

monólogo de Willy Loman. Não conhece a si mesmo na medida em que não

conhece o mundo social em que vive. É um homem alienado de si e dos outros.

Willy pede mais uma vez dinheiro emprestado a Charlie para pagar o

seguro de vida. Charlie pergunta o que está acontecendo. Diz: “Eu lhe ofereci

um emprego”. Mas Willy assevera: “Tenho um emprego”. E Charlie retruca:

“Sem salário.” E afirma: “Que tipo de emprego é esse que não paga?”.

Na medida em que Willy não consegue vender nada, ele perde as

comissões. O emprego de caixeiro-viajante vincula a remuneração à venda dos

produtos. Willy velho e cansado com a idade, quando deveria ter maior conforto

pessoal, tem, ao contrário, seu rendimento salarial decrescido. Vive pedindo

empréstimos ao amigo Charlie. Eis um dos elementos decisivos de sua deriva

profissional.

O diálogo entre Charlie e Willy é deveras interessante. Mais uma vez,

Willy explicita sua candente ingenuidade pessoal. Não conhece o mundo em

Page 45: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

45 

 

que vive – o mundo do capital como dinheiro, onde o que conta é o valor de

troca e não o valor de uso. A lógica dominante do valor de troca possui

profunda implicação nas atitudes estruturantes da sociabilidade burguesa. Willy

lamenta que tenha sido demitido por alguém cujo nome foi atribuído por ele”:

“Dei seu nome. Dei-lhe o nome de Howard.” Charlie retruca: ”Quando

perceberá que isso não significa nada? Você deu-lhe o nome de Howard, mas

não pode vender isso. A única coisa que tem valor nesse mundo é o que pode

vender. Você é um vendedor e não sabe disso.” Willy diz: “Sempre tentei pensar

de outra maneira. Sempre pensei que se um homem causasse boa impressão,

fosse popular…”. Charlie, atento à lógica do dinheiro como capital que organiza

a vida moderna diz: “Por que todos devem amá-lo? Quem gostava de J.P.

Morgan?. Ele impressionava? Na sauna parecia um açougueiro. Mas com seus

bolsos, era popular. ” Enfim, o que conta é o dinheiro e não atitudes morais.

Após receber o dinheiro para pagar o seguro de vida, Willy observa, antes

de sair: “Engraçado, após todas as estradas e trens, e reuniões e os anos, você

acaba valendo mais morto que vivo.” Finalmente, Willy conseguiu perceber um

traço estrutural do mundo do capital. Entretanto, esta é a conclusão de um

homem que desistiu de lutar pela vida.

Willy se dirige a Howard para dizer que tomou a decisão de não viajar

mais. Está cansado e pretende ficar em Nova York. Lembra a Howard a

promessa que ele - Howard - fizera no Natal de que arranjaria alguma coisa para

ele no escritório. Mas o diretor-chefe diz: “Não consegui pensar em nada para

você”. E prossegue: “Mas você é caixeiro-viajante. Trabalhamos na estrada.

Temos poucas pessoas aqui”. Willy insiste”: “Escute os filhos cresceram. Não

preciso de muito. Se ganhar US$ 65 poderei pagar as contas.” Aos poucos Willy

vai baixando a pretensão salarial com Howard, na medida em que verifica que o

diretor-chefe resiste em aceitar sua proposta – de US$ 65 passa para US$ 50 e

depois para US$ 40.

Page 46: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

46 

 

Utiliza vários argumentos com Howard. Primeiro, apela para

argumentos sentimentais: “Eu estava aqui quando seu pai o levava nos braços.

Quando você nasceu, ele perguntou o que achava do nome Howard.”

Depois, utiliza argumentos de autoridade que decorre da experiência de

trabalho. “Quando eu tinha 18, 19 anos, já estava ma estrada.” E lamenta a

dureza dos novos tempos da profissão de vendedor: “Amizade e personalidade

não contam.” Mas Howard está firme em seu propósito de não conceder a Willy

um lugar no escritório central: “Assim são as coisas”.

Finalmente, Willy utiliza o argumento final: a promessa do pai de

Howard: “Falo de seu pai! Foram feitas promessas aqui.” Mas no mundo dos

negócios do capital, não há espaços para sentimentos, experiências do passado e

promessas de ocasião

Logo que Willy chega no escritório central, Howard pergunta: “Teve

outra crise?”. O que demonstra que não foi a primeira vez que Willy se dirigiu a

Howard para tratar de problemas do trabalho. Na verdade, a deriva profissional

de Willy Loman se arrasta há anos. A situação-limite chegou quando ele

demasiadamente cansado, não consegue mais viajar e explicita-se, ao mesmo

tempo, a deriva pessoal com as reminiscências e impasses familiares na relação

pessoal com o filho Biff..

Foi na época do Natal que Howard disse que arranjaria algo para Willy

Loman no escritório central. Naquela época, ele já percebia que não podia

continuar mais viajando – o cansaço o atormentava depois de quase 35 anos de

trabalho como vendedor, viajando pelas estradas do país. Entretanto, o período

de Natal é ocasião para promessas piedosas que reconfortam a consciência

burguesa atormentada pela dureza dos negócios o ano todo. É uma temporada

de troca de presentes e gestos alvissareiros de doces hipocrisias. O burguês

Howard não poderia deixar de prometer a Willy, na época do Natal, o que mais

tarde não poderia cumprir: “Não consegui pensar em nada para você”.

Page 47: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

47 

 

Willy pede um favor. Diz que nunca tinha feito isso. E lembra a Howard

que foi ele que lhe deu o nome de Howard. O diretor-chefe lhe agradece, mas diz

em seguida que não há lugar para ele ali. “Se tivesse, eu o traria para cá, mas

não tenho.” O apelo sentimental de Willy não comoveu Howard que observa que

isso é um negócio : “Todos precisam de se virar”.

Na verdade, Howard é um escravo do capital. Apenas cumpre o que as

imposições dos negócios o obrigam. Talvez não houvesse mesmo lugar para

Willy no escritório. Para inclui-lo, talvez tivesse que se submeter a gastos extras.

No sistema da concorrência, não há lugar para favor ou concessões pessoais. O

capital pode não perdoar. Como homem de negócio, Howard apenas nada pôde

fazer. Diz ele: “Não posso tirar sangue de pedra”

Willy tenta utilizar o argumento da experiencia do passado para comover

Howard. Conta sua pequena história de vida e história do trabalho, inclusive

dizendo porque optou pela profissão de vendedor.

Diz ele: “Quando eu tinha 18, 19 anos já estava na estrada. Nessa época

eu queria ir para o Alasca. Acharam três veios num mês no Alasca. Eu queria ir.

Queria aventura. Meu pai morou no Alasca. Era um aventureiro. Minha falimia

é destemida. Pensei em ver meu irmão e ficar no Norte. Estava quase decidido a

ir, quando encontrei um vendedor em Park House. Seu nome era Dave

Singleman. Tinha 84 anos. Já tinha vendido em 31 estados. Ele ia para sua sala,

colocava o chinelo verde. Telefonava para os compradores. Nunca saia da sala.

Vendo isso, percebi que vender era a maior carreira do mundo. O que poderia

ser melhor do que ir, aos 84 anos a 20 ou 30 cidades, pegar o fone e ser

lembrado e amado por tanta gente? Ele teve a morte de um caixeiro-viajante.

De chinelo verde, no trem Nova York-New Haven-Boston. Centenas de

vendedores e clientes foram ao funeral. O ambiente ficou triste nos trens por

três meses.”

Willy escolheu a profissão de vendedor – “vender era a maior carreira do

mundo”- não apenas porque lhe dava uma margem de autonomia laboral, mas

Page 48: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

48 

 

porque que era uma profissão lhe prometia que ele seria lembrado e amado por

muita gente.

No mundo duro da civilização do capital, onde a concorrência,

indiferença, ambição e coragem eram os traços marcantes, a carreira de

vendedor parecia para ele, quando jovem, um lugar paradisíaco No fundo,

Willy não um homem destemido, como pai e irmão que enfrentavam a corrida

do ouro no Alasca. Ele era um homem simples (em inglês: singleman).

Após contar a história de Dave Singleman, ele consegue fazer um juízo

lúcido dos tempos modernos, lamentando a dureza do mundo dos negócios. Na

verdade, trata-se de uma nova época do capitalismo moderno – a época do

capitalismo monopolista, onde a máquina-capital impõe suas prerrogativas

automáticas, abolindo os espaços de iniciativa pessoal, onde alguns valores da

ordem tradicional – como amizade e camaradagem - permeavam as relações de

trabalho e de negócios. Willy diz: “Naquela época havia personalidade nisso.

Havia respeito e camaradagem. Agora, não há piedade. Amizade e

personalidade não contam.”

Enfim, o sistema do capital é o sistema da despersonalização. O ordem

competitiva de mercado impõe isso: despersonalização imposta pelo “sujeito

automático” do capital-dinheiro. Isto é, dinheiro que se auto-valoriza.

Despersonalização significa negar a personalidade, e por conseguinte, amizade

e respeito pessoal. Nega-se (e desefetiva-se) a pessoa humana. Howard apenas

diz: “Assim são as coisas” – as coisas do mundo das coisas-fetiches

Willy apela para a memória do pai de Howard: “Quando Al Smith foi

indicado, seu pai, falo de seu pai, foram feitas promessas aqui!”. Mas o capital

renega a memória (e promessas) da tradição, afirmando tão-somente o tempo

presente e a lógica do capital-dinheiro.

Mais diante Willy observa: “Em 1928, eu tive um grande ano. Ganhei

US$ 170 por semana de comissão. Você jamais ganhou isso. Ganhei US$ 170 por

semana de comissão em 1928. Seu pai me disse. Ele estava nessa mesa, pôs a

Page 49: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

49 

 

mão no meu ombro.” (um detalhe: em 1928, um ano antes do crack da Bolsa de

Nova York, o capitalismo norte-americana vivia uma exuberancia irracional).

Mas Howard sai da sala para atender alguém. Willy, delirando, conversa

com um espectro do tempo passado que ainda ocupa o mesmo espaço presente:

“Frank, não se lembra do que me disse? Como pôs a mão no meu ombro…”

Inadvertidamente, ele liga o gravador automático de Howard. O delírio do

tempo passado é “abolido” pelo aparato tecnológico do tempo presente.

Willy não se conforma com a indiferença de Howard.: “Trabalho há 35

anos e não consigo pagar o seguro. Não pode chupar a laranja e jogar o

bagaço. Um homem não é uma fruta.” Na verdade, eis a essência do mundo do

capital-dinheiro. Como disse Marx, sob o sistema do capital, o homem não vale

nada, sendo tão-somente uma mera carcaça do tempo.

Ao ser despedido, Willy diz que precisa ganhar dinheiro. Mas Howard,

quase de modo cínico, observa: “E seus filhos? Por que não o ajudam? Não seja

orgulhoso. Diga a seus filhos que está cansado. Voce tem filhos ótimos.” E Willy

exclama: “Não posso depender dos filhos. Não sou aleijado.”

Na verdade, Howard se utiliza de constrangimentos modernos para

excluir um homem da vida ativa; e apela – a título de compensação – para

“recursos previdenciários” da ordem tradicional. Sem dinheiro – Willy sequer

teria uma poupança ou previdência social – seria obrigado a depender da

generosidade dos filhos. Willy se sente um homem aleijado, absolutamente

dependente daqueles que pós no mundo – enfim, um homem fracassado à

enésima potência.

Um detalhe curioso: logo ao chegar na sala de Howard, Willy o encontra

fascinado com um gravador automático. Diz ele: “É a máquina mais incrível que

vi na vida.” E observa: “Comprei para ditados, mas ele tem muitos usos.” (no

filme “Tempos Modernos”, Charlie Chaplin, numa cena de verdadeira ficção-

cientifica, nos apresenta um vendedor automático que emite mensagens

gravadas de propaganda da nova máquina de alimentação oferecida para o

Page 50: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

50 

 

capitalista, que pretende reduzir, com ela, o tempo - e custos - de trabalho.

Talvez Howard não imaginasse que, um dia, as máquinas automáticas de

propaganda e merchandising – como a TV - iriam tomar o lugar do velho

caixeiro-viajante).

Ora, Willy Loman é um homem solitário. Diz: “Não tenho com quem

falar”; inseguro de si – ao contrário do irmão Ben que desbravou novas terras,

ele contentou-se em morar no Brooklin achando que lá era sua “Terra de

Ninguém”, próxima da vida selvagem, educando os filhos para outro mundo.

Willy Loman é um homem inválido – ao ser demitido por Howard, teve

invalidado toda uma trajetória profissional como vendedor, onde cultivara seu

pequeno sonho de sucesso. A demissão o invalidara. Foi mais um golpe em sua

personalidade à deriva.

O que se coloca, numa das cenas finais do filme, é a idéia de suicídio de

Willy – ele cometeria suicídio, forjando uma morte acidental para que a mulher

e filhos possam ficam com US$ 20 mil dólares da apólice de seguros. Mas o

espectro do irmão Ben, que dialoga consigo, diz que ele é covarde. Falta-lhe

coragem. Willy diz: “É preciso mais coragem para ficar aqui como inválido?”. O

irmão Ben diz que o filho o chamará de covarde, de grande idiota e que o odiará.

Wily fica inquieto, mas não desiste da idéia da solução final.

Willy é um homem proletário que perdeu a percepção de sentido de

realidade. Imagina que seu funeral será concorrido e que velhos amigos

acorrerão ao cemitério com placas estranhas. Lembremos que ele escolhera a

carreira de caixeiro-viajante imaginado que através dela poderia granjear

amizade e reconhecimento – enfim ser lembrado e amado por muita gente. Vã

ilusão! Imaginava que o funeral seria o ocasião para o filho Biff – a quem

sempre procurou impressionar – ver que ele era um homem conhecido. “Ele

verá com os próprios olhos, de uma vez por todas. Ele verá o que sou. Ele terá

um choque”. Pura fantasia! No enterro de Willy só apareceram mulher, filhos, o

amigo Charlie e o filho Bernard. “Onde estão os amigos?”. Perdido na vida,

perdido na morte.

Page 51: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

51 

 

Talvez Willy Loman imaginasse que seu funeral fosse como o de Dave

Singleman, o velho vendedor que lhe inspirou a seguir a carreira de caixeiro-

viajante há muito tempo. Dave Singleman teve a morte de um caixeiro-viajante.

O fracasso de Willie Loman foi irremediavelmente completo – não teve sequer o

funeral de um caixeiro-viajante.

Willy Loman não apenas não sabia quem era, mas também desconhecia

em que mundo social vivia. No mundo do capital não havia lugar para

personalidade, amizade e camaradagem e, muito menos, para piedade . No

mundo dos negócios – a selva do mercado e da corrida do ouro - o que valia

eram os registros do Poder e do Dinheiro. Na verdade, algo obnubilava em

Willy, a percepção de si e dos outros. A adoção de valores pequeno-burgueses

anacrônicos era sintoma de uma inadequação pessoal.

Willy Loman, homem solitário e sozinho no mundo, carente de atenção e

amizade, fizera escolhas na vida baseado em sua personalidade singular.

Desistiu de seguir o pai e o irmão mais velho em suas aventuras destemidas no

Alasca em busca do ouro. Encontrara na carreira de vendedor um espaço para a

amizade e o reconhecimento pessoal, além da possibilidade de autonomia

laboral.

Entretanto, os tempos mudaram – as qualidades humanas que sonhara

para si e para seus filhos, não serviam no mundo administrado dos grandes

negócios Disse Linda: “Um vendedor precisa sonhar. É inerente à profissão”.

Mas o sonho de Willy era inadequado à ordem competitiva do capital

monopolista. Na verdade, seu sonho era uma auto-ilusão. Os registros de seus

“sonhos” do que era ser um homem de sucesso não eram validados pela nova

ordem burguesa do trabalho mecanizado e das personas medíocres e venais do

capital.

Page 52: Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma ... medida em que o homem é um

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

52 

 

Questionamentos

1. Em que medida o capitalismo global dissemina ilusões pequeno-

burguesas? Identifique algumas delas no mercado de ideologias

dominantes.

2. Nas condições sócio-metabólicas do capitalismo global, quais os

elementos que contribuem para a despersonalização do homem que

trabalha?

3. Por que o filho Happy é quase desprezado pelo pai Willy Loman?

Giovanni Alves

(2009)